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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN CAMPUS AVANÇADO PROFª MARIA ELISA DE A. MAIA CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS DL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS Área de concentração: Estudos do discurso e do texto NAS SOMBRAS DO FEMININO: ENTRE NÍSIA FLORESTA E MARIA DA PENHA MARIA LIDIANA DIAS DE SOUSA ORIENTADORA: PROFª DRª. MARIA EDILEUZA DA COSTA PAU DOS FERROS - RN 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

CAMPUS AVANÇADO PROFª MARIA ELISA DE A. MAIA – CAMEAM

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

Área de concentração: Estudos do discurso e do texto

NAS SOMBRAS DO FEMININO: ENTRE NÍSIA FLORESTA E MARIA

DA PENHA

MARIA LIDIANA DIAS DE SOUSA

ORIENTADORA: PROFª DRª. MARIA EDILEUZA DA COSTA

PAU DOS FERROS - RN

2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

CAMPUS AVANÇADO PROFª MARIA ELISA DE A. MAIA – CAMEAM

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

Área de concentração: Estudos do discurso e do texto

.

NAS SOMBRAS DO FEMININO: ENTRE NÍSIA FLORESTA E MARIA DA PENHA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos do Texto e do Discurso Linha de Pesquisa: Discurso, Memória e Identidade.

Maria Lidiana Dias de Sousa

Orientadora: Profª Drª. Maria Edileuza da Costa

PAU DOS FERROS 2012

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A dissertação “Nas sombras do feminino: entre Nísia Floresta e Maria da

Penha”, de autoria de Maria Lidiana Dias de Sousa, foi submetida à banca

examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito parcial necessário à

obtenção do grau de mestre em letras, outorgado pela Universidade do Estado do

Rio Grande do Norte – UERN.

Dissertação defendida e aprovada em 19 de Dezembro de 2012.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Profª. Drª. Maria Edileuza da Costa - (UERN)

Orientadora

______________________________________________

Profª. Drª. – Naelza de Araújo Wanderley - (UFCG)

Examinadora externa

______________________________________________

Prof. Dr. Charles Albuquerque Ponte – (UERN)

Examinador

______________________________________________

Prof. Dr. Manoel Freire Rodrigues - (UERN)

Suplente

PAU DOS FERROS – RN

2012

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DEDICATÓRIA

A todas as mulheres brasileiras, em especial às do Nordeste, região

castigada pela seca e também pelo preconceito, que viu nascer Nísia Floresta e

Maria da Penha, às quais também dedico este trabalho, pela luta que travaram, aos

seus modos, em prol da igualação dos gêneros. Para as mulheres que vivenciaram

ou vivenciam, que combateram ou combatem o preconceito de gênero, para as que

sofreram e sofrem qualquer forma de violência no seio familiar, doméstico ou social,

para aquelas que se orgulham por pertencer ao gênero feminino, mesmo com a

batalha diária pelo reconhecimento de igualdade, mesmo com a violência sofrida.

Às mulheres que não estudaram, às que não tiveram a oportunidade que ora

tenho, por qualquer motivo, de aprimorar conhecimentos, para aquelas que se

doaram ou se doam integralmente às suas famílias, porque ser mãe, esposa, nunca

foi causa de inferioridade, mas também para aquelas que conciliam a maternidade, o

casamento e o trabalho. Às mulheres que lutaram pelo reconhecimento de seus

direitos, que combateram o preconceito, às que não se conformam com a opressão.

Dedico este trabalho a todas elas, em geral, porque ser mulher é também

romper as amarras de um processo histórico que lhe renegou um espaço digno na

sociedade, a emancipação do gênero feminino; É não conformar-se com a

inferioridade, é buscar a independência, a dignidade... A nós, pela liberdade,

emancipação e dignidade do gênero feminino.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, força superior e inexplicável, que me sustenta e ampara em todas

as horas, pela vida que me concedeu, pelos pais que me deu, pelos irmãos, pelo

estudo, pelo trabalho, pelos amigos, por me mostrar sempre a sua existência através

de fatos e momentos em que não o vejo, mas sinto sua mão e seus ensinamentos a

me segurar, por não me permitir desistir, por me abençoar, enfim, por tudo que é na

minha vida e pelo que tem feito por ela.

A quem, primeiro, acreditou na viabilização desta pesquisa, que se fez mais

do que orientadora, verdadeira inspiração para um trabalho que fala da mulher.

Pelas reclamações pertinentes, pelas cobranças necessárias, pelos ensinamentos

indispensáveis, por nunca ter me faltado enquanto orientadora, por ter me

acompanhado e orientado em tudo neste trabalho. Pela sua bravura e delicadeza,

pela sua perseverança e sorriso calmo em tantos momentos que o mundo parecia

desmoronar e a sensação que tínhamos é que não saberíamos continuar, que me

fez acreditar que mesmo assim, eu conseguiria finalizar este trabalho. Obrigada!

Pelas lágrimas derramadas e enxugadas mutuamente, pelas mãos dadas, pela

presteza de sempre, pela contribuição acadêmica em minha vida, mas, sobretudo,

pelo sentimento fraterno que sempre permanecerá. Agradeço a você, Maria Edileuza

da Costa, por ter acreditado possível, por fazer possível junto comigo.

Ao meu amigo Carlos Magno (in memoriam), por tantas coisas, pelo apoio

constante no mestrado, pela defesa incessante que sei que fazia de minha pessoa

enquanto aluna, por me compreender, me permitir dizer “por que me tomas?”,

porque ao ouvir os seus problemas, eu esquecia e aliviava os meus, por depositar

uma confiança inigualável em mim, por me perdoar, pelas nossas teimas tão

constantes e tão instigantes, assim como os casais de namorados, quanto maior era

a teima, maior era a comemoração ao ver nossa amizade prevalecer, pelo tempo de

convívio, inesquecível tempo, tantos poemas recitados, uma amizade tão presente,

bastava um “oi”, um “estou aqui”, por me dizer sempre e com tanta frequência, “onde

eu entrar, você entra”, mas por me deixar ficar no seu último dia de vida, por me

deixar em casa, fazer questão de subir a escada, me deixando protegida, sem que

eu soubesse que aquele adeus era o último. Meu amigo, esse agradecimento, assim

como a sua pessoa, é contraditório, não pelo que disse, porque dos nossos

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sentimentos fraternos, nunca duvidamos, mas é porque o faço com uma alegria

imensa, mas que vem acompanhada de um aperto no peito, de muita saudade. Eu

queria você assistindo a minha apresentação, você dizendo “pode ir, eu sei que vai

dar certo”, eu queria você comemorando comigo quando terminasse isso tudo, eu

queria você aqui, com todas as suas inconstâncias, contradições, teimosias, mas

com seu apoio incondicional, suas críticas pertinentes, sua presença, como sei que

isso não é possível, o que posso dizer meu amigo, é que tudo foi válido. A você, o

meu muito obrigado!

Aos meus professores, pelos ensinamentos, pela tolerância com meu celular

tão inoportuno, que mesmo no silencioso, em virtude do exercício da minha

profissão, em alguns momentos me furtou a atenção, pela contribuição

indispensável, que me possibilitou chegar até aqui, em especial à professora

Socorro Maia, pelo exemplo feminino e mesmo sem termos intimidade alguma, pelo

olhar confortador que sei que me destinou nos momentos mais difíceis nesta

caminhada.

À Bevenuta Sales, pela correção gramatical deste trabalho, pelos conselhos

acadêmicos, pela sinceridade e amizade que me devota...

Aos examinadores, pela disponibilidade.

À minha mãe Alecrides Dias de Souza, que conviveu comigo me vendo

dividida entre o Mestrado e o trabalho durante esses dois anos e meio, período em

que estive sempre tão aflita, tão impaciente, tão mergulhada nesses dois universos.

Pelas noites dormindo no escritório para que eu não ficasse sozinha ao produzir este

trabalho, pela paciência de sempre, companheirismo, amor, por entender a

importância deste trabalho acadêmico para a minha vida, por não me deixar desistir,

aconselhar sempre com as palavras certas, no momento certo, pelo exemplo de

mulher que me inspira, por está aqui agora, por ter estado sempre ao meu lado.

Ao meu pai Tarcísio de Souza Leite (in memoriam), por tantos

ensinamentos, pelas oportunidades, pela incentivo emocional e financeiro aos meus

estudos, por ser exceção ao ideias patriarcais contestados neste trabalho e me

permitir a inserção com dignidade no meio em que vivo, através da formação

profissional e pessoal. Pelo apoio de sempre, pela proteção, pelo exemplo de

honestidade que me deixou, por me ensinar a não desistir, a insistir, por ter me

possibilitado a maior herança do mundo, minha formação profissional. A você meu,

pai, sem o qual, não estaria eu aqui. Muito obrigado.

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Aos meus irmãos Francisco Dias e Rita de Cássia Dias, pelo

companheirismo, por estarem ao meu lado nos momentos que mais preciso, pelas

pessoas dignas que são e por terem contribuído também com os meus estudos, por

aumentarem a nossa família com os meus sobrinhos queridos Lucas e Cássio e por

me proporcionarem muito orgulho da nossa família.

Ao meu avô paterno, Raimundo Leite da Fonseca, através do qual vim

morar em Pau dos Ferros/RN, pela ajuda nestes últimos anos, principalmente no

início da minha caminhada, pelos bons exemplos, pela honradez e honestidade, por

tudo que tem representado na minha vida e continuará representando. Muito

obrigado.

A todos os meus tios e tias, porque todos, de alguma forma, contribuíram

para que eu chegasse até aqui e em especial à minha madrinha e tia Alaedes Dias,

por me incluir nas suas preces religiosas, nas orações que têm me fortalecido e me

segurado em tantos momentos.

Aos meus primos e primas, enfim, à todos da minha família, não só pelos

laços consanguíneos, mas pela amizade que muitos me devota.

Obrigada aos meus constituintes, pela compreensão, por entenderem em

muitos momentos a minha pressa, a impossibilidade de atender ligações, pelo

incentivo, confiança que em minhas mãos depositam, pela credibilidade e por me

fazerem realizada na minha profissão. Muito obrigado a vocês e é também por vocês

que continuo aprimorando os meus conhecimentos.

Ao povo de São Francisco do Oeste/RN, todos, independente de qualquer

preferência política, pela relevância que apresentam em minha vida, por permitirem

a minha volta para essa cidade, a minha participação nesta querida Comunidade,

por me aceitarem, por estarem lá, enfim, pela amizade.

À Faculdade Evolução Alto Oeste Potiguar – FACEP e a todos que fazem

parte dela, pela credibilidade, pela experiência profissional a mim proporcionada,

pela compreensão e respeito sempre presente na nossa relação. Obrigada.

Aos meus colegas de profissão, pela disponibilidade, paciência, aos que

assumiram algumas de minhas audiências, quando estas coincidiam com os

horários de aula, pela acolhida, a vocês que compartilham comigo a honrada

militância profissional, o meu muito obrigado.

A Edivaldo Rabelo, por sua amizade sincera, pela sua disponibilidade

comigo, por nossos projetos semelhantes, pelas ligações atendidas fora de hora,

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caminhadas, incentivo, pelo ombro amigo e por tudo que tem representado em

minha vida, por uma amizade muito fraterna e bonita, pelo amigo irmão que tem sido

e por tudo que ainda virá, porque sei que você é daqueles que se pode confiar. Sou

grata por ser sua amiga e gozar do seu convívio.

À Gildene Costa, por uma amizade singular, por tantos momentos regados à

lágrimas e sorrisos e pela compreensão e tolerância às minhas opiniões, por tudo

que representa na minha vida. Obrigada amiga.

À Zulailde Viana, por estar sempre disponível, mesmo nas horas que está

estudando, por me escutar sempre, há tantos anos e muitas vezes, até hoje, pelo

mesmo motivo, por me compreender, me aconselhar, pelos risos comuns, por tantas

coisas. Obrigada amiga, você faz melhor a minha vida.

A Alfredo Fernandes Neto, pelos pratos sempre tão deliciosos que eram um

incentivo a mais para visitar minha orientadora, pelos sorrisos e lágrimas, pela ajuda

e amizade que tem me destinado.

À Patrícia Costa, amiga, secretária, pela presteza, dedicação e

compreensão nos momentos em que eu estava mais aflita, mais apressada, mais

sem tempo para tudo que não fosse ligado a este mestrado.

À Márcia Costa (in memoriam), pelas boas lembranças da nossa amizade.

Enfim, obrigada a todos e todas que contribuíram de alguma forma, direta ou

indiretamente para concretização deste objetivo, o meu muito obrigado.

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SOUSA, M. L. D. Nas sombras do feminino: entre Nísia Floresta e Maria da Penha. 101 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2012.

RESUMO

A história da mulher no Brasil começa a ser contada a partir da colonização, formada pelo contexto feminino dos colonizadores católicos, herdando, pois, a posição inferior que a sociedade portuguesa relegara às mulheres, vigorando o patriarcalismo, situação que permaneceu até o início do Século XIX. A partir da Revolução Francesa (1789), houve uma mudança, as mulheres passaram a atuar de forma significativa na sociedade, sendo relevantes também no Brasil. O ponto de partida das reivindicações femininas por direitos igualitários foi o livro “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens” de Nísia Floresta, publicado em 1832 e, considerado uma tradução livre dos escritos de Mary Wollstonecraft, que denuncia a exclusão do gênero feminino. Neste contexto de busca pela igualação do gênero, a lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, foi uma resposta às incansáveis lutas dos movimentos de mulheres, servindo ao combate da banalização da violência doméstica e tratando com mais seriedade esta forma de violência. A presente pesquisa objetiva verificar a situação vivenciada pela mulher brasileira nestes dois momentos: sua posição social na época de Nísia Floresta e a situação vivenciada hoje, com a publicação da Lei Maria da Penha, bem como a existência de um elo social entre estas mulheres. Para a realização do estudo, realizou-se pesquisa teórica comparativa de documentos históricos e seus contextos. Vê-se claramente que a mulher da época de Nísia Floresta era totalmente dependente do sistema patriarcal. Hoje, a situação feminina na sociedade atual é bem diferente, pois existe uma estrutura legal que possibilita seu desenvolvimento social, intelectual e cultural. Entretanto, mesmo passados quase dois séculos, e não estando mais em situação de submissão aos homens, a mulher de hoje ainda está umbilicalmente ligada àquela do século XIX, aturando os resquícios da sociedade patriarcal, lutando contra o preconceito de gênero e negação de sua emancipação.

Palavras-chave: Feminino. Mulher. Nísia Floresta. Lei Maria da Penha. Gênero e Literatura.

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SOUSA, M. L. D. Nas sombras do feminino: entre Nísia Floresta e Maria da Penha. 101 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2012.

ABSTRACT

The history of women in Brazil starts to be told from the colonial times, formed by the feminine context of Catholic colonizers, inheriting, thus, the inferior position relegated to women by the Portuguese society, in which patriarchy ruled, situation that remained until the early XIX century. From the French revolution (1789), there came a change, women started to act significantly in society, being also relevant in Brazil. The starting point of female claims for equal rights was the book Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, by Nísia Floresta, published in 1832 and considered a free translation of Mary Wollstonecraft, who denounces the exclusion of the feminine genre. In this context of search for genre equalization, the Law number 11.340/06, Known as Lei Maria da Penha, was an answer to the tireless struggles by women movements, serving to battle the banality of domestic violence and treating more seriously this form of violence. This study aims at verifying the situation experienced by the Brazilian women in these two distinct moments: their social position at the times of Nísia Floresta and the current situation, with the proclamation of Lei Maria da Penha, as well as the existence of a social link among these women. In order to conduct this research, a comparative theoretical research was performed, as to historical documents and their context. It is clearly seen that the women at the age of Nísia Floresta were completely dependent upon the patriarchal system. Nowadays, the feminine situation is quite different, for there is a legal structure that enables its social, intellectual and cultural development. However, even after almost two centuries, and not standing in a submissive position anymore, contemporary women are still linked to the ones from the XIX century, bearing the remains of the patriarchal society and struggling against genre prejudice and the negation of their emancipation.

Keywords: Feminine. Women. Nísia Floresta. Lei Maria da Penha. Genre and Literature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................12

I - FEMININO, ALTERIDADE E LITERATURA.........................................................12

1.1 – Feminino e Alteridade.......................................................................................17

1.2 – Feminino e Literatura........................................................................................22

II - A CONSTRUÇÃO FEMININA ATÉ O SÉCULO XIX E A IDEALIZAÇÃO DA

MULHER EM NÍSIA FLORESTA...............................................................................31

2.1 – A posição ocupada pela mulher até o século XIX e o contexto Nisiano..........31

2.2 – A mulher relatada por Nísia Floresta em contraponto à idealizada..................38

2.3 – A mulher como sujeito de Direitos na obra Direito das Mulheres e Injustiça dos

Homens......................................................................................................................43

III - A LEI DE NÍSIA E O DIREITO DE PENHA.........................................................49

3.1 – A mulher depois do século XIX e o surgimento da Lei Maria da Penha.........49

3.2 – A Lei Maria da Penha........................................................................................52

3.3 - O elo feminino: A carta de Direitos de Nísia e a Lei Maria da Penha................65

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................75

REFERÊNCIAS..........................................................................................................82

ANEXO: A LEI MARIA DA PENHA...........................................................................87

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INTRODUÇÃO

A obra literária é uma reorganização de mundo, na qual o criador usa

elementos externos e internos para constituir seu imaginário. Para Costa (2005),

esta operação literária é regida pela realidade, a qual é representada de alguma

maneira em suas faces, resultando na criação artística. Já o direito é compreendido

como conjunto de normas que orienta o indivíduo que vive em sociedade, refletindo

os anseios e necessidades da sociedade. De acordo com o jurista Paulo Nader,

citando Cosentini (NADER, 2007, p. 20) “O Direito não é uma criação espontânea e

audaciosa do legislador, mais possui uma raiz muito mais profunda: a consciência

do povo”. Daí porque se diz que é a vida em sociedade que forma o Direito, o qual

se transforma e adapta-se àquela. Então, pode-se dizer que reflete também a

realidade social de seu tempo.

Neste aspecto, o trabalho trata da condição social do gênero feminino a

partir de dois textos, os quais foram elaborados e publicados em épocas diferentes:

Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens (1832) e a Lei Maria da Penha (2006).

O primeiro um texto literário e o segundo um texto normativo, os quais observam o

contexto sócio culturais das mulheres apresentados em cada um desses, bem como

o amparo legal dado à figura feminina em cada época.

Nísia Floresta, (Dionísia Gonçalves Pinto), educadora, escritora e poetisa,

destacada no cenário potiguar e ainda nacional, sendo neste último considerada a

primeira feminista do Brasil, escreveu sobre escravidão, o sofrimento do índio e

também sobre as belezas do nosso País, mas, enfaticamente, sobre a mulher e a

opressão vivida pelo sexo feminino em sua época, sendo que a principal

contribuição da autora para o gênero feminino se deu com a primeira publicação da

obra Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, no ano de 1832, em que

claramente a autora contesta a situação em que viviam as mulheres em seu tempo,

as quais recebiam educação inferior à dos homens. Referindo-se à uma educação

que permitisse à mulher sua emancipação social, Nísia Floresta expõe:

A falta de saber e educação, que arrasta as mulheres às ações que os homens reprovam, as privam das virtudes que poderiam sustentá-las contra os maus tratamentos que eles imprudentemente lhes fazem sofrer. (1989, p. 90)

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Ao expor sua indignação com a situação vivenciada pela mulher de seu

tempo, Nísia tenta provar que o fato da mulher está privada de desempenhar

qualquer papel que não seja relacionado aos deveres do lar, bem como a

impossibilidade de que esta adquira uma educação que a capacidade para o

exercício de outras funções, se deve ao motivo das mesmas serem injustiçadas pelo

homem, em virtude do prejuízo e costume, termos que a autora utiliza no sentido de

preconceito, os quais perpetuam a existência da mulher submissa, impossibilitando

a sua ascensão social, fundado no prejuízo e costume, termos que a autora utiliza

no sentido de preconceito.

A obra de Nísia, segundo relatos históricos, foi o primeiro texto brasileiro a

denunciar essa situação e reivindicar melhor tratamento ao gênero feminino, o que

elevou a escritora à categoria de precursora do feminismo, cujo texto foi um marco

para as reivindicações femininas por melhores direitos.

O ponto de partida da nossa pesquisa reside em identificar a mulher que

existia na época de Nísia e aquela por ela idealizada na obra Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens, observando a situação dos direitos femininos nos dias atuais

através da Lei 11.340/06, bem como a situação da mulher nesta época, cuja

pesquisa teórica será feita a partir da Lei Maria da Penha, lei que combate a

violência doméstica e familiar contra a mulher e a obra supracitada.

Como se sabe, a violência doméstica e familiar contra a mulher é um tema

que provoca profundos debates e reflexões na sociedade, o combate a este tipo de

agressão apresenta sua maior conquista na lei supracitada, a qual também é

considerada uma importante conquista feminina na busca pela igualação de gênero.

Entretanto, esta busca, assim como a reivindicação pela direito da mulher de

conquistar sua emancipação na sociedade, assumindo papel de sujeito de iguais

direitos e deveres, nos reporta à situação feminina relatada por Nísia Floresta na sua

obra Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, eis que esta obra inaugurou, no

Brasil, o discurso em defesa das mulheres por condições sejam estas relacionadas

ao trabalho, à educação, à família e à sua própria participação no meio em que vive

e é por isso que se observa a condição feminina por estas duas obras que bem

retrataram a situação feminina e reivindicaram direitos para estas, nas suas

respectivas épocas.

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Incontestavelmente as mulheres têm evoluído profissionalmente,

culturalmente, financeiramente, emocionalmente e reafirmando sua identidade no

decorrer dos anos, mas é cediço ainda, sobre as grandes dificuldades enfrentadas

na construção desta identidade, que primordialmente assentava-se em mulheres

submissas e presas à ideia de que o papel feminino era somente na construção do

lar e de que apenas o homem era ser propício à formação de opiniões, ao trabalho,

à independência de forma geral.

Nísia Floresta defende a tese de que o progresso de uma sociedade

depende da educação oferecida à mulher e que a sua dignidade e independência

intelectual lhe fará melhor esposa, melhor mãe e contribuirá mais para o

desenvolvimento do país, já a Lei Maria da Penha pune severamente os agressores

em âmbito doméstico, que violam as mulheres, sejam estas infantes ou adultas, seja

esta violência física, sexual, patrimonial ou moral e psicológica. Assim sendo, nosso

trabalho será desenvolvido, partindo das ideias expostas por Nísia Floresta em suas

obras até o momento hodierno em que vigora a Lei Maria da Penha, que protege a

figura feminina do homem agressor e tenta estabilizar o cenário de superioridade da

figura masculina, cenário esse que há muito tempo figura no Brasil.

A preocupação com a temática, bem como sua importância se deve ao fato

de que, por mais que as mulheres tenham evoluído no cenário nacional e ocupem

hoje lugares na sociedade, antes só destinados ao gênero masculino, o pilar

fundante de toda desigualdade entre o gênero masculino e feminino, reservando

para o gênero masculino, superioridade em relação ao feminino, é ainda causa de

muitas agressões contra a mulher, conforme veremos no desenvolvimento deste

trabalho.

A Lei Maria da Penha tem como principal motivo, promover a igualdade

entre os gêneros sexuais, combatendo a violência vivenciada pela mulher ao longo

de séculos. Punindo mais severamente os homens que praticam violência doméstica

ou familiar contra a mulher, ela objetiva extirpar uma desigualdade histórica e que

sempre reservou a mulher uma posição inferior ao homem, seja nos níveis

educacionais, profissionais e de maneira geral, social. Além disso, o presente

trabalho reafirma a importância do reconhecimento da escritora potiguar Nísia

Floresta e sua contribuição na luta por igualação desses gêneros, bem como a

importância e aplicação da Lei Maria da Penha como instrumento que visa diminuir

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esta desigualdade e de certa forma, possibilitar a mulher a sua plena emancipação

na sociedade atual, emancipação que já havia sido reivindicada por Nísia Floresta.

Para viabilização dessa pesquisa, adotamos os seguintes procedimentos:

leitura crítica da obra Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens e da Lei Maria da

Penha, com o foco na identificação da figura feminina que permeia o contexto social

das obras, e os direitos femininos almejados na primeira e conquistados na

segunda.

Desenvolvemos essa pesquisa com o intuito de contribuir para os estudos

literários da linha de pesquisa: Discurso, Memória e Identidade, fundamentando-nos

em teorias que abrangem o discurso literário, Literatura Comparada, bem como o

feminino, cujos subsídios se encontram em Lucena (2003), Maingueneau (2006),

Bosi (1994), Sicuteri (1985), Costa (2005) e Carvalhal (1996). Entre outros. Além

disso, tivemos como fonte de pesquisa obras que tratam sobre a história da mulher

no Brasil, a obra de Constância Lima Duarte (2008) que traz a vida e obra de Nísia

Floresta, ainda a Constituição Federal (2012) e obras comentadas sobre a Lei Maria

da Penha, com especificação detalhada nas referências bibliográficas.

No primeiro capítulo, Feminino, Alteridade e Literatura, discorremos sobre a

condição da mulher em tempos mais remotos, seja na sociedade de costumes, seja

na literatura, procurando identificar a opressão sofrida pelo sexo feminino, desde

Lilith a outros personagens, bem como a permanência da subjugação feminina no

decorrer dos anos.

No segundo capítulo, “A construção feminina até o século XIX” e a

“Idealização da mulher em Nísia Floresta”, nele discutimos a condição feminina na

sociedade até o século XIX, partindo da colonização no Brasil e da herança dos

colonizadores, mostrando que a mulher sempre ocupou um papel totalmente

submisso em relação ao homem, não lhe sendo reconhecido qualquer direito que

lhes possibilitassem o desenvolvimento intelectual, o que é relatado por Nísia

Floresta na obra Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, sendo que a própria

Nísia Floresta, enquanto mulher era uma exceção de sua época, pois além de

ocupar papel diferente na sociedade ante a sua intelectualidade, mesmo sofrendo o

mesmo preconceito denunciado na obra, a autora ainda reivindica direitos para a

mulher, idealizando, pois, a figura feminina como sujeito de todos os direitos que

eram conferidos ao sexo masculino. Nísia idealiza uma mulher independente, seja

economicamente, seja culturalmente.

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E por fim, no terceiro capítulo, intitulado “A lei de Nísia e o Direito de Penha”,

procuramos identificar os direitos pleiteados por Nísia Floresta em sua obra Direito

das Mulheres e Injustiça dos Homens, estabelecendo um contraponto às conquistas

advindas da Lei Maria da Penha para o gênero feminino, identificando a mulher na

sociedade atual e reconhecendo boa parte dos direitos pleiteados por Nísia Floresta

em 1832, reconhecidos na Lei Maria da Penha (2006), dando conta de que, embora

os contextos femininos sejam diferentes, ainda há a presença de um elo histórico

entre as mulheres destas duas épocas, as quais, ainda necessitam do combate à

violência, ao preconceito e da reafirmação em sociedade, para que estas gozem dos

mesmos direitos concedidos ao gênero masculino.

Portanto, sem a pretensão de esgotar o assunto, esperamos com esse

trabalho, alertar, de alguma forma, sobre a situação ainda vivenciada pelas mulheres

em seu meio social, o qual, infelizmente, ainda a exclui por uma situação de

subjugação construída durante anos em desfavor do sexo feminino, bem como

ressaltar a importância da obra Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, como

instrumento reivindicatório de direitos femininos, os quais, muitos foram

reconhecidos na Lei Maria da Penha, enfatizando ainda, a relevância desta Lei, que

visa combater a situação de opressão vivenciada pela mulher no Brasil denunciada,

primeiramente, pela escritora potiguar Nísia Floresta.

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CAPÍTULO I – FEMININO, ALTERIDADE E LITERATURA.

1.1- Feminino e Alteridade

Os princípios conservadores que superiorizam a condição do homem em

relação à classe feminina, fazem parte da estrutura social, onde o indivíduo é

dominante ou dominado. A sociedade acaba evidenciando o controle masculino,

dando ao homem instrumentos de poder de dominação do presente e de expansão

para o futuro, ou seja, o homem foi sendo por natureza um ser transcendente em

relação ao sexo oposto.

Com isso, percebemos que a sociedade ocidental contextualiza um

procedimento, no qual o homem está como sujeito e a mulher se preserva como

objeto, o que significa afirmar a dominação do homem sujeito sobre a mulher objeto.

Oliveira Neto, ao falar do feminino afirma que:

Ao retomar as ideias do materialismo histórico de Marx, Beauvoir, em O segundo sexo, concebe a sociedade humana não como uma “realidade natural/animal”, mas como uma “realidade histórica” para entender que “a mulher não poderia ser considerada apenas um organismo sexuado: ela reflete uma situação que depende da estrutura econômica da sociedade, estrutura que traduz o grau de evolução técnica a que chegou a humanidade” (1970a, p.73). Logo, é através de uma rede de memória – materialidade por natureza histórica – que se abre a possibilidade de compreensão da formação de uma ideia de feminino e de mulher. A organização da sociedade em torno dos feudos familiares de base patriarcal é o que, possivelmente, instaura o par vocabular masculino-feminino como categorias dicotômicas. Tal dicotomia é fruto de uma rede de discursos produzida ao longo da história humana que tratou de sanear a ideia de superioridade-inferioridade como polos que comandam a ordem histórica, sobretudo os discursos religioso e capitalista.

O dominante e o dominado, na constituição do parâmetro social sob o qual

estamos organizados, é o que fez existir a posição subjugada da mulher no espaço,

especialmente, social. Assim, o lugar do feminino foi estabelecido por homens que

são representados como superiores e comandantes, conforme seus valores e

interesses os quais determinam o papel feminino em funções únicas relacionadas às

condições de mãe e esposa.

Ao homem, chefe da sociedade conjugal, cabia a representação legal da

família, a administração dos bens comuns do casal e dos particulares da

esposa. [...] A ordem jurídica incorporava e legalizava o modelo que

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concebia a mulher como dependente e subordinada ao homem [...] a

esposa foi, ainda declarada relativamente inabilitada para o exercício de

determinados atos civis, limitações só comparáveis às que eram impostas

aos menores de idade e aos índios. (MALUF; MOTT in SEVCENKO, 1998,

p. 375).

Integra-se no contexto cultural do Ocidente, na época que antecede o

século XIX, uma mulher tida como objeto de manipulação e preponderância,

arrojada em papéis sociais e estereótipos estabelecidos pelo sistema patriarcal, e,

dessa forma, não conserva uma identidade. Como nos diz Pires: “A condição da

mulher é representada discursivamente, refletindo uma visão conservadora e

discriminatória que engendra formas de silenciamento e exclusão [...]”. (PIRES apud

LUCENA, 2003, p. 202).

No contexto dominado pelo patriarcalismo o sujeito feminino não tinha o

direito de se revelar, a sua participação era restrita apenas ao exercício de

experiências femininas culturalmente pré-definidas, enquanto os homens eram

cercados de possibilidades de realização nos aspectos pessoal, profissional e social.

À medida que aparecia a desvalorização e prática simbólica da mulher, progredia o

prestígio masculino e sua identidade, devido à organização de dominação nos

padrões sociais, como ressalta Pires:

As relações hierárquicas entre os sexos são estratégias de poder que,

articuladas a partir do discurso, tentam encobrir as desigualdades,

naturalizando-as. Produz um consenso e o que foi construído culturalmente

é atribuído à natureza. Os paradigmas culturais de gênero, tanto quanto

outros referenciais de diferenças – como raça e classe – estruturam toda a

vida dos indivíduos, sejam mulheres ou homens, determinando seus

discursos e suas condutas. (PIRES, apud LUCENA, 2003, p. 207)

Tal divisão de espaço se organizou durante um longo processo de

socialização, numa construção sociocultural que programou duas categorias na

sociedade. Para compreendermos essas instâncias estabelecidas pela coletividade

da época, é preciso entender conceitos também definidos como jogos de oposições

que levam a mulher a um estado de inferioridade. Segundo Oliveira Neto:

Uma ideia que se abra a conceituar o feminino há que ser pensada não apenas como signos de oposição ao masculino, mas a partir das correntes de residualidades sócio-histórico-culturais impressas, sobretudo na linguagem e nas práticas linguageiras das mulheres. O feminino, assim como o masculino, são construções representativas, operações engendradas nas diversas esferas que compõe a sociedade – sejam elas

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biológicas, médicas, filosóficas, literárias etc. Logo, o feminino não pode ser pensado pela oposição falocêntrica, assim como apenas na esfera privada, ele está condicionado por um conjunto de aspectos externos. E ambos os aspectos carecem de ser pensados para se entender essa especificidade do feminino enquanto elemento não dissidente de uma esfera contrária a si. (OLIVEIRA NETO, 2011, p. 58).

Nesta trajetória não poderíamos omitir que o gênero é uma representação

que se constrói na família, na mídia, na comunidade e nas práticas sociais. Ao

buscarmos o feminino encontramos, na sua trajetória, uma face fragmentada, onde

os questionamentos da situação da mulher, transpõe os limites da alienação

humana, que a sociedade sufoca. É nela que também podemos perceber a

superposição de vozes masculinas, construindo o feminino. Esta voz única e

simultaneamente múltipla, que se especifica como gênero, exibe a presença do

plural, do social, do coletivo e do outro. Desta maneira as vozes se multiplicam, as

palavras se saturam e a imagem feminina criada é, quando muito, uma interrogação.

É assim que o feminino vem sendo arquitetado ao longo da história. Estilistas e

poetas podem contribuir de diferentes maneiras para essa construção. Ao pouco que

se apresentam como feminino, eles contrapõem o muito que pode significar ser

mulher. Envolvidas no cetim ou despidas na repressão, delicadas ou rudes, ricas ou

pobres, no aroma do perfume ou nas cores da maquiagem, a figura feminina vai

sendo delineada culturalmente e com ela a imagem da sociedade.

Passividade, obediência e resignação são qualidades próprias da natureza

da mulher, mas por força da ideologia, que valendo-se desses rótulos, passou a

encará-lo pelo lado da insensatez, confundida em razão de uma suposta fragilidade,

a mulher ao longo dos anos congelou sua voz, atraindo para si o estigma da

diferença.

Convém lembrar que nas sociedades arcaicas, a mulher era responsável

pela fertilidade da terra e dos animais e por isso devia ser respeitada, ocupando o

centro das atenções, pois a vida brotava de suas próprias mãos. Aos poucos a força

biológica (centrada na mulher) cedeu lugar à força cultural (centrada no homem),

criando assim a supremacia masculina.

Podemos também buscar a mitologia para compreendermos a

hierarquização dos papéis e a superioridade do homem. A mitologia é considerada

uma ciência pelos modernos cujos preceitos, conforme Jabouille (2000), estão

dispostos em três segmentos: o funcionalismo, que compreende a função social das

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narrativas míticas; o simbolismo, que concebem o mito como uma forma de explicar

o que não pode ser expresso; e a estruturalista que aborda o mito como a expressão

dramática dos ideais que são sustentáculos de um convívio social.

Segundo as primitivas mitologias, o mundo foi criado por uma deusa que

decidia sozinha o futuro dos seres e das coisas. É o reinado da mãe-terra ou a

grande mãe. Na fase seguinte deus é uma força ambivalente (metade homem –

metade mulher), representado no hinduísmo pelos opostos Yin e Yang. Mais

adiante, as deusas se deixam fecundar pelas entidades masculinas, são banidas do

poder e passam a assumir a condição de servas. Por último, nem deuses nem seres

andróginos, Javé cria o mundo sem ajuda de ninguém e a mulher é criada, por

desejo de Adão, que havia descoberto a própria solidão, assim a mulher já nasce

como imperfeita. Criada da costela de Adão, Eva veio para disseminar o pecado,

pois levou o homem a comer do fruto proibido e ser expulso do paraíso. Sabemos,

entretanto, que o mito do nascimento da mulher é rico em contradições. Para Costa

(2005: p. 22), a representação feminina se fundamenta, através do mito, na criação.

Lilith e Eva são as representações femininas consideradas como mitos da criação

pela cultura judaico-babilônica.

Lilith é a figura construída de lama, em equidade de categorias, à

semelhança de todos os outros animais e dada como companheira. Esta

representação feminina é livre e independente. Devido a sua liberdade e autonomia,

ela abandona seu companheiro pois este havia tentado submetê-la a inferioridade.

Assim, ela é excluída da cultura judaica e essa exclusão é justificada pelo fato de ela

não se adequar aos padrões do patriarcalismo, de modo que acaba satanizada.

Dessa forma, Eva surge como a mulher que substitui Lilith, e que traria

todos os preceitos embutidos em sua personalidade. Construída a partir da costela

de Adão, ela não tem o mesmo regulamento de Lilith, pois é submetida ao

companheiro. Por causa de sua desobediência – ao ceder a tentação do pecado

original, ela é condenada.

Segundo Alves (apud LUCENA, 2003, p. 18), “Lilith e Eva” propõem-se,

assim, como arquétipos inconciliáveis da mulher nas sociedades patriarcais.

Maleficamente sedutora Eva foi inferiorizada e subjugada, enquanto Lilith, pela

ousadia e atrevimento, demonizada. Nesta perspectiva, à mulher sempre foi imposta

a cultura patriarcal que faz da imagem feminina exemplo de esposa e mãe cujos

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dotes intelectuais são negados e dispensados, ela é, pois, resumida as atividades

domésticas e à subordinação masculina.

Fazendo um mapeamento sobre o tema, encontramos uma consideração

bastante pertinente feita por Costa:

O primeiro capítulo da Bíblia conta a história de Adão e Eva, mas, segundo o Zohar, Eva não foi a primeira mulher de Adão. Quando Deus criou Adão, ele o fez macho e fêmea, depois o cortou ao meio, chamou a esta nova metade Lilith e deu-a a Adão. Lilith, porém, recusou, não queria ser oferecida a ele, tornar-se desigual, inferior; e fugiu para ir ter com o diabo. Deus tomou uma costela de Adão e criou Eva, mulher submissa, dócil e inferior perante o homem. (COSTA, 2005, p. 19).

Segundo a autora o mito de Lilith antecede Eva, e como mito estabelece

uma relação com mundo e com a história. Lilith não aceitou ser inferior ao homem,

por isso representa o feminino personificado com o diabo. Ampliando as nossas

observações acerca de Lilith, encontramos a seguinte afirmativa elaborada por

Roberto Sicuteri:

Lilith é um mito arcaico, seguramente anterior, na redação jeovística da Bíblia, ao mito de Eva: por isto se pode dizer que Lilith foi a primeira companheira de Adão. É claro que o conteúdo do mito de Lilith tem fortes paralelismos com o mito de Eva. Porém, parece-nos útil pôr em relevo um particular: Lilith entra no mito já como demônio, uma figura de saliva e sangue, um verdadeiro espírito deixado em estado informe por Deus; é uma companheira que apresenta fortes traços de fatalidade. É interessante se perguntar por que no Gênesis não aparece nunca alguma informação relativa à criação dos demônios. (SICUTERI, 1985, p. 23).

Podemos perceber nas citações dos dois autores que, tanto Eva como Lilith,

são de certa forma, demônios femininos com significações distintas: Eva foi criada

da costela de Adão para ser dócil, obediente, para servi-lo e ser a sua companheira.

Descobriu o pecado, levou o homem também a pecar. É castigada e depois do

castigo volta a obedecer. Lilith também, num certo sentido, foi expulsa da porta do

paraíso, criada para servir ao homem, mas se recusa a obedecê-lo, é castigada e

passa a se identificar com o diabo ou com a morte, vive nas encruzilhadas,

arquitetando vinganças.

Nessas duas personagens temos o feminino registrado de forma bem

negativa, isso nos leva a concluir que desde o princípio, o feminino é visto como

uma ameaça ao homem. Sempre que se tratar do tema vamos encontrar o retorno

das personagens de Lilith, Eva, Circe. Não podendo esquecer também o feminino

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personificado na figura da bruxa que consagrava o corpo e a alma ao diabo em troca

de poderes que recebia na eterna luta contra Deus. A bruxa como mulher velha,

sozinha, ou como fera de aspecto feroz, com seu cortejo infernal de diabos. A bruxa

como mulher jovem, bela e atraente que pode seduzir com feitiços ou com a alegria

vital dos sentidos, enquanto beleza encantadora que oferece aspectos enganadores.

Assim sendo, podemos afirmar que o feminino sempre foi visto de forma

negativa. Na História, na religião ou na mitologia, o homem nasceu para ser forte,

dominador e valente, enquanto que da mulher exige-se docilidade e submissão.

Aquela que desobedece às regras fica à margem, execrada pela sociedade. Esses

modelos femininos foram sendo repassados aos escritos e estão sempre presentes

como forma de pensar e sentir, a visão de vida, significados e valores.

Após essas explanações acerca da origem do mito feminino, vejamos alguns

exemplos de personagens femininas da Literatura Brasileira, que se destacaram

como mito conforme o modelo que apresentavam e o estilo de época no qual cada

uma foi criada.

1.2. Feminino e Literatura

Os textos literários situam-se em um espaço de confluência de vários

discursos que se cruzam. Assim na literatura, escritores e poetas vão se apropriando

das transformações sociais, das ideologias e preceitos para criar personagens

dominadoras, malignas, amáveis, inferiores ou superiores. Nas narrativas, conforme

Costa (2005), a personagem feminina foi assim delineada, ganhando e definindo seu

espaço, de acordo com a criação do seu criador.

Não podemos negar, portanto, uma estreita relação entre a consolidação do romance e a figuração da personagem feminina, pois ambos percorreram muitos caminhos até chegarem a ocupar o seu lugar merecido, dentro da literatura. Podemos dizer que a figura feminina dos escritos literários de hoje é a soma da interpretabilidade literária escrita ao longo do tempo. (COSTA, 2005, p. 30).

No contexto histórico-literário do padrão clássico, durante o Arcadismo -

movimento ocorrido nos anos de 1700, com fortes características da vida campestre,

pastoril, contato com a natureza e marcas pré-românticas – encontramos algumas

personagens criadas em um contexto de idealização da literatura greco-latina, tendo

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como modelo as deusas que integram a divinização do mundo da Grécia clássica.

Dentro desse vasto universo de personagens femininas podemos citar Marília,

personagem de maior relevância dentro da produção de Tomás Antônio Gonzaga.

Tida como divindade quando é descrita em sua personalidade e características

físicas, ademais, temos nesta descrição, uma grande ênfase a respeito da educação

feminina da época, quando se criava a mulher para atividades domésticas ao invés

de proporcionar uma educação que a preparasse para a vida – autonomia e

liberdade eram condições negadas à mulher pela sociedade desse contexto – a

Arcádia. Eis o porquê da passividade de Marília, a doce e bela moça, quando junto

ao amado ou afastada dele, que representa a condição feminina da época. Como

afirma Coutinho:

[...] a figura de Marília, os amores ainda não realizados e a mágoa da separação entram apenas como “ocasiões” no cancioneiro Dirceu. Não se ordenam em um crescente emotivo. Dispersam-se em liras galantes em que sobreleva o mito grego, a paisagem bucólica, o vezo epigrama. (COUTINHO, 1988, p. 72).

Essa questão de não ordenar um crescente emotivo, gera, conforme

Coutinho, uma oscilação, compreendida por características árcades relativas ao

“real e aos padrões de beleza petrarquista” (COUTINHO, 1988, p. 73). Outro fator

importante é entender que Marília é descrita por Dirceu, ou seja, o discurso feminino,

neste caso, está embutido no discurso do homem.

No século XIX, o quadro da mulher era originário da burguesia, que

implantou o Romantismo no Brasil. Então o rosto feminino brasileiro “era branco,

negro e índio, e sobre ele detiveram-se os poetas, prosadores e artistas” (LUCENA,

2003, p. 82).

Na ascendência dessa conjuntura, surge o Romantismo. Com forte

nacionalismo e alusão à figura do índio como herói nacional, a mulher se apresenta

no papel sacrificante de renúncia de si mesma para ser esposa fiel e obediente,

como se colocava o comportamento feminino neste século. A este respeito, Lucena

(2003) acrescenta: “Limitava-se sua situação – até 1808 – a um estrito regime de

semi-clausura doméstica” [...]. Sua formação cultural limitava-se. [...] “A todas,

porém, era destinado o casamento, o cuidado da casa e dos filhos, o silêncio da sua

expressão”. (LUCENA, 2003, p. 83). Contudo, a identificação com essas

personagens, ainda que ilusória, garantiu a consolidação e o sucesso do romance.

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Segundo Bosi (1994), José de Alencar, como grande destaque do Romantismo, em

uma de suas falas, vai afirmar que,

Para dar forma ao herói [...] não via meio mais eficaz do que amalgamá-lo

à vida da natureza. É a conaturalidade que o encanta: desde as linhas do

perfil até os gestos que definem um caráter, tudo emerge do mesmo fundo

incônscio e selvagem, que é a própria matriz dos valores românticos.

(BOSI, 1994, p. 138).

Neste contexto, podemos admirar as: Divas, Lucíolas, Iracemas, Aurélias,

Isauras e Cecílias. Passivas, submissas, acanhadas ou atrevidas, essas

personagens vão apresentando o retrato social da mulher dentro de uma sociedade

patriarcal, onde somente o homem tinha escolhas e poderes. Isso justificaria o

domínio do homem no ambiente social e familiar, já que seriam “mais fortes” e

“racionais” e, as mulheres, carregadas de fragilidades, o que implicaria a

inferioridade feminina quando relacionada ao homem.

A representação feminina dentro dos contextos citados é tida pela

submissão e passividade, inclusive na educação dentro das sociedades das

respectivas épocas, deixando-a inferior, sem atuações significativas na vida social,

econômica e política. Ainda com ênfase no patriarcalismo, a família era o modelo

consagrado que desempenhava os papéis políticos, econômicos e sociais. Neste

aspecto, a família era o que dava excelência ao homem, enquanto que a mulher

tinha espaço insignificante. Mesmo que o papel de mãe fosse exaltado, seu destino

aguardaria surpresas. Assim, a mulher tinha um horizonte reduzido, como afirma

Lucena:

Sua situação social se resumia às demonstrações de fé, nas missas dominicais, de caridade, nas reuniões beneficentes, e de boa anfitriã [...]. Sem direito a voto ou participação política, sobrava à mulher o papel de mãe e educadora, sua principal tarefa na sociedade patriarcal. (LUCENA, 2003, p. 41)

Porém, a segunda metade do século XIX corresponde à instauração da

ordem burguesa, transformações de urbanização, introdução de imigrantes

europeus, surgimentos de fábricas e novos transportes. Nesse cenário, novos

princípios passam a configurar traços que marcam e implantam um novo estilo de

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época, o Realismo. Com essas mudanças, alterava-se também a face provinciana

do Rio de Janeiro:

A segunda metade do século XIX assinala mudanças importantes no quadro brasileiro. Algumas provêm do agravamento de condições antigas. Outras surgem de fatores novos que vêm quebrar o ritmo nacional do desenvolvimento econômico e encontram reflexo no ambiente social e político do tempo. Influências externas começam a avultar e são facilmente perceptivas na vida brasileira, particularmente na vida urbana. (SODRÉ, 1988, apud COSTA, 2005, p. 130).

Em decorrência desse processo de transformações mútuas também ocorre a

reformulação da família no âmbito da nova ordem. O despotismo patriarcal sai de

cena e a divisão do comando familiar chega unida a uma política mais flexível de

delegação de poderes. Tendo em vista este ponto, a mulher, subjugada e sem

expressão, até então ligada à família e à maternidade, passa a ter seu espaço na

esfera privada, afirmando-se como modelo feminino por excelência. Nesse novo

olhar, a literatura apresenta também uma nova visão, já que se caracteriza

nitidamente por elementos vinculados a essas concepções. Ao contrário dos

românticos que impunham à figura feminina o papel de dependentes, os realistas

dão à suas heroínas um relevo “cujo perfil vai-se intensificando com o surgimento da

narrativa; assim as personagens femininas [...] são mais fortes e objetivas, capazes

de conduzir a ação” (COSTA, 2005, p. 131).

Logo, no contexto de tantas transformações, a mulher assumiu uma

participação expressiva no ideário masculino. Esse redimensionamento fez com que

a figura feminina recebesse uma considerável parcela das atenções e isso acontece

em situações diversas, seja em quadros, atitudes, costumes, considerando que, ao

passar do tempo, ela assume uma multiplicidade de identidades e valores

conflitantes. Outro aspecto que recebe destaque é a forte presença dessa nova voz,

fazendo a sua construção estabelecer a condição feminina não com tanta

passividade. Um bom exemplo dessa mudança de atitude é o caso de Capitu,

personagem de Dom Casmurro (1899), criação de Machado de Assis, diferenciada

das personagens anteriores exatamente pela autonomia e articulação que lhe

conferem direitos não tão diferentes do homem e que contrasta com os ideais

femininos dos padrões clássicos. Em relação a esta afirmação, Costa comenta:

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Com essas diferenças entre as personagens – de um lado o romantismo

idealizado com fraca verossimilhança psicológica das heroínas, devido à

própria concepção romanesca, as personagens femininas machadianas [...]

apresentam [...] um significado preciso na história do romance brasileiro,

alargando as perspectivas do romance, especialmente, urbano, com novas

aberturas para o romance psicológico [...]. (COSTA, 2005, p. 32).

Esta época, logo, traz uma nova roupagem ao discurso feminino, pois temos,

a partir dessa inovação a desconstrução dos arquétipos românticos. Opondo-se às

personagens femininas criadas nos estilos anteriores, a atitude da mulher, nesse

contexto, é de não submissa, o que a torna capaz de manifestar reação contra o que

a desagrada, contraria, revelando novos traços na psicologia feminina. Desse modo,

embora Capitu, assim como as outras personagens, seja uma construção feita por

Bentinho - a mulher, mais uma vez, dentro do discurso masculino -, ela acaba por

escapar ao modelo romantizado e passa a expressar traços de vontade e

consciência de si.

Nas décadas de 1930 e 1940, o romance brasileiro se destaca a serviço da

análise crítica da realidade. Na prosa, foi evidente o interesse por temas nacionais,

uma linguagem mais brasileira, o romance focou o regionalismo, principalmente o

nordestino, e, com isso, problemas como a seca, a migração, a situação do

trabalhador rural, a miséria, a ignorância foram ressaltados, como afirma Bosi (1994,

p. 389): “O Modernismo e, num plano histórico mais geral, os abalos que sofreu a

vida brasileira em torno de 1930 [...] condicionaram novos estilos ficcionais

marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos [...]”. A partir disso,

presumimos que o romance regionalista veio mostrar as incoerências e desordens

de um Brasil que se desejava moderno, urbano e industrializado, mas conservava

também traços arcaicos em sua diversidade regional. Havia também o campo,

dominado por uma sociedade patriarcal em decadência, e, nas cidades, estava

presente o homem comum que enfrentava os mais variados problemas sociais.

Assim como os autores da literatura proletária, os autores regionalistas

tinham uma preocupação sociológica e documental, distinguindo-se dos modernistas

com seu experimentalismo estético. Nessa perspectiva, aparece Madalena, criação

de Graciliano Ramos em São Bernardo (1934), uma mulher com ideais socialistas,

uma professora que não se acomodava e nem aceitava a maneira hostil e

desumana como o esposo tratava seus empregados.

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Madalena é uma figura revelada por Paulo Honório, tudo que sabemos sobre

ela nos é passado segundo o esposo, assim como Capitu, o que significa dizer que,

não obstante as mudanças histórico-literárias acerca do papel feminino na

sociedade. Temos aí mais um discurso masculino sobrepondo o feminino.

Logo, no quadro contextualizado do Realismo e do Modernismo a figura

feminina passa a se distinguir do padrão de mulher conformada com as tarefas

domésticas, a quem eram negados dotes intelectuais.

Na década de 1950 surge a fase pós-moderna, ou ainda terceira fase

modernista, como abordam alguns estudiosos. Na estética da pós-modernidade

temos a presença constante da intertextualidade, exercício da metalinguagem, a

variedade de estilos, a radicalização de posições anti-racionalistas e antiburguesas,

além da autoconsciência e auto-reflexão que transparecem nos textos. Sob estas,

estão os escritos de Clarice Lispector: uma literatura voltada para a introspecção,

para a viagem interior, na busca de compreender o ser humano.

Neste quadro intimista surge Macabéa, de A hora da estrela (1985), uma das

produções mais conhecidas de Clarice Lispector. Eis aí uma figura feminina feia,

desligada, sem boas conversas, sem grandes amores, sem perspectivas, enfim, uma

representação da mulher na literatura que desconstrói todo o patamar feminino

exposto aqui. Há um distanciamento de gênero imposto entre autoria e narração,

pois embora tenhamos uma obra elaborada por uma autora - Clarice Lispector -, a

história nos é apresentada pelo narrador personagem, Rodrigo M. S., é ele quem

conta toda a fábula da protagonista. Uma possibilidade de entendimento para essa

escolha é a tentativa de se evitar a interferência da sensibilidade feminina, ou seja,

evitar que esse traço tão marcante de personalidade da mulher atrapalhasse tudo o

que era para ser dito sobre Macabéa. Como por exemplo, podemos mencionar a

seguinte passagem: “[...] ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o

melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na

verdade [...] o seu viver é ralo” (LISPECTOR, 1985, p. 23).

Através dessa personagem, Clarice Lispector faz uso da introspecção a fim

de entender o interior do ser humano. É interessante notar que, como todas as

personagens aqui citadas, Macabéa também é feita por um narrador, por meio do

discurso masculino.

Partindo das ilustrações colocadas acerca da teoria feminina, constatamos

uma gradação do feminino no discurso literário nos estilos de época citados,

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exemplificados desde Marília – personagem árcade com características pré-

românticas – à Macabéa – caracterizada dentro do contexto pós-modernista que

nega o distintivo dos padrões femininos. É possível perceber a ascendência desse

discurso no que diz respeito à evolução de mudanças das abordagens femininas

dentro da história da literatura brasileira que assimila caracteres, conforme o

momento histórico no qual se vive. Embora seja possível rastrear essas

modificações as marcas da alteridade são uma constante, já que todas as

personagens são construídas através da concepção do outro.

Tendo em vista a teoria exposta, bem como as ilustrações desta com as

personagens abrangidas, fica clara a forma gradativa de como as alterações

ocorrem dentro do texto literário no que se refere ao comportamento feminino, este

inicia de forma submissa, passiva e mesmo insignificante em relação a um papel

intimamente social, contudo, torna-se, autônomo, articulado, com voz forte dentro do

discurso e deixa de ser subjugada na relação homem/mulher até chegar na própria

desconstrução em torno da história da mulher. Levando em consideração estes

itens, vemos a marca do feminino dentro do discurso literário e a visão não estática

que permite modificações na história da mulher dentro da produção literária

nacional.

Assim sendo, podemos dizer que a literatura, como uma possibilidade de

representação e reflexão de diferentes realidades sociais, foi ao longo de um vasto

percurso histórico representando o feminino de formas distintas e variadas. Durante

o período que se estendeu até a modernidade a literatura vem paulatinamente

representando a mulher como uma figura submissa, carente, doce e totalmente

dependente da figura masculina. Entretanto, quando ela não corresponde a essas

características e passa a ser marcada por traços de independência feminina são

rapidamente repreendidas pela sociedade patriarcal.

Nesse sentido a literatura construiu inúmeras figuras femininas

estereotipadas, representadas como ideais de beleza, bondade, feminilidade,

religiosidade e maternidade. Segundo o posicionamento de Zolin:

A história da cultura ocidental consolidou-se segundo a tradição do saber

masculino. Em função disso, é comum encontrar-se entre as obras da

nossa literatura imagens de mulheres estereotipadas segundo o modelo da

sociedade patriarcal, caracterizada pela submissão, pela resignação, pela

espera, pelo sofrimento, pela saudade etc. segundo a critica, é, sobretudo a

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literatura de autoria masculina que tem, ao longo do tempo, representado. O

emparedamento da mulher nesse silencio. (ZOLIN, 1997, p. 42).

Para reiterar o pensamento de Zolin, acima referendado, Cerdeira (1999, p.

47) faz a seguinte colocação:

Ao longo dos séculos, a mulher foi subestimada socialmente. Subordinada à autoridade masculina, teve pouco espaço para moldar sua própria identidade. Tinha acesso restrito ao mercado de trabalho e à educação, esta limitada pelo tipo de saber imposto ao sexo feminino considerado sexo frágil. (CERDEIRA, 1999, p. 47)

Todas essas impossibilidades e restrições relacionadas ao, considerado

sexo frágil, impossibilitaram, ainda mais o já difícil processo de independência

feminina. A educação e o espaço no mercado de trabalho foram dois importantes

veículos de independência dessa mulher silenciada e punida severamente pela

sociedade. Tal marginalização deve-se ao simples fato de esse sujeito sob o gênero

feminino em um contexto dominado, quase sempre exclusivamente, pelos ideais

masculinos.

Assim, a literatura foi gradativamente, representando as mudanças no perfil

feminino. Construindo personagens que aos poucos vão se distanciando de perfis

estereotipados e expondo mulheres com fortes traços de independência. Nesse

sentido Costa argumenta que:

Na literatura, temos uma diversidade de escritores e poetas que fundem fatos e passam a dar uma nova construção. Foi assim que a figura feminina foi evoluindo de acordo com o tempo, representado novas faces, fragmentadas ou não, vencendo intervenções e transpondo limites. Os textos literários situam-se, portanto, num especo de confluência de outros discursos literários e extra literários, cujo significado não depende de um único código, mas de diversos discursos estranhos que se cruzam e se neutralizam na linguagem literária. É assim que obra literária cresceu, amadureceu e se consolidou. E com ela a personagem feminina. (COSTA, (2008, p. 90).

Personagens cada vez mais independentes da dominação masculina,

portadoras de identidades fragmentadas, donas de personalidades fortes e

revolucionárias. Esse novo perfil passa a ganhar representatividade através de

lindas mulheres que passaram a protagonizar o enredo dos romances produzidos.

Dentre os vários nomes que surgem como condensadores das

características mencionadas podemos citar as personagens Capitu e Madalena, a

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primeira da obra Dom Casmurro (1989) de Machado de Assis e a segunda do

romance São Bernardo (1934) de Graciliano Ramos. Ambas as personagens

apresentam um forte surto de independência feminina: são mulheres inteligentes,

educadas e não submissas ao esposo, entretanto altamente repreendidas e punidas

por seus atos revolucionários.

A construção feminina de Capitu e Madalena nos mostra mulheres que

sofrem por romper com o modelo idealizado e, por conseguinte, acabam sendo

vítimas de suas próprias ações: Capitu mulher forte, dissimulada e inteligente, é

acusada de adúltera e, como punição é exilada na Europa; Madalena – dotada de

cultura, apreciadora da política e da filosofia, caridosa e de atitudes revolucionárias,

mas oprimida pela brutalidade do marido e pelo ciúme doentio, vê no suicídio uma

possibilidade de liberdade. A morte para Madalena não simboliza desespero, mas

um ato bem pensado e planejado, uma forma de contrariar o marido e ter a

oportunidade de fazer as suas próprias escolhas: viver aquela vida ou não.

Representa a mulher que vive num tempo, mas tem um posicionamento além do seu

tempo.

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CAPÍTULO II: A CONSTRUÇÃO FEMININA ATÉ O SÉCULO XIX E A

IDEALIZAÇÃO DA MULHER EM NÍSIA FLORESTA.

2.1 – A posição ocupada pela mulher até o século XIX e o contexto Nisiano.

É a partir da colonização que a história do Brasil começa a ser contada,

muito embora, formada também através do contexto aqui já existente, e nela a

mulher não apareceu ou apenas figurou de maneira insignificante, pois recaída

sobre si a desgraça herdada desde Adão e Eva. Nestas terras, colonizadas por

católicos, as mulheres que aqui estavam, chegaram, ou nasceram não podiam ter

outro destino a não ser a repreensão, continência, sujeição e submissão já pregada

na Bíblia - A mulher que desgraçou a Adão e sobre ele fez cair o castigo.

E a Adão disse: Porquanto destes ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti, com dor comerás dela todos os dias da tua vida. (GÊNESIS 3:9 – 16)

1.

Não há espanto, pois, que as mulheres a partir da colonização do Brasil já

nasceram inferiorizadas pelo contexto histórico no qual estavam inseridas. A

estrutura social estabelecida durante o século XVI no Brasil tornou-se, com

variações, o padrão para o resto do período colonial e dela temos resquícios até

hoje. No topo da hierarquia estavam os homens brancos de ascendência

portuguesa, tipicamente importantes proprietários de terras. Suas esposas ou filhas

brancas estavam estritamente subordinadas aos seus maridos ou pais, os

patriarcas.

Desse modo, as mulheres brasileiras do período colonial herdaram a

posição inferior que a sociedade portuguesa relegara às mulheres, excluindo-as de

qualquer papel público, estatal e eclesiástico. Um decreto em particular dava poder

ao marido para, no caso de comprovação, ou simples suspeita de traição, matar sua

esposa. Está documentado, que vários maridos tiraram vantagem, repetidas vezes,

desse “direito”. Somente na Bahia, trinta casos foram registrados em 1713.

1 Bíblia de estudo da mulher

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Filhas não casada não estavam em situação muito melhor. Em geral eram

enviadas a algum convento onde ficavam confinadas por toda a vida. Em

consequência, as mulheres de classe econômica mais abastada tornavam-se

reclusas de uma prisão sem grades, raramente saiam de casa, a mesmo que fosse

para a missa. A única exceção eram as viúvas com filhos menores, estas, com a

morte do seu marido, ganhavam direitos de propriedade e assumiam o papel familiar

do falecido patriarca. Estas circunstâncias foram, por certo, as responsáveis pelo

número considerável de famílias encabeçadas por mulheres que aparecem nos

registros coloniais.

Abaixo os grandes proprietários de terras estavam os proprietários menores

e os pequenos fazendeiros (geralmente de origem camponesa de Portugal). Na

base mesmo da hierarquia, tanto social como legal, estavam os escravos. Até o ano

1600, estes eram principalmente índios, mas com a virada do século, passaram a

ser, crescentemente, africanos.

Antes dos anos 1800, praticamente não há registros de mulheres

alfabetizadas, sequer de escolas que permitissem o ingresso da mulher. A

sociedade ocidental contextualiza um procedimento e uma expressão nos quais o

homem está como sujeito e a mulher como objeto, o que presume a mulher como

instância coisificada pelo homem, este como sujeito dominante que determina o seu

lugar dentro da sociedade.

A partir destes valores, a literatura traz em seu conteúdo o comportamento

da mulher inserida, até os anos de 1800, num padrão patriarcal consequente de

domínio masculino. Como nos diz Pires: “A condição da mulher é representada

discursivamente, refletindo uma visão conservadora e discriminatória que engendra

formas de silenciamento e exclusão [...]”. (PIRES apud LUCENA, 2003, p. 202).

Logo, o conservadorismo não permitiu o fluir da identidade feminina por si só, ela era

imposta pelo jogo social.

É certo que o papel social da mulher começou a mudar a partir da

Revolução Francesa (1789), quando elas passaram a atuar de forma significativa na

sociedade – essa alteração de status vem exposta pelo próprio lema da Revolução:

Liberdade, Igualdade e Fraternidade – outro fator que contribuiu para essa nova

postura foi a Revolução Industrial deste período, que incluiu a mulher no mercado do

trabalho, embora o propósito tenha sido de baratear os salários.

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Entretanto, o homem é evidência, e foi em prol de seus direitos que as

maiores reivindicações foram estruturadas, até porque o novo conceito político que

agitava o pensamento liberal europeu era o dos direitos do homem, cujas principais

referências foram a “Declaração de Independência”, votada pelo Congresso

Americano (1776) e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, adotada

pela Assembleia Nacional Francesa (1789).

Biachini (Prática Jurídica, nº 84; março de 2009, pág. 28) – A Revolução Francesa representa o principal marco na luta em prol de direitos às mulheres. A partir daí, pode-se perceber uma vigorosa manifestação na literatura, que se intensificou, mais fecundamente a partir do século XIX.

Para a formação do sujeito mulher, de Nísia Floresta, a Revolução Francesa

tem também grande relevância, pois o ponto de partida de sua obra Direito das

Mulheres e Injustiça dos Homens (1989), o maior legado que deixou em busca dos

direitos femininos foi uma tradução livre dos escritos de Mary Wollstonecraft, que a

partir das duas declarações acima citadas, junto ao conceito de direitos individuais

inalienáveis e universais, uma vez que tais direitos pertencem ao gênero humano,

cuja expressão “Direitos do Homem e do Cidadão”, denuncia a exclusão do gênero

feminino.

Então, podemos dizer que no Brasil, até o Século XVIII, as mulheres ainda

viviam enclausuradas em preconceitos, sem nenhum direito que não fosse o de

ceder e aquiescer à vontade masculina, apresentando como principais

características a submissão, dependência, analfabetismo e ausência de direitos.

É bem verdade, porém, que com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil,

a situação da mulher começa aos poucos a mudar: “Os novos ventos trouxeram

educadores portuguesas e francesas para as meninas das famílias mais abastadas,

e, lentamente, foi deixando de ser uma “heresia social” o ato de se instruir e ilustrar

alguém do sexo feminino”. (DUARTE, 2010, p. 18).

Entretanto, apenas em 1827, passados três anos da promulgação da

primeira Constituição brasileira, uma lei institui o ensino primário para o sexo

feminino, com currículo para o aprendizado da economia doméstica, costura,

decoração e pintura, excluindo a geometria e a aritmética, ou seja, apenas no início

do Século XIX permitiu o ingresso das mulheres no ensino primário, mas, os maiores

ensinamentos ainda estavam ligados ao papel de mãe e esposa.

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Desse modo, pode-se concluir que a independência do Brasil não significou

independência da mulher, mas é desse século a primeira reivindicação pelos direitos

femininos. Tal reclamação foi formulada por uma brasileira, Dionísia Gonçalves Pinto

- Nísia Floresta, mulher, educadora, escritora e poetisa, considerada ainda por

alguns como filósofa. Nasceu em 12 de Outubro de 1810, em um sítio denominado

Floresta, no pequeno vilarejo de Papari, localidade que se elevou a categoria de

cidade no dia 1º de Fevereiro de 1890 e posteriormente foi denominada Nísia

Floresta, em homenagem feita no dia 23 de dezembro de 1948, uma vez que este foi

o nome pelo qual se tornou conhecida a escritora potiguar, nascida nestas terras.

O nome Nísia Floresta foi escolhido pela própria Dionísia, que ao assinar a

obra “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”, publicada no ano de 1832,

assim o fez como Nísia Floresta Brasileira Augusta, externando, pois alguns traços

da sua personalidade: “Nísia”, de Dionísia; “Floresta” mencionando o lugar onde

nasceu. “Brasileira” em referência ao seu nativismo, mas também já externando o

traço do romantismo presente em suas obras e “Augusta” em homenagem ao seu

segundo marido que chamava-se Manuel Augusto de Faria Rocha, com quem se

casou em 1828. Na verdade ele sempre foi sua primeira escolha, já que aquele com

quem Nísia primeiro casou, Manuel Alexandre Seabra de Melo, um rapaz pouco

culto e de muitas terras, ao que parece, lhe fora imposto.

Nísia Floresta era filha de Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa, um advogado

português, daí a razão para chamar-se Dionísia Gonçalves Pinto, àquela época era

costume dar às mulheres o primeiro nome do pai, este, por sua vez, era um

advogado considerado, um homem culto e de ideais políticos liberais, o que,

segundo a própria Nísia, culminou em seu assassinato no ano de 1828 após

defender a causa de um cliente contra um poderoso de Olinda.

A figura materna na vida da escritora potiguar em comento, Antônia Clara

Freire, também há de ter possibilitado a Nísia Floresta o alvorecer de suas ideias,

pois era tida como uma mulher inteligente, que ficou viúva muito nova, com uma filha

chamada Maria Isabel do Sacramento e posteriormente casado com o pai de Nísia

Floresta. Aquela pertencia a uma importante família da região, era filha do capitão-

mor Bento Freire do Revorêdo e de Mônica da Rocha Bezerra, casal que está na

origem de algumas das principais famílias de Papari.

Do histórico familiar supracitado percebe-se a tendência de Nísia Floresta

para o estudo, fato, entretanto, contrário aos costumes da época, mas contrariar os

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costumes da época no que se refere à mulher daquele tempo, foi uma característica

predominante em Nísia Floresta, pois as suas ideias sempre foram voltadas à

educação, igualdade de direitos e independência feminina.

Mesmo casando aos treze anos (1823) com Manuel Alexandre Seabra de

Melo, um rapaz pouco culto, mas de muitas posses e Nísia Floresta, cujo espírito de

inconformismo com a situação feminina da época já se eleva, separa-se poucos

meses depois e volta a residir com os pais.

Antes disso, no ano de 1817, a família de Nísia Floresta passa a residir no

estado do Pernambuco, em Goiânia e em 1818, retorna para as proximidades da

antiga Papari. Entretanto em 1824, após a separação de Nísia Floresta, o que

certamente influenciou bastante na atitude da família, embora não constem registros

históricos - nem a própria Constância Lima, célebre estudiosa sobre a vida de Nísia

tenha feito referência, após Nísia Floresta ter abandonado o marido - sua família

passa a morar em Goiânia, posteriormente Olinda e Recife.

Estes acontecimentos na vida da escritora potiguar merecem destaque,

primeiro por que foi nos estados do Nordeste, afetados pela seca de 1816 e pela

crise açucareira que começam a desencadear as primeiras revoluções anti-

lusitanas, o surgimento do desejo de independência: segundo porque foi no estado

de Pernambuco, que fora assassinado o pai de Nísia Floresta, Dionísio Gonçalves

Pinto (17/08/1828), cuja vida fora ceifada nas proximidades de Recife, após a

obtenção de sucesso na causa de um cliente, o que, afirma Constância Lima Duarte

(2008, p.17), a própria Nísia atribuiu o assassinato de seu pai aos poderosos de

Olinda, que não tolerariam um advogado que agisse contra os seus interesses.

Poucos meses depois, Nísia Floresta passa a residir com um acadêmico da

Faculdade de Direito, Manuel Augusto de Faria Rocha, com quem teve três filhos,

Lívia Augusto de Faria Rocha (12/01/1830) e Augusto Américo de Faria Rocha

(12/01/1833), além de um morto prematuramente no ano de 1831. O segundo

casamento torna mais efetiva a presença dos advogados em sua vida e até o

convívio com o Direito, não sendo forçoso admitir que esta também torna-se

advogada2, ao passo que logo sairá em defesa dos direitos das mulheres,

denunciando em sua primeira obra as injustiças cometidas contra as mulheres,

2 Advogada não por ter cursado direito, mas por sair, primeiramente, em defesa dos direitos das

mulheres, sobretudo da educação, o qual as permitiria sair da condição submissa que se encontravam.

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quando escoltados no preconceito e costume, os homens não reconhecem os seus

direitos e já no ano de 1831, começa a publicar artigos que tratam da condição

feminina em um jornal Pernambucano.

Agora há de fazer uma pausa na sua vida pessoal e seus escritos, para

adentrar mais especificamente no “Contexto Nisiano”, já viu-se que naquela, esta

autora tinha ideias inovadoras e sem temor ao preconceito, advindo parcialmente da

sua criação, eis que filha da segunda união de sua mãe, casando-se aos treze anos,

separada poucos meses depois, cujo pai foi assassinado antes da mesma completar

18 anos de idade e possivelmente aos dezoito une-se a um outro homem, sendo

mãe aos 21 anos de idade e já publicando artigos em um jornal pernambucano.

No Brasil, o início do século XIX foi marcado pela propagação de ideais de

independência, herança do iluminismo3, o que inclusive culminou na independência

deste país em 1822, com a promulgação da primeira Constituição Brasileira em

1824, bem como a própria Revolução Francesa que antecedeu este século,

conforme visto acima, trouxe ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Mesmo com a propagação destas ideias, no que se relaciona à figura

feminina, a sociedade ainda era extremamente patriarcal, reservando à mulher

posição de inferioridade, submetendo-a primeiro à autoridade do pai e

posteriormente a do marido, sendo o casamento indissolúvel e considerada a mulher

como dependente do marido, ser não emancipado, a qual, até para estudar

precisaria de autorização.

Ademais, o próprio estudo só era tido como necessário até os 13 ou 14

anos, quando as mesmas já estavam aptas ao casamento, corroborando com a ideia

de quão irrisórios eram os direitos concedidos às mulheres, face à posição que lhes

era imposta: a inferioridade em relação aos homens.

A educação feminina no Brasil do século XIX, segundo diversos

testemunhos, muito deixava a desejar. Os viajantes Kidder e Fletcher que escreviam

sobre o que vivenciavam, aqui presentes em 1851, afirmavam que, naquele

momento, não teriam as mulheres brasileiras uma base de conhecimentos variados

para tornar agradável e instrutiva a sua palestra, embora tagarelassem

insignificâncias de modo sempre agradável. Por outro lado, eles admitiam

3 O iluminismo foi um movimento cultural da elite intelectual do Século XVIII na Europa, que procurou

mobilizar o poder da razão, a fim de reformar a sociedade e o conhecimento prévio. Era contra a intolerância e abusos da Igreja e do Estado.

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excelências de algumas escolas que estavam aparecendo, mas das quais os pais

retiravam suas filhas ao completarem 13 ou 14 anos, considerando-as preparadas

para a vida, aptas ao casamento, convictos de esta ser a opção de futuro mais

adequada às mulheres.

O trecho acima citado referente a prática da educação feminina no século

XIX, não causa espanto para a época que cultuava esta inferioridade do gênero e

que atribuía à mulher, mesmo àquela das classes mais abastadas, o papel de mãe e

as prendas domésticas e até aquelas que fugiam à regra e adquiriam instrução,

ainda assim lhes era negada a participação em qualquer espaço que ultrapasse os

liames domésticos, situação bem retratada por Miridan Kinox Falci, vejamos:

No sertão nordestino do Século XIX, a mulher de elite, mesmo com um certo grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, pois a ela não se destinava a esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural. A mulher não era considerada cidadã política. (FALCI, 2006, p. 251).

Ora, a própria Constituição Imperial de 1824 em todo o seu texto não usou o

feminino, direcionando todas as suas normas aos “cidadãos” deste país, sem referir-

se ao gênero feminino. Já o que poderia ser um avanço na primeira lei de instrução

pública no Brasil - de 1827 - a contra passo, foi uma confirmação do pensamento da

época, a qual mesmo erigindo o direito de educação da mulher, o justifica pelo

papel de mãe que a mesma precisa assumir.

As mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que dão a primeira educação aos filhos. São elas que fazem os homens bons e maus; são as origens das grandes desordens, como dos grandes bens; os homens moldam a sua conduta aos sentimentos delas. (LOPES, 2008, p. 447)

Pois bem, se as mulheres da época de Nísia, em sua grande maioria

atendiam ao patriarcalismo ainda vigentes, eram prendas do lar, poucas sabendo

ler, sendo negado o acesso a cursos superiores, Nísia Floresta publicou, em total

contraste com as mulheres de sua época, uma obra que concebia a mulher como

sujeito de iguais direitos, tal e qual aos conferidos ao gênero masculino, valorizando

a educação e a oportunidade para o trabalho. No ano de 1832 a obra que dá a

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autora o título de precursora do feminismo no Brasil é, indubitavelmente o título –

Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens.

Nísia Floresta viajou por diversos países, como Portugal, Inglaterra,

Alemanha, Grécia e Itália, até se fixar na França e morrer em 1885. Antes disso,

publicou quinze títulos, dirigiu escola para mulheres, e rompeu com o entendimento

que se tinha do gênero feminino na sua época, ressaltando a importância da

educação e do reconhecimento dos direitos para as mulheres, essa concepção da

mulher em Nísia foi ressaltada por Duarte:

Num tempo em que a grande maioria das mulheres brasileiras vivia trancafiada em casa sem nenhum direito; quando o ditado popular dizia “o melhor livro é a almofada do bastidor” e tinha foros de verdade para muitos, nesse tempo Nísia Floresta dirigia colégio para moças no Rio de Janeiro e escrevia livros e mais livros para defender os direitos femininos, dos índios e dos escravos. (DUARTE, 1989, p. 12)

Nísia Floresta rompeu com os preconceitos de seu tempo e pagou com sua

imagem, sofrendo assim campanha difamatória, mas seus escritos serviram de base

para o feminismo no Brasil, razão pela qual, lhe concedem o título de precursora

desse movimento dentro das fronteiras nacionais.

2.2 – A mulher relatada por Nísia Floresta em contraponto à idealizada

O título historicamente concedido à Nísia Floresta, de precursora do

feminismo, faz jus às obras desta escritora, ninguém conhecia tanto a mulher

brasileira de sua época quanto ela, nenhum brasileiro daquela época verticalizou

tanto os seus escritos a respeito do gênero feminino, como Nísia Floresta.

Esteticamente a obra de Nísia Floresta é considerada integrante da primeira

fase do Romantismo no Brasil, escola literária originada na Alemanha e Inglaterra

durante o Século XVIII. A ideologia desse período representava uma renovação nas

formas de expressão, proposta que se intensificou no século subsequente, gerando

liberdade tanto na estética quanto na temática abordada. No século XIX, o Brasil

passou por transformações, movimentos revolucionários que culminaram na

Independência, bem como o repúdio a escravidão o que futuramente acarretaria a

abolição da escravatura.

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A literatura tentava expressar essas mudanças radicais ao longo dos

acontecimentos. Desse modo, a preocupação dos escritores era a formulação e a

adoção de normas estéticas que traduzissem a realidade da época, e assim, o

romantismo surge no cenário nacional coincidentemente ao momento em que

eclodia o sentimento patriótico entre os autores, pensamento dominante entre os

espíritos mais esclarecidos.

Assim a primeira fase do Romantismo foi marcada pelo saudosismo -

regresso a um passado, cheio de boas lembranças - e o nacionalismo, que buscava

a valorização da identidade cultural dessa nova nação, isso porque o Romantismo é

o primeiro movimento literário no Brasil independente. Na Europa essas

características foram incorporadas na constituição de um herói representado pela

figura do cavaleiro medieval, um indivíduo bravo, destemido, forte, nobre, educado,

cortês, religioso, enfim, um ser mistificado e idealizado que atraía para si todas as

características consideradas motivo de orgulho para o povo que o representava. No

Brasil, como não tivemos o período correspondente a Idade Média, os escritores

reportaram-se ao passado e incorporaram ao discurso literário da época o índio.

Esse herói nacional idealizado servia aos propósitos buscados, por isso, foi

assumido como representante do nosso passado histórico e, desse modo, passou a

ser visto como símbolo de nacionalidade. Vejamos:

O Romantismo europeu valorizava o passado medieval, no qual se buscava reencontrar as raízes históricas e culturais de cada povo e de cada nação. O Romantismo brasileiro, por não contar com o riquíssimo material medieval, recorreu ao período anterior, ao nosso descobrimento, no qual o índio, por adaptação, corresponde ao cavaleiro medieval. (CEREJA; MAGALHÃES, 2003, p. 114)

Na tentativa de definir a etnia brasileira, os escritores românticos

constataram que o índio era o verdadeiro representante dessa nova nação, mais que

o branco (identificado com o colonizador português) e o negro (vindo de outro

continente). Havia entre os românticos uma preocupação de cunho libertário que

ultrapassava a questão regional e até a nacional, pois queriam abarcar a defesa de

todos os oprimidos, de todas as raças. Essa herança utópica da ideologia

progressista, cuja visão era universal, data dos fins do século XVIII e do início do

XIX.

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A literatura aponta Gonçalves de Magalhães como iniciante do Romantismo

no Brasil, no ano de 1836, com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades.

Magalhães despontava com ideias que traziam a natureza como fonte de inspiração;

o índio como alicerce da civilização e o gênio criador como dotado de sensibilidade

capaz de interpretar os anseios e pensamentos da comunidade (v. DUARTE, 2008;

p. 33).

Estas ideias foram absorvidas por quase todos os escritores daquele tempo

e Nísia Floresta, que já em 1832 despontou com a Obra Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens na qual exaltou as qualidades femininas em defesa desse ser

oprimido e que fazia parte da história de toda a humanidade - não se sabe por que

razão a ela não foi também dado o reconhecimento de, senão figura fundante, mas

ao menos que ajudou a introduzir o Romantismo no Brasil, talvez pelas próprias

questões preconceituosas que cercavam a figura feminina – mas o fato é que Nísia

teve o ambiente propício para a divulgação de suas ideias e corrobora com seus

escritos à tentativa comum de se criar uma literatura nacional, escoltados no

patriotismo que impulsionava os escritores da época, desenvolvendo em sua

produção a defesa dos oprimidos (mulher, índio, escravos), além de deixar-se

preencher também pelo nacionalismo romântico.

Há duas obras de Nísia que evidenciam a posição feminina de sua época e

a posição por ela idealizada, reivindicando uma nova concepção para a figura

feminina, são elas Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens e Opúsculo

Humanitário.

Em sua primeira obra, Direito das mulheres e injustiça dos homens

publicada pela primeira vez em 1832, Nísia denuncia toda situação de opressão

vivida pelas mulheres de sua época. Tal proposição soa como um grito de

reivindicação, de desabafo, revolta e indignação das mulheres diante das injustiças

cometidas pelos homens, ao negarem a elas o direito de liberdade e as privarem do

acesso a qualquer forma de independência e/ou emancipação intelectual. Ao passo

que denuncia a situação vivenciada, relata a mulher que existia, mostrando as

privações dos direitos e as injustiças cometidas, a ausência de educação que

permitisse a autonomia feminina, pois os únicos ensinamentos que tinham nas

escolas eram voltados para as prendas do lar, o que implica diretamente na posição

de inferioridade a que a mulher foi, durante muito tempo, submetida. Esse não

acesso à educação lhes impede de alcançar qualquer forma de desenvolvimento e

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as leva a subordinação. Assim, como eram privadas de um conhecimento amplo,

estavam também privadas da vida pública, não podendo ocupar cargos públicos,

pois não eram instruídas para desenvolverem tais atividades. Nísia Floresta mostra

essa mulher submissa, sem instrução, presa em uma sociedade onde prevalecia o

domínio masculino e, por conseguinte, a inferioridade feminina.

Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de acordo em dizer que nós somos próprias se não para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, a eles homens... Entretanto, eu não posso considerar esse raciocínio senão como grandes palavras, expressões ridículas e empoladas, que é mais fácil dizer do que provar. (FLORESTA, 1989, p. 35)

Ao denunciar a situação vivenciada pela mulher naquele contexto histórico,

Nísia idealiza a posição a ser ocupada pela figura feminina, essa mudança de status

lhe permitiria igualdade de oportunidades e inseriria a mulher como ser ativo dentro

da sociedade. A partir desse redimensionamento de espaços a subjugação feminina

se converteria em apenas um traço de preconceito.

Em 1853, Nísia lançou seu segundo livro, Opúsculo Humanitário, neste a

autora recupera a história da condição feminina por várias culturas e relaciona o

desenvolvimento intelectual e material do país e o lugar ocupado pelas mulheres na

sociedade. Nísia Floresta trata da emancipação feminina e enfatiza a importância da

educação da mulher, reflete sobre conceitos e apresenta opiniões com o objetivo de

propor uma melhor educação para as mulheres, rechaçando o preconceito e

expondo os prejuízos individuais e sócio-culturais trazidos ao sujeito humano por

uma formação inadequada para as mulheres, tanto no Brasil, como em vários outros

países. Isto é bem relatado por Duarte:

Em Opúsculo Humanitário encontra-se a síntese do pensamento de Nísia Floresta sobre a educação - formal ou informal – de meninas. Pode-se também perceber através dele a grande erudição da autora, suas leituras, a experiência no magistério e na direção do colégio Augusto, ou ainda, os conhecimentos obtidos na viagem que havia feito a países europeus durante os anos de 1848 e 1851. Nesse livro a autora recupera boa parte da história da condição feminina em diversas civilizações através dos séculos, da antiguidade clássica ao seu tempo, relacionando o desenvolvimento intelectual e material do país (ou o seu atraso) e o lugar ocupado pelas mulheres na sociedade. Por fim, trata do Brasil, da mulher brasileira, das escolas para meninas. Aliás, este parece ser o motivo mesmo de toda a reflexão. Nísia Floresta defende aí a tese de que o progresso de uma sociedade depende da educação que é oferecida à

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mulher, e que só a educação moral e a religiosa incutida desde cedo na menina, fariam dela melhor esposa e melhor mãe. (DUARTE, 1995 p.209).

Mais uma vez Nísia Floresta mostra seu inconformismo com a condição das

mulheres, relatando a realidade daquela época, em que elas sequer estavam

autorizadas a ter formação superior no Brasil, excluídas, portanto, das

Universidades, direito que somente tiveram acesso a partir de 1881 por um decreto

imperial que facultou à mulher a matrícula em curso superior.

Ou seja, a mulher não podia ter formação superior profissional no Brasil, as

poucas que obtiveram esta formação advieram de países estrangeiros. Nísia

denunciando esta situação e salientando a importância da educação idealiza uma

mulher que possa frequentar a Universidade, ter uma formação profissional que lhe

permita independência e também contribuir com o progresso de sua nação. Este é,

provavelmente, ao apontar para a necessidade de uma futura mudança no quadro

de desvalorização e inferioridade ao qual a sociedade submetia a mulher.

A figura feminina sempre esteve presente nos escritos Nisiano, seja através

destas obras que evidenciaram a situação vivenciada pelas mulheres da época,

denunciando a opressão sofrida, a submissão, à ausência e importância da

educação de qualidade para a mulher, seja evidenciando a mulher idealizada por

Nísia Floresta, sujeito de iguais direitos, com oportunidade de estudo,

independência, enfim, ocupando um lugar na sociedade que não fosse apenas o de

mãe, esposa e dona de casa.

Além disso, Nísia Floresta ressaltou em diversos escritos a importância da

figura feminina em sua vida. Destaque-se ainda que 1842 ela publicou o livro

Conselhos à minha filha, com 32 páginas e assinado como F. Augusta Brasileira, e,

em 1845, saiu a segunda edição com quarenta pensamentos e versos. Dois anos

depois, em 1847, foram publicadas três novas obras: Daciz ou A jovem completa,

Fany ou O modelo das donzelas e Discurso que às suas educandas dirigiu Nísia

Floresta Brasileira Augusta.

2.3 – A mulher como sujeito de Direitos na obra Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens.

Como visto acima, às mulheres do tempo de Nísia Floresta não cabiam

quaisquer direitos, toda sua formação e educação era voltada para o lar, assumindo

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o papel de esposa e mãe, as poucas mulheres com formação educacional de curso

superior não a adquiriram no Brasil. Apenas uma parcela muito reduzida tinha

formação crítica da época em que vivia e como exemplo mais altivo é certamente o

de Nísia Floresta, que com apenas vinte e dois anos, no ano de 1932, publica Direito

das Mulheres e Injustiça dos Homens.

O obra supracitada é uma tradução livre do livro de Mary Wollstonecraft

(1759-1797)4, que como já visto, em contraponto à “Declaração de Independência”,

votada pelo Congresso Americano (1776) e a “Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão”, adotados pela Assembleia Nacional Francesa (1789), onde parecem

esquecidos ou menosprezados pelos legisladores os direitos da mulher e consoante

o conceito de direitos individuais inalienáveis e universais, a autora faz uma reflexão

na Obra Vindication of the Rights of woman, aduzindo que tais direitos citados nas

declarações pertencem ao gênero humano e portanto, são também direitos da

mulher.

Mary Wollstonecraft clama por uma revolução plena que não restringisse a

“liberdade, igualdade e fraternidade” apenas ao sexo masculino.

Pois bem, Nísia realiza uma tradução livre desta obra, mas não destoa da

sua essência e traz ao Brasil o primeiro livro contestando a situação vivenciada

pelas mulheres no início do século XIX. A apresentação desse título ao público

nacional, antes de qualquer coisa, representa uma autêntica busca de direitos da

mulher, que na concepção de Nísia Floresta era também sujeitos de direito. A obra

mostra toda submersão da figura feminina na época, mas a autora esforça-se para

demonstrar os direitos femininos, por esta razão é considerada precursora do

feminismo5 no Brasil.

O texto publicado por Nísia Floresta foi dedicado às brasileiras e aos

acadêmicos brasileiros. De suas "patrícias", ela esperava que:

[...] longe de conceberdes qualquer sentimento de vaidade em vossos corações com a leitura deste pequeno livro, procureis ilustrar o vosso

4 Foi uma escritora britânica. É considerada uma das pioneiras do moderno feminismo com a

publicação da obra A Vindication of the Rights of Woman (em português, Uma Defesa dos Direitos da Mulher), em 1790

5 Movimento social, filosófico e político que tem como meta direitos iguais entre os sexos, de movo a

possibilitar a convivência humana liberta de padrões opressores baseados em normas de gênero. No Brasil atribui-se a Nísia Floresta o título de precursora do feminismo.

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espírito com a de outros mais interessantes, unindo sempre a este proveitoso exercício a prática da virtude, a fim de que sobressaindo essas qualidades amáveis e naturais ao nosso sexo, que até o presente têm sido abatidas pela desprezível ignorância em que os homens, parece de propósito, têm nos conservado, eles reconheçam que o Céu nos há destinado para merecer na Sociedade uma mais alta consideração. (FLORESTA, 1989a, p. 21)

Da mocidade acadêmica, "em quem a Nação tem depositado as mais belas

esperanças", ela almejava "que atendendo o estado a que nosso infeliz sexo tem

sido injustamente condenado, privado das vantagens de uma boa educação [...]

lamentareis a nossa sorte, pois que até em pequenas empresas não podemos

desenvolver nossos talentos naturais". (FLORESTA, 1989, p.21).

A mulher desta época não podia trabalhar fora de casa, como expõe a

Autora, mesmo que esse trabalho não lhe rendesse qualquer prestígio, ou a

possibilitasse ocupar papel de destaque na sociedade, o que é reclamado por Nísia.

Na dedicatória de seu livro, Nísia Floresta reflete sua indignação com a

posição ocupada pelo gênero feminino na Sociedade, esperando que haja o

reconhecimento de que a mulher seja capaz de ocupar um lugar de mais alta

consideração, reclamando o direito à educação e ao trabalho fora do âmbito do lar,

reiterando assim a ideia de que a posição de total subordinação da mulher e a

impossibilidade de ter acesso à educação e ao trabalho é reflexo do costume e do

preconceito.

Se um homem pudesse banir toda parcialidade e colocar-se por um pouco em um estado de perfeita neutralidade, estaria ao alcance e reconheceria que, se acaso estimam-se as mulheres menos que aos homens e concede-se mais excelência e superioridade a estes que àquelas, o prejuízo e a precipitação são as únicas causas (FLORESTA, 1889 a, p. 30.)

Nísia procura demonstrar que as mulheres não podem ser tratadas pelos

homens com desdém em relação às funções domésticas que exercem (não podem

eles desprezar ou pretender superioridade), mostrando a importância do sexo

feminino desde a procriação, igualmente com o masculino, já que um não procriaria

sem o outro, além de ser a mulher encarregada principal dos primeiros cuidados

essenciais aos filhos.

O primeiro capítulo da obra é intitulado de “Que caso os homens fazem das

mulheres e se é com justiça”. Neste a autora reivindica o direito da mulher de não

ser inferiorizada pelo homem, subjugada, que lhe atribui somente as funções

domésticas e ainda por isso são desvalorizadas, ou seja, o homem impõe o destino

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da mulher ao lar, mas a inferioriza por essa condição, além de negar-lhe a

capacidade para outras funções.

Com quanto maior razão não merece o nosso sexo essa estima e recompensa em comparação a estima dos soldados que combatem para defender os homens feitos, trabalhando para defender os homens numa idade em que não sabem o que são, não podem distinguir os amigos dos inimigos, e nem têm outra defesa mais, que suas lágrimas? (FLORESTA, 1989, p. 38).

Nísia Floresta reclama a recompensa recebida pelos cuidados de mãe e

esposa, a qual se reduz a maus tratos e a um desprezo repreensível para com o

sexo feminino, “tais são os generosos ofícios que lhes prestamos; tal é a ingratidão

com que nos recompensam” (FLORESTA, 1989, p. 38). De igual maneira, a autora

defende o direito da mulher à educação, veementemente, no Capítulo II do Livro,

que intitula “Se as mulheres são inferiores ou não aos homens, quanto ao

entendimento.”

Ademais, ela relata que os homens julgam as mulheres inimigas da reflexão,

mas que preciso analisar de onde parte este entendimento, até para que se possa

provar que o estudo é um direito da mulher e a sua negação é injusta por parte do

homem, com essa finalidade externa que:

Todos sabem que a diferença dos sexos só é relativa ao corpo e não mais que nas partes propagadoras da espécie humana... Nenhuma diferença existe entre a alma de um tolo e de um homem de espírito, ou de um ignorante e de um sábio, ou a de um menino de quatro anos e um homem de quarenta. (FLORESTA, 1989, p. 47)

O texto ainda traz o propósito de demonstrar que a diferença no

conhecimento somente pode advir da educação, pois as mulheres não são inferiores

aos homens, relatando que a própria anatomia do cérebro masculino é igual ao

feminino, daí porque o preconceito de que a ciência não está dentro das aptidões da

mulher, é que subtrai desta o direito de ocuparem cargos públicos, afastando,

viciosamente, as mulheres de alcançarem determinados cargos. De tal maneira,

denunciou o círculo vicioso no qual estavam inseridas as mulheres, motivo pelo qual

tinham negados direitos de iguais oportunidades em cargos públicos:

Além disto, seja-me permitido notar o círculo vicioso em que esse desprezível modo de pensar tem colocado os homens sem o perceberem. Porque a ciência nos é inútil? Porque somos excluídas dos cargos públicos;

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e por que somos excluídas dos cargos públicos? Porque não temos ciência. (1989, p. 52)

Ora, se a mulher não pode ocupar lugar de destaque não há motivo para

que estude, para que se dedique ao conhecimento, mas se não estudam, não se

dedicam a aquisição de conhecimento, não podem ocupar cargos públicos,

afastando, viciosamente, as mulheres de alcançarem determinados cargos.

Nísia Floresta aponta a injustiça masculina, mostrando que o interesse do

homem em apartar as mulheres da ciência, advém ainda do temor de que as

mulheres partilhem com eles, ou mesmo excedam na administração dos cargos

públicos, daí porque o querer ocupar todos os cargos é o mesmo que determinar a

intenção de privar as mulheres de alcançá-los. Agindo assim, o homem também

deixa a mulher sempre submissa a ele, sob a ideia de que a natureza formou as

mulheres para serem sujeitas a eles, e também por faltar às mulheres habilidade

para o desempenho dos cargos públicos.

Procura traçar as causas da ausência das mulheres no Governo, nos cargos

públicos com base nos costumes e preconceitos que não eram questionados pelos

homens: "[...] estão tão acostumados a ver as coisas tais quais agora são, que não

podem imaginá-las de outra maneira." (FLORESTA, 1989a, p.64). No rol de suas

argumentações, as mulheres à frente do exército, administrando a justiça ou

ensinando nas universidades seriam situações normais se a sociedade as

considerasse como criaturas racionais, esta é o pensamento expresso no terceiro

capítulo.

Em quase todos os capítulos Nísia mostra características femininas, que se

não as colocam como iguais aos homens, no que pertine ao direito de participar

mais ativamente da sociedade em que vive e não apenas coadjuvar sob a figura de

um homem, sob o injusto argumento de que este seria mais capaz, daí porque

enfatiza as qualidades femininas e mostra, capítulo por capítulo, que as mulheres

são merecedoras de direitos iguais.

No capítulo V, ao reivindicar o direito da mulher também para o ensino da

ciência, ela claramente afirma uma maior capacidade das mulheres para a retórica,

dizendo ser a eloquência um talento natural às mulheres.

Quanto a retórica, é preciso convir que nós somos os seus modelos e mestres avaliados. A eloquência é um talento tão natural e particular às mulheres, que ninguém lhes pode disputar. (1989, p. 69).

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Nota-se também a presença intensa no discurso de Nísia da menção sobre

a importância dos juízes, até porque ela fala em todo livro sobre o juízo que os

homens têm feito das mulheres. No capítulo III chega a nominar um juiz pelo qual as

mulheres são julgadas, Catão (95 a 46 a.C), trazendo um trecho dele que diz

“Tratemos as mulheres como nossas iguais e elas tornarão logo nossas senhoras”,

reiterando a existência da subjugação da mulher.

Neste capítulo, no primeiro exemplo, ao tratar sobre a justiça, ela diz que as

mulheres distinguem melhor o justo do injusto, e que têm talentos maiores para

julgar, eis que são mais retas. E, ao mostrar o direito das mulheres, passa a

descrever a injustiça dos homens, os quais só não veem as mulheres nas cadeiras

das universidades porque as impedem não por incapacidade, mas por preconceito.

Nísia Floresta relata que a distância da mulher do ensino da ciência se deve

ao preconceito “pois, se destruísse o prejuízo e o costume, nenhuma surpresa

haveria em nos ver dar lições públicas de ciências, em uma cadeira de

Universidade” (FLORESTA, 1989, p. 74). Dessa forma, enxergando a mulher como

sujeito de iguais direitos, a Autora defende ainda a possibilidade destas ocuparem

empregos.

Em verdade, Nísia Floresta percorre todo o texto Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens, expressando uma reivindicação em especial, que é a

igualdade de gênero no que se relaciona à participação social das mulheres, tanto é

que os títulos dos capítulos da obra sempre questionam fatos que são afirmados na

época: "Se os homens são mais próprios que as mulheres para governar; Se as

mulheres são ou não próprias a preencher os cargos públicos; Se as mulheres são

naturalmente capazes de ensinar as ciências ou não e se as mulheres são

naturalmente próprias, ou não, para os empregos.

O texto desta obra procura 'provar' a injustiça masculina em relação ao

tratamento dado às mulheres, mas antes disso apresenta a mulher como sendo

sujeito de iguais direitos, sejam eles educacionais, trabalhistas, de posição na

sociedade, relatando que se não têm a garantia de tais direitos assegurada, essa

negação advém da injustiça dos homens.

Todos os direitos femininos defendidos se voltam para possibilitar à mulher a

efetiva participação na sociedade. Em um período no qual elas eram consideradas

incapazes de exercer suas funções intelectuais, Nísia Floresta ousa pleitear postos

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de trabalho e no governo, ou seja, o acesso das mulheres ao espaço público, o que

possibilitaria a concretização da busca de igualdade de gênero para participação na

sociedade. Alcançando a igualdade de gênero, no que refere-se a integração social,

o que defende ser um direito feminino, a mulher teria condições de estar em par de

igualdade com os homens, tornando-se independentes, conhecedoras e até

professoras das ciências, ocupando cargos públicos, empregos, enfim, deixando a

condição totalmente submissa em que estavam, para permiti-la ser sujeito de sua

própria história. É o direito à igualdade, a oportunidade. A independência do sexo

feminino.

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CAPÍTULO III: A LEI DE NÍSIA E O DIREITO DE PENHA

3.1 – A mulher depois do século XIX e o surgimento da Lei Maria da Penha

A história das conquistas femininas está sendo escrita ao custo de muito

esforço de tantas “marias” que conservam “a estranha mania de ter fé na vida”, até

porque, por muito tempo as mulheres não foram consideradas como sujeitos da

história. Como já vimos no capítulo anterior, ao menos no Brasil, os primeiros

questionamentos sobre a condição totalmente submissa em que viviam as mulheres,

nos chegou por meio dos escritos de Nísia Floresta e isso acontece tardiamente,

apenas no início do Século XIX.

É possível dizer que o século XIX representa um marco para a conquista dos

direitos das mulheres no Brasil e a construção de numa nova identidade. A

perspectiva de vida das mulheres começa a se modificar, permitindo que elas de

alguma forma comecem a se organizar na direção de uma identidade, isso se deu a

diversos movimentos sociais, políticos e econômicos, dos quais podemos citar como

mais importante, a revolução industrial. O século XIX pode ser considerado o século

da mulher, assim como foram os anteriores pela emancipação dos escravos, dos

operários. Isto porque muitas conquistas femininas foram adquiridas neste século.

No século XX assistimos ao processo que vai desencadear a busca da

igualdade, quando a mulher ascende socialmente, na mesma proporção em que a

sociedade dela vai necessitando. Podemos ressaltar aqui que a Segunda Guerra

Mundial oportunizou às mulheres a inserção em um mercado de trabalho que

reclamava mão-de-obra, tudo isso acontece em virtude da ausência dos

trabalhadores que eram enviados para a guerra, confrontando a criação patriarcal

até então vigente.

É verdade que no Brasil o sistema patriarcal gerou estereótipos e

preconceitos, possivelmente ainda hoje enraizados em nosso imaginário cultural. O

preconceito a respeito da condição feminina no Brasil reflete um esquema de

dominação social que tem suas raízes no sistema patriarcal tradicional, em que o

senhor era o dono absoluto de seus escravos, de sua mulher e de seus filhos. Até o

começo do século XX, a condição da mulher dentro do nosso contexto social

demonstrava submissão, desvalorização e improdutividade.

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Por meio da construção do feminino, têm sido conservadas culturas e

valores de geração a geração. Entender a estrutura de todo o parâmetro social sob

o qual estamos organizados nos remete a refletir acerca deste e da sua posição

sempre inferior a condição masculina, resultando em princípios conservadores aos

quais superiorizam o homem em relação à classe feminina. Lobos (apud LUCENA,

2003, p. 108) comenta que “A história do homem foi escrita por homens, e,

principalmente, sobre homens. Assim, entre guerras e conflitos geopolíticos

tipicamente masculinos, pouco sobrou para as mulheres”. Conforme coloca

Confortin:

O indivíduo é dominante ou dominado e isto constrói todo um jeito de olhar, de se movimentar, de estar no mundo, de perceber o mundo. [...] há um dominante e um dominado e [...] uma sociedade onde a dominação masculina acaba sendo mais evidente. (CONFORTIN apud LUCENA, 2003, p. 11)

Com isso, percebemos que a sociedade ocidental contextualiza um

procedimento e uma expressão nos quais o homem está como sujeito e a mulher

objeto, o que presume a mulher como objeto coisificado do homem e ele como

sujeito dominante que determina o lugar da mulher na sociedade.

A partir destes valores, a literatura traz em seu conteúdo o comportamento

da mulher inserida, até os anos de 1800, em um padrão patriarcal consequente de

domínio masculino. Como nos diz Pires: “A condição da mulher é representada

discursivamente, refletindo uma visão conservadora e discriminatória que engendra

formas de silenciamento e exclusão [...]”. (PIRES apud LUCENA, 2003, p. 202).

Desse modo, podemos dizer que o conservadorismo não permitiu o fluir da

identidade feminina por si só, ela era imposta pelo jogo social.

Assim, o espaço feminino foi estabelecido por homens que são

representados como superiores e comandantes, que determinaram os valores e

interesses femininos em papéis únicos relacionados às figuras de mãe e esposa e,

para a construção de uma nova identidade, foi preciso romper e combater o

preconceito patrocinado pela figura masculina.

Nos séculos XX e XXI assistimos ao processo que vai desencadear a busca

da igualdade, quando a mulher ascende socialmente, na mesma proporção em que

a sociedade dela vai necessitando.

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No limiar do século XXI vê-se, com satisfação, que o quadro começa a ser alterado e a mulher passa a ocupar outro lugar na sociedade. Num mundo globalizado, ágil, [...] ela precisou romper com o papel que vinha desempenhando através dos séculos – o de ser somente procriadora – e passar a ter vontade, empreendimento, ação. (CONFORTIN apud LUCENA, 2003, p. 107).

Assim o lugar da mulher foi dificilmente conquistado, formado no quadro

sociocultural em que só competia a ela as atividades domésticas; a partir disso, a

identidade feminina, até então escondida, não tendo como se anunciar vai passar a

existir e a marcar o parâmetro social sob o qual estamos organizados. No entanto,

faz-se necessário reafirmar que todo esse processo acontece paulatinamente e, na

verdade, não é algo acabado, ou seja, há ainda muito o que fazer para que, de fato,

se estabeleça a total igualdade de direitos entre sexos.

Nesse contexto, podemos dizer que a identidade feminina sofre variações

lentamente, cujo progresso advém da desconstrução dos conceitos antes

formulados e contestados pela mulher que já se entende sujeito também de direitos.

Bauman (2005, p. 83), mostra que “A identidade – sejamos claro sobre isso – é um

conceito altamente contestado. Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar

certo de que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da

identidade. Ela só vem à luz no tumultuo da batalha, e dorme e silencia no momento

em que desaparecem os roubos da refrega.”

É sabido que a sociedade, as leis e o mundo vêm evoluindo a cada dia, junto

a essa evolução a identidade feminina segue conquistando espaço. Sugestivamente

isso acontece devido aos movimentos feministas, os quais deram início a esta

mudança de identidade, cuja acentuada transformação percebe-se após o início do

século XX. No entanto, para mudar a concepção de mulher, numa política de

afirmação, também se fez necessário alterar a lei, uma vez que esta é quem

estabelece, normas de condutas a serem seguidas por quem vive em sociedade.

Ressalte-se que a evolução feminina está intrinsecamente ligada ao

reconhecimento dos direitos femininos, a mulher até o século XX sequer era

emancipada, o que significa dizer que era tratada como ser que não tinha o total

discernimento para a prática dos atos em sociedade. Consequentemente, seu

estudo era limitado, seu trabalho era tido como inferior e a ela não eram conferidos

legalmente os mesmos direitos deferidos aos homens. Ou seja, além do preconceito

histórico, a legislação ao invés de combater tal preconceito, evidenciava a

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inferioridade feminina. É por esta razão que não se pode pensar a evolução da

mulher sem mencionar o importante avanço no reconhecimento de seus direitos.

3.2 - A Lei Maria da Penha

É possível dizer que a luta pelo direito das mulheres no Brasil, tem início

com a publicação da obra de Nísia Floresta intitulada Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens, em um preliminar discurso que denunciou toda a opressão

vivida pelo sexo feminino nas primeiras décadas do século XIX, atribuindo a sua

causa a interligação entre subjugação e carência de educação. Entretanto a

conquista dos principais direitos femininos, vindos através ou mesmo por auxílio do

feminismo6, data de época mais recente. Embora essa aquisição seja feita a passos

lentos e gradativos, podemos, de certa forma, ter uma visão positiva sobre a

temática, um exemplo desse progresso é conquista mais recente: a aprovação e

promulgação da Lei Maria da Penha, um passo de grande significância para a luta

da mulher.

A Lei Maria da Penha – Lei nº. 11.340/06 – entrou em vigor no dia 22 de

Setembro de 2006 e criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e

familiar contra a mulher7, combatendo também a discriminação existente em relação

ao gênero feminino. O nome atribuído à Lei foi uma referência a farmacêutica Maria

da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica no ano de 1983,

consubstanciada em duas tentativas de homicídio, deixando-a paraplégica. Essas

agressões advieram do seu marido, preso somente no ano de 2002, cujo

cumprimento de pena de detenção não ultrapassou dois anos.

A Lei foi uma resposta às incansáveis lutas dos movimentos de mulheres, os

quais ganharam como aliada a própria Maria da Penha que passou a atuar em

protesto diante da inércia da justiça. Além disso, serve ao combate da banalização

da violência doméstica e trata com mais seriedade esta forma de abuso, que muitas

6 Movimento social, filosófico e político que tem como meta direitos iguais entre os sexos, de modo a

possibilitar a convivência humana liberta de padrões opressores baseados em normas de gênero. No Brasil atribui-se a Nísia Floresta o título de precursora do feminismo.

7 A própria Lei conceituou violência doméstica e familiar como qualquer ação ou omissão baseada no

gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher no âmbito da unidade doméstica, família ou advinda de qualquer relação íntima de afeto, na

qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação.

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vezes expressa não só a relação de opressão vivida pela mulher, vítima desta

situação, mas a própria desigualdade sociocultural enfrentada pela mulher brasileira

há séculos. Tal desigualdade começa a ser suavizada a partir das conquistas legais

empreendidas por este sexo.

É certo, porém, que as conquistas femininas no que se relacionam ao

declínio da desigualdade entre gêneros, deram-se de forma gradativa, uma vez que

o costume patriarcal sempre vigorou no Brasil, inclusive na sua legislação, o que por

óbvio, impediu a mulher de avançar em proporção semelhante ao homem em

diversos setores, seja social ou profissional. Segundo Bianchini (2008, p. 49):

O Brasil sempre esteve inserido num sistema patriarcal, em que a dominação masculina evidencia-se na organização da sociedade. Teles e Melo (2002) ressaltam que a desigualdade entre homens e mulheres não se dá por fatores biológicos, e sim em virtude dos papéis sociais impostos a ambos, reforçados por culturas patriarcais que estabelecem relações de dominação e violência entre os sexos. Assim, a origem da violência de gênero está na discriminação histórica contra as mulheres. (BIANCHINI, 2008, p. 49).

A discriminação supracitada não ocorrera só no Brasil e, obstante toda luta

existente em prol dos direitos das mulheres, os quais apresentam como marco

histórico mundial a Revolução Francesa do século XVIII, a situação feminina no

âmbito nacional só começa a sofrer alterações significativas depois de longo tempo,

com a organização e estruturação dos movimentos feministas.

Na verdade, o feminismo nasce de forma organizada aqui no Brasil, através

de Bertha Lutz que se inspira nos movimentos sufragista americano e inglês8. Foi

Bertha que fundou, no ano de 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso

Feminino, iniciando a luta pelo sufrágio feminino, a partir daí, a FBPF passa a

representar o instrumento básico de legitimação de poder político. O referido

movimento foi inicialmente recebido com indiferença até por muitas mulheres,

porque estas permaneciam, em sua grande maioria, subjugadas e inaptas às

próprias defesas.

Foi a própria legislação brasileira que ao reproduzir a sociedade de sua

época, manteve o sistema patriarcal, a exemplo, a Constituição de 1824, primeira

8 Estes movimentos iniciados na metade do Século XIX denunciavam a exclusão da mulher da

cidadania uma vez que não podiam votar e reclamavam estes direito.

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Constituição Brasileira, mesmo não fazendo referência expressa, confirmava a

exclusão das mulheres da vida política, exclusão que fora mantida por mais de cem

anos.

O voto feminino somente foi admitido nacionalmente a partir de 1932 no

Código Eleitoral Provisório, confirmando-se na Constituição de 1934, após uma série

de manifestações em prol do sufrágio feminino. Antes, porém, o Estado Potiguar que

viu nascer a precursora do feminismo, também foi o pioneiro em reconhecer aquele

direito no ano de 1927, tendo ocorrido o primeiro alistamento eleitoral de uma

mulher, o da professora Celina Guimarães, na cidade de Mossoró. Entretanto, a

referida eleição foi posteriormente anulada, o que retirou do Estado Potiguar o

primeiro voto válido de uma mulher.

A supracitada professora, no ano de 1927, invocou o artigo 17 da lei eleitoral

do Rio Grande do Norte. Que dispunha: “No Rio Grande do Norte, poderão votar e

ser votados, sem distinção de sexo, todos os cidadãos que reunirem as condições

exigidas em Lei". Em 25 de novembro de 1927, ela deu entrada em uma petição

requerendo sua inclusão no rol dos eleitores, sendo deferida pelo juiz Israel Ferreira

Nunes o qual determinou sua inclusão no rol dos eleitores e enviou telegrama ao

presidente do Senado Federal, pedindo em nome da mulher brasileira a aprovação

do projeto que instituía o voto feminino.

Faz-se ainda pertinente ressaltar que o Código Civil de 1916, tal qual o

conjunto de normas jurídicas preexistentes, reproduziu a sociedade da época e,

segundo Maria Berenice Dias, consagrou a superioridade masculina, leiamos:

O Código Civil de 1916 reproduzia a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só podia consagrar a superioridade masculina. Transformou a força física do homem em poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da família. (DIAS, 2009, p. 22).

Foi este mesmo código que considerou a mulher relativamente capaz após o

casamento, pois, até então, precisava de autorização do marido para trabalhar, uma

vez que cabia a ele, dentre outras coisas, a representação legal da família.

Somente no ano de 1962 o Estatuto da Mulher Casada devolveu a plena

capacidade a mulher. Para avaliar-se o quão preconceituosa era aquela legislação,

bem como a subjugação que se fazia da mulher é pertinente dizer que o instituto da

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capacidade civil, que ainda hoje é regulado pelo Código Civil, atribui aos

relativamente incapazes a impossibilidade de praticarem sozinhos todos os atos da

vida civil, o que faz demandarem a necessidade de um assistente dotado de

capacidade plena para realização de alguns atos.

Da vigência do Código Civil de 1916 percebe-se a cruel realidade feminina

daquela época, em condição subalterna, dependente e discriminada pela própria Lei,

que inclusive, autorizava, legalizava a superioridade do homem em relação á

mulher. Embora não tratasse expressamente a mulher como relativamente incapaz,

esta apresentava em todo o texto condição inferior a do homem. Como exemplo,

podemos citar alguns artigos, vejamos:

Art. 36. Os incapazes têm por domicílio o dos seus representantes. Parágrafo único. A mulher casada tem por domicílio o do marido, salvo se estiver desquitada, ou lhe competir a administração do casal; Art. 178. Prescreve: § 1º Em dez dias, contados do casamento, a ação do marido para anular o matrimônio contraído com a mulher já deflorada. Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos..Compete-lhe: I – a representação legal da família; IV – o direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do local do teto conjugal.

9

Entretanto, mesmo naquela sociedade a consolidação do sistema capitalista

modificou a organização do trabalho e a intensificação do sistema de produção

manufatureira, juntamente com o desenvolvimento tecnológico causaram

repercussão nas relações de trabalho da época, possibilitando à mulher a

contribuição com a mão de obra, mas que mesmo assim, segundo Bianchini (2009,

p. 27) em artigo publicado na Revista Prática Jurídica era em condições desiguais:

Neste momento, ocorre uma acentuada exploração do trabalho feminino. As mulheres em média, percebiam a metade do salário que era destinado aos homens. Tencionando justificar, ideologicamente, esta super exploração, dizia-se que as mulheres necessitavam de menos trabalho e menos salário do que os homens, porque supostamente, tinham ou deveriam ter quem as sustentasse. Não se lhes diminui a quota a ser produzida, entretanto.

9 Material disponível em: HTTP://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm

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Ressalte-se que o século XIX caracteriza-se também pelos movimentos

reivindicatórios e revolucionários. Além disso, a segunda Guerra Mundial acabou por

valorizar o trabalho feminino nos países envolvidos, uma vez que havia a

necessidade de liberar a mão de obra masculina para as frentes da batalha, e as

ideias liberais que vigentes, sobretudo na Europa, afetaram de certa forma, o

pensamento das mulheres no Brasil, que cada vez mais, empenhavam-se na luta

por igualdade de direitos.

Foi mais precisamente entre os anos de 1930 a 1940 que as reivindicações

das mulheres passaram a ser formalmente10 absorvidas, a partir daí puderam votar e

serem votadas, ingressaram em maior número nas instituições escolares, além de

começarem a participar do mercado de trabalho. Mesmo assim, devido ao

preconceito histórico permaneciam ainda em posição de desvantagem em relação

ao homem e mais uma vez descriminadas pela legislação pátria.

A exemplo, ao ser fixado o primeiro salário mínimo em 1940, o Decreto-Lei

de 31.08.40 autorizou a redução de seu valor para a trabalhadora e antes disso em

1932, a Lei Federal nº. 21.917-A proibiu à mulher o trabalho noturno de qualquer

espécie, além disso, a Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, admitia a

oposição do marido à contratação do trabalho da mulher, podendo contrariar a

oposição apenas mediante suprimento judicial. O referido artigo foi revogado apenas

no ano de 1989 pela Lei nº. 7.855/89.

Em 1975, os movimentos feministas iniciaram nova fase de articulação

internacional, data comemorada também como ano internacional da mulher e em

1979 foi realizada a Convenção Internacional sobre a eliminação de toda a forma de

discriminação contra a mulher, tendo antes disso, no Brasil, em 1972 se realizado o I

Conselho Nacional de Mulheres.

Mas foi somente em 1988, com a proclamação da atual Constituição

Federal11, que foi garantido em seu art. 5º a igualdade de todos perante a Lei,

enfaticamente entre homens e mulheres (art. 5º, I) e até de forma repetitiva, afirma

no art. 226, § 5º, que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são

10

Diz-se formalmente absorvidas, uma vez que um direito somente passa a existir na esfera jurídica após a elaboração e promulgação da lei, atos formais, indispensáveis à vigência da Lei.

11 Lei maior do Estado Brasileiro, a qual todas as outras devem estar em conformidade, sob pena de

serem declaradas inconstitucionais, negando-se pois a aplicabilidade.

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exercidos igualmente pelo homem e a mulher, bem como no preâmbulo da

Constituição Federal já se tinha assegurado o direito à igualdade e estabelecido

como objetivo fundamental o bem de todos sem preconceito de sexo (inciso IV do

art. 3º).

Tais conquistas foram significativas e efetivamente diminuíram a

discriminação entre os sexos, entretanto, a erradicação desta vil forma de

preconceito ainda soa distante, para se ter uma ideia do dito, mesmo com esta nova

ordem constitucional que estabeleceu a plena igualdade entre homens e mulheres, o

Código Civil de 1916 continuava a vigorar e instituía o defloramento da mulher antes

do casamento como erro grave sobre a pessoa, o que possibilitava o marido pedir a

anulação do casamento. Somente com o Código Civil de 2002, é que se extinguiu tal

dispositivo legal.

Mesmo com estas alterações legais, sinonimamente atribuídas às principais

conquistas femininas até então, as mulheres continuam a ser discriminadas, não

alcançando ainda situação plena de igualdade entre os homens, o que somente

pode ser atribuída a forma subalterna com que foram tratadas durante muitos anos.

Ademais, aliam-se a isto, as diversas formas de violência ainda empregadas contra

a mulher em seu ambiente familiar e doméstico, que até o advento da Lei Maria da

Penha eram tratadas apenas como infrações de menor potencial ofensivo.

Desta feita, obstante todas as conquistas femininas na sociedade atual, a Lei

Maria da Penha, advinda por último, surge como importante aliada legal para

combater a discriminação vivida pela mulher brasileira, uma vez que a violência

doméstica praticada contra esta tem oprimido o sexo feminino, que começa a dar

claras mostras de que finalmente poderá desenvolver-se de forma igual, sem

discriminação de qualquer natureza, sem as amarras da violência física, moral e

psicológicas que o sistema patriarcal, o costume e preconceito o impuseram. Diante

do exposto é fundamental reiterarmos como afirmação a importância da Lei Maria da

Penha que, desde 2006, embora combatida por alguns, vem sendo aplicada em

benefício da mulher.

Então, como visto acima, a Lei Maria da Penha – Lei nº. 11.340/06 criou

mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher12,

12

A própria Lei conceituou violência doméstica e familiar como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou

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combatendo também a discriminação existente em relação a esta, cujo ápice pela

conquista de legislação mais eficaz contra a violência contra a mulher, foi a história

de Maria da Penha, cuja a punição ínfima atribuída ao agressor denunciou a

situação de opressão vivenciada pelas mulheres brasileiras com relação à violência.

A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito

Internacional – CEIJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos

direitos da mulher – CLADEM formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de

Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Apesar de, por quatro

vezes, a Comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu

nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente em 2001, por

omissão no combate à violência doméstica. O Relatório da OEA, além de impor o

pagamento de indenização no valor de vinte mil dólares em favor de Maria da

Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à

violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, entre elas

simplificar os procedimentos judiciais penais a fim que posso ser reduzido o tempo

processual.

A Lei foi também uma resposta às incansáveis lutas dos movimentos de

mulheres. Além disso, serve ao combate da banalização da violência doméstica e

trata com mais seriedade esta forma de violência, que muitas vezes expressa não só

a relação de opressão vivida pela mulher vítima nesta situação, mas a própria

desigualdade sociocultural enfrentada pela mulher brasileira há séculos, a qual foi

combatida pelas conquistas legais empreendidas por este sexo.

O legislador, no Art. 6º da Lei nº 11.340, contemplou a violência doméstica e

familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos humanos,

tratando o problema de forma interdisciplinar, inserindo já no preâmbulo a criação do

Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – com a participação de

uma equipe multiprofissional para o atendimento e acompanhamento da mulher

agredida, tudo a fim de possibilitar melhor assistência e maior celeridade nos

processos que tratam de crimes de violência empregada contra a mulher.

A Lei foi inovadora, reconhecendo legalmente e combatendo todas as

formas de violência praticadas contra a mulher, não só aquelas decorrentes da força

patrimonial à mulher no âmbito da unidade doméstica, família ou advinda de qualquer relação íntima

de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação.

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física, mas também do preconceito, e esforça-se no sentido do reconhecimento legal

e sociocultural da mulher como sujeito de iguais direitos, rechaçando a conduta que

prevaleceu por muitos anos, de subjugação da mulher. Em defesa da Lei, o Ministro

Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal assim se manifestou:

Uma Constituição que assegura a dignidade humana (art. 1º, III) e que dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações (art. 226, § 8º), não se compadece com a realidade da sociedade brasileira, em que salta aos olhos a alarmante cultura de subjugação da mulher. A impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (Untermassverbot).”

13

Neste sentido, a Lei Maria da Penha traz de forma explícita os conceitos de

violência contra a mulher e suas diferentes formas de manifestação, quando em seu

Art. 7º expõe:

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre

outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

13

Trecho do voto proferido em Plenário da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - 4.424 –

STF.

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V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

14

Ou seja, a Lei reconheceu o preconceito enfaticamente empregado contra a

mulher durante muitos anos, taxativamente, combatendo a discriminação de gênero

e ressaltando, que a violência doméstica é um fenômeno marcado profundamente

pelo preconceito, discriminação e abuso de poder do agressor contra a vítima.

A violência de gênero é uma forma de violência sofrida pelo simples fato de

o indivíduo ser do sexo feminino, ou seja, a agressão acontece por ser uma mulher o

sujeito em questão. Esse tipo de manifestação é, seguramente, produto de um

sistema social de dominação que subordina o sexo feminino, combatida na Lei Maria

da Penha quando esta passa a punir aqueles que a praticam, inclusive, trazendo de

forma explícita que o preconceito contra a mulher é crime, que a subjugação deste

ser é ultrapassada e combatida pela legislação. A lei trata, sobretudo, da violência

psicológica que aflige grande parte das mulheres, até pelo contexto social em que

estiveram inseridas quando o sistema patriarcal lhe impunha a obrigação de ser

esposa, mãe, dona de casa e só.

A autora Maria Berenice Dias, ao tratar da violência psicológica, defende

que:

A violência psicológica encontra forte alicerce nas relações desiguais de poder entre os sexos. É a mais frequente e talvez seja a menos denunciada. A vítima muitas vezes nem se dá conta que agressões verbais, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e desejos são violência e devem ser denunciados. (BERENICE, 2007 p. 48)

O Art. 5o da Lei define a violência doméstica e familiar contra a mulher como

qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,

sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, desde que seja

no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio

permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente

agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por

indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por

14

Material disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004_2006/2006/lei/l11340.htm

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afinidade ou por vontade expressa ou - em qualquer relação íntima de afeto, na qual

o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de

coabitação.

A violência supracitada fundamenta-se em relações interpessoais de

desigualdade e de poder entre pessoas ligadas por vínculos consanguíneos,

parentais, de afetividade ou de amizade. O agressor se vale da condição privilegiada

de uma relação de casamentos, convívio, confiança, amizade, namoro, intimidade,

bem como da relação de hierarquia ou poder que detenha sobre a vítima para

praticar a violência.

Como esse tipo de agressão ocorre geralmente entre membros da mesma

família ou que partilham do mesmo espaço de habitação, esta circunstância faz com

que este seja um problema especialmente complexo, com facetas que entram na

intimidade das famílias e das pessoas, agravado por não ter, regra geral,

testemunhas e ser exercida em espaços privados. Em razão destas peculiaridades,

o combate é dificultoso.

Seguramente, a violência doméstica não pode ser entendida como um

problema puramente familiar, mas como uma questão cultural, Berenice Dias (2007,

p. 16) defende que “Desde que o mundo é mundo humano, a mulher sempre foi

discriminada, desprezada, humilhada, coisificada, objetificada, monetarizada”.

O desejo do agressor é submeter a mulher à vontade dele, para melhor

concretizar a dominação diminui-lhe a auto-estima, proíbe amizades, afasta-a da

família, muitas vezes impede a mulher de trabalhar, sob a justificativa de ter

condições de prover a família. Desse modo, faz com que ela se distancie das

pessoas junto às quais poderia buscar apoio, tirando-lhe a possibilidade de, em ato

de sanidade, buscar apoio. É por isso que a Lei é importante e dentre esses

avanços legais contra a violência trazidos por ela, está a inaplicabilidade da Lei dos

Juizados Especiais Criminais, prevista no Art. 41 da Lei 11.340/06, vejamos. “Art.

41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,

independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de

setembro de 1995.”

A Lei 9.099/95 trata do julgamento dos crimes de menor potencial ofensivo,

ou seja, aqueles cuja lesividade ou ofensa não apresenta maiores repercussões.

Antes da Lei Maria da Penha, com exceção do crime doloso contra a vida, todos os

outros eram julgados pelo Juizado Especial que apresenta penas mais brandas,

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possibilitando ainda o pagamento de cestas básicas ou outra prestação pecuniária

isoladamente, o que evidenciava legalmente e até culturalmente que a violência de

gênero era crime de bagatela.

Com o advento da Lei, restou claro que para este tipo de violência não se

aplica a Lei 9.099/95. A violência doméstica até então não havia sido quantificada,

não havia qualquer anotação sobre a natureza do delito e no âmbito judicial também

não existia essa preocupação. Assim, quase todos os crimes de origem familiar iam

para os juizados, a punição aplicada aos culpados por durante muitos anos, baterem

em suas esposas era o pagamento de um salário mínimo, de uma cesta básica,

enfim, uma punição que mais incentivava à violência, que a reprimia.

A Lei Maria da Penha ainda traz um rol de medidas para dar efetividade ao

seu propósito, dentre elas merecem destaque: assegurar à mulher uma vida sem

violência; coibir o preconceito, a subjugação; permitir o pleno desenvolvimento da

mulher vítima de violência, como as medidas cautelares de urgência (art. 22) e ainda

aumenta a pena de muitos crimes que advém da violência de gênero, como, por

exemplo, a proibição de aproximação do agressor da vítima, podendo o juiz fixar, em

metros, a distância a ser mantida pelo agressor da vítima, da sua casa, do seu

trabalho, inclusive por meio de comunicações.

Proteção importante e interessante, ao passo que traz medida inédita na

legislação brasileira em favor da mulher, é a exposta no Art. 9º, vejamos:

Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar

será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso. § 1

o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação

de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal. § 2

o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e

familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.

15

15

Material disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004_2006/2006/lei/l11340.htm

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Ou seja, a mulher vítima de violência doméstica tem acesso prioritário à

remoção, numa nítida proteção à mulher que se encontra nessa condição, além da

possibilidade da manutenção do seu vínculo trabalhista por até seis meses, mesmo

com o afastamento do trabalho por motivo de violência doméstica.

A Lei Maria da Penha, em verdade, favorece à mulher e exclusivamente a

esta, por isso resultou em diversas críticas, há os que negam a sua aplicação

alegando ser inconstitucional, uma vez que trata de forma desigual, concedendo

privilégios e garantias à mulher vítima de violência doméstica. Seguindo essa linha

de raciocínio, alegam que a referida lei apresenta-se como instrumento que reprime

mais severamente o homem; ora, não é de estranhar que este que tem a favor de si

toda a cultura de superioridade, cabendo desde os primórdios à mulher a

inferioridade, a subjugação, ao deparar-se com um instrumento legal que rompe o

paradigma existente, haveria de rechaçá-lo como forma de manutenção do seu

papel superior.

A punição da violência praticada contra a mulher é também questão

educacional, não raro, requerendo mais que mudanças, inversão de paradigmas.

O fato de, supostamente, ter sido por incentivo de uma mulher que o homem

foi expulso do paraíso, poderíamos pensar que está na criação do próprio universo o

desejo punitivo do homem sobre a mulher, afinal foi ela “que incentivou Adão a

comer do fruto proibido”. Padre Antônio Vieira, religioso e escritor, relembra na

seguinte passagem essa herança culposa que incide sobre o sexo feminino:

Posto que há já tantos séculos morreu aquela Eva, vive contudo em toda mulher a sentença com que Deus a condenou em todo o mesmo sexo, e assim viverá para sempre, e será imortal nele, isto é, em ti, o castigo da mesma culpa. Tu és porta, por onde entra o diabo ao homem. (VIEIRA apud OLIVEIRA, 2012, p. 3)

Ora, o preconceito ainda vive e incentiva a violência de gênero, e aos que

combatiam a Lei Maria da Penha sob o pretexto de que esta alimentava uma

inconstitucionalidade, ao passo que trata desigualmente as mulheres vítimas de

violência doméstica, o Supremo Tribunal Federal, sepultou as desqualificações à lei,

obrigando a sua aplicação em todo o país, reconhecendo o preconceito que ainda

vigora sobre a mulher, mas, sobretudo, toda a opressão que esta vivenciou durante

séculos.

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A Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 foi julgada procedente por

unanimidade, ou seja, o STF declarou constitucional o art. 1º da Lei Maria da Penha,

afirmando que não há violação ao princípio da igualdade, concluindo-se que a Lei

Maria da Penha somente protege a mulher. O homem até pode ser vítima de

violência doméstica e familiar (ex: homem que apanha de sua esposa). No entanto,

somente a mulher recebe uma proteção diferenciada. O homem recebe a proteção

comum prevista no Código Penal.

Segundo o pronunciamento feito pelo Ministro Relator Marco Aurélio, ao se

colocar a respeito da procedência da aplicabilidade da Lei Maria da Penha, no STF,

a figura da mulher pode realmente ser considerada como propensa aos maus-tratos

praticados na esfera familiar, dentre eles merecem atenção os constrangimentos

físicos, como ser forçada a manter relações sexuais contra seu desejo, além das

questões morais e psicológicas como um todo. Nesse sentido, o relator expõe o

seguinte: “Não há dúvida sobre o histórico de discriminação por ela enfrentado na

esfera afetiva. As agressões sofridas são significativamente maiores do que as que

acontecem – se é que acontecem – contra homens em situação similar”.

Considerando constitucional a Lei, o Supremo Tribunal Federal ainda

avançou no sentido de reiterar a natureza incondicionada da ação penal em caso de

crime de lesão corporal, pouco importando a extensão desta, praticado contra a

mulher no ambiente doméstico, ou seja, cai o paradigma de que em briga de marido

e mulher ninguém mete a colher. O Ministro Luiz Fux do STF, também ao se

manifestar sobre a Constitucionalidade da Lei e tratando do enfrentamento da

violência vivenciada pela mulher ao longo dos anos, expõe, :

Para enfrentar esse problema, que aflige o núcleo básico da nossa sociedade – a família – e se alastra para todo o corpo comunitário por força dos seus efeitos psicológicos nefastos, é necessária uma política de ações afirmativas que necessariamente perpassa a utilização do Direito Penal. A adoção das ações afirmativas é o resultado de uma releitura do conceito de igualdade que se desenvolveu desde tempos remotos. Na clássica obra Aristotélica “A Política”, o filósofo já ponderava que “A primeira espécie de democracia é aquela que tem a igualdade por fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos e os pobres não têm privilégios políticos, que tanto uns como outros não são soberanos de um modo exclusivo, e sim que todos o são exatamente na mesma proporção.” (Grifo do Autor)

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Partindo dessas observações é possível dizer que essa suposta

desigualdade no tratamento de homens e mulheres que praticam violência, punindo-

se mais severamente os homens, é justificável pela situação de desigualdade em

que o preconceito colocou as mulheres, e, como disse Rui Barbosa em seu discurso,

“Oração aos Moços”,

A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.

Assim, constitucional a Lei Maria da Penha, cuja aplicação é obrigatória em

todo o país e deve ser aplicada a fim de combater a violência de gênero e romper

com o desdém perpetrado por séculos, seja legalmente, ou culturalmente contra a

mulher e por mais que represente também uma vitória feminina sobre todo opressão

vivenciada ao longo dos anos, também significa que ainda existem mulheres vítimas

do preconceito de gênero, o qual ainda não foi dissipado de nossa sociedade. Como

disse a Ministra Carmem Lúcia em seu voto na Ação de Declaração de

Constitucionalidade da Lei Maria da Penha - “quando vem a lei nessas condições,

significa pra nós um alerta: a luta continua, como toda luta pelos direitos humanos.”

3.3 - O elo feminino: A carta de Direitos de Nísia e a Lei Maria da Penha.

Como visto inicialmente, Nísia Floresta surge no início do século XIX e

escreve o primeiro livro, que tem como propósito a busca dos direitos femininos.

Naquele tempo, não havia uma educação de qualidade para as mulheres, que

sequer eram consideradas cidadãs, isso justifica o fato de estarem afastadas do

progresso e excluídas da vida profissional, mantendo-se assim em situação de

inferioridade diante do homem, tal constatação é atestada pela própria Nísia

Floresta, que defende a ideia de que só através de uma mudança nos

acontecimentos é que a mulher passaria a ocupar melhor lugar na sociedade.

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Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens foi um marco na história

feminina do Brasil, isto por que trazia questões relacionadas às mulheres que

demandavam uma discussão, mas que ninguém, no âmbito nacional, até então,

ousou fazer. Segundo Gilberto Freyre, ela era “exceção escandalosa, pois surgia

nesse cenário como verdadeira machona entre as sinhazinhas dengosas do meado

do século XIX”. (FREYRE apud CONSTÂNCIA, 1985, p. 109)

Naquela época Nísia Floresta já denunciava a violência opressora da

sociedade do seu tempo. Fosse esta manifestada através da tipologia, “força bruta”,

ou através do preconceito, que somente permitia às mulheres espaços inferiores aos

dos homens.

Como não se tem notícia de outro anterior, este Direito das Mulheres e Injustiça dos homens, tornou-se um marco importante na tomada de consciência da mulher brasileira, por ser o primeiro livro de escritora nacional realizado com a intenção de protestar e denunciar a injustiça social praticada contra o segundo sexo. Seria, então, o texto fundante do feminismo brasileiro. (DUARTE, 2008, p. 145)

É por esta razão que os estudiosos não destoam no entendimento de

classificar Nísia Floresta como a mais importante precursora dos ideais de igualdade

e independência da mulher brasileira.

Há uma consideração que precisa ser enfatizada, o contexto sócio cultural

daquela autora no Brasil, na época em que as mulheres viviam uma dominação

fática e legal, pois além do costume ser desfavorável a estas, também não havia

reconhecimento na Legislação que possibilitasse a independência feminina. O

comum era ser apenas dona de casa, esposa e mãe, sem merecer qualquer atuação

na sociedade, sem ser reconhecido qualquer direito que lhe permitisse conquistar

autonomia. Na verdade, o que existia era justamente o contrário, pois contra elas

vigoravam todas as amarras de um processo histórico que as enxergavam como

seres inferiores ao homem.

Nesta época, a autora escreve Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens,

não se conformando com a situação vivenciada e mais que isso, reivindica uma

mudança de pensamento e atitude. Relatando o preconceito sofrido, se mostra e

mostra suas semelhantes com condições de merecerem melhor sorte e exigindo o

direito de igualdade, deixando claro que toda a situação imposta à mulher, pelo

homem, de submissão, de interiorização, de subjugação é também forma de

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violência, reconhecendo a imposição da sociedade para que a mulher

permanecesse no lugar que estava, ocupando quase espaço nenhum.

Até hoje só se tem tratado superficialmente da diferença dos dois sexos. Todavia os homens arrastados pelo costume, prejuízo e interesse, sempre tiveram muita certeza em decidir a seu favor, porque a posse os colocava em estado de exercer a violência em lugar da justiça. (FLORESTA, 1889, p. 29-30).

Ora, pertencer à espécie humana deveria ser o único critério para a

titularidade de direitos humanos16, até porque, não existe, uma justaposição ente o

ser humano do ponto de vista biológico e ser sujeito de direitos. Infelizmente, não foi

isso que demonstrou a história, o critério do sexo tem sido fundamental para impor

menos valia às mulheres, as quais por séculos, não foram consideradas sujeitos de

direitos, no que se refere a sua inclusão e participação ativa na sociedade.

A identidade feminina tem sido marcada, ao longo dos séculos, pela vivência

da exclusão, mas a que se deve esta exclusão? Na Obra Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens, Nísia Floresta respondeu para o Brasil, ao refletir sobre os

direitos da mulher.

Se a força do corpo, em que reconhecemos sua preeminência, é um

pretexto suficiente para nos calcar aos pés, o Leão tem um direito bem

fundado de preeminência sobre eles e esta espécie de bruto é mais

generosa que a dos homens”. Ainda que um pouco mais feroz e bravio, um

Leão envergonha-se de empregar sua força quando há demasiada

desproporção entre ele e seu adversário. (FLORESTA, 1889, p. 42)

Na referida obra Nísia reconhece a superioridade de força do homem em

relação à mulher, mas desde já afirma que não é pretexto para impedir o seu

desenvolvimento enquanto ser humano, de modo que não pode ser usada contra as

mulheres como forma de repreensão, e que não pode justificar a imposição de

inferioridade da figura feminina. Nos seis capítulos do livro supracitado, claramente

se percebe as principais reivindicações de sua autora.

No capítulo I vê-se que Nísia Floresta relata o sentimento de inferioridade,

desdém, subjugação que os homens despendiam às suas mulheres, desprezo pelas

16

Direitos humanos são os direitos básicos inerentes ao ser humano e referem-se também à liberdade.

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suas funções domésticas: (FLORESTA, 1989, p. 36) “Todos sabem, nem se pode

negar, que os homens olham com desprezo para o emprego de criar filhos e que é

isto, às suas vistas uma função baixa e desprezível.”

E questionando o tratamento dispensado ao sexo feminino, Nísia indaga:

Que direito pois têm eles de desprezar e pretender uma superioridade sobre as

mulheres, por um exercício que eles partilham igualmente conosco? Reivindica

educação de qualidade para a mulher - pois elas não tinham - que lhe habilitassem

também para o desempenho de outras funções que não fosse apenas esposa, mãe,

do lar, e ainda diz que se as mulheres não tem desenvolvido algumas ciências a

diferença vem da ausência de educação: “Toda sua diferença, pois, vem da

educação, do exercício e da impressão dos objetos externos”. (FLORESTA, 1989, p.

47)

A autora prega a mesma capacidade intelectual para mulheres e homens e

ainda que os homens impõem o contrário por interesse, já que com ciência e

conhecimentos as mulheres se converteriam em suas competidoras/adversárias, aí

estava a razão para não permitirem que elas ocupem qualquer espaço relevante na

sociedade, seja político, econômico ou cultural.

E assim, capítulo a capítulo, reivindica a oportunidade também para a

mulher governar, preencher cargos públicos, ensinar ciências, trabalhar e ainda

argumenta, relatando a violência empregada contra a mulher e que a força somente

não poderia dar aos homens superioridade sobre as mulheres, apesar de ser o

entendimento recorrente de sua época. Acreditando ter cumprido a tentativa de

mostrar que as mulheres não merecem o tratamento desigual que recebiam, conclui:

Julgo, pois, ter provado de uma maneira evidente, que não há ciência, empregos e dignidades, a que as mulheres não tenham tanto direito de pretender como os homens; pois que eles não podem alegar outra superioridade que a força do corpo, para justificar o cuidado que têm de arrogar a si toda autoridade e prerrogativas e que não provam outra incapacidade nas mulheres, que possa privá-las do seu direito, senão a que resulta da injusta opressão dos homens que é fácil refutar. (FLORESTA, 1889, p. 86)

Infelizmente passaram décadas sem que a mulher adquirisse a sua

emancipação, a realidade feminina só começa a se transformar gradativamente com

sua inserção no mercado de trabalho a partir das últimas décadas do século XIX. No

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Brasil, o direito de votar só foi concedido à mulher na década de trinta, século

passado, quando o Código Eleitoral brasileiro, de 1933, estendeu às mulheres o

direito ao voto e a representação política.

O acesso a cursos superiores foi também um passo para o reconhecimento

da igualdade de gêneros, as mulheres passaram a lutar por suas próprias

conquistas. A ocupação do espaço público, a valorização profissional, o acesso à

educação superior representaram avanços na situação da mulher na sociedade.

A mulher da atualidade apresenta situação mais favorável do que a mulher

do tempo de Nísia Floresta, como cidadã política, vota e pode ser votada. A

Constituição Federal, em seu Art. 5º, claramente concedeu situação de igualdade e

proibiu a discriminação de gênero. Eis o que nos diz o supracitado artigo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 5º)

A mulher está emancipada legalmente, governa países, integra as

Universidades como estudantes, professoras, reitoras, presidem os Tribunais de

Justiça em seu mais alto grau, como a exemplo do Supremo Tribunal Federal, enfim,

a legislação atribuiu situação de igualdade entre mulheres e homens e este

processo legal de declínio das desigualdades de gênero, culminou na Lei nº

11.340/06 - a Lei Maria da Penha - que combate severamente a violência contra a

mulher nas relações familiares e domésticas, atribuindo tratamento favorável ao

sexo feminino, uma vez que pune mais severamente os homens que praticam

agressões contra esta.

A Lei Maria da Penha representa a afirmação de que as mulheres ainda têm

tratamento desigual em virtude do gênero a que pertence, pune a violência praticada

pelo homem contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar, seja ela física, moral,

psicológica, sexual ou patrimonial, reconhecendo a violência existente contra a

mulher em virtude de seu gênero, pois o direito, como fato social que é, reflete os

anseios de sua época e é moldado pelos acontecimentos sociais. Segundo Paulo

Nader:

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Direito e sociedade são entidades congênitas e que se pressupõe. O direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade. A sua causa material está nas relações de vida, nos acontecimentos mais importantes para a vida social. A sociedade, ao mesmo tempo, é fonte criadora e área de ação do direito, seu foco de convergência. Existindo em função da sociedade, o Direito deve ser estabelecido à sua imagem, conforme suas peculiaridades, refletindo os fatos sociais. (NADER, 2007, p. 28)

Logo, se a Lei reflete os anseios da sociedade, onde já não se admite o

tratamento desdenhoso empregado contra as mulheres, prática que perdurou

durante séculos, reconhece a existência desde tratamento ao passo que impõe

sanção criminal porque este ainda existe.

É certo, hoje, que a maior forma de dominação sobre a mulher, advém do

seu âmbito doméstico, espaço de intimidade, afeto, privacidade e muitas mulheres

continuaram aprisionadas pelos seus próprios companheiros, pais, irmãos, que

desacompanharam as alterações legais e ainda usam a violência e preconceito para

não permitirem a independência de suas mulheres, e isso pode ser considerado

como obstrução da lei, uma vez que é um direito aferido legalmente.

Em verdade a Lei não pune somente a violência física, mas também a

violência psicológica, prevista no art. 7ª da Lei, a que causa dano emocional e

diminuição de auto-estima ou lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou

ainda que vise degradar ou controlar suas ações.

Ora, é esta violência que a mulher brasileira sofreu desde a Colonização e

que ainda permeia a mente de muitos homens, o julgamento equivocado que a

mulher não é capaz, o desdém à sua pessoa somente pelo seu sexo, a sua

fragilização, a inferiorização. Quantos homens, ainda hoje, continuam dizendo que

suas mulheres não servem para fazer outra coisa que não cuidar do lar? Quantas

piadas ainda desclassificam a figura feminina? A Ministra Carmem Lúcia do

Supremo Tribunal Federal, em seu voto pela constitucionalidade da Lei Maria da

Penha que data de fevereiro deste ano (2012), expôs:

Eu cresci ouvindo frases, que eram frases de efeito, frases de brincadeira, frases muitas vezes ditas em um tom jocoso, que é uma das formas de desmoralizar os direitos. Até grandes pensadores, grandes escritores: 'toda mulher gosta de apanhar... toda não, só as normais'. 'Ele pode não saber por que está batendo, mas ela sabe porque está apanhando'. Por que se criou a delegacia da mulher? Porque se dizia, como eu já escutei delegado dizendo: 'Bateu? Mas a mulher era dele? Então, nada a ser feito'. Por isso a dificuldade até de uma mulher, como nos casos dos crimes sexuais, de ter acesso a isso. Escutei: 'fulano bate, mas ele tem mulher bife, quanto mais

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bate melhor fica...'. Cansei de escutar isso e continuo escutando, e essas são situações que nos desmoralizam, são situações que nos violentam no dia-a-dia. E isso passa para outra geração que essa violência haverá de continuar. Por isso a Lei Maria da Penha trata não apenas da mulher, mas também dos filhos que vêem essa violência e reproduzem esses modelos. Essa violência vai para a praça pública, depois vai para o país e depois gera as guerras. É assim que funciona a sociedade em que a paz realmente não é buscada, porque nem é conveniente.

A Lei 11.340/2006 trata da violência sexual, reconhecendo que a mulher não

tem a obrigação de servir ao marido, companheiro, quando não seja também a sua

vontade. Muitas mulheres foram violentadas desde a época de Nísia Floresta, na

verdade foram antes e depois, porque muitos homens entendem que estas devem

sempre, mesmo quando não querem, satisfazer aos seus prazeres, que isso é

função da mulher. Até pouco tempo se discutia se o estupro praticado pelo marido

contra a sua esposa era crime. Onde estaria a desqualificação de crime, se este

consiste em: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter

conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato

libidinoso” (Art. 213 do Código Penal). Logo, não considerá-lo ato criminoso seria

mais uma forma de propalar o preconceito contra a figura da mulher.

O Preconceito, segundo o dicionário Aurélio (2011, p. 702) é „ideia

preconcebida, intolerância, aversão, suspeita, má vontade gratuita contra pessoas,

povos, crenças”. Foi muito antes da publicação do dicionário acima, que a

precursora do feminismo no Brasil, em sua obra Direito das Mulheres e Injustiça dos

Homens atribuiu o tratamento e violência empregada contra a mulher ao costume e

prejuízo, que pela interpretação contextual, trata-se de preconceito, o qual vigora até

os dias atuais e é combatido também na Lei Maria da Penha.

Ao compararmos os dois documentos - A obra de Nísia e a Lei 11.340/06 – e

seus contextos históricos, vê-se claramente que a mulher da época de Nísia

Floresta, era totalmente dependente do sistema patriarcal no qual estava inserida,

com amarras fáticas e legais que a impossibilitavam se desvencilhar da submissão

que vivenciou, salvo raras exceções como é caso da autora. O texto de Nísia foi o

primeiro de uma brasileira que denunciou a situação vivenciada pela mulher, que ela

mesma, - aduz ser fundada no prejuízo - e reivindica tratamento diferente – “melhor

sorte”. A Lei Maria da Penha, do ano de 2006, identifica, na sociedade, a existência

de mulheres que sofrem violência e a necessidade de se combater a desigualdade

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de gênero, proteger a mulher que vivencia esta situação no seu âmbito doméstico ou

familiar.

A Lei representa um avanço legal para as mulheres, mas tem um contexto

significativo que ultrapassa os tribunais, o preconceito histórico que as mulheres

sofreram é reconhecido por ela, que em uma ação afirmativa, tenta retirar as

mulheres da situação de desigualdade para com os homens. E isso é feito em

relação ao seu pleno desenvolvimento e sua participação ativa na sociedade, não só

como dona de casa, mas como ser humano que goza de todos os direitos, afirma o

Ministro Luiz Fux do STF, em seu voto a favor da constitucionalidade da Lei:

Longe de afrontar o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, da Constituição), a Lei nº 11.340/06 estabelece mecanismos de equiparação entre os sexos, em legítima discriminação positiva que busca, em última análise, corrigir um grave problema social. Ao contrário do que se imagina, a mulher ainda é subjugada pelas mais variedades de formas no mundo ocidental.

A obra Direito das Mulheres e injustiça dos Homens e a Lei Maria da Penha

estão intrinsicamente ligadas pela figura feminina e pelo combate a situação

vivenciada pela mulher, há um elo feminino, porque liga as mulheres destes

contextos históricos, e este elo é feminino, porque vivenciado pela mulher, porque

existe contra a mulher e atravessou gerações, é o preconceito de gênero, é a

negativa da emancipação feminina, assim como, a luta pela igualação, o homem

desconhece isso, porque desde os primórdios é considerado o sexo forte. A este

respeito e de forma bastante consistente, se pronunciou a Ministra Carmem Lucia

em seu voto proferido também a favor da constitucionalidade da Lei Maria da Penha:

Eu tenho absoluta convicção, ou convencimento, pelo menos, de que um homem branco médio jamais poderá escrever ou pensar a igualdade, a desigualdade como uma de nós. Porque o preconceito passa é pelo olhar. Uma de nós, ainda que titularizando um cargo que nos dê as vezes a necessidade de usar um carro oficial, vê, no carro de quem está ao lado, um olhar diferenciado do que se ali estivesse sentado um homem. Porque, na cabeça daquele que passa, nós estamos usurpando a posição de um homem. E isso é a média, não de uma pessoa que não tenha tido oportunidade de compreender o mundo que nós vivemos. Isso não significa que o preconceito não acabe, porque já mudou muito. [...] Enquanto houver uma mulher sofrendo violência, nesse momento, em qualquer lugar desse planeta, eu me sinto violentada. Enquanto houver, nós temos de ter o tratamento para fazer leis como essa que são políticas afirmativas que fazem com que a gente supere, não para garantir a igualdade de uma de nós, juízas, advogadas, senadoras, deputadas,

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servidoras públicas, mas a igualação, a dinâmica da igualdade, para que a gente um dia possa não precisar provar que nós precisamos estar aqui.

A mulher de antes e de hoje, de alguma forma compartilham, embora o

façam de modos diferentes, da situação feminina, obviamente essa já passou por

muitas mudanças. A mulher já não está confinada ao espaço do lar, atualmente ela

assume profissões antes impensadas, como por exemplo podemos citar as

mulheres que são policiais, eletricistas, taxistas, aviadoras, mecânicas, filósofas,

sociólogas, bioquímicas, prefeitas, advogadas, juízas, engenheiras. São todas elas

capazes, são todas mulheres. De fato, o que acontece é que a mulher vem

agregando funções, diante disto, acreditamos ser pertinente complementarmos

nossa fala com um trecho da canção “Maria, Maria” de Milton Nascimento (1978),

que diz:

[...]

Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria Mas é preciso ter manha É preciso ter graça É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida...

[...]

A estranha mania de ter fé na vida, a força, a gana e a marca tem sido o

impulso que levou algumas mulheres, entre elas podemos citar Nísia Floresta e

Maria da Penha a lutar por mudanças. Muitas já ocorreram, mas sabemos que ainda

precisa muita luta para que a mulher consiga encontrar de fato o seu verdadeiro

espaço, pois a abnegação de muitas mulheres ainda confunde-se com algumas

personagens da literatura delineadas dentro de uma sociedade patriarcal –

lembramos aqui as Marílias, as Iracemas, as Aurélias, as Madalenas, as Capitus as

Macabéas. Essas mulheres de papel que representaram na literatura as mulheres

de carne e osso, que um dia sonharam em deixar de ser objeto para ser sujeito –

Lembramos Nísia e Maria da Penha.

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Não queremos dizer com isso que Nísia Floresta e Maria da Penha

conquistaram seus espaços sem dores, sem lutas, sem sofrimentos. O atentado

contra a vida – Maria da Penha – o casamento forçado e o preconceito – Nísia

Floresta - foi um alerta necessária para o encontro de uma luz no meio da treva. As

duas personagens propõem às mulheres a continuidade pela busca dos seus

direitos e o não conformismo diante das situações de preconceitos, desigualdade e

violência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura, ao longo do tempo, em suas diferentes épocas e estilos tem

contribuído para construção de uma imagem representativa da mulher, que a

classifica como um ser passivo, inferior e submisso aos desígnios da figura

masculina, colocando-a como modelo de comportamento de determinada realidade

sócio histórica. Contudo, vale lembrar que uma obra literária é um substrato da

sociedade na qual ela foi produzida, revelando, não somente como ela é, mas

também uma visão de como ela poderia ser. A literatura em si, por seu caráter

ficcional, é desprovida de qualquer responsabilidade para com a veracidade dos

fatos, ora narrados, ora descritos. É simplesmente arte, que como a tal “é uma

transposição do real para o ilusório, por meio de uma estilização formal, que propõe

um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos”, como destaca

(CANDIDO, 2000, p.53). E a literatura tem papel fundamental na representação

identitária da mulher, uma vez que: “A questão da identidade feminina encontra seus

fundamentos mais remotos nos mitos da criação, os quais representam o esforço de

compreensão do homem em relação a sua origem e a sua existência na terra”.

(ALVES apud LUCENA, 2003, p.17).

A figura feminina sempre exerceu fascínio e fonte de inspiração na literatura,

desde as primeiras representações mitológicas da mulher. De Lilith e Eva até a

sociedade contemporânea com seus novos arquétipos femininos, a identidade

feminina foi sendo moldada, transformada e evoluindo ao longo do tempo de acordo

com as constantes transformações e alternâncias de valores recorrentes na

sociedade.

Partindo do mito da criação do mundo, encontramos duas figuras femininas,

típicas representantes da sociedade patriarcal, que se afirmaram como arquétipos

antagônicos da mulher, Lilith e Eva. Segundo os escritos, Lilith é advinda da lama e

foi dado ao primeiro homem, Adão, como sua companheira. “Criada em igualdade

de condições, caracteriza-se como um ser livre, forte, belo e independente e se

revolta, quando Adão tenta submetê-lo, abandonando-o”, (ALVES apud LUCENA,

2003, p.18). Por sua ousadia e atrevimento, Lilith foi banida e satanizada, uma vez

que não correspondia com os ideais femininos impostos pela sociedade patriarcal.

Lilith foi, então, substituída por Eva, que desde a sua criação já podemos observar a

tentativa de submissão da mulher ao julgo do homem. Sendo assim, Eva parte de

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Adão, constituída da sua costela, permaneceria sob seu controle e não o desafiaria

tal como o fez Lilith. “Ao contrário, levada a desobediência, não por um ato livre de

vontade, mas por ter sido instigada, não foi execrada, mas condenada e com ela

suas descendentes, a expiar o pecado maior da insubordinação”, (ALVES apud

LUCENA, 2003, p.18). Dessa forma, Eva, por sua desobediência e ação sedutora,

foi subjugada e inferiorizada. Com isso, Lilith e Eva constituem os primeiros

arquétipos antagônicos femininos que até hoje alimentam nosso inconsciente,

formam parte de nosso arquivo (interdiscurso), e bipolarizam a imagem da mulher

nas relações sociais homem/mulher.

Essa visão ambígua sobre a imagem da mulher que se perpetuou sobre

Lilith e Eva, perdurou até o advento do cristianismo e a exaltação de Maria, mãe de

Jesus Cristo, que fortaleceu a imagem da grande mãe. Maria representa um

arquétipo feminino típico das sociedades patriarcais. Uma mulher forte, sábia,

passiva e obediente, dotada de características tidas como “ideaIs”, dentro dos

padrões de comportamento e imposições do seu tempo, que configuram a

identidade feminina. Maria é o ideal feminino, uma mulher presa à família e a

religião, passiva e submissa, incondicionalmente, ao seu Deus e ao seu homem,

como forma de alcançar a salvação, ou quem sabe a santidade. Assim, a imagem da

mulher Maria veio a reforçar o estereótipo da submissão da mulher ao homem, e

restaurar o equilíbrio que outrora fora estabelecido, mas que se viu ameaçado pela

rebeldia de Lilith e pela desobediência de Eva.

Nessas condições, esse discurso, sobre a identidade feminina se espalhou

entre os sujeitos e as sociedades, formando uma identidade sócio- cultural sobre a

figura da mulher, pois, a identidade “é formada e transformada continuamente em

relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas

culturais que nos rodeiam”, (HALL apud HALL, 2005, p.13). Assim sendo, a

construção da identidade se dá na “interação entre o eu e a sociedade,” acrescenta

(HALL, 2005, p.11). Dessa forma, o sujeito está exposto a múltiplas e cambiáveis

identidades, que se alternam e se configuram segundo as relações trans-pessoais

dos sujeitos com os sistemas sociais. Então, “a identidade, assim concebida, passa

a ser algo pelo qual se deve lutar constantemente, e não simplesmente algo que nos

é concebido na construção de alianças e antiguidades trans-pessoais”, destaca

(BELELI apud LUCENA, 2003, p.184).

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A construção da identidade, como um processo de relações inter-sociais,

diante das transformações e do dinâmico processo de mudança da sociedade

moderna, é responsável pelo surgimento de identidades fragmentadas. O sujeito

passa a ser “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes

contraditórias ou não resolvidas”, afirma (HALL, 2005, p.12). E uma das principais

características das sociedades modernas é a multiplicidade de valores e o constante

diálogo estabelecido pelos sujeitos, caracterizados pela diferença e pelo intenso

processo de transmutação que caracteriza a existência de uma coletividade dentro

de uma estrutura social. “As sociedades modernas são, portanto, por definição,

sociedades de mudança constante rápida e permanente”, (HALL, 2005, p.14). Essa

dinâmica social produz sujeitos constituídos de múltiplas e inconstantes identidades,

pois a identidade, “ela permanece sempre incompleta, está sempre „em processo‟,

sempre sendo formada [...] um processo em andamento”, acrescenta (HALL, 2005

p.38-39). Seguindo este mesmo raciocínio, de inconstância e fluidez na construção

dos sujeitos e consequentemente de suas identidades, Hall (2005) justifica e

defende a utilização de termos não fixos para a caracterização da identidade como

um todo acabado, pois:

Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2005, p.39).

Visto dessa forma, a construção dos sujeitos e suas identidades está

intimamente relacionada com a noção de alteridade. Esta, que pode ser vista como

tudo aquilo que existe tudo que for o outro, ou seja, é a relação pela qual existimos

enquanto sujeitos: eu sou a proporção que me forma com relação ao outro: “[...] Se

um é sujeito, o outro se torna necessariamente seu objeto, coisificado. Quando se

rompe o isolamento e o ser humano se expõe à comunicação, será necessariamente

para dominar ou ser dominado”, (MENESES, 2000, p. 70). A alteridade, então, é a

concepção que pressupõe a interdependência do homem social, ou seja, a sua

ligação com os outros indivíduos e o modo de vê-lo, de ver o outro, visto que a

existência do “eu” só ocorre mediante o contato com o outro, o que significa dizer

que a existência individual depende da visão do outro.

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E quando partimos desta concepção de alteridade, para determinar a

construção da identidade feminina, nossa memória discursiva é ativada e

remontamos os nossos saberes, e saberes outros, sobre aquela imagem de Lilith,

Eva, Maria, dentre outras, que são confrontadas com outras mulheres, presentes e

reais, e desse processo contrastivo formamos nossa própria imagem de mulher,

muitas vezes inferiorizada e estigmatizada. É essa formação discursiva que interfere

e reflete na construção da imagem da mulher, pois: “No discurso sobre a mulher

ecoam vozes de épocas remotas que dialogam com as do presente e, em sintonia,

constroem as palavras que se completam nas imagens, cujos sinais (das palavras e

das imagens) histórico-sociais buscamos interpretar”. (LUCENA, 2003, p.159).

Esse processo de referenciação, na construção da identidade feminina, nas

relações historicamente estabelecidas pelo sistema patriarcal acaba cristalizando

características que foram arraigadas em um passado distante, e alimentando um

sistema que valoriza o lado masculino em detrimento do feminino, acentuando as

desigualdades econômicas, sociais e culturais entre homens e mulheres. Contanto,

com o passar do tempo, já no século XIX surgem algumas transformações no âmbito

da vida social. Logo a cultura e os valores também acompanhavam as mudanças e

as transformações no campo feminino. Sobre isto, Orsini diz:

No século XIX, a vida da mulher da camada senhorial sofria algumas modificações, à proporção que se intensificava o processo de urbanização. [...] O ambiente da cidade proporcionava mais contatos sociais nas festas, nas igrejas, nos teatros. A família patriarcal perdia sua dimensão rígida, permitindo à mulher desenvolver certo desembaraço de atitudes. Todavia, não se cuidava de sua instrução [...]. (ORSINI apud LUCENA, 2003, p. 84-85).

Vemos, com isso, que mesmo com as transformações no âmbito do espaço

feminino nos princípios sociais e culturais, os dotes intelectuais ainda eram negados

a mulher: “A mulher burguesa do século XIX é a mulher do lar, sem exceção

significativa. Isso decorre de vários fatores históricos [...]”. (ORSINI apud LUCENA,

2003, p. 85).

Neste sentido, a sensibilidade feminina sempre foi intrinsecamente ligada às

tarefas domésticas e a incapacidade. O estereótipo feito do retrato feminino se

resumia a ser mãe e esposa. A situação frágil da mulher contrasta não só com a

propagação de discursos produzidos por moralistas, mas, com a intensidade de

representações de que foi alvo. Contudo, mesmo nesta posição estereotipada:

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[...] a mulher ocupou, ainda que de forma um tanto contraditória, espaço expressivo no imaginário masculino, que a colocou em cena em diferentes atitudes, situações, estilos de vida, revelando que, com o correr do tempo, não apenas o volume de sua voz aumenta, fazendo-se assim audível, mas também que ela própria assume uma multiplicidade de identidades conflitantes. (RAIJ apud LUCENA, 2003, p. 58).

Assim, com as transformações no espaço social o sujeito (a mulher) passou

a apresentar uma identidade fragmentada e conflitante, que surgiu como um

processo formativo da figura do eu em meio a uma multiplicidade de valores e vozes

que dialogam entre si, estabelecendo um caráter fluído e instável da identidade dos

sujeitos, algo pelo qual se busca conquistar diariamente. Sendo assim, neste início

de século, a imagem da mulher já perdeu muito do estigma que outrora lhe reduziu a

simples existência, e ela agora “passa a ter o perfil de alguém em busca do prazer

no trabalho criador, abraçando a conquista de construir-se a si própria,”

(CONFORTIN apud LUCENA, 2003, p.119). Uma mulher em busca da sua própria

felicidade, engajada nas relações sociais, no mercado de trabalho e nas decisões

políticas, em busca da liberdade, da definição da sua própria identidade, da sua

emancipação. E sobre a emancipação feminina Lucena (2003) diz que:

A tão proclamada emancipação feminina relaciona-se diretamente com sua liberdade, independência, modernidade, com a possibilidade há muito almejada de tornar-se senhora de seus próprios atos, de seu destino, enfim, de tornar-se pessoa. (LUCENA, 2003, p.164).

Era esse desejo emancipacionista, de liberdade, de independência, de

encontrar-se a si próprio e construir sua identidade, que alimentava, motivava e

encorajava as façanhas e os desafios travados pelas duas mulheres que

destacamos no nosso texto, por romperem com a sua época em busca de melhores

condições sociais para a mulher: Nísia Floresta e Maria da Penha, cada uma ao seu

modo, combateram o sistema patriarcal vigente.

Nísia Floresta, como vimos, surgiu em um tempo em que a mulher não tinha

qualquer reconhecimento no meio social em que vivia, não tinha reconhecimentos

de direitos que lhe permitisse assumir espaço digno no meio social, não recebia uma

educação que lhe instruísse para a vida fora dos espaços domésticos, não podia

ocupar espaços políticos, sequer podia recusar-se a romper com a situação

opressiva que vivia. A autora, reivindicando esses espaços, provou através da

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literatura que a mulher podia se fazer presente no meio social com mais dignidade,

entretanto, sofreu em virtude disso, o preconceito dos seus contemporâneos,

difamada em sua terra natal, Nísia Floresta passou muitos anos sem retornar ao

Brasil e morreu na França, aos setenta e cinco anos, no ano de 1885, mas deixou

um legado de busca pelos direitos da mulher, sua obra Direito das Mulheres e

Injustiça dos Homens, reivindicou de uma só vez, o que as mulheres continuam

buscando desde aquele tempo até os dias atuais, ver extirpado o preconceito, ver a

mulher com dignidade no meio social, sem sofrer por isso as repreensões de uma

sociedade ainda patriarcal.

A Lei Maria da Penha reiterou a existência da figura feminina que havia na

época de Nísia, a mulher ainda oprimida, maltratada pelos conceitos patriarcais e

ainda a necessitar do reconhecimento de direitos para assumir seu espaço,

dignamente, no meio em que vive. Passados quase duzentos anos, a Lei

11.340/2006, que representa uma mudança de paradigmas criou os mecanismos

para possibilitar a mulher uma vida mais plena e digna, foi até a origem do

preconceito, combate a violência contra a mulher no seio doméstico e familiar, local

onde esta é primeiramente violentada, rompe com o ditado popular - “em briga de

marido e mulher, ninguém mete a colher” – e impõe sanções mais severas para a

violência familiar e doméstica, reconhecendo que a mulher precisa ser respeitada no

seu ambiente familiar e reafirmando, em uma sociedade ainda com resquícios de

patriarcalismo, através de um instrumento normativo como é a lei, que já não se

admite que a sociedade reserve à mulher a opressão, através de quaisquer das

formas de violência relatada na Lei.

Ressaltamos que a mulher apresentada por Nísia Floresta e encarnada

também por Maria da Penha, é a mulher que ainda sofre com o preconceito, mas se

naquele tempo o Direito estava contra a mulher, nos dias atuais e até em contraste,

a Lei Maria da Penha busca pela igualdade de gêneros, combatendo uma

discrepância histórica contra a mulher, cria instrumentos que a favorece nesta

busca, pune com mais rigorosidade aqueles que violentam a figura feminina.

Entretanto, mesmo sendo a Lei Maria da Penha uma importante conquista

feminina pelas circunstâncias já expostas, podemos concluir facilmente, que a

necessidade da aplicação desta Lei, reafirma que a mulher ainda é violentada,

maltratada, humilhada, pelo simples fato de ser mulher e a diferença desta mulher

para aquela existente em Nísia Floresta, é que a figura feminina nos dias de hoje já

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tem instrumentos normativos e sociais que lhe possibilita romper com os pré-

conceitos infundados contra si, que a possibilita ocupar um espaço digno no meio

social em que vive, sem esquecer, contudo, que a violência contra a mulher não é

uma luta objetiva de cada uma, mas uma verdadeira luta de gênero, porque quando

houver opressão a qualquer uma de nós, é todo o gênero violentado, eis que

empregada através dos conceitos ultrapassados contra o nosso sexo. A luta pela

igualação precisa continuar, pois enquanto houver discriminação, preconceito contra

o gênero feminino, não haverá igualdade e liberdade para o gênero humano.

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ANEXOS

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Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica

e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do

art. 226 da Constituição Federal, da Convenção

sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra as Mulheres e da Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a

Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação

dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar

contra a Mulher; altera o Código de Processo

Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal;

e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional

decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

TÍTULO I

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e

familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,

da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a

Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do

Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra

a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação

de violência doméstica e familiar.

Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação

sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades

e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu

aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo

dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à

moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à

liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

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§ 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos

humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido

de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão.

§ 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições

necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela

se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de

violência doméstica e familiar.

TÍTULO II

DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra

a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,

sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio

permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente

agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por

indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por

afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha

convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de

orientação sexual.

Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das

formas de violação dos direitos humanos.

CAPÍTULO II

DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

CONTRA A MULHER

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Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre

outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua

integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause

dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o

pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,

comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,

humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,

insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou

qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à

autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a

presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante

intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a

utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer

método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à

prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite

ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure

retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de

trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,

incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,

difamação ou injúria.

TÍTULO III

DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

CAPÍTULO I

DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO

Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a

mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados,

do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por

diretrizes:

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I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da

Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde,

educação, trabalho e habitação;

II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações

relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às

causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a

mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a

avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;

III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da

pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou

exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso

III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal;

IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres,

em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;

V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da

violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à

sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos

direitos humanos das mulheres;

VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros

instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes

e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas

de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;

VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal,

do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas

enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;

VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de

irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de

raça ou etnia;

IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os

conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia

e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

CAPÍTULO II

DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

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Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar

será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos

na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema

Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e

emergencialmente quando for o caso.

§ 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de

violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo

federal, estadual e municipal.

§ 2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar,

para preservar sua integridade física e psicológica:

I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da

administração direta ou indireta;

II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do

local de trabalho, por até seis meses.

§ 3o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar

compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e

tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das

Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência

Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos

de violência sexual.

CAPÍTULO III

DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL

Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar

contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência

adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao descumprimento

de medida protetiva de urgência deferida.

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar,

a autoridade policial deverá, entre outras providências:

I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao

Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico

Legal;

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III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local

seguro, quando houver risco de vida;

IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus

pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços

disponíveis.

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher,

feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os

seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo

Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a

termo, se apresentada;

II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas

circunstâncias;

III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz

com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;

IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e

requisitar outros exames periciais necessários;

V - ouvir o agressor e as testemunhas;

VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de

antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de

outras ocorrências policiais contra ele;

VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério

Público.

§ 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e

deverá conter:

I - qualificação da ofendida e do agressor;

II - nome e idade dos dependentes;

III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.

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§ 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1o o

boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da

ofendida.

§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos

fornecidos por hospitais e postos de saúde.

TÍTULO IV

DOS PROCEDIMENTOS

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais

decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-

ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação

específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o

estabelecido nesta Lei.

Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos

da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela

União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o

julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica

e familiar contra a mulher.

Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno,

conforme dispuserem as normas de organização judiciária.

Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos

por esta Lei, o Juizado:

I - do seu domicílio ou de sua residência;

II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;

III - do domicílio do agressor.

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida

de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em

audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da

denúncia e ouvido o Ministério Público.

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Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar

contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem

como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

CAPÍTULO II

DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

Seção I

Disposições Gerais

Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no

prazo de 48 (quarenta e oito) horas:

I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de

urgência;

II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária,

quando for o caso;

III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.

Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a

requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato,

independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério

Público, devendo este ser prontamente comunicado.

§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou

cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior

eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou

violados.

§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da

ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já

concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de

seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.

Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a

prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do

Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

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Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do

processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-

la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao

agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem

prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.

Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao

agressor.

Seção II

Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher,

nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou

separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao

órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o

limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de

comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física

e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a

equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras

previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as

circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério

Público.

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§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas

condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de

dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição

as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de

armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da

determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de

desobediência, conforme o caso.

§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o

juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.

§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no

caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código

de Processo Civil).

Seção III

Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário

de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo

domicílio, após afastamento do agressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos

relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV - determinar a separação de corpos.

Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou

daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar,

liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda

e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e

danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a

ofendida.

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Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins

previstos nos incisos II e III deste artigo.

CAPÍTULO III

DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e

criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos

casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário:

I - requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de

assistência social e de segurança, entre outros;

II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à

mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as

medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades

constatadas;

III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

CAPÍTULO IV

DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA

Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação

de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado,

ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.

Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar

o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita,

nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e

humanizado.

TÍTULO V

DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR

Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que

vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento

multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas

psicossocial, jurídica e de saúde.

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Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras

atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por

escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou

verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento,

prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares,

com especial atenção às crianças e aos adolescentes.

Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada, o

juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a

indicação da equipe de atendimento multidisciplinar.

Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária,

poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento

multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.

TÍTULO VI

DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS

Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e

Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e

criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência

doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei,

subsidiada pela legislação processual pertinente.

Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais,

para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.

TÍTULO VII

DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a

Mulher poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias necessárias e do

serviço de assistência judiciária.

Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e

promover, no limite das respectivas competências:

I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos

dependentes em situação de violência doméstica e familiar;

II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em

situação de violência doméstica e familiar;

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III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de

perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de

violência doméstica e familiar;

IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e

familiar;

V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.

Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a

adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios desta

Lei.

Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei

poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de

atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da

legislação civil.

Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz

quando entender que não há outra entidade com representatividade adequada para

o ajuizamento da demanda coletiva.

Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher

serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e

Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às

mulheres.

Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e do Distrito

Federal poderão remeter suas informações criminais para a base de dados do

Ministério da Justiça.

Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de

suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias,

poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício

financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei.

Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos

princípios por ela adotados.

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a

mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de

setembro de 1995.

Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de

Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:

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“Art. 313. .................................................

................................................................

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos

da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.”

(NR)

Art. 43. A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de

dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 61. ..................................................

.................................................................

II - ............................................................

.................................................................

f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de

coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei

específica;

........................................................... ” (NR)

Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código

Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 129. ..................................................

..................................................................

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou

companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se

o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

..................................................................

§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o

crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” (NR)

Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução

Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:

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“Art. 152. ...................................................

Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá

determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação

e reeducação.” (NR)

Art. 46. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação.

Brasília, 7 de agosto de 2006; 185o da Independência e 118o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Dilma Rousseff

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 8.8.2006