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Gustavo Costa e Jorge Lima da Silva (mestrandos UnB) AnÆlise da narrativa jornalstica: construªo de sentido pela notcia Introduªo Este trabalho propıe o uso da narratologia ou dos procedimentos da AnÆlise da Narrativa, tal como desenvolvida pela teoria da literatura, para a anÆlise da produªo de sentido pelos textos jornalsticos. 1 Acreditamos que atravØs dos procedimentos da narratologia Ø possvel remontar seqüŒncias de notcias sobre um mesmo tema recompondo histrias plenas de sentido que nos permitem visualizar aspectos simblicos nem sempre explcitos. Partindo do entendimento da notcia como um produto cultural, de carÆter ritualstico e antropolgico, propomos a recomposiªo de enredos em torno de temas que se mantŒm no noticiÆrio durante dias, semanas ou meses seguidos. Sobre estas histrias recompostas, sugerimos a utilizaªo de categorias ou funıes (ordenamento temporal das aıes) da AnÆlise da Narrativa que permitam visualizar uma sintaxe narrativa e ligar os fios de um enredo subentendido pela redundncia ou repetiªo de conteœdos antes dissipados em notcias dispersas. Arma-se entªo uma trama na forma de intriga que sugere e permite a anÆlise dos conflitos, dos papØis das personagens, dos antagonistas e protagonistas, dos cenÆrios e das temporalidades narrativas. Vista desde sua narratividade, os relatos das notcias abrem-se entªo anÆlise simblica, como qualquer texto literÆrio ou obra de arte. Para nªo ignorar os aspectos operativos e profissionais prprios da comunicaªo jornalstica, sugerimos uma anÆlise do narrador, introduzindo-se neste processo os procedimentos da PragmÆtica da Comunicaªo, que traz o especfico da comunicaªo jornalstica para o interior da AnÆlise da Narrativa. Vamos por partes. Acreditamos que o discurso jornalstico se mostra permeado de sentidos 2 que podem ser observados e interpretados tanto pelo que evidencia quanto pelo que insinua, sugere ou oculta. 3 As notcias produzidas e veiculadas pelos meios de comunicaªo de massa nªo apenas trazem audiŒncia informaªo, mais que isso, atualizam a realidade social. Renovam diÆria e cotidianamente a percepªo do mundo, do espao de convvio e de aªo. O jornalismo atua alØm da mera produªo de 1 A narratologia Ø um ramo da teoria literÆria ainda em conformaªo. Sugerimos, para o seu entendimento preliminar, a leitura de Mieke Bal, Teoria de la Narrativa (Una Introduccin a la Narratologia), CÆtedra, Madrid, 2001 2 A palavra sentido serÆ utilizada, daqui por diante, para referir-se s potencialidades semnticas. Evitaremos, pois, a palavra significado para evitar confusıes conceituais com a perspectiva saussuriana de referŒncia aos termos lingüsticos. Entendemos que o termo significado tal como proposto por Saussure possui carÆter mais fixo e estÆtico, enquanto sentido nos oferece volatilidade, dinmica, atualizaªo constante e multiplicidade. 3 Nos œltimos anos, diversos estudos procuraram identificar elementos ideolgicos dos fatos narrados pelas notcias para alØm dos conteœdos proporcionais. Sªo estudos por demais conhecidos e por isto julgamos dispensÆvel citÆ-los aqui.

Narratologia texto jornalístico

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Narratologia texto jornalístico

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  • Gustavo Costa e Jorge Lima da Silva (mestrandos UnB) Anlise da narrativa jornalstica: construo de sentido pela notcia

    Introduo Este trabalho prope o uso da narratologia ou dos procedimentos da Anlise da

    Narrativa, tal como desenvolvida pela teoria da literatura, para a anlise da produo

    de sentido pelos textos jornalsticos.1 Acreditamos que atravs dos procedimentos da

    narratologia possvel remontar seqncias de notcias sobre um mesmo tema

    recompondo histrias plenas de sentido que nos permitem visualizar aspectos

    simblicos nem sempre explcitos. Partindo do entendimento da notcia como um

    produto cultural, de carter ritualstico e antropolgico, propomos a recomposio de

    enredos em torno de temas que se mantm no noticirio durante dias, semanas ou

    meses seguidos. Sobre estas histrias recompostas, sugerimos a utilizao de

    categorias ou funes (ordenamento temporal das aes) da Anlise da Narrativa que

    permitam visualizar uma sintaxe narrativa e ligar os fios de um enredo subentendido

    pela redundncia ou repetio de contedos antes dissipados em notcias dispersas.

    Arma-se ento uma trama na forma de intriga que sugere e permite a anlise dos

    conflitos, dos papis das personagens, dos antagonistas e protagonistas, dos cenrios

    e das temporalidades narrativas. Vista desde sua narratividade, os relatos das notcias

    abrem-se ento anlise simblica, como qualquer texto literrio ou obra de arte. Para

    no ignorar os aspectos operativos e profissionais prprios da comunicao

    jornalstica, sugerimos uma anlise do narrador, introduzindo-se neste processo os

    procedimentos da Pragmtica da Comunicao, que traz o especfico da comunicao

    jornalstica para o interior da Anlise da Narrativa. Vamos por partes.

    Acreditamos que o discurso jornalstico se mostra permeado de sentidos2 que

    podem ser observados e interpretados tanto pelo que evidencia quanto pelo que

    insinua, sugere ou oculta.3 As notcias produzidas e veiculadas pelos meios de

    comunicao de massa no apenas trazem audincia informao, mais que isso,

    atualizam a realidade social. Renovam diria e cotidianamente a percepo do mundo,

    do espao de convvio e de ao. O jornalismo atua alm da mera produo de

    1 A narratologia um ramo da teoria literria ainda em conformao. Sugerimos, para o seu entendimento preliminar, a leitura de Mieke Bal, Teoria de la Narrativa (Una Introduccin a la Narratologia), Ctedra, Madrid, 2001 2 A palavra sentido ser utilizada, daqui por diante, para referir-se s potencialidades semnticas. Evitaremos, pois, a palavra significado para evitar confuses conceituais com a perspectiva saussuriana de referncia aos termos lingsticos. Entendemos que o termo significado tal como proposto por Saussure possui carter mais fixo e esttico, enquanto sentido nos oferece volatilidade, dinmica, atualizao constante e multiplicidade. 3 Nos ltimos anos, diversos estudos procuraram identificar elementos ideolgicos dos fatos narrados pelas notcias para alm dos contedos proporcionais. So estudos por demais conhecidos e por isto julgamos dispensvel cit-los aqui.

  • notcias para um consumo massivo de informaes. Configura-se em veculo de re-

    insero da audincia no universo social. Algo que se d de forma habitual, ritualstica.

    Falamos, pois, de um processo scio-cultural de produo, veiculao e absoro dos

    fatos do cotidiano, que atuam na construo social da realidade, medida que se

    transformam em experincias compartilhadas do mundo.

    Berger e Luckman4 observam que a apreenso da realidade social se d de

    forma objetiva e subjetiva, mediante um contnuo de tipificaes e padres

    recorrentes da interao. A relao do homem com o mundo social uma relao

    dialtica, ou seja, um atua sobre o outro. A sociedade um produto humano. A

    sociedade uma realidade objetiva. O homem um produto social. Torna-se desde j

    evidente que qualquer anlise que deixe de lado algum destes trs momentos ser

    uma anlise distorcida. Os padres, as tipificaes, os modelos, os paradigmas so

    ferramentas-guia para interiorizao da realidade e sua absoro como experincia

    social. Estes ganham contornos, amplitude e sentido no emaranhado de relaes

    histricas, tradicionais, mticas, religiosas, regionais, institucionais, etc., do que

    podemos chamar de cultura. Isto quer dizer que a realidade apreendida de forma

    objetiva e subjetivamente, atravs da interiorizao de sentidos estabelecidos scio-

    culturalmente. Fatos isolados pouco ou nada significam, seno, quando inscritos num

    contexto maior, num pano de fundo que permita interpreta-lo, encaixa-lo no escopo da

    realidade social. Esse processo no est livre de impresses do imaginrio. Ao

    contrrio, utiliza-se do imaginrio coletivo, do sistema simblico continuamente

    alimentado pelo universo cultural para preencher as lacunas deixadas na leitura

    meramente objetiva e racional.

    Para ns, como produto cultural, as notcias narram no apenas os fatos

    historicamente localizados, mas constroem a realidade social re-significando-a

    mediante elementos presentes no universo cultural5. Narram os dramas e tragdias da

    vida humana, os conflitos, as lutas, as utopias, os sonhos, os medos, os desejos, as

    frustraes, os sentimentos de personagens que preenchem as pginas de jornais e

    revistas, bem como a programao de rdio e tev. Esse processo narrativo do

    cotidiano surge impregnado de elementos provenientes do imaginrio e da memria

    cultural coletiva a misturar-se com a realidade objetiva dos fatos reportados. Interpretar

    simbolicamente a produo jornalstica, tal qual pretendemos, realizar uma espcie

    de etnologia da notcia. 4 BERGER, P & LUCKMAN, T. A Construo Social da Realidade.Petrpolis. Vozes. 2001, pg. 87. 5 MOTTA, Luiz Gonzaga. Conflito Poltico e Gerao de Sentido nas Notcias in Cadernos do CEAM n6, EdUnb, Braslia, 2001, p.33.

  • Pensamos que, apesar do esforo empreendido pelos profissionais de ater-se

    objetividade dos fatos, possvel observar na contnua produo jornalstica a

    recorrncia de notcias que narram histrias e conflitos que se repetem ao longo dos

    anos, com diferentes personagens e cenrios. Como fbulas que se atualizam para

    manterem-se vivas culturalmente. Notcias sobre morte e vida, sobre maternidade e

    paternidade, sobre lutas irreconciliveis, sobre esperana e solidariedade, sobre dor e

    alegria, sobre a natureza, seus encantos e calamidades, sobre amores que vencem

    obstculos, heris que viram bandidos, bandidos que viram heris. Fragmentos

    antropolgicos que emanam do recontar dirio da Histria do homem. Como num

    ritual, a cada dia que passa, mais um dia narrado. Um dia a ser posicionado na

    suprema narrativa humana. E nela, alcanar sentidos. justamente atravs da anlise

    destas narrativas produzidas pelas notcias que se torna possvel identificar e

    interpretar os sentidos alimentados por elementos culturais, e proceder a uma

    abordagem antropolgica das notcias. Entendida como produto cultural, dotado de

    sistema simblico estruturado em torno de sua linguagem, as notcias so postas em

    anlise a revelar de que forma surgem, na sua economia discursiva, os termos

    condutores a tal nvel subjetivo.

    A discusso desenvolvida neste trabalho trata as notcias como produtos culturais

    dotados de elementos antropolgicos que emergem dos contedos informativos

    proposicionais, transcendendo-os simbolicamente. Convm ressaltar que no se est

    considerando as notcias como textos de fico escritos por jornalistas. A prtica

    jornalstica de noticiar um exerccio instrumental de busca da objetividade mxima,

    de uma referencialidade limpa de juzos de valor, como exigncia profissional, o que

    pode ser observado nos manuais de redao e texto de introduo ao jornalismo. O

    que faz do jornalismo um mediador especializado da realidade social, na qual agente

    construtor e re-significador, sua credibilidade para contar a realidade histrica tal

    como ela . O jornalismo fala populao mediante um contrato de veracidade.

    Relata aquilo que apura como fato acontecido. No faz fico. O que muitas vezes

    confere uma ilusria crena de que o que se v nas notcias so os fatos, e no sua

    construo em forma de linguagem, sujeita a todas as suas imprecises. A mediao

    da realidade desempenhada pelo jornalismo emprega impresses reveladoras no

    apenas das intenes ideologicamente direcionadas, mas elementos antropolgicos

    como crenas, valores, desejos, ticas, morais e diversas outras nuanas que fazem

    parte da cultura onde esto inseridos todos os membros deste processo de mediao.

  • Contudo, acreditamos que h no processo de mediao da realidade social

    realizado pelas notcias componentes simblicos atuantes que interpelam os sujeitos

    durante os seus esforos de compreenso da realidade catica e contraditria. neste

    esforo de apreenso da realidade que o imaginrio dos leitores penetra no ato de

    leitura preenchendo as lacunas deixadas pelo texto6. A natureza logomtica da

    linguagem lhe confere potencial disseminador de sentidos que extrapolam a referncia

    direta e racional, pois sugere imagens, sensaes, texturas, sentimentos, memrias.

    Assim vistas, as notcias conformam um sistema eminentemente simblico. Como bem

    o prope Chilln, as notcias so estruturas simblicas que utilizam a linguagem para

    comunicar, para mediar fatos componentes da realidade social. E, por maior que seja a

    fora empregada ao narrar de forma objetiva e referencial, atuar sob a tenso entre

    conceito e imagem, entre logos e mythos. Portanto, mesmo as notcias jornalsticas

    objetivas so agentes construtores de uma realidade social e no mera reproduo

    como um espelho da realidade na medida em que narram a histria. Diz este autor que

    a linguagem humana no pode ser reduzida a relaes de significados cannicos,

    lineares e unidimensionais, puramente lgica e precisa, um veculo transportador de

    conceitos como um trem de mercadorias, no quais os vages (significantes)

    transportam a carga (significados), pois a palavra smbolo polissmico, alusivo,

    equvoco: Al concebir el lenguaje como retrico, Nietzsche nos dice no slo que la palabra es expresin y representacin en vez de reproduccin, sino tambin que tal expresin tiene inevitablemente un carcter figural, es decir, metafrico-simblico. La palabra es siempre tensin entre el concepto unvoco (logos) y la imagen equvoca (mythos), expresa siempre de modo figurado: imperfecto, incompleto, alusivo, borroso. Por su naturaleza eminentemente simblica, el lenguaje a un tiempo revela y oculta, alumbra, insina y oscurece: hay una zona de borrosidad y de claroscuro inevitable entre las palabras y su sentido.7

    A narratologia aplicada s notcias: narrativas da realidade Ao destacar o carter narrativo das notcias de jornal, no se est afirmando que

    estas so narrativas individuais acabadas e dotadas de elementos simblicos

    facilmente identificveis. Sua linguagem, forosamente objetivada, reduz a evidncia

    narrativa, embora no a extinga. 8 No numa nica e isolada notcia onde

    encontraremos uma narrativa a contar uma histria, mas num conjunto delas sobre o

    mesmo assunto, no contnuo acompanhamento de fatos que se sucedem ao longo de

    6 A palavra texto est sendo utilizada para descrever qualquer linguagem comunicativa, seja escrita, significa, icnica ou audiovisual. 7 Chilln, Albert, Jornalismo y Literatura, Alde Global, Barcelona, 1999, p. 34 8 Com exceo das notcias estilisticamente devotadas narrativa como os fait divers e as reportagens do new journalism

  • dias ou semanas seguidas. Como aes, ou episdios a conformar uma histria. Ou

    seja, na observao da seqncia de notcias que compem uma cobertura

    jornalstica que se pode observar a conformao de um enredo que conforma ento

    uma histria completa. Observadas em seu encadeamento, o conjunto das notcias

    formar uma seqncia de aes que transformam e modificam, no transcorrer do

    tempo, o estado inicial das coisas. O conjunto destas notcias o relato da histria

    recomposta - forma ento a base emprica para a aplicao das tcnicas

    hermenuticas da anlise da narrativa.

    O relato referencial, mimtico, e age cognitivamente na recriao de um universo

    que o ambienta e o suporta. O texto jornalstico no mais que a recriao lingstica

    de fatos. Como o o texto literrio. Contudo, este confronto mental se d com o que

    Ricoeur denominou o mundo da obra, uma proposio de mundo. Esta entendida no

    como a leitura de uma inteno oculta no texto, mas com a inteno de expor-se ao

    texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposio de existncia

    respondendo, da maneira mais apropriada possvel, proposio de mundo. Do que

    ele revela atravs da exposio do leitor ao mundo do texto e a resposta deste si mais

    amplo.9 Como prope Ricoeur leitura da obra de arte, tambm acreditamos que

    pode ser empregado leitura do texto jornalstico, a partir de um conjunto de notcias

    formadoras de uma narrativa. essencial a uma obra literria, a uma obra de arte em geral, que ela transcenda suas prprias condies psicossociolgicas de produo e que se abra, assim, a uma seqncia ilimitada de leituras, elas mesmas situadas em contextos scio-culturais diferentes. Em suma, o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociolgico quanto do psicolgico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa nova situao: o que justamente faz o ato de ler.10

    Para empreendermos a busca rumo identificao dos subsdios que relacionam

    dois mundos diversos, mas complementares, precisamos estudar a literalidade das narrativas. Segundo Jakobson, isso no significa fazer literatura, tampouco crtica literria, mas apreender as peculiaridades do discurso literrio, a partir da idia de sentido e interpretao. Com efeito, o sentido seria a correlao de um elemento da narrativa com outro elemento ou com a prpria narrativa. Por outro lado, a interpretao de um elemento da narrativa diferente, pois se constri segundo a personalidade, posies ideolgicas do analista e segundo a poca.11 Do ponto de vista de sua existncia, a narrativa no tem uma existncia independente, visto que aparece em um universo povoado por imagens e outras narrativas, no qual se integra.

    Em nossa proposta de construo de um modelo de anlise buscamos observar um tipo especial de obra em prosa: a narrativa. Sugerimos o uso da proposta metodolgica, elaborada por Todorov, para a analise das narrativas, aplicando tal 9 In RICOEUR, Paul. Interpretao e Ideologias. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1983, p. 58. 10 Ricoeur, op. cit., p. 53 11 Todorov, Tzvetan, As categorias da narrativa literria, in Anlise Estrutural da Narrativa, Vozes, Petrpolis, RJ, 1973, p.210.

  • mtodo s histrias relatadas pelas notcias durante determinado perodo de tempo, tal como observamos acima. Em princpio, a proposta de anlise enfoca a histria contada pelos veculos de comunicao de massa, cujos relatos, desencadeados por um acontecimento singular atravs da seqncia de notcias sobre um mesmo assunto divulgadas em edies sucessivas do jornais, telejornais ou radio-jornais. Com o objetivo de facilitar a observao dessa grande estria, sugerimos a utilizao da anlise da narrativa, aplicada sobre a histria reagrupada pela seqncia de notcias, complementada por uma anlise pragmtica e uma anlise simblica, tal como observaremos mais adiante.

    Como a obra literria, em especial a narrativa, entendemos ser o texto jornalstico,

    tambm, ao mesmo tempo uma histria e um discurso: Ela histria, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. Esta mesma histria poderia ter-nos sido relatada por outros meios; por um filme, por exemplo; ou poder-se-ia t-la ouvido pela narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em um livro. Mas a obra ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a histria; h diante dele um leitor que a recebe. Neste nvel, no so os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez conhec-los.12

    No texto jornalstico, procuramos identificar as categorias narrativas no domnio da

    histria, buscando na materialidade dos fatos: a lgica das aes, os personagens e

    suas relaes. preciso verificar como a trama, enredo, ou intriga organizada no

    plano de organizao macro-estrutural do texto narrativo, caracterizado pela sucesso

    dos eventos, segundo suas estratgias discursivas. Os eventos so apresentados de

    forma encadeada de modo a fomentar a curiosidade do leitor. O fio condutor do

    processo narrativo baseia-se nas aes explicitadas pela sucesso de atos praticados

    pelos atores e seu conseqente enquadramento temporal ao longo de toda a narrativa

    jornalstica. A opo inicial por determinada estratgia comunicativa implica a

    tendncia de apresentar os fatos de maneira serial e encadeada, com o escopo de

    fomentar a curiosidade do leitor sem direcionar a seqncia para um desenlace que

    inviabilize a continuao da intriga. A ao tem uma lgica, que est diretamente ligada

    s repeties, pois em toda obra narrativa existe essa tendncia. Em toda obra existe uma tendncia repetio, que concerne ao, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrio. Esta lei da repetio, cuja extenso ultrapassa de muito a obra, precisa-se em muitas formas particulares que levam o mesmo nome que certas figuras retricas. Uma destas formas seria, por exemplo, a anttese, contraste que pressupe, para ser percebido, uma parte idntica em cada um dos dois termos.13

    12 Todorov(1973), op. cit., p. 212 13 Todorov(1973), op. cit., p. 213

  • O conflito como categoria da anlise da narrativa se atualiza pelas aes dos

    atores sociais (personagens). Essas aes se sucedem e so desempenhadas pelos

    sujeitos que tomam parte na intriga, sendo cada performance narrada determinada

    pelo tempo em que se desenvolvem, com a finalidade de proporcionar transformaes,

    ou seja, mudanas de estado. Alm da anttese, outras caractersticas ligadas ao,

    se repetem no texto. A gradao outra forma de repetio, que tem como funo

    evitar um perigo que ronda toda narrativa: a monotonia. O paralelismo tambm outra

    varivel ligada repetio, e segundo Todorov, de longe a forma mais difundida, pois

    todo paralelismo constitudo de pelo menos duas seqncias que comportam

    elementos diferentes e semelhantes. As funes que cada personagem desempenha

    durante o desenrolar dos fatos no so estticas, mas se revezam a cada captulo da

    estria. A narrativa jornalstica evidencia claramente o contexto no qual as tomadas de

    posio acontecem, construindo o fundo para que os atores sociais desempenhem

    seus papis, de forma a caracterizar os contornos de cada personagens e suas

    possveis atitudes.

    Dentro dessa estrutura maior, que o enredo, identificamos as unidades mnimas,

    que Barthes chama de seqncia. So blocos semanticamente coesos, organizados

    em ciclos que o leitor reconhece com facilidade. Ainda segundo Barthes, so tomos

    narrativos unidos por uma relao de solidariedade: a seqncia inicia-se quando, um

    dos seus termos no tem antecedente solidrio e fecha-se quando outro dos seus

    termos deixa de ter conseguinte. O conflito toma corpo a partir do encadeamento das

    aes dos personagens, evidenciando uma seqncia dos fatos que, por conseguinte,

    definem uma certa serialidade narrativa jornalstica. Esse processo dinmico se

    desenvolve como captulos de uma novela, onde cada episdio claramente marcado

    pela alternncia de aes entre os contendores ou personagens.

    Segundo Todorov, poderemos entender a narrativa como uma seqncia com a

    seguinte conformao: Situao Inicial o primeiro captulo, no qual o narrador informa

    o leitor sobre o cenrio, sobre as aes iniciais de cada personagem, bem como os

    preparativos para futuras aes, mostrando as possibilidades para o desenrolar e os

    possveis rumos dos acontecimentos; Desequilbrio o segundo captulo, com o

    surgimento de fatos que desestabilizam um quadro de aparente equilbrio;

    Transformao o terceiro captulo, o quadro inicial totalmente transformado,

    desembocando num clmax; Resoluo o quarto captulo caracteriza-se pela

    resoluo do processo de transformao, cujas conseqncias so irreversveis;

    Situao Final o eplogo, o anticlmax, acontece quando a situao de aparente

  • estabilidade retomada, com uma certa incoerncia, sendo a situao final diversa da

    inicial. Essa disposio seqencial dos fatos caracteriza, de certa forma, a organizao

    da economia da narrativa, que se estabelece em torno dos personagens cujas aes

    se revezam ao longo do conflito. Nessa disposio serial dos relatos, a recorrncia,

    outra categoria narrativa, se apresenta como uma instncia necessria para a

    organizao da histria contada, pois gera um certo ritmo e estrutura a seqncia da

    histria, pela alternncia das aes, de forma a permitir ao leitor a fcil apreenso do

    desenrolar dos acontecimentos. No desenrolar do conflito cada personagem assume

    seu papel a partir das aes que desempenha, indicando o caminho, assumindo uma

    conduta, ou seja, um maior ou menor comprometimento e conseqente

    posicionamento em funo dos efeitos dessas aes que pratica na sucesso dos

    acontecimentos. Essa sucesso de acontecimentos plenamente retratada de forma

    clara pela narrativa, cuja velocidade imprimida ao relato alarga o horizonte temporal,

    embora a isocronia sugerisse um certo respeito do narrador s dimenses temporais.

    Esse fato se evidencia pela seqncia narrativa de Todorov, onde cada captulo

    construdo em torno de uma determinada ao e, por conseguinte, de um personagem.

    Outro aspecto que a seqncia narrativa nos permite inferir, diz respeito ao tempo.

    Se no fosse pela histria, teramos a impresso de que o tempo decorrido no

    cronolgico, pois os fatos relatados remetem o leitor aos fatos anteriores, e ao mesmo

    tempo aos possveis desfechos, gerando impresso de uma atualizao cclica do

    conflito, definindo, de certo modo, outra dimenso que no a histrica. Essa seqncia

    de eventos temporalmente ordenados: preparao, perturbao, confronto, distenso e

    retorno a uma nova situao de estabilidade, suscitam no leitor um certo desejo de

    conhecer o desenlace dos acontecimentos. Nesse ponto o leitor requisitado,

    ensejado a uma participao efetiva, a partir da mobilizao de sua memria. Essa

    relao causal entre eventos narrados configura-se como uma estratgia do narrador

    desenvolvida com o objetivo de captar a ateno do leitor. Toda a serialidade que vai sendo construda ao longo das seqncias narrativas

    tem o foco nas aes que os personagens desempenham, atribuindo grande

    importncia aos personagens da narrativa, que navegam com fluncia entre a fico e

    a realidade, pois as personagens representam a pessoas, segundo as modalidades

    prprias da fico.14 Segundo Beth Brait, o autor da narrativa aquele que da forma

    personagem que habita a realidade ficcional, sendo a matria da qual feita e o

    14 Ducrot, Osvald & Todorov, Tzvetan. Dicionrio enciclopdico das cincias da linguagem, S.Paulo, Perspectiva, 1972, p.210.

  • espao habitado, diverso da matria e do espao dos seres humanos, mas guardando

    um estreito relacionamento entre essas duas realidades. Essas realidades so

    permeadas pelo mundo da linguagem, que representa, simula e cria a chamada

    realidade.15

    A discusso que se refere s diferenas e semelhanas existentes entre pessoas e

    personagens, a princpio nos fazem acreditar que os personagens das narrativas,

    especificamente os das narrativas jornalsticas, sugerem um relato fiel de uma

    realidade objetiva. Entretanto, estamos lidando com a linguagem que nos permite uma

    construo fragmentada e reduzida da realidade, gerando no leitor uma certa

    conivncia rumo produo do sentido. Atravs dessa construo possvel e

    fragmentada da realidade o narrador reinventa a realidade e articula uma certa

    existncia s personagens. Atravs de um processo de caracterizao, o narrador d

    dimenso e cria a iluso de existncia para os espaos e personagens. A partir da

    decomposio das frases, podemos constatar que elementos estruturais foram

    definidos pelo narrador para situar o leitor no seu ponto de viso.

    Portanto, a personagem ocupa um lugar de destaque em qualquer narrativa, visto

    que, como j mencionado, em seu entorno e decorrncia de sua existncia, que a

    prpria narrativa se constri. Com efeito, a partir da identificao dos recursos

    utilizados pelo narrador na construo das personagens, sejam retiradas de sua

    vivncia real, ou de uma instncia imaginria, de sonhos e pesadelos, poderemos

    materializar essas personalidades, segundo a apreenso do jogo de linguagem que

    torna sua presena tangvel e sensvel os seus movimentos. Dessa forma, o texto o produto final dessa espcie de bruxaria, ele o nico dado concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistncia sua criao e estimular as reaes do leitor. Nesse sentido, possvel detectar numa narrativa as formas encontradas pelo escritor para dar forma, para caracterizar as personagens, sejam elas encaradas como pura construo lingstica literria ou espelho do ser humano.16

    O Narrador e a pragmtica do texto jornalstico

    Ao falarmos em pragmtica referimo-nos a sua concepo moderna, proposta

    por J. Austin, J. Searle, e diversos outros autores. Como ferramenta de anlise das

    notcias jornalsticas a Pragmtica Comunicativa configura-se fundamental na relao

    do universo discursivo do material emprico e seu contexto extralingstico. Como a

    condio de produo e as peculiaridades do gnero jornalstico, a posio do

    15 Brait, Beth. A Personagem. S.Paulo, tica, 1985, p.12. 16 Brait, op. cit., p. 12

  • narrador sobre o fato, impresses do narrador deixadas na narrativa, intenes, a

    estratgia comunicativa, efeitos pretendidos, a performance dos participantes. A

    Pragmtica permitir fazer a relao da interpretao simblica com o mundo emprico,

    com a notcia como fato histrico, e as relaes entre as personagens (participantes da

    narrativa), narradores, a audincia, o veculo. Atravs da anlise pragmtica torna-se

    possvel observar o jogo cognitivo estabelecido entre emissores e pblico receptor.17 O

    primeiro mergulho no texto jornalstico d-se, pois, com o apoio destas questes da

    pragmtica comunicativa.18

    Deste ponto de vista, o texto jornalstico19 analisado para observar as escolhas

    estilsticas que suscitam diferentes pesos emocionais (alm dos informacionais) como

    expresses e figuras de linguagem, valorizao de determinadas questes ou

    depoimentos. Essa estratgia comunicativa identifica determinados efeitos a serem

    provocados quando do momento de leitura, sejam de tenso, suspense, comoo,

    indignao, medo ou riso. Revela tambm em que medida o narrador se aproxima ou

    se distancia dos fatos narrados. Como ele deixa transparecer sua opinio pessoal, sua

    prpria viso de mundo, sua compreenso ou at incompreenso do fato narrado.

    Assim, possvel observar quais fatos recebem maior nfase em detrimentos de

    outros, e que personagens assumem lugar de fala privilegiado. Estas questes revelam

    a estratgia comunicativa executada pelos textos jornalsticos. No possvel

    prescindir deste importante momento de anlise do texto jornalstico, pois, como bem

    nos aponta Chilln, tambm os jornalistas no podem prescindir de sua ideologia, de

    suas impresses, sentimentos e atitudes frente quilo que est sendo narrado por eles.

    Este primeiro passo proporciona subsdios para a perfeita compreenso e

    interpretao da narrativa proposta pelos textos jornalsticos, sem perder o foco das

    relaes do mundo simblico e o mundo emprico: Los comunicadores no pueden prescindir de sus particulares ideologas, sentimientos, actitudes y, en resumen, de su weltanschauung- , y as mismo que su tarea est constreida por mltiples condicionamientos relativos a las rutinas productivas, a la cultura profesional imperante y, entre otros factores ms, al extendido uso de las formas y procedimientos expresivos que se

    17 A pragmtica moderna tal como desenvolvida por filsofos da linguagem como J. Austin17 cara a nossa interpretao como ferramenta de anlise a partir do material emprico. Os conceitos desenvolvidos sobre os atos de leitura, so importantes para a observao. Austin prope a existncia distinta de trs atividades complementares na enunciao. Proferir um enunciado realizar um ato locutrio, ou seja, organizar foneticamente sentidos numa determinada lngua; um ato ilocutrio a impresso, a fora deixada no prprio ato de proferir um enunciado; e a ao perlocutria que so os efeitos provocados pelo simples fato de proferir um enunciado. Este campo de observao da ao perlocutria extrapola o contexto lingstico, e alcana o ambiente onde o enunciado foi proferido, as pessoas envolvidas, o momento histrico, as relaes e os efeitos. 18 Maingeneau (1996), p. 8. 19 Reitera-se mais uma vez que a palavra texto refere-se a qualquer unidade semntico-comunicativa como imagem, sons, cones e outros signos utilizados pela narrativa jornalstica, no se limitando lingstica.

  • componen la retrica de la objetividad. Una retrica en cuya urdimbre estilstica se condensa y expresa con notable eficacia y capacidad persuasiva no slo el mito del objetivismo considerado en general, sino muy singularmente el mito de la objetividad periodstica.20

    Na tentativa de resumir as formas possveis de construo das personagens, nos

    defrontamos com o papel desempenhado pelo narrador no contexto do universo

    textual, pois cabe a essa categoria a funo de conduzir o leitor atravs de uma

    realidade que se vai construindo sua frente. Esse o segundo passo, ou seja, a

    outra questo importante para a anlise da narrativa jornalstica, o ponto de vista do

    narrador, que ao longo da seqncia narrativa se mantm a uma certa distncia, mas

    em outros momentos da narrativa, constri laos de afetividade que o aproximam do

    leitor.

    Consideraremos que o narrador pode apresentar-se como um elemento no

    envolvido na histria, portanto, como uma verdadeira cmera; ou como uma

    personagem envolvida direta ou indiretamente com os acontecimentos narrados. De

    acordo com a postura desse narrador, ele funcionar com um ponto de vista capaz de

    caracterizar as personagens.21 Compreendemos os momentos de grande aproximao

    do referente emprico aqueles em que o narrador se esfora por traduzir em relatos

    diretos os acontecimentos de sua observao. Nesses momentos, os relatos se

    remetem ao grau mximo objetividade. Ao revs, quando ele se deixa penetrar por

    percepes estticas, cresce a subjetividade e as emoes transparecem e podem

    induzir o leitor a uma reao emocional. Nesse movimento de aproximao e

    afastamento, percebemos certos indcios de um retorno s origens da narrativa, ou

    seja, aos modelos arcaicos do narrador. Aquele que fala das coisas de terras distantes,

    como falava o narrador viajante, ao mesmo tempo em que se fala das coisas da terra,

    da tradio, como a falava o campons sedentrio.22

    Com efeito, devemos centrar a observao no discurso, na fala dirigida ao

    leitor, dividindo os procedimentos: segundo o tempo da narrativa, onde se d a

    relao tempo da histria e do discurso; os aspectos da narrativa, a maneira

    pela qual o narrador percebe a histria; e os modos da narrativa, o tipo de

    discurso utilizado pelo narrador a fim de que conheamos a histria.23 A partir

    da identificao dessas categorias e de suas qualidades narrativas intrnsecas, 20 Chilln, op. cit., p. 47. 21 Brait (1985), op.cit., p. 12. 22 Benjamin, Walter. O Narrador in Magia e Tcnica, Arte e Poltica. So Paulo, Brasiliense, 1985. 23 Todorov(1973), op. cit., p.231.

  • pode-se depreender como uma sucesso de eventos, cuja origem poderamos

    atribuir a um acontecimento singular, desencadeia uma seqncia de

    sucessivos eventos narrativos, cuja anlise da cobertura jornalstica nos

    permitir aplicar essa metodologia s reportagens com o fito de permitir-nos

    reescrever as seqncias, a partir da atuao de cada personagem,

    conformando, por fim, uma grande narrativa.

    Interpretao Simblica do texto Jornalstico Por fim, aps a anlise da narrativa jornalstica, preciso fazer o movimento da

    emerso, de deixarmos a materialidade dos fatos, buscando as interpretaes

    simblicas possveis. Se a prpria narrativa, oriunda das sucessivas reportagens nos

    remete subjetividade e ficcionalidade, some-se a elas as ressonncias, ora

    sugeridas pela narrativa, remetendo nossa interpretao ao conto e fbula, ou

    atualizao do mito24. Considerados os passos anteriores, a interpretao procura

    identificar padres imagticos, questes que sugerem modelos ticos e estticos,

    valores mticos, recorrncias, enfim, uma srie de elementos que tm participao

    direta no enredo ou que funcionam como suporte ou pano de fundo para um tema

    especfico, amplificando ou diluindo seus efeitos no processo. Identificamos, assim, em

    outro plano, o que podemos chamar de o fio condutor da narrativa, em cujo interior

    esto depositados os sentidos metafricos e metonmicos, apoiados na ideologia e no

    mito. A objetividade da notcia cede lugar ento a novos sentidos de desejo e s

    utopias. o instante no qual se deve procurar identificar os contedos culturais,

    aqueles sentidos, que segundo Durand, se depositaram no fundo da bacia semntica.

    uma busca da realidade ausente, do mgico, do transcendente, onde moram todas

    as utopias e vontades no explicitas do ser humano.

    Para ns, como para os estudiosos da cultura, especificamente antroplogos e

    historiadores do sagrado, o mito uma narrativa que faz referncia a um passado

    remoto, mas conserva no presente todas as suas qualidades explicativas acerca da

    histria do homem e da sociedade. O mito d conta de uma realidade que chegou

    existncia, ou seja, conta sobre o surgimento do mundo, do cosmos, relata as

    circunstncias do surgimento do prprio homem ou sobre qualquer outro aspecto

    ligado sua existncia. Para outros, a idia de mito confunde-se com a mistificao, a

    mentira, a iluso, interpondo-se como um aparato que distorce intencionalmente a

    24 MOTTA, Luiz Gonzaga. Conflito Poltico e Gerao de Sentido nas Notcias in Cadernos do CEAM n6, EdUnb, Braslia, 2001. p. 47.

  • realidade. Mas o mito pode ser definido a partir de sua funo ligada imaginao

    criadora como um conjunto de imagens motrizes, que incitam ao, apresentando-

    se como um estimulador de energias de excepcional potncia. Poderamos comparar

    o mito ao sonho, pois ambos se organizam como uma sucesso de imagens que se

    encadeiam, nascem uma da outra, chamam uma outra, respondem-se e confundem-

    se. Esse jogo complexo de associaes visuais remete a outras imagens, outros

    caminhos, por vezes, inesperados. O mito no pode ser determinado a partir de

    contornos precisos a no ser como conseqncia de uma conceituao, que reduz e

    empobrece sua riqueza e complexidade. Claude Lvi-Strauss alerta para o

    encerramento do mito em determinados contornos, ignorando a natureza da realidade

    mtica, aplicando ao seu estudo os princpios da anlise cartesiana: No existe limite, escreve ele, para a anlise mtica, unidade secreta que se possa apreender ao cabo do trabalho de decomposio. Os temas desdobram-se ao infinito; quando se cr t-los desemaranhado uns dos outros, mantendo-os separados, apenas para constatar que se ressoldam em funo de afinidades imprecisas....25

    Apesar da complexidade das sociedades contemporneas, as relaes com os

    mitos pouco se diferenciam dos mitos sagrados das sociedades tradicionais, quando

    considerados os aspectos da fluidez e da impreciso de seus contornos, pois se

    interpenetram, gerando uma rede de complementaridade de sentidos. Essas

    significaes, alm de complementares, muitas vezes so contrrias, como

    conseqncia do polimorfismo e ambivalncia do mito. guisa de exemplo, podemos

    citar: a casa, que no sonho tanto pode significar abrigo, segurana, refgio, como

    tambm a imagem do calabouo, da sepultura; a serpente que, ao mesmo tempo

    objeto de averso e smbolo de fecundidade.

    Alm das caractersticas de ambivalncia e fluidez, existe ainda uma outra

    caracterstica, que poderamos chamar de uma lgica do discurso mtico. Como os

    sonhos, cujas imagens se alternam dentro de espao restrito de significao, em

    funo das leis da repetio e da associao, os mitos esto submetidos aos

    mecanismos combinatrios da imaginao coletiva. Essa alternncia e combinao de

    imagens tm uma certa organizao, estando inseridas em determinada sintaxe,

    conforme sugerido por Claude Lvi-Strauss26. Como um ltimo trao caracterstico da

    narrativa mtica, cabe salientar que se trata de uma constelao mitolgica, que

    Gilbert Durand conceitua como o conjunto de construes mitolgicas sob o domnio

    25 Girardet, Raoul. Mitos e Mitologias Polticas, p.15. 26 Idem, p.17.

  • de um mesmo tema, reunidas em tornos de um ncleo central, cuja construo da

    grande narrativa nos permitir analisar seus contornos e dimensionar sua existncia.

    No complexo universo das projees onricas buscamos identificar como se

    compe essa multiplicidade de imagens cristalizadas em torno dos personagens, cujas

    dimenses se sobrepe e se imbricam na narrativa. A personagem se constri sobre

    uma linha de ruptura, no tempo do presente imediato que ele se afirma e se define.

    Como o sonho, o mito no depende de nenhuma cronologia e de nenhum contexto

    factual, visto que podem ser reinventados e reinterpretados, pois cada um de ns tem

    a liberdade de reconstruir seus personagens.27 O grande desafio que ora nos

    propomos para a anlise da narrativa jornalstica, em especial, da narrativa mtica,

    consiste em apreender como se d a construo dessa grande narrativa, e como

    essa se transmuta do real para o imaginrio.

    Queremos concluir este trabalho convidando aos interessados a participar conosco

    da adaptao que vimos fazendo na Universidade de Braslia, ao longo dos ltimos

    trs anos, dos procedimentos da narratologia anlise da notcia para melhor entender

    os processos de construo de sentidos. Acreditamos firmemente que estes

    procedimentos abrem um campo enorme e tm uma contribuio importante a dar

    teoria da comunicao e aos estudos sobre os processos de produo de sentido, e

    especialmente teoria da notcia. Nos ltimos anos, muito se escreveu e publicou

    sobre a teoria da narrativa, mas quase sempre se levando em conta apenas os

    produtos ficcionais. O seu emprego produtos no ficcionais exigir certamente

    adaptaes criativas, somadas a um esforo para no se perder o especfico da

    comunicao de massa. O estudo do papel do narrador desde a perspectiva da

    narratologia aplicada comunicao, por exemplo, traz desafios interessantes e

    convida formulaes diversas. Neste sentido, cremos que, dando prioridade

    Anlise da Narrativa que parte do texto e privilegia a histria, no se pode perder de

    vista as contribuies recentes da Anlise Pragmtica, que ampliam a anlise para os

    fatores extralingsticos e configuram o ato comunicativo interligando narrador e

    destinatrio. Os desafios esto lanados, resta-nos recuperar a coragem, a ousadia e a

    criatividade para enfrent-los.

    27 Ibid., p. 81.

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