2
A paixão de Nascimento Grande ________________________________________________________ Um dos sinais inequívocos de que o mundo anda da pá virada – e como está pior - é a morte do valente honrado, do porradeiro gentil-homem. Não há mais o valentão romântico; vivemos a era dos covardes, dos bundões que armam as maiores pancadarias em portas de boates e estádios de futebol com a fúria insana dos apaches de filmes de faroeste. Umas bestas, em suma. Nenhum deles merece limpar o cocô do legendário Nascimento Grande, o maior valentão que passou por aqui. A descrição que Luís da Câmara Cascudo (pausa para as reverências devidas. Vou ali acender uma vela e já volto) . Retornei. Como ia começando a dizer, a descrição que o mestre Cascudo faz de Nascimento Grande é fenomenal. Vejam só: “De alta estatura, corpulento, chegando aos 130 quilos, morenão, bigodes longos, muito cortês e maneiroso, usava invariável chapelão desabado, capa de borracha dobrada no braço e a célebre bengala de quinze quilos, manejada como se pesasse quinze gramas e que ele chamava a volta. Uma bengalada derribava um homem, duas desacordavam e três matavam.” Mas deixem-me explicar quem foi essa figura extraordinária. Chamava-se José Antônio do Nascimento e era o mais afamado valente do Recife na entrada do século XX. Trabalhava na estiva e, segundo relatos, carregava cargas absolutamente insanas, daquelas de enrubescer os maiores fortões. Era um Hércules, o Nascimento Grande. Nunca, eu disse nunca, provocou uma porrada. De conduta ilibada e honestidade comovente, só saía no cacete em legítima defesa. Como era uma fortaleza, costumava ser desafiado por malandros de todos os tipos e mestres de capoeira, que sabiam da fama reservada a alguém que conseguisse meter-lhe a porrada. Nunca aconteceu. Meu avô, que era pernambucano arretado, contava coisas absolutamente espantosas sobre Nascimento Grande, e guardava como relíquia um cordel chamado Vida de Nascimento Grande, o Homem do Pulso de Ferro. Nós, os netos, ouvíamos extasiados os feitos do ciclópico personagem. Toda vez que ouvia algum relato envolvendo cenas de força e valentia, o velho afirmava: - Valente mesmo só teve um: Nascimento Grande. E era educadíssimo. Conheço inúmeras histórias desse gigante. A que sempre me impressionou se refere a um ataque que sofreu, em Vitória de Santo Antão, de um cabra chamado Corre-Hoje, tremendo facínora. Esse biltre atacou Nascimento Grande auxiliado por sete comparsas. Pra que? Nascimento Grande bateu nos sete e matou o Corre-Hoje. Diante do pânico dos que assistiam à cena, que incluiu os inevitáveis desmaios das mulheres, Nascimento Grande colocou o corpo do meliante em um banco, acendeu velas votivas e velou, rezando

Nascimento Grande

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Nascimento Grande

A paixão de Nascimento Grande ________________________________________________________

Um dos sinais inequívocos de que o mundo anda da pá virada – e como está pior - é a morte do valente honrado, do porradeiro gentil-homem. Não há mais o valentão romântico; vivemos a era dos covardes, dos bundões que armam as maiores pancadarias em portas de boates e estádios de futebol com a fúria insana dos apaches de filmes de faroeste. Umas bestas, em suma. Nenhum deles merece limpar o cocô do legendário Nascimento Grande, o maior valentão que passou por aqui. A descrição que Luís da Câmara Cascudo (pausa para as reverências devidas. Vou ali acender uma vela e já volto) . Retornei. Como ia começando a dizer, a descrição que o mestre Cascudo faz de Nascimento Grande é fenomenal. Vejam só: “De alta estatura, corpulento, chegando aos 130

quilos, morenão, bigodes longos, muito cortês e maneiroso, usava invariável chapelão desabado, capa de borracha dobrada no braço e a célebre bengala de quinze quilos, manejada como se pesasse quinze gramas e que ele chamava a volta. Uma bengalada derribava um homem, duas desacordavam e três matavam.” Mas deixem-me explicar quem foi essa figura extraordinária. Chamava-se José Antônio do Nascimento e era o mais afamado valente do Recife na entrada do século XX. Trabalhava na estiva e, segundo relatos, carregava cargas absolutamente insanas, daquelas de enrubescer os maiores fortões. Era um Hércules, o Nascimento Grande. Nunca, eu disse nunca, provocou uma porrada. De conduta ilibada e honestidade comovente, só saía no cacete em legítima defesa. Como era uma fortaleza, costumava ser desafiado por malandros de todos os tipos e mestres de capoeira, que sabiam da fama reservada a alguém que conseguisse meter-lhe a porrada. Nunca aconteceu. Meu avô, que era pernambucano arretado, contava coisas absolutamente espantosas sobre Nascimento Grande, e guardava como relíquia um cordel chamado Vida de Nascimento Grande, o Homem do Pulso de Ferro. Nós, os netos, ouvíamos extasiados os feitos do ciclópico personagem. Toda vez que ouvia algum relato envolvendo cenas de força e valentia, o velho afirmava: - Valente mesmo só teve um: Nascimento Grande. E era educadíssimo. Conheço inúmeras histórias desse gigante. A que sempre me impressionou se refere a um ataque que sofreu, em Vitória de Santo Antão, de um cabra chamado Corre-Hoje, tremendo facínora. Esse biltre atacou Nascimento Grande auxiliado por sete comparsas. Pra que? Nascimento Grande bateu nos sete e matou o Corre-Hoje. Diante do pânico dos que assistiam à cena, que incluiu os inevitáveis desmaios das mulheres, Nascimento Grande colocou o corpo do meliante em um banco, acendeu velas votivas e velou, rezando

Page 2: Nascimento Grande

contrito, a alma do morto até a chegada da polícia. Exigiu que Corre-Hoje tivesse um velório cristão. Era o defensor das putas do Recife Velho. Mandava dizer que quem maltratasse as moças se veria com ele e com sua inclemente bengala. Não havia cafetão ou cliente que se metesse a engraçado com as quengas quando o Grande estava na zona. Constantemente se apaixonava pelas meninas e afirmava que o amor de uma puta era o mais sincero dos sentimentos. Repetia sempre uma máxima: - sortudo é o homem pelo qual uma puta se apaixona. Maldito é o que tem os amores de uma virtuosa. Em certa feita foi provocado por um valente chamado Pajéu, metido a capoeirista e dado a bater em mulher – coisa que causava asco no nosso personagem. Pois o tal do Pajéu apanhou mais que boi ladrão. Não foi suficiente. Após a surra, Nascimento Grande obrigou o cabra a colocar uma saia de mulher e desfilar pelas ruas do Recife Velho. As putas, que amavam nosso personagem e execravam o tal de Pajéu, aplaudiram em delírio a desmoralização do bocó. Foi ele quem matou, em viagem ao Rio de Janeiro, o legendário capoeirista Camisa Preta, que o desafiara para um combate de morte. Um dia vou escrever dez relatos apenas sobre essa batalha, que - há testemunhas! - transformou o Largo da Carioca na península do Peloponeso. Com o coração do tamanho do Capibaribe, Nascimento Grande fez grandes amigos por onde andou. Honestíssimo - mesmo os inimigos reconheciam isso - , chorava feito manteiga derretida com as coisas mais corriqueiras da vida. Morreu, com mais de cem anos, no Rio de Janeiro, onde passou parte da velhice. Para ele, escrevi um arremedo de verso mínimo a respeito de uma lição que deixou: Afiadas facas Cortam meu amor Em seus delírios. Deus me guarde das rosas castas E me conceda o amor das moças putas Em cujas mão as facas viram lírios. Era um passarinho, o Nascimento Grande. Axé!

Texto: Autor e foto disponíveis em Bibliografia. Pg 02 WWW.CAPOARTE.V10.COM.BR