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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião Nathan Ferreira França OS FUTUROS CONTINGENTES DE ARISTÓTELES COMO PROPOSIÇÃO FILOSÓFICA E A INTERPRETAÇÃO DE BOÉCIO São Paulo 2019

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Nathan Ferreira França

OS FUTUROS CONTINGENTES DE ARISTÓTELES COMO PROPOSIÇÃO FILOSÓFICA E A INTERPRETAÇÃO DE BOÉCIO

São Paulo

2019

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NATHAN FERREIRA FRANÇA

OS FUTUROS CONTINGENTES DE ARISTÓTELES COMO PROPOSIÇÃO FILOSÓFICA E A INTERPRETAÇÃO DE BOÉCIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, do Centro de Educação, Filosofia e Teologia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bitun

São Paulo

2019

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Bibliotecário Responsável: Eliezer Lírio dos Santos – CRB/8 6779

F814f França, Nathan Ferreira Os futuros contingentes de Aristóteles como proposição filosófica e a interpretação de Boécio / Nathan Ferreira França – 2019. 83 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bitun Bibliografia: f. 80-82

1. Futuros contingentes 2. Onisciência divina 3. Consolação da filosofia I. Bitun, Ricardo, orientador II. Boécio III. Título LC B659

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NATHAN FERREIRA FRANÇA

OS FUTUROS CONTINGENTES DE ARISTÓTELES COMO PROPOSIÇÃO FILOSÓFICA E A INTERPRETAÇÃO DE BOÉCIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, do Centro de Educação, Filosofia e Teologia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Aprovada em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

Prof. Dr.

____________________________________________

Prof. Dr.

____________________________________________

Prof. Dr.

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Dedico este trabalho aos meus pais, que são também meus amigos e irmãos pela fé em Cristo:

Nelson e Elizana.

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Pobres dos mortais! Por que falsos caminhos Vos leva a vossa ignorância!

Com efeito, não buscais ouro sobre a verdejante árvore Nem pedras preciosas numa vinha;

Vós não estendeis vossas redes no cimo das montanhas Para ter peixes em vossa refeição;

E se quisésseis caçar um cabrito montês Não exploraríeis os fossos abissais do Tirreno.

Os homens conhecem os pélagos marinhos Dissimulados pelas vagas,

Sabem onde pescar pérolas transparentes E onde encontrar a brilhante púrpura,

Que litoral fornece os melhores peixes, E mais frescos, e o espinhoso ouriço do mar,

Mas onde se encontra o bem que eles cobiçam mais [a felicidade], Pouco lhes importa ignorá-lo;

Ao invés de procurar para além do céu estrelado Eles o procurar mergulhados na Terra.

Que insulto já que seja da mesma medida? Que seja! Busquem eles riquezas e honras.

Quando reconhecerem a vacuidade de tudo isso, Aí aprenderão a distinguir os verdadeiros bens.

BOÉCIO

A Consolação da Filosofia, Livro III.1

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus Criador a mais profunda gratidão do meu coração pela redenção

em Cristo Jesus, pela vida, pelo sustento diário, pela família e pela capacitação

sem a qual nada poderia ter sido realizado até aqui.

Agradeço também à minha esposa Mara e nossas filhas Rebeca e Lívia,

especialmente pela paciência que tiveram e ainda tem tido comigo, nas muitas

aventuras e desafios que assumo. Espero que todo esforço e dedicação nas

muitas atividades acadêmicas e ministeriais não minimizem a percepção delas

quanto ao meu amor.

Agradeço de modo muito especial aos meus pais, Nelson e Elizana. O

tempo e os recursos despendidos para a minha formação espiritual e intelectual

são impagáveis; jamais poderei recompensá-los por tudo. Vejo neles, depois de

Cristo, a maior expressão do amor de Deus por mim.

Agradeço ainda à amada Congregação Presbiteriana Ocian e à Igreja

Presbiteriana de Praia Grande por desimpedirem a realização desse curso.

Por fim, agradeço à querida Igreja Presbiteriana do Brasil e ao Instituto

Presbiteriano Mackenzie por propiciar essa formação acadêmica, e também a

cada um dos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da

Religião, do CEFT, mormente ao Dr. Jorge Luis Rodriguez Gutiérrez e ao Dr.

Gerson Leite de Moraes.

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RESUMO

A questão sobre se é possível determinar hoje algo que vai acontecer

amanhã ainda impulsiona longos debates filosóficos e teológicos

contemporâneos. A proposição filosófica a respeito dos futuros contingentes

posto inicialmente por Aristóteles chega à Idade Média com conotação teológica

especialmente pela influência de Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius

(Boécio). A questão que se coloca é como Boécio trata o problema filosófico dos

futuros contingentes de Aristóteles? A pesquisa tem um caráter qualitativo de

cunho bibliográfico. Os aspectos a serem considerados são a contingência da

vida e a onisciência de Deus. Dessa forma, a pesquisa pretende verificar

primeiramente a tratativa filosófica de Aristóteles a respeito dos futuros

contingentes, para seguidamente analisar como Boécio interpreta a questão a

partir de uma base teológica-cristã. Assim, sendo que Aristóteles afirma a

contingência do futuro pelo viés lógico-filosófico, Boécio oferece uma

interpretação teológica ao tratar da questão a partir do entendimento a respeito

do ser de Deus e de seus atributos.

Palavras-chave: Futuros contingentes; Onisciência divina; Boécio; A

Consolação da Filosofia.

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ABSTRACT

The question of whether it is possible to determine today what will happen

tomorrow still drives long-standing philosophical and theological debates today.

The philosophical proposition regarding the future contingents initially posed by

Aristotle reaches the Middle Ages with theological connotation especially by the

influence of Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius. The question that

arises is how does Boethius treat the philosophical problem of the future

contingents of Aristotle? The research will have a qualitative bibliographic

character. The aspects to be considered are the contingency of life and the

omniscience of God. In this way, the research intends to verify first the

philosophical dealings of Aristotle with respect to future contingents, in order to

analyze how Boethius interprets the question from a theological-Christian basis.

Thus, since Aristotle affirms the contingency of the future by the logical-

philosophical bias, Boethius offers a theological interpretation in dealing with the

question from the understanding of the being of God and his attributes.

Keywords: Future contingents; Divine Omniscience; Boethius; The

Consolation of Philosophy.

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SUMÁRIO

Introdução .......................................................................................................... 9

Capítulo 1: O futuro no pensamento grego: da mitologia a Platão ............ 15

1.1. Mitologia grega ..................................................................................... 15

1.2. Pré-socráticos ...................................................................................... 19

1.3. Platão ................................................................................................... 24

Capítulo 2: Os futuros contingentes no pensamento de Aristóteles ......... 33

2.1. A vida de Aristóteles ............................................................................ 34

2.2. A obra de Aristóteles ............................................................................ 38

2.3. Os futuros contingentes no pensamento de Aristóteles ....................... 43

Capítulo 3: Os futuros contingentes na Consolação de Boécio ................ 56

3.1. Vida e obra de Boécio .......................................................................... 56

3.2. A Consolação da Filosofia ................................................................... 58

3.3. Os futuros contingentes no pensamento de Boécio ............................ 67

Considerações finais ...................................................................................... 77

Referências ...................................................................................................... 79

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INTRODUÇÃO

Inquietações acerca do futuro estiveram presentes na vida humana desde

os primórdios de sua existência. A imprevisibilidade do futuro é um problema

existencial, que causou e causa todo tipo de sensações, e com o qual todos

tiveram e ainda tem que lidar. A fim de minimizar o temor e o senso de impotência

diante do que o futuro reserva, as mais diversas teorias têm sido formuladas pela

humanidade; muitas delas ligadas diretamente à religiosidade. Diante dessa

realidade, parece-nos evidente que as disposições humanas de racionalizar o

problema e produzir soluções é muito anterior a Aristóteles – quem primeiro lidou

com a contingência do futuro de maneira lógico-filosófica.

Afirmar que o futuro é contingente significa basicamente dizer que o futuro

não pode ser determinado. De um lado está a tese determinista que propõe que

os eventos futuros ocorrerão ou não ocorrerão necessariamente, não por acaso.

De outro lado está a tese dos futuros contingentes que defende que os eventos

futuros não podem ocorrer por nenhuma necessidade imposta. É fato que os

eventos passados e presentes podem tornar potencialmente possíveis ou

impossíveis os eventos futuros. Contudo, a experiência confirma a realidade de

que por mais que possamos planejar e agir deliberadamente, absolutamente

nada garante que os eventos futuros serão de uma ou de outra forma.

Aristóteles foi o primeiro a lidar com o problema em tela com linguagem

lógico-filosófica. Mas sua obra não teria sido levada adiante senão pela

influência direta de Boécio, em razão de que a tradução da obra completa de

Aristóteles para o latim se deu somente no século XIII. Boécio foi o grande

transmissor do conhecimento aristotélico e platônico para a Idade Média. Por

isso, o que os filósofos medievais sabiam e discutiam a respeito da lógica

aristotélica foi por intermédio de Boécio. Porém, a transmissão desse

conhecimento não passou pelo crivo da neutralidade. A visão cristã de Boécio

não deixou de ser percebida e de influenciar radicalmente o pensamento

medieval.

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A tratativa de Aristóteles ao problema dos futuros contingentes ficou

circunscrita ao campo da lógica e da filosofia, conforme descrita no capítulo 9 de

seu tratado De Interpretatione, doravante denominado Interpretação. Porém, em

Boécio o tema ganhou conotação teológica. Esse tema aristotélico foi tratado por

vários autores.

A Consolação da Filosofia, doravante denominada Consolação, a última

obra de Boécio, teve um papel muito importante no debate medieval de diversos

assuntos. Um dos temas que emerge nela é a respeito dos futuros contingentes

de Aristóteles.

A pergunta central que esta dissertação pretende responder é como

Boécio trata a proposição lógico-filosófica dos futuros contingentes de

Aristóteles?

À guisa de prognóstico, pode ser dito que no capítulo 9 da Interpretação,

Aristóteles expressa-se lógica e filosoficamente acerca do futuro como algo

contingente, isto é, não necessário, de modo que não se pode lidar com o futuro

da mesma maneira com a qual se lida com o passado ou o presente, aos quais

cabe a determinação dos critérios de verdade. Na Consolação, porém, Boécio

trata da questão da contingência do futuro apontando para a onisciência divina,

admitindo que Deus possui conhecimento do passado, do presente e do futuro,

de modo que tudo está patente perante ele, ao mesmo tempo em que não

podemos dizer quanto aos acontecimentos futuros que são necessários.

A presente pesquisa ficará circunscrita a essa temática ao analisar a

tratativa de Boécio ao tema específico dos futuros contingentes, tratativa essa

que, ao que tudo indica, afetou radicalmente o debate medieval e ainda se

mostra relevante para a discussão contemporânea.

A pesquisa a respeito de como Boécio trata o tema dos futuros

contingentes tratado em termos lógico-filosóficos por Aristóteles é relevante por

diversas razões, as quais passo a apresentar.

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Em primeiro lugar, a pesquisa é relevante porque Boécio se distingue de

seus predecessores em virtude de seu extenso e profundo conhecimento do

pensamento e da cultura grega, os quais são revelados de forma inequívoca

especialmente nas poesias da Consolação.

Em segundo lugar, a pesquisa é relevante porque a obra de Boécio serviu

de base e orientação para o tratamento medieval do tema dos futuros

contingentes. A Idade Média não só conheceu o pensamento aristotélico via

Boécio como também obteve dele os recursos lógicos para elaboração de seus

próprios desenvolvimentos a respeito do tema em tela. Exemplo disso é a vasta

utilização de termos criados por Boécio no vocabulário filosófico medieval.

Palavras como: definite […]; os eventos minime […]; simpliciter […]; e uma longa série de outros conceitos que Boécio vai criando ou vertendo de forma mais explícita a fim de tornar o texto aristotélico mais compreensível. Essa livre criação invade não só as outras obras de Boécio, o que fica evidente para quem visita o C. Maior [Comentário Maior de Boécio ao De Interpretatione] e a Consolação em sua língua original, mas também se torna parte importante do vocabulário filosófico da Alta e Baixa Idade Média (PIAUÍ, 2008, p. 212).

Em terceiro lugar, a pesquisa é relevante em razão de que o pensamento

de Boécio exerceu influência para além da filosofia medieval. Parte da filosofia

moderna se valeu também da obra de Boécio, em especial a Consolação, para

a formulação de conceituações a respeito dos eventos futuros.

Em quarto lugar, a pesquisa se justifica em razão da escassez de estudos

a respeito da interpretação de Boécio à descrição aristotélica dos futuros

contingentes. No intuito de comprovar a originalidade do tema desta pesquisa,

segue o levantamento de estudos dos últimos 30 anos, aproximadamente, que

apenas se aproximam do problema de pesquisa deste projeto, sem trata-lo

especificamente.

Uma busca foi realizada no mês de junho de 2018 na Biblioteca Digital de

Teses e Dissertações da Universidade Presbiteriana Mackenzie com as

palavras-chave: Futuros Contingentes, Onisciência divina, Boécio e Consolação

da Filosofia. A busca não retornou nenhum resultado.

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Outra busca foi realizada na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e

Dissertações, com as mesmas palavras-chave. A partir desta busca foram

entradas 34 dissertações e teses. Destas, foram selecionadas 7 afins ao tema

deste projeto de pesquisa:

ANO DE DEFESA AUTOR TEMA TIPO ÁREA

1991 Fernando Pio

de Almeira Fleck

O problema dos futuros contingentes Dissertação Filosofia

2006 Carlos

Eduardo de Oliveira

A realidade e seus signos: as proposições sobre o futuro contingente e a

predestinação divina na lógica de Guilherme de

Ockham

Tese Filosofia

2009 Ana Rieger Schmidt

Contradição e determinismo: um estudo sobre o problema dos futuros contingentes em

Tomás de Aquino Dissertação Filosofia

2009 Cleber Duarte Coelho

A antropologia como itinerário para a felicidade no

De Consolatione Philosophiae de Boécio

Tese Filosofia

2009 Paulo

Fernando Tadeu Ferreira

Enunciado asseverativo e contingência em Aristóteles: A batalha naval amanhã em

De Interpretatione 9

Dissertação Filosofia

2015 Fernanda Lobo

Affonso Fernandes

Restrição ou Qualificação? Uma investigação estrutural sobre as interpretações da resposta de Aristóteles ao

problema dos futuros contingentes

Tese Filosofia

2016 Lauro Cristiano Marculino

Das ideias constituintes da noção de felicidade no de consolatione philosophiae

Dissertação Filosofia

Tabela 1 – Teses e Dissertações selecionadas do BDTD

No mesmo período, foi realizada uma busca nas bases de dados da

EBSCO, a saber, ATLA Religion Database with ATLASerials e Religion and

Philosophy Collection, com mesmos critérios. A busca retornou 37 resultados,

dos quais descatam-se os seguintes:

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ANO DE DEFESA AUTOR TEMA TIPO ÁREA

1959 Miguel Lluch-Baixauli

La teologia de Boecio em la transición del mundo clásico

ao mundo medieval. Livro Filosofia

1990 Alberto Viciano La teologia de Boecio em la transición del mundo clásico

ao mundo medieval. Resenha Filosofia

1991

Trevijano Etcheverría, Ramon M.

Source

La teologia de Boecio em la transición del mundo clásico

ao mundo medieval. Resenha Filosofia

1992 Bernard Dupuy La teologia de Boecio em la transición del mundo clásico

ao mundo medieval. Resenha Filosofia

1994 Robert Wielockx

La teologia de Boecio em la transición del mundo clásico

ao mundo medieval. Resenha Filosofia

1995 P. T. Stella La teologia de Boecio em la transición del mundo clásico

ao mundo medieval. Resenha Filosofia

2002 Manuel Correia M.

Libertad humana y presciencia divina em

Boecio Artigo Filosofia

2015 Gonzalo Tejerina Arias

La Consolatio de Severino Boecio: Consuelo y

Esperanza Teologal por la Belleza

Artigo Filosofia

Tabela 2 – Textos selecionados das bases de dados da EBSCO

Por fim, a quinta razão, não menos significativa, é a contribuição que esta

pesquisa poderá trazer à toda comunidade de filósofos, teólogos e religiosos

contemporâneos interessados na discussão a respeito do paradoxo existente

entre a onisciência divina e a contingência da vida.

A pesquisa fundamenta-se nos seguintes conceitos: Futuros contingentes

– diz respeito à não-necessidade dos eventos futuros. Trata-se de um problema

lógico-filosófico levantado por Aristóteles; Onisciência divina – diz respeito à

capacidade de Deus em conhecer todas as coisas, desde toda a eternidade.

Trata-se de uma proposição oriunda da Bíblia, tida pelos cristãos como

revelação especial de Deus para a humanidade. Aparentemente, a onisciência

divina constitui uma contradição em relação à contingência da vida. No entanto,

para Boécio, ambos os termos estão longe de anularem-se mutuamente. Para

ele, é possível conciliar ambos. Determinismo – diz respeito ao entendimento de

que se Deus conhece todos os eventos desde toda a eternidade, então tudo já

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está determinado e não há contingência na vida. Em contraposição ao

determinismo está o conceito de liberdade, que por sua vez parece anular toda

e qualquer determinação divina.

A pesquisa tem cunho bibliográfico, baseado na leitura exploratória e

analítica das obras Interpretação, capítulo 9, de Aristóteles, e Consolação, Livro

V, de Boécio.

O primeiro capítulo tratará a respeito de como o futuro foi compreendido

no pensamento grego no período da mitologia até Platão, onde se verifica a

importância dos deuses mitológicos e do mundo das ideias como formas de

compreender o futuro. No segundo capítulo focalizaremos na tratativa de

Aristóteles aos eventos futuros no capítulo 9 da Interpretação, não sem antes

verificar as razões pelas quais seu pensamento distinguiu-se dos seus

antecessores. Por fim, no terceiro capítulo, trataremos especificamente da

intepretação de Boécio do problema dos futuros contingentes de Aristóteles no

Livro V da Consolação, sem deixar de situa-lo em seu próprio contexto biográfico

e literário.

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CAPÍTULO 1 O FUTURO NO PENSAMENTO GREGO:

DA MITOLOGIA A PLATÃO

Embora o objetivo geral desta pesquisa seja compreender como Boécio

interpreta o problema dos futuros contingentes descrito por Aristóteles, convém

demonstrar inicialmente como esse tema foi compreendido e tratado por

pensadores ainda mais antigos. Faremos neste primeiro capítulo uma análise

das concepções de futuro no pensamento mitológico grego, na filosofia dos pré-

socráticos e na filosofia de Platão.

Pensadores antigos, bem antes de Aristóteles, lidaram com o problema

da contingência do futuro. Adivinhos, oráculos, agouros e magias possuem

grande representação nas sociedades antigas, o que demonstra a inquietação e

busca do homem por conhecer e controlar o futuro. Não é nosso objetivo esgotar

o que se pode dizer acerca de como os antigos lidaram com o tema. Por isso,

para o propósito deste estudo, decidimos focalizar nossa atenção na presença

de conceituações relacionadas ao futuro especificamente no pensamento do

homem grego, no período que começa com Homero, por volta do século IX a.

C., até Platão, no século IV a. C., com quem Aristóteles estudou na Academia.

1.1. MITOLOGIA GREGA

O estudo dos mitos antigos é imprescindível para a compreensão do

pensamento e do comportamento do homem grego por volta dos séculos IX a

VII a. C., aproximadamente. Para Brandão (1986, p. 14), “sendo uma fala, um

sistema de comunicação, uma mensagem, o mito é uma como que

metalinguagem, já que é uma segunda língua na qual se fala da primeira”.

Existem diversas teorias a respeito da origem da mitologia, se tais histórias

possuem algum fundamento na realidade, ou se representam apenas o

imaginário do homem grego. Bulfinch (2002, pp. 352-355) apresenta

sinteticamente quatro teorias a respeito da origem dos mitos: a teoria bíblica, de

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acordo com a qual os mitos se originaram nas narrativas das Escrituras; a teoria

histórica, a qual preconiza que as histórias são baseadas em personagens

históricos reais, que receberam acréscimo e embelezamento posterior; a teoria

alegórica, segundo a qual todos os mitos eram alegóricos e simbólicos, que

continham alguma verdade moral, religiosa ou filosófica; e a teoria física, que

defende que os elementos físicos como o ar, o fogo e a água foram objetos de

adoração religiosa e, por isso, as principais divindades apresentadas nos mitos

eram personificações das forças da natureza. Em sua conclusão a esse respeito,

Bulfinch (2002, p. 355) defende uma combinação de fatores:

Todas as teorias acima mencionadas são verdadeiras até certo ponto. Seria, portanto, mais correto dizer-se que a mitologia de uma nação vem de todas aquelas fontes combinadas, e não de uma só em particular. Podemos acrescentar, também, que há muitos mitos originados pelo desejo do homem de explicar fenômenos naturais que ele não pode compreender e que não poucos surgiram do desejo semelhante de explicar a origem de nomes de lugares e pessoas.

Destaco do parágrafo acima a seguinte frase de Bulfinch: “há muitos mitos

originados pelo desejo do homem de explicar fenômenos naturais que ele não

pode compreender”. Dentre as incontáveis experiências do homem antigo que

escapavam de sua capacidade de compreensão, certamente a percepção de

impotência em relação ao futuro estava presente e produzia inquietações. Não

é nosso objetivo fazer um estudo exaustivo da presença das inquietações acerca

do futuro na mitologia antiga. Faremos apenas uma breve explanação acerca da

presença de divindades que de alguma forma se relacionam com a percepção

do futuro na mitologia grega, especificamente. Antes, porém, convém salientar

que as divindades presentes na mitologia grega de alguma forma representam

também aspirações humanas. Nunes (p. 3) afirma que “os deuses gregos eram

retratados como semelhantes aos humanos, porém imunes ao tempo, a doenças

e a feridas” (grifo nosso), o que denota o temor humano em relação ao futuro.

A fim de demonstrar a presença das inquietações acerca do futuro no

pensamento do homem grego nos primeiros séculos da antiguidade clássica,

tomaremos como exemplo as seguintes divindades mitológicas:

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Destaca-se, primeiramente, Chronos. Esse deus era também chamado

de aeon, cuja tradução literal é “eternidade”. Ele era, na mitologia grega, a

personificação do tempo eterno e imortal que detinha o poder de determinar o

destino dos deuses imortais.

Em segundo lugar, destaca-se Proteu, filho de Netuno, uma divindade

marinha. Na mitologia grega, Proteu é considerado “sábio do mar por sua

sabedoria e conhecimento dos acontecimentos futuros” (BULFICH, 2002, p.

213). Conta-se que os homens eram atraídos a ele a fim de conhecer o destino,

porém, por ele não gostar de revelar os acontecimentos futuros, quando um

homem se aproximava ele fugia ou se transformava num monstro; apenas aos

homens corajosos que passavam por esse teste, Proteu anunciava a verdade

acerca do futuro. Ao fazer alusão ao mito de Aristeu, Bulfinch (2002, p. 229)

refere-se a uma fala de sua mãe Cirene:

Há um velho profeta chamado Proteu, que mora no mar e é favorito de Netuno, cujo rebanho de focas apascenta. Nós, as ninfas, dedicamos-lhe grande respeito, pois ele é um sábio, que conhece todas as coisas, passadas, presentes e futuras. Ele pode dizer-te, meu filho, a causa da mortalidade de todas as abelhas e o meio de remediá-la. Não o fará, porém, voluntariamente, por mais que lhe implores. Deves obrigá-lo a falar pela força. Se te apoderares dele e o acorrentares, ele responderá às tuas perguntas a fim de ser posto em liberdade, pois, apesar de todas as suas artes, não conseguirá escapar, se o prenderes em cadeias apertadas.

Em terceiro lugar, destacam-se Melâmpus e seu neto Ídmon com dom de

adivinhação (KURY, 2008, pp. 11, 56). Segundo Bulfinch (2002, p. 234),

conforme a mitologia grega, Melâmpus foi o primeiro mortal dotado de poderes

proféticos, depois de uma experiência de ser lambido nos ouvidos pelas

serpentes que havia alimentado cuidadosamente desde que eram filhotes.

Destaca-se, ainda, a divindade mitológica grega chamada Tique. Tique

era reconhecida como deusa da fortuna e da prosperidade; atribuía-se a ela o

poder de determinar o destino e a sorte. Tique ocupava lugar importante na

adoração e no modo grego de compreender o mundo em razão dos infortúnios

destituídos de significado e da percepção da instabilidade na vida humana.

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Segundo Ménard (1991, p. 113), a presença de Tique na mitologia grega não se

deu por meio de uma fábula em particular, mas sim por meio da arte, onde ora

aparece segurando um leme, representando seu governo sobre o destino do

mundo, e ora aparece segurando uma cornucópia, representando prosperidade.

Tique é mencionada como “deusa da Fortuna” nas Escrituras. A menção foi feita

num oráculo do profeta Isaías (65.11), que corresponde a um período próximo à

segunda metade do século VIII a. C. Na referida passagem, a deusa Fortuna é

adorada por hebreus negligentes na adoração a Yahweh1 (HILL e WALTON,

2007, p. 459).

Por fim, destacam-se as divindades da mitologia grega mais

emblemáticas a respeito da manipulação do destino: as Moiras. O destino dos

deuses e dos homens era determinado, na mitologia grega, por três irmãs: Cloto,

Láquesis e Átropos. Referindo-se a elas, Bulfinch (2002, p. 15) afirma: “Sua

ocupação consistia em tecer o fio do destino humano e, com suas tesouras,

cortavam-no, quando muito bem entendiam”. Nos textos mitológicos ocorre

também a palavra Moira, no singular, como designativo do destino. Brandão

(1986, p. 141) esclarece que, em tese, o destino, isto é, a Moira, “é fixo, imutável,

não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses”. Contudo, acrescenta que

em alguns textos parece existir certa identificação da Moira com Zeus. Nesse

sentido, Zeus poderia, se quisesse, alterar a Moira.

Um estudo específico acerca das inquietações relacionadas ao futuro no

pensamento grego representadas nos textos mitológicos seria certamente uma

contribuição significativa aos estudos contemporâneos do início da antiguidade

clássica.

A mitologia grega nos fornece subsídios para o conhecimento do

pensamento do homem grego através dos séculos IX, VIII e VII a. C.,

aproximadamente. Por evidente, não temos ainda nesse período uma filosofia

grega propriamente dita. Somente no início do século VI a. C.,

1 Esse nome […] é o nome pessoal do Deus de Israel. […] Trata-se distintivamente do nome do Deus vivo da revelação bíblica. (DOUGLAS (Org.), 1981, p. 405)

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aproximadamente, a filosofia grega começa a se desenvolver com os pré-

socráticos. A seguir, faremos uma breve introdução a respeito dos filósofos pré-

socráticos e daremos especial atenção ao pensamento de Heráclito de Éfeso e

Parmênides de Eleia.

1.2. PRÉ-SOCRÁTICOS

Os pré-socráticos são tradicionalmente reconhecidos como os primeiros

filósofos gregos. Eles romperam com a visão mítica da realidade e procuraram

compreender a origem e o funcionamento do mundo natural. São, por isso,

tradicionalmente reconhecidos como filósofos naturalistas e fisiólogos. Enquanto

a mitologia consistiu num conhecimento relativamente fixo, sem possibilidade de

construção intelectual e progresso científico, com os pré-socráticos, e mais

especificamente com Tales de Mileto, inaugura-se um período propício a

grandes descobertas e desenvolvimento do conhecimento:

Um dos aspectos fundamentais da mentalidade científico-filosófica inaugurada por Tales consistia na possibilidade de reformulação e correção das teses propostas. A estabilidade dos mitos arcaicos e à estagnação das esparsas e assistemáticas conquistas da ciência oriental, os gregos, a partir de Tales, propõem uma nova visão de mundo cuja base racional fica evidenciada na medida mesma em que ela é capaz de progredir, ser repensada e substituída (SOUZA (Org.), 2000, p. 19).

Tales de Mileto foi um dos principais filósofos da escola Jônica,

juntamente com Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de

Éfeso. Na escola Jônica, destacava-se a busca por um primeiro princípio natural

que explicasse a origem de todas as coisas, bem como pela causa das

mudanças percebidas no mundo. Essa preocupação essencialmente

cosmológica constituiu a força motriz para o desenvolvimento intelectual. Os

filósofos da escola Jônica chegaram a conclusões diferentes a respeito do

elemento primeiro que principiou todas as coisas, mas tinham em comum a

concepção do mundo como algo em movimento. Dentre os filósofos da escola

jônica e, pode-se dizer, dentre os pré-socráticos, destaca-se Heráclito de Éfeso

(JAPIASSÚ e MARCODES, 2001, p. 91).

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1.2.1. Heráclito de Éfeso

Heráclito nasceu em Éfeso, uma cidade da Ásia Menor, na atual Turquia,

por volta do ano 535 a. C., cerca de 150 anos antes de Aristóteles. Pensadores

anteriores a Heráclito, como Anaximandro e Anaxímenes, haviam percebido que

na natureza as coisas não permanecem inalteradas, isto é, tudo coexiste em

uma unidade dentro de um processo de mudanças que ocorrem em um

dinamismo constante. Porém, Heráclito é o primeiro a lidar com essa

constatação de modo abstrato ao propor uma resposta filosófica.

A noção de unidade fundamental, subjacente à multiplicidade aparente, já estava expressa pelo menos desde Anaximandro de Mileto. A novidade trazida por Heráclito — e que lhe permite julgar tão duramente seus antecessores e contemporâneos — está, na verdade, em considerar aquela unidade como uma unidade de tensões opostas (SOUZA (Org.), 2000, p. 30).

À luz dos fragmentos do seu pensamento, citados por filósofos posteriores

como Platão e Aristóteles, podemos dizer que Heráclito compreendeu o universo

a partir de uma visão dialética, no sentido de que tudo na natureza ocorre a partir

da tensão entre forças contrárias. O movimento, segundo seu pensamento,

causado pelo conflito entre opostos, é o que deve constituir a base de

compreensão da realidade. Dessa forma, o equilíbrio e a harmoniosa

transformação das coisas são resultados do movimento dos opostos. Para

Heráclito, a realidade, incluindo obviamente os acontecimentos futuros, é

resultado da interação de forças opostas (MARCONDES, 2000, pp. 11-17).

Heráclito ficou conhecido como filósofo do “devir”. Mora (1978, p. 69)

atribui o seguinte significado ao “devir”:

Este termo significa o processo do ser ou, se se quiser, o ser como processo. Por isso se contrapõe habitualmente o devir ao ser. Designa todas as formas do chegar a ser, do ir sendo, do mudar-se, do acontecer, do passar, do mover-se, etc.

No pensamento de Heráclito, nada é, mas tudo virá a ser. A perspectiva

de futuro em seu pensamento está sempre presente; não propriamente o futuro

como um evento imóvel, fixo e determinado, mas como um fluir em movimento

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eterno que não pode ser previsto nem determinado. Esse conceito está

especialmente presente em pelo menos dois dos fragmentos preservados por

pensadores posteriores, os fragmentos 18 e 52.

O fragmento 18 foi citado por Clemente de Alexandria (150 – 215 d. C.)

em sua obra Tapeçarias (Stromata) (II, 17). Conforme a tradução de Souza, o

fragmento versa o seguinte: “Se não esperar o inesperado não se descobrirá,

sendo indescobrível e inacessível”2. O mesmo fragmento aparece na compilação

de Marcondes (2000, p. 15) com a seguinte tradução menos literalista, portanto,

mais compreensível: “Quem não espera, não encontrará o inesperado, que é

inexplorável e inacessível”.

Nota-se neste fragmento que Heráclito preconizava a necessidade do

homem “esperar” para que pudesse encontrar ou descobrir algo. Certamente há

aqui uma referência ao futuro. Se isto estiver correto, no pensamento de

Heráclito, o futuro é algo “inesperado”, “inexplorável” e “inacessível”. O futuro é

considerado “inesperado” porque traz surpresas, ao qual é impossível se

preparar, dada a sua imprevisibilidade, e também é impossível de se determinar;

é também “inexplorável” e “inacessível” porque não existem recursos que

ofereçam a possibilidade de conhece-lo.

O fragmento 52 foi citado por Hipóclito de Roma (170 – 236 d. C.) em sua

obra Refutação (IX, 9). Conforme a tradução de Souza, o fragmento versa o

seguinte: “Tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado”3. O mesmo

fragmento aparece na compilação de Marcondes (2000, p. 16) com a seguinte

tradução menos literalista, portanto, mais compreensível: “O tempo é uma

criança que brinca jogando dados: governo de criança”.

Nota-se no fragmento 52 que Heráclito considerava o tempo como algo

imprevisível, fortuito e contingente, que não pode ser dominado ou determinado

pelo homem. Destaca-se, em primeiro lugar, o uso da palavra tempo (aion).

2 HERÁCLITO. Fragmentos (Sobre a Natureza). Trad. de José Cavalcante de Souza. Disponível em <https://www.dropbox.com/sh/jxfjnz5bipxbbpj/AACFzr0sYZB5bYS0k2AWU46Ea?dl=0>. Acesso em: 06 agosto 2018. 3 Idem.

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Tempo neste fragmento não significa exatamente futuro. Certamente, o

significado de aion está relacionado ao “movimento constante e irreversível

através do qual o presente se torna passado, e o futuro, presente” (JAPIASSÚ e

MARCONDES, 2001). Em segundo lugar, destaca-se a concepção disso que

Heráclito chama de tempo como um jogo de criança. A tradução de Marcondes

fornece a ideia de um jogo de dados, associando o futuro a um acaso

absolutamente impossível de ser conhecido previamente e de ser determinado

antecipadamente. Em terceiro lugar, destaca-se a expressão “de criança o

reinado” ou “governo de criança”. Aqui, amplia-se a ideia, atribuindo aos eventos

temporais um aspecto de infantilidade, ou seja, as coisas acontecem de maneira

ilógica e incongruente, sem necessariamente apresentar nexo com os eventos

precedentes.

Em oposição à concepção da escola Jônica a respeito das mudanças, e

mormente à de Heráclito em relação ao eterno “devir”, esteve a escola pré-

socrática Eleática, cujo precursor, Xenófanes, teve suas ideias sustentadas e

expandidas por Parmênides.

1.2.2. Parmênides de Eleia

Parmênides nasceu em Eleia, cerca de duas décadas depois de Heráclito;

viveu no final do século VI a. C. e início do século V a. C. Juntamente com

Heráclito, Parmênides representa

um segundo momento da filosofia pré-socrática, em que o pensamento já é menos naturalista e começa a tender para a abstração conceitual que se desenvolverá em seguida, no período clássico, com Sócrates, Platão e Aristóteles (MARCONDES, 2000, p. 11).

Tudo o que se pode conhecer acerca do pensamento de Parmênides é

apreendido do seu poema Sobre a Natureza e de fragmentos citados por

filósofos posteriores. O referido poema versa basicamente a respeito do caminho

da verdade e do caminho da opinião (MARCONDES, 2000, p. 12).

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O princípio do movimento foi por Parmênides rejeitado como mera ilusão.

Em sua concepção, os sentidos não são capazes de fornecer o conhecimento

do Ser, isto é, daquilo que de fato é. Para ele, apenas o pensamento racional é

a via segura para o verdadeiro conhecimento, em contraste com a opinião.

Dessa forma, Parmênides criou uma teoria lógico-ontológica, sustentando que

ao seguir pela via da razão é possível compreender que o que é, é, e não pode

deixar de ser, e que o não-ser não é; ao passo que pela via dos sentidos, não se

pode chegar ao conhecimento da verdade e à certeza (SOUZA (Org.), 2000, p.

26). Segue abaixo o trecho do poema Sobre a Natureza, no qual Parmênides

expõe sua concepção acerca do duplo caminho de obtenção de conhecimento,

e da diferença entre ambos:

A deusa acolheu-me afável, tomou-me a direita em sua mão e dirigiu-me a palavra nestes termos: Oh, jovem, a ti, acompanhado por aurigas4 imortais, a ti, conduzido por estes cavalos à nossa morada, eu saúdo. Não foi um mau destino que te colocou sobre este caminho (longe das sendas mortais), mas a justiça e o direito. Pois deves saber tudo, tanto o coração inabalável da verdade bem redonda, como as opiniões dos mortais, em que não há certeza. Contudo, também isto aprenderás: como a diversidade das aparências deve revelar uma presença que merece ser recebida, penetrando tudo totalmente.

E agora vou falar; e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação concebíveis. O primeiro [diz] que [o ser] é e que o não-ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, é, e que o não-ser é necessário; esta via, digo-te é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é – isto é impossível –, nem expressá-lo em palavra (MARCONDES, 2000, pp. 12-13).

Na concepção de Parmênides, a mudança percebida pelos sentidos é

apenas aparente, pois o que é, não deixa de ser, é imutável, imperecível,

inabalável e eterno. Ele compreende que o Ser “jamais foi nem será, pois é, no

instante presente, todo inteiro, uno, contínuo” (MARCONDES, 2000, p. 13).

Dessa forma, não se pode associar categorias temporais como passado ou

futuro ao Ser. O Ser não tem passado, pois passado seria aquilo que não existe

4 indivíduo que guiava os carros de corrida nos jogos antigos.

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mais, nem futuro, pois futuro seria o que ainda não existe. O Ser é presente,

eterno – sem início e sem fim –, todo igual, completo e perfeito.

Nessa perspectiva, os eventos não consistem em mudanças ou

movimentos, mas consequências de uma ordem própria do mundo, ou seja, os

eventos são submissos à necessidade, ao destino e à justiça, conforme

esclarece Spinelli (2012, p. 253).

Parmênides sustenta, por exemplo, que tudo está submisso à necessidade (anágké), ao destino (moira) e à justiça (dikê) e, portanto, defende um princípio de ordem própria do mundo; esse princípio se confunde com a própria necessidade, com o destino (ou a lei) e com a justiça (ou o direito). A afirmação, do mesmo modo, de que “o universo é um e eterno”, já era um princípio muito difundido e amplamente aceito no interior da Filosofia Pré-Socrática.

Parece razoável concluir que, na concepção de Parmênides, o futuro não

é algo que virá a ser, antes, é o ser enquanto ser, regido pela necessidade, pelo

destino e pela justiça. Dessa forma, a única certeza é que o que é continuará a

ser a “realidade única, subjacente à pluralidade dos fenômenos” (MARCONDES,

2000, p. 11), sendo toda e qualquer mudança mera aparência.

Seguindo nosso objetivo de investigar as concepções gregas que se

relacionam ao conceito de futuro entre os filósofos anteriores a Aristóteles, tendo

já visto o modo mitológico e pré-socrático de observar o tema, analisaremos

agora o pensamento de Platão.

1.3. PLATÃO

Platão nasceu em Atenas e viveu entre 428 a. C. e 348 a. C.,

aproximadamente. Russell (2002, p. 109) afirma que, em comparação com

Aristóteles, “foi Platão o que teve maior influência sobre as épocas posteriores”.

Como forma de respaldar sua afirmação, Russel aponta duas razões. A primeira

é que “o próprio Aristóteles é um produto de Platão”; e a segunda é que “a

teologia e a filosofia cristãs, ao menos até o século XIII, foram muito mais

platônicas do que aristotélicas”.

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Com o propósito de identificar no pensamento platônico bases que

possam indicar conceituações relacionadas ao futuro, consideramos pertinente

apontar quais influências filosóficas contribuíram na formação do pensamento

platônico, e analisar uma das últimas obras platônicas, Timeu, onde está descrita

sua concepção cosmológica.

1.3.1. Influências

Quatro fontes exerceram grande influência na filosofia de Platão, são elas:

Sócrates, Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eleia e Pitágoras (RUSSELL, 2002,

p. 109). Cada uma dessas fontes liga-se a períodos específicos de sua vida,

embora não haja consenso na definição das fases do pensamento de Platão

(MARCONDES, 2000, p. 19). Na juventude, Platão foi discípulo de Sócrates

(470-399 a. C.), a respeito do qual refere-se como “o mais sábio e o mais justo

dos homens” (SOUZA (Org.), 2000, p. X).

Ainda na juventude, Platão teve contato com as ideias de Heráclito, por

meio de um homem chamado Crátilo. No parágrafo abaixo podemos observar

que, apesar desse contato, Platão não absorveu o conceito como sustentado por

Crátilo, passando a inclinar-se para o que defendia Parmênides:

Segundo o depoimento de Aristóteles, Platão, na juventude, teria conhecido Crátilo, que, adotando as idéias de Heráclito de Éfeso sobre a mudança permanente de todas as coisas – e certamente interpretando de forma parcial e empobrecida a tese hereclítica –, afirmava a impossibilidade de qualquer conhecimento estável. Os dados dos sentidos teriam validade instantânea e fugaz, o que tornava inútil e ilegítima qualquer afirmativa sobre a realidade: quando se tentava exprimir algo, este já deixara de ser o que parecia no momento anterior. Na versão apresentada por Crátilo, o incessante movimento das coisas tornava-se um empecilho à ciência e à ação, que não podiam dispensar bases estáveis. Buscando justamente estabelecer esses fundamentos seguros para o conhecimento e para a ação, Platão desenvolverá, na fase inicial de sua filosofia, teses que tendem a sustentar a realidade no intemporal e no estático (CIVITA (Ed.), 1983, p. X).

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Após a morte de Sócrates, Platão sai de Atenas e passa por lugares onde

recebe outras influências, especialmente dos pitagóricos:

Depois da morte de Sócrates, disperso o núcleo que se congregara em torno do mestre, Platão viaja. Visita Megara, onde Euclides, que também pertencera ao grupo socrático, fundara uma escola filosófica, vinculando socratismo e eleatismo. Vai ao sul da Itália (Magna Grécia), onde convive com Arquitas de Tarento. O famoso matemático e político pitagórico dá-lhe um exemplo vivo de sábio-governante, que ele depois apontará, na República, como solução ideal para os problemas políticos. Na Sicília, em Siracusa, conquista a amizade e a inteira confiança de Dion, cunhado do tirano Dionísio. Essa ligação com Dion – talvez o mais forte laço afetivo da vida de Platão – representa também o início de reiteradas tentativas para interferir na vida política de Siracusa. Platão visita ainda o norte da África, mas de sua ida ao Egito quase nada se sabe com segurança. Certo é que, em Cirene, inteirou-se das pesquisas matemáticas desenvolvidas por Teodoro (CIVITA (Ed.), 1983, p. XI).

Nesse período, que durou certa de uma década, Platão deu voz a seu

mestre Sócrates, por meio de diálogos, chamados “diálogos socráticos”. Essa

pode ser considerada a primeira fase do pensamento platônico, onde seu

pensamento se confunde com o pensamento de Sócrates (CIVITA (Ed.), 1983,

p. XI).

Ao retornar a Atenas, por volta de 387 a. C., Platão funda a Academia,

“sua própria escola de investigação científica e filosófica” (CIVITA (Ed.), 1983, p.

XII). Uma segunda fase é inaugurada nesse período, pois Platão começa a se

afastar da filosofia de seu mestre Sócrates e desenvolve sua própria filosofia, de

certa forma conciliando os antagonismos dos pensadores pré-socráticos.

Marcondes (2000, p. 19) resume bem as fontes de onde Platão absorveu

conceitos para formação de sua própria filosofia.

Além do pensamento de Sócrates, Platão foi também fortemente marcado pela filosofia de Heráclito e de Parmênides, procurando conciliar a oposição entre ambos, bem como pelos pitagóricos, escola com a qual entrou em contato em sua primeira viagem à Sicília, logo após a morte de Sócrates.

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Os “diálogos de transição”, chamados assim por representarem um

segundo momento no pensamento filosófico de Platão, apresentam a doutrina

das ideias ou doutrina das formas, que seria ainda mais bem desenvolvida

posteriormente. Basicamente, as ideias são “formas incorpóreas e

transcendentes que seriam os modelos dos objetos sensíveis” (CIVITA (Ed.),

1983, p. XII). O pensamento de Platão não ficou circunscrito ao “mundo das

ideias”; ao longo de toda a sua vida teve grande preocupação com respeito à

política. Sua preocupação política não só foi manifesta em seus escritos, mas

também nas tentativas de aplicar suas teorias em Siracusa; tentativas não bem-

sucedidas. Mesmo depois de grandes frustrações no campo da política, o

“mundo de ideias” continuou presente no pensamento platônico (CIVITA (Ed.),

1983, p. XIV).

A terceira fase no pensamento platônico apresenta-se em suas últimas

obras. “Manifestando uma vida espiritual inquieta, em reelaboração permanente,

as últimas obras de Platão levantam novos problemas ou reexaminam os antigos

sob outros ângulos” (CIVITA (Ed.), 1983, p. XIV). Uma das obras dessa última

fase do pensamento platônico é Timeu, na qual evidencia-se claramente as

diversas influências recebidas de seus antecessores, e onde é descrita a sua

concepção acerca da formação do tempo.

1.3.2. Timeu

Timeu é uma das últimas obras escritas por Platão. A obra começa com

um diálogo entre Sócrates e Timeu, que inclui também Crítias e Hermócrates,

mas logo torna-se um discurso, onde Timeu fala sobre a origem do cosmos e a

natureza do homem. Não se faz necessário para o fim deste estudo um

arrazoado pormenorizado da referida obra. Busca-se nela, especificamente,

conceituações que possam esclarecer o pensamento platônico acerca dos

eventos futuros. Para isso, sem necessariamente arrazoar sobre a obra de modo

sequencial, trataremos inicialmente das diversas influências pré-socráticas no

pensamento cosmológico platônico; depois, analisaremos a descrição acerca da

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formação do tempo; e, por fim, faremos alguns apontamentos com respeito às

entidades Intelecto e Necessidade, incluídas no discurso.

Comecemos por notar as diversas influências pré-socráticas no

pensamento platônico. Rodolfo Lopes, na introdução de sua tradução da obra

Timeu, afirma que:

o Timeu surge como resposta ou proposta de substituição das abordagens naturalistas a que, segundo Platão, se tinham dedicado os pré-socráticos. Inscreve-se, pois, nessa tradição como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade (PLATÃO, 2011, p. 24).

Lopes compreende que o Timeu não foi escrito por Platão com o objetivo

de colocar-se como sucessor dos pré-socráticos. Antes, como uma superação

ao que seus antepassados propuseram quanto à origem do universo e sua

ordem. Todavia, não é difícil perceber a presença de conceituações

parmenidianas, heraclíticas e pitagóricas na obra. Sobre isto, Lopes esclarece

que

A relação de Platão com esta tradição [pré-socrática] é quase sempre ambígua: se, por um lado, a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes; por outro, importa dela vários elementos cuja autoria propositadamente silencia (PLATÃO, 2011, p. 23).

Aquilo que já expusemos em tópicos anteriores acerca da teoria do Ser

de Parmênides e da teoria do “devir” de Heráclito de Éfeso aparecem

notoriamente no pensamento platônico descrito no Timeu. No preambulo de seu

discurso, Timeu pontua:

Na minha opinião, temos primeiro que distinguir o seguinte: o que é aquilo que é sempre e não devém, e o que é aquilo que devém, sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão, pois é imutável. Ao invés, o segundo é objecto da opinião acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devém e se corrompe, não pode ser nunca (PLATÃO, 2011, pp. 93-94).

Toda a teoria cosmológica de Platão descrita no Timeu, como pode ser

visto no parágrafo acima, parte da combinação da filosofia parmenidiana e

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heraclítica. O Ser de Parmênides relaciona-se com o mundo das ideias de

Platão. Na cosmologia do Timeu, o demiurgo baseia-se num arquétipo imutável,

perfeito e eterno (o mundo das ideias) para criar, a partir da matéria caótica, o

universo. Este universo, criado imperfeito e mutável, é um reflexo do arquétipo

perfeito, por isso apresenta bondade e beleza. O mundo “deveniente” de Platão,

criado por demiurgo, relaciona-se com a filosofia do devir de Heráclito de Éfeso,

na qual a realidade é conhecida a partir da compreensão das mudanças e dos

movimentos. Até esse ponto, a cosmologia de Platão revela, de fato, uma

espécie de via média entre dois extremos filosóficos das escolas eleática e

jônica. Contudo, além das duas fontes, nota-se também a influência pitagórica.

Os quatro elementos materiais a partir dos quais demiurgo criou o mundo,

a saber, fogo, água, terra e ar, foram devidamente organizados sob princípios

matemáticos de proporção. Tais princípios não só estiveram presentes na

criação, como também permaneceram vigentes no funcionamento do mundo.

Timeu empreende longa argumentação acerca das dimensões matemáticas

presentes na criação do demiurgo (PLATÃO, 2011, pp. 140ss). Evidentemente,

isso se deve à influência pitagórica que Platão recebeu. Até mesmo ao período

de vida do homem, Platão associa conceitos geométricos:

É que a constituição dos seres-vivos, em todo o conjunto das espécies, tem uma duração de vida pré-definida e cada ser-vivo nasce com a existência que lhe foi destinada, à parte as impressões produzidas pela Necessidade; pois desde a origem de cada um, os triângulos conseguem guardar a propriedade que possuem de se manterem constituídos até um determinado tempo, altura além da qual a vida não pode de modo algum prolongar-se (PLATÃO, 2011, p. 205).

Seguindo adiante em nosso propósito, a fim de compreender o

pensamento platônico acerca dos eventos futuros, não podemos deixar de

pontuar também a concepção de duas entidades em operação na geração do

cosmos. Na cosmologia platônica, demiurgo descobriu que o mundo seria mais

belo se tivesse um Intelecto. Para isso, criou o mundo com uma alma inteligente:

Reflectindo, descobriu que, a partir do que é visível por natureza, de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto, e que seria impossível

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que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma. Por meio deste raciocínio, fabricou o mundo, estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo, realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza. Assim, de acordo com um discurso verosímil, é necessário dizer que este mundo, que é, na verdade, um ser dotado de alma e de intelecto, foi gerado pela providência do deus (PLATÃO, 2011, p. 98).

Ademais, Platão inclui também a Necessidade em sua teoria cosmológica,

que, combinada com o Intelecto, gerou o mundo:

O que acabámos de passar em revista, à excepção de pequenos aspectos, ilustra o que foi fabricado pelo Intelecto. É necessário que justaponhamos ao discurso aquilo que foi gerado pela Necessidade. De facto, a geração deste mundo resulta de uma mistura engendrada por uma combinação de Necessidade e Intelecto. Mas, como o Intelecto dominava a Necessidade, persuadindo-a a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes, foi deste modo (através da cedência da Necessidade a uma persuasão racional) que o universo foi constituído desde a sua origem. Portanto, se alguém quiser dizer como foi realmente gerado, de acordo com estes pressupostos, terá que incluir também a espécie da causa errante, tanto quanto a sua natureza o admita (PLATÃO, 2011, p. 129).

Lopes reconhece um modelo dualista na distinção entre as entidades

Intelecto e Necessidade. Para ele, “o Intelecto representa a vertente teleológica

e inteligente”, e “a Necessidade corresponde à corpórea e irracional”, as quais

“determinam as duas faces do devir” (PLATÃO, 2011, p. 37). Nessa perspectiva,

os eventos não só criativos, mas também cotidianos no mundo criado obedecem

tanto a uma causa intelectiva, que denota propósito e que segue uma lógica,

como também uma causa errante, que denota não só imprevisibilidade, mas

também irracionalidade e intemperança.

Por fim, tomando por base as três influências primordiais (parmenidiana,

heraclítica e pitagórica) na cosmologia platônica retratada no Timeu, e o conceito

de Intelecto e Necessidade, passemos agora a analisar a descrição da formação

do tempo. Essa análise certamente nos aproximará ainda mais do pensamento

platônico acerca dos eventos futuros.

A certa altura do seu discurso, Timeu narra a satisfação do demiurgo na

criação do mundo após ter conferido a ele uma alma dotada de inteligência. A

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criação, naquele momento, já era “uma representação dos deuses eternos,

animada e dotada de movimento”. Essa satisfação por sua realização, no

entanto, não levou demiurgo a considerar concluída a obra. Tão logo pensou

num meio de tornar sua obra ainda mais semelhante ao arquétipo, ou mundo

das ideias, em que se baseara. Demiurgo não poderia criar algo que fosse

eterno, imutável e inalterável como o arquétipo, pois dessa forma criaria o próprio

arquétipo. Por isso, “pensou em construir uma imagem móvel da eternidade”. O

mundo criado por demiurgo, diferentemente do arquétipo eterno e imutável, é

um mundo que muda, mas não de qualquer modo. “Quando ordenou o céu,

construiu, a partir da eternidade que permanece uma unidade, uma imagem

eterna que avança de acordo com o número; é aquilo a que chamamos tempo”.

À mudança do mundo, demiurgo ordenou uma lógica matemática. O resultado

dessa imitação móvel da eternidade foi a criação do tempo. Tempo, nessa

concepção, é o movimento, a mudança do mundo. Na cosmologia platônica, o

tempo existe porque as coisas mudam. A lógica matemática que rege o

movimento do céu é também originadora da divisão temporal: “Os dias, as noites,

os meses e os anos não existiam antes de o céu ter sido gerado, pois ele

preparou a geração daqueles ao mesmo tempo que este era constituído”

(PLATÃO, 2011, p. 109).

Timeu, refletindo o pensamento platônico, admite que ““o que era” e “o

que será” são modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma

incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignorância” (PLATÃO, 2011, p. 110).

Dessa forma, a concepção de passado e futuro é produto da ignorância humana,

pois não reflete a realidade do ser eterno. Esse conceito é ampliado nesses

termos:

Dizemos que “é”, que “foi” e que “será”, mas “é” é a única palavra que lhe é própria de acordo com a verdade, ao passo que “era” e “será” são adequadas para referir aquilo que devém ao longo do tempo – pois ambos são movimentos. No entanto, aquilo que é sempre imutável e imóvel não é passível de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que é agora nem no que será no futuro), bem como em nada daquilo que o devir atribui às coisas que os sentidos trazem, já que elas são modalidades devenientes do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo com o número. Além

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destas, há ainda as seguintes: o que aconteceu “é” o que aconteceu, o que está a acontecer “é” o que está a acontecer, o que acontecerá “é” o que acontecerá, e o que não é “é” o que não é; sendo que nenhuma destas afirmações é exacta (PLATÃO, 2011, p. 110).

Podemos concluir a partir do exposto que uma conceituação do

pensamento platônico acerca dos eventos futuros deve conter a realidade do

mundo das ideias, a deveniência do mundo, a noção de regência de uma alma

inteligente em concomitância com um princípio de irracionalidade, ao mesmo

tempo em que deve se admitir que qualquer afirmação acerca do futuro não é

verdadeira, mas sim apenas uma adequação para referir-se a algo que é apenas

uma aproximação imperfeita do real. Dito isto, parece correta a seguinte

proposição de Japiassú e Marcondes (2001, p. 151):

Toda a doutrina de Platão pode ser interpretada como uma crítica em relação ao dado sensível, social ou político, e com uma exortação a transformá-lo se inspirando nas idéias, cuja ação (cognitiva, moral e política) deve reproduzir, o mais fielmente possível, a ordem perfeita no mundo do futuro.

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CAPÍTULO 2 OS FUTUROS CONTINGENTES

NO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES

Após a análise introdutória acerca de como o futuro foi tratado antes de

Aristóteles, vamos, agora, em primeiro lugar, recuperar aspectos importantes de

sua vida que o distinguem dos pensadores precedentes e que, de certa forma,

justificam o seu interesse pelo assunto e também esclarecem a razão pela qual

o tema foi compreendido e tratado da forma como ele fez.

Em segundo lugar, vamos analisar brevemente a obra de Aristóteles, o

Corpus aristotelicum, para que possamos perceber com maior profundidade

como seu pensamento com respeito aos futuros contingentes foi construído.

Daremos atenção maior à análise da obra Sobre a Interpretação. Nesta obra,

Aristóteles trata de como os pensamentos são expressos em proposições

faladas e escritas, o que levará, naturalmente, do ponto de vista aristotélico, à

expressão falada e escrita de pensamentos acerca do futuro e sua lógica. Nessa

obra, portanto, é onde está localizada a descrição e a tratativa filosófica de

Aristóteles a respeito dos futuros contingentes.

Por fim, focaremos na análise do capítulo 9 da obra Sobre a Interpretação,

capítulo este que trata especificamente do tema em tela. Será nosso propósito

expor o tema tratado filosoficamente por Aristóteles, para depois avaliarmos a

interpretação de Boécio ao tema.

Com base no exposto no primeiro capítulo, podemos concluir que

Aristóteles não é inovador ao tratar acerca do futuro. De uma forma ou de outra,

na mitologia grega, na filosofia pré-socrática e na filosofia platônica encontramos

tentativas de explicar a origem e o funcionamento do cosmos, onde se inclui o

aspecto temporal, e mais especificamente conceituações acerca do futuro. De

fato, entre os pensadores gregos anteriores a Aristóteles, a imprevisibilidade e

contingência do futuro foi um problema; a solução mitológica foi atribuir aos

deuses o poder de determina-lo; os pré-socráticos resolveram-no ou

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concebendo as mudanças no mundo como um movimento constante

absolutamente indeterminado, ou concebendo a realidade como um Ser eterno

regido pela necessidade, pelo destino e pela justiça; e, Platão o resolveu

concebendo o tempo como o movimento do mundo, regido pelo Intelecto e pela

Necessidade, que reflete de modo imperfeito a eternidade e a perfeição do

mundo das ideias.

Como vimos, Aristóteles não foi o primeiro a propor uma solução ao

problema do futuro; foi sim o primeiro a tratar do futuro com uma abordagem

estritamente lógica-filosófica.

Tendo em vista que nenhum pensamento passa a existir num vácuo

histórico, precisaremos, antes de tudo, resgatar pontos específicos da vida e da

obra de Aristóteles, para que possamos definir, pelo menos com o mínimo de

precisão, o problema em tela. Os objetivos específicos, portanto, são três:

apontar informações da vida de Aristóteles e de eventos históricos periféricos

que influenciaram seu pensamento e contribuíram em alguma medida com a sua

obra; descrever em linhas gerais o Corpus aristotelicum – especificamente o

Sobre a Interpretação, a segunda obra do Organon; e, por fim, analisar em

profundidade a descrição e a solução de Aristóteles ao problema dos futuros

contingentes constantes no capítulo 9 da Interpretação.

2.1. A VIDA DE ARISTÓTELES

Vejamos, em primeiro lugar, aspectos pertinentes da vida de Aristóteles

em sua relação com alguns eventos históricos periféricos que influenciaram seu

pensamento e contribuíram em alguma medida para a formação de sua obra.

Aristóteles nasceu em 384 a. C., em uma cidade chamada Estagira, na

região de Calcídia. Apesar de ter sido localizada à distância de Atenas e de estar

sob a regência da Macedônia, Estagira era uma cidade grega, cujo idioma oficial

era o grego. A vida e a obra de Aristóteles apresentarão em alguma medida sua

vinculação à cultura helênica e à política da Macedônia. O interesse de

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Aristóteles por pesquisas no campo na biologia foi formado em sua base familiar.

“A família de Aristóteles estava tradicionalmente ligada à medicina”, por isso, “Ao

ingressar na Academia platônica […], Aristóteles trazia como herança de seus

antepassados, acentuado interesse pelas pesquisas biológicas” (CIVITA (Ed.),

1972, pp. 66-67). Em sua juventude, por volta do ano 366 a. C., Aristóteles saiu

da Macedônia e se dirigiu a Atenas, o centro intelectual e artístico da Grécia

naquele período. A cultura da cidade representava oportunidades de ascensão

por meio dos estudos para os jovens.

Havia na Grécia, no século IV a. C., duas instituições de ensino para as

quais se dirigiam os jovens. No parágrafo a seguir, são indicadas a escola de

Isócrates e a escola de Platão, chamada Academia, e suas características

principais:

Naquela época duas grandes instituições educacionais disputavam em Atenas a preferência dos jovens que, através de estudos superiores, pretendiam se preparar para exercer com êxito suas prerrogativas de cidadãos e ascender na vida pública. De um lado, Isócrates, seguindo a trilha dos sofistas, propunha-se a desenvolver no educando a aretê política – ou seja, a “virtude” ou capacitação para lidar com os assuntos relativos à polis – transmitindo-lhe a arte de “emitir opiniões prováveis sobre coisas “úteis”. […] Ao contrário de Isócrates, Platão ensinava que a base para ação política – como aliás para qualquer ação – deveria ser a investigação científica, de índole matemática. Na Academia, que fundara em 387 a. C., mostrava a seus discípulos que a atividade humana, desde que pretendesse ser correta e responsável, não poderia ser norteada por valores instáveis, formulados segundo o relativismo e a diversidade das opiniões; requeria uma ciência (episteme) dos fundamentos da realidade na qual aquela ação está inserida (CIVITA (Ed.), 1972, pp. 66-67).

A Academia foi escolhida por Aristóteles sem hesitação. Porém, seu

encontro com Platão não foi imediato. Naquele ano, Platão havia se ausentado

de Atenas por razões políticas, em virtude da morte de Dionísio I. Por esse

motivo, em 367 a. C, Aristóteles inicia seus estudos na Academia, sob a direção

de Eudoxo de Cnido, matemático e astrônomo. O encontro de Aristóteles com

Platão aconteceu cerca de um ano depois de seu ingresso na Academia, onde

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haveria de estudar pelos próximos vinte anos, aproximadamente (CIVITA (Ed.),

1972, p. 67).

Após a morte de Platão, em 347 a. C., Aristóteles deixa Atenas e vai para

Assos, na Ásia Menor. A razão de sua partida pode estar ligada à decepção por

não ter sido conduzido à chefia da Academia, já que “sua destacada atuação

naqueles vinte anos parecia aponta-lo como o mais apto a assumir a chefia”. Em

Assos, Aristóteles se une a Hérmias, então governador, que havia sido escravo

e ex-integrante da Academia. Após três anos, Hérmias é assassinado. Tal

evento provocou a saída de Aristóteles da cidade, levando consigo Pítias,

sobrinha de Hérmias, a qual se tornou sua primeira esposa (CIVITA (Ed.), 1972,

p. 68).

De Assos, Aristóteles parte para Mitilene, na ilha de Lesbos e lá

permanece por dois anos. Filipe II, o então rei da Macedônia, manda chama-lo

à corte de Pela para ser o educador de seu filho, Alexandre. Aristóteles se

encarrega dessa missão por longos anos, até 336 a. C., ano em que Filipe II é

assassinado. Alexandre, assim, torna-se rei e começa seu projeto de expansão

do império macedônico. Esse fato leva Aristóteles a retornar para Atenas, e lá

abrir sua própria escola, à qual denomina Liceu, certamente em razão de ter sido

localizada próxima ao templo dedicado a Apolo Liceano (CIVITA (Ed.), 1972, p.

68).

Os interesses de Aristóteles pela biologia e pelas ciências naturais

tornaram-se parte da identidade do Liceu. Civita (1972, p. 68) une os interesses

básicos de Aristóteles pela biologia com sua visão científica e filosófica, em

contraste com os pressupostos da Academia de Platão, de forma elucidativa:

Ao contrário da Academia, voltada fundamentalmente para investigações matemáticas, o Liceu transformou-se num centro de estudos dedicados principalmente às ciências naturais. De terras distantes, conquistadas em suas expedições, Alexandre enviava ao seu ex-preceptor exemplares da fauna e da flora que iam enriquecer as coleções do Liceu. Mas o biologismo era mais que uma perspectiva de escola: tornou-se marca central da própria visão científica e filosófica de Aristóteles, que transpôs para toda a natureza categorias explicativas pertencentes originariamente ao domínio da vida. Em particular, a noção de

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espécies fixas – sugerida pela observação do mundo vegetal e animal – exercerá decisiva influência sobre a física e a metafísica aristotélicas, na medida em que se reflete na doutrina do movimento, elaborada por Aristóteles.

Ainda a respeito das diferenças entre Aristóteles e Platão, é pertinente o

que diz Padovani e Castagnola (1967, p. 124):

A respeito do caráter de Aristóteles, internamente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico, sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelar do que em torno do caráter de Platão, em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica.

Aristóteles continuou sendo estimado por Alexandre, mas seu

entendimento político, divergente de seu ex-discípulo, tornou-se um problema

nos anos finais de sua vida. Enquanto Alexandre levava adiante seu projeto

expansionista, Aristóteles discordava de que a civilização grega deveria ser

fundida com a civilização oriental. Para ele, ambos eram de naturezas distintas.

No ano 323 a. C., depois da morte de Alexandre, Aristóteles “passou a ser

hostilizado pela facção antimacedônica, que o considerava politicamente

suspeito. Acusado de impiedade, deixou Atenas e refugiou-se em Calcis, na

Eubéia”. Lá morreu no ano seguinte (CIVITA (Ed.), 1972, p. 68).

O exposto até aqui contribui para duas conclusões preliminares. Em

primeiro lugar, Aristóteles não teve envolvimento político em Atenas, por ser um

estrangeiro ligado à casa real da Macedônia. Certamente essa foi a razão de

não ter se tornado um “pensador político preocupado com os destinos da polis e

com a reforma das instituições” (CIVITA (Ed.), 1972, p. 67), como foi Platão. A

política foi para ele um objeto de estudo, não a razão de seu esforço científico.

Isso contribuiu em grande medida para o aprofundamento nos estudos das

coisas naturais.

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Em segundo lugar, Aristóteles foi formado na Academia com uma visão

platônica, na qual a verdadeira ciência é a ciência das formas ideais,

evidentemente abstratas e alinhadas com o campo da matemática. Não

obstante, sua herança familiar tornou-se fator preponderante na sua visão de

mundo e norteou sua visão científica e filosófica. Aristóteles buscava

compreender a realidade concreta das coisas, por meio de uma visão pouco

idealista e mais naturalista. “Ao matematismo que dominava na Academia, ele

virá contrapor o espírito de observação e a índole classificatória, típicas da

investigação naturalista, e que constituirão traços fundamentais de seu

pensamento” (CIVITA (Ed.), 1972, p. 67). Certamente o apego de Aristóteles

pela concretude da vida foi determinante para a abordagem lógica-filosófica que

fez em relação aos eventos futuros, já que buscava instrumentos, ou categorias

explicativas, que pudessem dar conta dos fenômenos naturais.

2.2. A OBRA DE ARISTÓTELES

O primeiro objetivo específico foi elucidar aspectos da vida de Aristóteles

que contribuíram para sua proposição filosófica a respeito do futuro. Agora, em

segundo lugar, vejamos em linhas gerais o Corpus aristotelicum, isto é, a obra

de Aristóteles, e mais especificamente a obra Sobre a Interpretação, inserida no

Organon.

Toda a obra de Aristóteles pode ser divida entre composições para o

público em geral, redigidas de maneira dialética, as quais não foram preservadas

e, portanto, não temos acesso, e composições filosóficas ou científicas, redigidas

para os alunos do Liceu, como instrumento de ensino. Somente os textos para

seus alunos foram preservados e chegaram até os dias atuais (CIVITA (Ed.),

1972, p. 68-9).

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2.2.1. Corpus Aristotelicum

O Corpus aristotelicum, assim chamado o conjunto de obras preservadas

de Aristóteles, foi uma compilação feita por Andrônico de Rodes, quem dirigiu o

Liceu no último século a. C. Rodes organizou os diversos tratados escritos por

Aristóteles de maneira temática e conferiu título específico para cada série de

tratados (CIVITA (Ed.), 1972, p. 70). “O Corpus aristotelicum apresenta o

pensamento de Aristóteles com uma feição sistemática, como vasto conjunto

enciclopédico no qual os mais diversos problemas são elucidados de forma

aparentemente definitiva” (CIVITA (Ed.), 1972, p. 72).

Em sua obra, Aristóteles parece ter o objetivo de apresentar respostas

definitivas para os diversos problemas, mas suas próprias soluções não são

apresentadas como algo inovador e completamente original. “As soluções

propostas por outros pensadores são previamente analisadas e criticadas – e

dessas críticas Aristóteles parte frequentemente para a formulação de suas

próprias concepções” (CIVITA (Ed.), 1972, p. 72). Dessa forma, Aristóteles uniu

seu pensamento à história.

O surgimento da história da filosofia está, desse modo, estreitamente vinculado ao aristotelismo, já que à luz de suas doutrinas é que, pela primeira vez, foram relacionados e interpretados os primeiros filósofos.

Devido ao interesse do Liceu por assuntos históricos, mais tarde alguns seguidores de Aristóteles – continuando o trabalho iniciado pelo próprio mestre – coletarão textos e alusões às doutrinas dos filósofos mais antigos. Esse levantamento das opiniões dos primeiros pensadores, chamado “doxografia”, feito segundo pontos de vista aristotélicos, tornou-se uma das fontes principais para a recuperação das doutrinas dos pré-socráticos. […] há outros motivos que levam Aristóteles a partir sempre do passado e fazer a história dos problemas que investiga. E são motivos historicamente compreensíveis: Aristóteles procura alicerçar sua própria filosofia no consenso geral, no consensum gentium et temporum, ou seja, num suposto acordo subjacente às opiniões das diversas pessoas nas diferentes épocas. Ele não pretende que suas ideias representem renovações absolutas, nem manifestem absoluta originalidade. Apresenta-as, ao contrário, como a formulação acabada de conceitos que a humanidade vinha progressiva e espontaneamente

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elaborando, desde fases anteriores às especulações teóricas (CIVITA (Ed.), 1972, p. 72-4).

O Corpus aristotelicum é assim organizado sistematicamente: Em

primeiro lugar, temos os tratados de lógica, reunidos sob o título Organon, do

qual trataremos mais adiante. Depois, temos as obras dedicadas ao estudo da

natureza, sob o título Física. Em seguida, temos as obras referentes ao mundo

vivo, sob o título Parva naturalia, onde trata sobre a alma, a sensação, a

memória, a respiração, etc. Depois, temos a reunião dos tratados sobre os

primeiros princípios e causas da realidade, sob o título Metafísica. Por fim, depois

das obras de filosofia teórica, temos as obras de filosofia prática, sob os títulos

Ética e Política (CIVITA (Ed.), 1972, p. 70-2).

2.2.2. Organon

A primeira das obras do Corpus aristotelicum, chamada Organon, tem

como objetivo servir de instrumento para o todo o desenvolvimento posterior.

Nela temos os tratados de lógica, que no pensamento de Aristóteles é anterior à

ciência e à filosofia. Os tratados contidos no Organon são os seguintes:

as Categorias, que estudam os elementos do discurso, os termos da linguagem; Sobre a Interpretação, que trata do juízo e da proposição; os Analíticos (Primeiros e Segundos), que se ocupam do raciocínio formal (silogismos) e a demonstração científica; os Tópicos, que expõem um método de argumentação geral, aplicável em todos os setores, tanto nas discussões práticas quanto no campo científico; as Refutações sofísticas, que complementam os Tópicos e investigam os tipos principais de argumentos capciosos (CIVITA (Ed.), 1972, p. 71).

2.2.3. Sobre a Interpretação

O problema dos futuros contingentes, como veremos mais profundamente

adiante, é um problema lógico descrito no tratado Sobre a Interpretação.

Originalmente, o título atribuído a essa obra foi, em grego, Peri hermeneias. O

significado básico do verbo hermeneuo, em grego, é “exprimir o pensamento

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mediante a palavra”5. Neste tratado, Aristóteles trabalha sobre a maneira

simbólica de expressar pensamentos por meio de palavras faladas, as quais por

sua vez são simbolizadas por meio de palavras escritas, e suas relações. O

problema que Aristóteles pretende solucionar neste tratado é a ligação entre os

juízos que a mente pode formar e a maneira de expressá-los através da

linguagem.

A teoria das proposições apresentada no Sobre a Interpretação baseia-se numa tese de amplo alcance, pois realiza uma extraordinária simplificação no universo da linguagem: toda proposição seria o enunciado de um juízo através do qual um predicado é atribuído a determinado sujeito. As proposições podem então ser classificadas em universais ou particulares, se o atributo é afirmado (ou negado) do sujeito como um todo (por exemplo: “Todos os homens são mortais”), ou se é afirmado (ou negado) de apenas parte do sujeito (“Alguns homens são gregos”) (CIVITA (Ed.), 1972, p. 76).

Do capítulo 1 ao 3, Aristóteles trata das palavras, verbos e tempos

verbais. Do capítulo 4 ao 6, trata das proposições verdadeiras e falsas. Do

capítulo 7 ao 8, expõe seu entendimento acerca de proposições contraditórias e

contrárias. O capítulo 9 é onde o problema dos futuros contingentes é tratado,

ao qual nos dirigiremos mais profundamente no próximo tópico. Do capítulo 10

ao 14, tudo o que foi dito inicialmente é ampliado, onde Aristóteles trata das

proposições múltiplas, das afirmações e negações que expressam possibilidade,

contingência e necessidade e, por fim, novamente, de forma mais aprofundada,

trata das proposições contrárias.

2.2.4. O capítulo 9 da Interpretação

Antes, de analisarmos os pormenores do capítulo 9 da Interpretação,

parece-nos indispensável tratar sumariamente de suas divisões e controvérsias

que tangem o assunto.

5 Nota do tradutor da obra ARISTÓTELES. Organon. Bauru, SP: EDIPRO, 2ª ed., 2010. p. 81.

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O texto original, escrito em grego, não possui nenhuma divisão, tais como

de capítulos e parágrafos. Todo tipo de divisão encontrada no texto é, portanto,

uma tentativa posterior de tornar o texto mais compreensível para os leitores

hodiernos. As divisões, embora representem um auxílio ao leitor, fazem mais do

que simplesmente sinalizar etapas no fluxo do texto; assim como as traduções,

elas são capazes de modificar o sentido das ideias. Por essa razão, há

controvérsias em torno do assunto a respeito das divisões do capítulo da

Interpretação que temos em tela.

As principais divisões da Interpretação de Aristóteles são aquelas

contidas na obra Categoriae et Liber De Interpretatione, editada por L. Minio-

Paluello, primeiramente publicada em 1949. Seguindo a notação atribuída por

Minio-Paluello, é comumente aceito que o capítulo 9 começa em 18a28 e termina

em 19b4. Moraes e Alves (2009, p. 245) indicam uma controvérsia nesse ponto,

apontando para Hintikka, que compreende que o capítulo 9 começa em 18a34 e

segue até 19b4. Para o objetivo que temos, consideraremos os limites

delineados por Minio-Paluello.

Apesar das controvérsias com respeito às divisões do referido capítulo, e

tendo em vista que nosso propósito nesse ponto é descritivo e analítico – não

crítico –, tomaremos por base as três divisões clássicas (MORAES e ALVES,

2009, p. 243): 1) 18a28 a 18a34, onde basicamente trata-se da diferença que

deve haver entre a abordagem das proposições relacionadas ao passado e ao

presente e das proposições relacionadas ao futuro; 2) 18a34 a 19a22, onde se

apresenta a solução determinista, que define que se uma proposição é

verdadeira em relação ao futuro, então é necessária; 3) 19a23 a 19b4, onde

consta especificamente a conclusão proposta por Aristóteles.

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2.3. OS FUTUROS CONTINGENTES NO PENSAMENTO

DE ARISTÓTELES

Tendo visto aspectos pertinentes da vida de Aristóteles e como sua vasta

bibliografia encontra-se organizada, vamos, em terceiro lugar, analisar em

profundidade o problema dos futuros contingentes colocado por Aristóteles no

capítulo 9 da Interpretação.

Vale, outrossim, elucidar introdutoriamente o assunto em tela. Antes de

qualquer concepção filosófica, é admissível à mente humana o princípio da

bivalência e a contingência de certos eventos futuros. Em outras palavras, não

se faz necessário raciocínio sofisticado para conceber ambas as coisas: que

toda e qualquer afirmação é verdadeira ou é falsa, e que eventos futuros podem

ou não ocorrer, pois nada no futuro pode ser considerado necessário.

O problema que se impõe é sobre como conciliar tais concepções. Se

tomarmos por certo que tudo o que é dito ou é verdadeiro ou é falso, e que isso

se aplica, inclusive, ao que é dito a respeito do futuro, teremos um problema. Se

o que é dito acerca de um evento futuro é considerado verdadeiro, segue-se que

tal evento não pode não ocorrer, isto é, ocorrerá necessariamente. Ou, se o que

é dito acerca de um evento futuro é considerado falso, segue-se que tal evento

não ocorrerá, necessariamente. A conclusão lógica desse raciocínio é que não

existem eventos futuros contingentes. Porém, como dito anteriormente, é uma

atitude pré-filosófica, conceber os eventos futuros como eventos que podem ou

não ocorrer, isto é, são contingentes (FLECK, 1991, p. 2).

O texto mais conhecido e considerado de maior autoridade a respeito dos

futuros contingentes é o capítulo 9 da Interpretação de Aristóteles. Entretanto,

precisamos admitir com Fernando Pio de Almeida Fleck que

A extrema concisão deste texto – mesmo em relação a outros textos aristotélicos – e a presença de expressões ambíguas em passagens cruciais da argumentação deu ocasião ao surgimento de uma controvérsia interpretativa milenar, viva até hoje (FLECK, 1991, p. 2).

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Como antecipado no tópico anterior, nosso propósito não é descrever as

controvérsias, mas sim fazermos uma exposição pormenorizada do pensamento

aristotélico em consonância com a interpretação tradicional. Com esse propósito,

sigamos com o auxílio das divisões clássicas.

2.3.1. Sobre como tratar proposições relativas ao passado, ao presente e ao futuro (18a28-34)

A primeira parte do capítulo 9 da Interpretação descreve em linhas gerais

a diferença de tratativa que deve haver entre proposições relativas ao passado

e ao presente e as proposições relativas ao futuro. A título de esclarecimento,

registra-se que as citações de Aristóteles nesta e nas próximas seções referem-

se ao texto contido entre 18a28 e 19ab4, e seguem a tradução da 2ª edição de

2010 do volume Organon, da editora Edipro.

Inicialmente, Aristóteles afirma: “No que toca a coisas presentes ou

passadas, as proposições, sejam afirmativas ou negativas, são necessariamente

verdadeiras ou falsas”. Aristóteles alude ao princípio de bivalência, o qual indica

que a toda proposição, seja ela afirmativa ou negativa, cabe a determinação dos

critérios de verdade, isto é, se são verdadeiras ou falsas. Além disso, está

sublinhado por Aristóteles que tal princípio é aplicável a proposições relativas ao

passado ou ao presente.

Adiante, Aristóteles explica que essa aplicação se estende às proposições

contraditórias universais com sujeito universal, quando diz: “E quanto às

proposições contraditórias sobre universais que apresentam sujeito universal,

também necessariamente uma é verdadeira e a outra, falsa”. A título de exemplo

dessa aplicação, tomemos as seguintes proposições contraditórias:

Exemplo 1 – Presente: Todo homem é mortal.

Nenhum homem é mortal.

Exemplo 2 – Passado: Todo homem foi criança.

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Nenhum homem foi criança.

No caso das proposições contraditórias acima, cabe a determinação dos

critérios de verdade. Uma delas é, necessariamente, verdadeira, e a outra, falsa.

Seguidamente, Aristóteles inclui outro tipo de proposição à qual também

cabe a aplicação do princípio de bivalência – as proposições contraditórias com

sujeitos particulares: “ou então, como observado antes, possuem sujeitos

particulares”. Proposições contraditórias desse tipo podem ser assim

exemplificadas:

Exemplo 1 – Presente: João é mortal.

João não é mortal.

Exemplo 2 – Passado: João foi criança.

João não foi criança.

Às proposições contraditórias acima, com sujeitos particulares, também

cabem a determinação dos critérios de verdade, ou seja, uma delas é,

necessariamente, verdadeira, e a outra, falsa.

Na sequência, um terceiro tipo de proposições contraditórias é

mencionado por Aristóteles: “Isso, contudo, não é forçosamente assim no caso

de duas proposições tais que tenham universais como sujeitos, mas que não são

elas mesmas universais. Esta questão já foi igualmente discutida por nós”. As

proposições que possuem universais como sujeitos, mas que não são elas

mesmas universais podem ser exemplificadas nas seguintes proposições:

Exemplo 1 – Presente: Todo homem é alto.

Nenhum homem é alto.

Exemplo 2 – Passado: Todo homem foi rico.

Nenhum homem é rico.

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Aristóteles afirma que o princípio de bivalência não é forçosamente assim

neste caso, pois, como nas proposições acima, ambas podem ser

necessariamente falsas, e não uma verdadeira e a outra, falsa.

Aristóteles finaliza a primeira parte do capítulo 9 com a seguinte,

afirmação: “Quando, entretanto, lidamos com proposições cujos sujeitos são

particulares enquanto seus predicados se referem ao futuro e não ao presente

ou ao passado, percebemos que a situação se altera completamente”. Nessa

primeira parte, Aristóteles se ocupa principalmente em recapitular brevemente

como devem ser tratadas as proposições presentes e passadas com o objetivo

de distingui-las das proposições relativas ao futuro (Moraes e Alves, 2009, p.

247).

2.3.2. Sobre a solução determinista, que deve ser rejeitada (18a34 a 19a22)

A última sentença da primeira parte indica claramente a concepção de

Aristóteles de que os princípios lógicos aplicáveis às proposições relativas ao

passado e ao presente não se aplicam às proposições relativas ao futuro.

Contudo, o que vem na sequência parece contradizer o que foi posto

anteriormente. O texto torna-se ambíguo, dando ensejo a dúvidas quanto à sua

interpretação.

A interpretação tradicional sugere que o que Aristóteles faz aqui é

apresentar argumentos contra sua própria tese, para então revela-la como

insustentável. Analisemos passo a passo os argumentos que Aristóteles propõe

contra sua própria tese.

“Afirmativas ou negativas as proposições, sendo elas mesmas

verdadeiras ou falsas, todo predicado afirmado tem que pertencer ao seu sujeito

ou não”. Essa frase inicial da segunda parte é de difícil tradução, porém significa

basicamente que em todas as proposições (inclusive as relativas ao futuro),

sejam elas afirmativas ou negativas, verdadeiras ou falsas, os predicados podem

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ou não pertencer ao sujeito. Isso indica exatamente o contrário da tese que

Aristóteles apresentou na primeira parte e defenderá na terceira: que deve haver

igualdade de tratamento lógico entre proposições relativas ao passado, ao

presente e ao futuro.

A seguir, Aristóteles continua argumentando que as proposições devem

receber igual tratamento, independentemente do tempo a que se refiram:

Consequentemente, se alguém declara que um certo evento ocorrerá e outro indivíduo declara que não ocorrerá, um deles estará evidentemente dizendo a verdade, ao passo que o outro, com a mesma evidência, não estará. Ambos os predicados não podem pertencer a um único sujeito relativamente ao futuro, pois se é verdadeiro declarar que uma certa coisa particular é branca, esta tem que ser necessariamente branca. O inverso disso também vale. Por outro lado, quanto a ser branca ou não branca, é verdadeiro tanto afirma-lo quanto negá-lo. E se não é, efetivamente, branca, então dizer que é será falso. E se dizer que é for falso, então resulta a coisa não ser branca. Somos, portanto, levados a concluir que todas as afirmações e todas as negações têm que ser ou verdadeiras ou falsas. Ora, se tudo isso assim é, nada há que aconteça por acaso ou que seja atingido pelo acaso. Nada jamais acontecerá assim. Não pode haver nenhuma contingência, todos os acontecimentos tendo que se produzir por necessidade. Ou aquele que sustenta que um determinado evento ocorrerá ou aquele que sustenta o contrário estará proferindo a verdade no que respeita a esse ponto. As coisas podem muito bem ocorrer ou não ocorrer, caso uma ou outra asserção não for necessariamente verdadeira, pois uma vez que este termo é empregado referindo-se tanto aos acontecimentos presentes quanto futuros, o contingente é aquilo que poderia ocorrer deste modo ou daquele (Interpretação, 9, 18a34-b9).

Aristóteles argumenta nos parágrafos citados acima que assim como

quando fazemos afirmações ou negações a respeito de qualquer coisa, isso

deve ser necessariamente verdadeiro ou falso de acordo com a realidade, não

havendo, portanto, nenhuma contingência, assim também é em relação ao

futuro, ou seja, que as afirmações ou negações a respeito de quaisquer coisas

relativas ao futuro são necessariamente verdadeiras ou falsas de acordo com o

que vier de fato a ocorrer. O pensamento de Aristóteles pode ser assim colocado:

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Exemplo 1: Assim como é necessariamente verdadeiro dizer que o cão

está comendo, se ele de fato estiver, é também necessariamente verdadeiro

dizer que o cão irá comer amanhã, se ele de fato vier a comer amanhã.

Exemplo 2: Assim como é necessariamente verdadeiro dizer que o cão

não está comendo, se ele de fato não estiver, é também necessariamente

verdadeiro dizer que o cão não irá comer amanhã, se de fato ele não viver a

comer amanhã.

Outrossim, se ontem alguém disse que o cão iria comer hoje, e outra

pessoa disse que o cão não iria comer hoje, e hoje o cão comeu, ou está

comendo, então quem disse que ele iria comer, disse necessariamente uma

proposição verdadeira, e quem disse que ele não iria comer, disse

necessariamente uma proposição falsa. “Uma asserção verdadeira sobre o

futuro é necessária no futuro e [uma asserção] falsa sobre o futuro é impossível

no futuro” (MORAES E ALVES, 2009, p. 253-4). Seguindo esse raciocínio,

Aristóteles conclui que os eventos futuros não são contingentes, mas

necessários:

Se, ademais, uma coisa é agora branca, então teria sido verdadeiro no passado afirmar que essa coisa seria branca, de modo que foi sempre verdadeiro dizer de toda coisa (seja qual for) que ele é ou ela será. Mas se em todo o tempo, entretanto, foi verdadeiro afirmar que uma coisa é ou será, é, no entanto, impossível que ela não seja ou que não esteja na iminência de ser! Ora, se alguma coisa não tem a capacidade de não acontecer (de não vir a ser) é impossível para ela não acontecer, e se é impossível para alguma coisa não acontecer, é para ela necessário acontecer. A consequência disso é que os eventos futuros, como asseveramos, se produzem necessariamente. Nada é fortuito, contingente, pois se alguma coisa acontecesse por acaso, não aconteceria por necessidade (Da Interpretação, 9, 18b9-16).

Aristóteles termina a argumentação contrária à sua tese, concluindo que

um evento verdadeiro no presente foi uma proposição verdadeira em qualquer

momento do passado; por exemplo, se hoje o avião cai no mar, a afirmação de

que amanhã o avião irá cair dita ontem era verdadeira. Aristóteles procura

mostrar que aparentemente, assim como “o presente é necessário porque foi

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uma asserção futura verdadeira no passado, então uma asserção sobre o futuro

verdadeira hoje obriga a necessidade da asserção no futuro” (MORAES E

ALVES, 2009, p. 255). Em outras palavras, se o evento futuro acontecer

conforme uma proposição dita no presente, então esta proposição é verdadeira;

o princípio de bivalência é aplicável a proposições relativas ao futuro. Essa é

perspectiva determinista, que Aristóteles rejeita completamente, conforme a

intepretação tradicional.

Desde o início da segunda parte até esse ponto, Aristóteles vem

apresentando uma argumentação em favor de uma tese determinista, que é

contrária à sua concepção.

Agora, ele começa a apresentar refutações que eventualmente poderiam

ser feitas à tese determinista. Ao que parece, na passagem seguinte, Aristóteles

considera o princípio do terceiro excluído como uma refutação à tese

determinista. A refutação consiste em afirmar que considerando-se um par de

proposições contraditórias acerca do futuro, nem ambas podem ser verdadeiras

nem ambas podem ser falsas; isto é, não há necessidade de que uma proposição

seja verdadeira e a contrária, falsa. Isso é assim colocado por Aristóteles:

Não podemos sustentar, todavia, que nem uma nem outra proposição seja verdadeira. Por exemplo, não podemos sustentar que um certo evento se realizará nem que não se realizará no futuro. Isto porque, em primeiro lugar, mesmo que uma afirmação ou negação se provasse como falsa, ainda assim a outra [proposição] não seria verdadeira. Fosse, em segundo lugar verdadeiro afirmar que a mesma coisa é tanto branca quanto grande, teria ela que possuir essas duas qualidades características necessariamente. Se as possuirá amanhã, isto o será necessariamente. Mas se [dizemos] que algum evento nem se realizará amanhã nem não se realizará amanhã, não há contingência. Tomemos como exemplo uma batalha naval. Constitui requisito em nossa hipótese que ela nem ocorresse nem deixasse de ocorrer amanhã (Da Interpretação, 9, 18b17-25).

Aristóteles considera que alguém poderia argumentar contra a tese

determinista afirmando que pode haver outra posição diferente das proposições

contraditórias. Contudo, sua conclusão é que até mesmo o princípio do terceiro

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excluído deve ser rejeitado no que tange as proposições relativas ao futuro, pois

isso tornaria os eventos futuros necessários.

O ponto chave do que vem sendo argumentado é que, pela lógica, o futuro

é sempre necessário, tanto pela aplicação do princípio de bivalência como pelo

princípio do terceiro excluído, o que implica naturalmente que não há

contingência para os eventos futuros; o futuro é sempre determinado, já que

quaisquer proposições acerca do futuro ou são verdadeiras ou falsas (princípio

da bivalência) ou há uma terceira possibilidade, a de ambas serem verdadeiras,

ou de ambas serem falsas.

No parágrafo seguinte, Aristóteles começa a se posicionar em relação à

questão:

Resultam estas e outras consequências despropositais se supusermos, no caso de um par de opostos contraditórios detentores de sujeitos universais e eles mesmos universais (ou detentores de um sujeito particular), que um tem que ser verdadeiro e o outro, falso, que não pode haver neste caso nenhuma contingência, que todas as coisas que são ou ocorrem se produzem no mundo por necessidade.

Aristóteles compreende que ao se considerar que uma proposição relativa

ao futuro seja necessariamente ser verdadeira, por implicação, todos os eventos

no mundo são determinados, e não há contingência. Neste caso, ele prossegue,

“não haveria necessidade de deliberar ou ter cuidados se conjeturássemos que

uma vez adotada uma particular linha de conduta, um certo resultado se seguiria

e que, se não o fizéssemos, não se seguiria”. Ora, se tudo ocorre por

necessidade, torna-se óbvia a inutilidade de tomar decisões e precauções. Sobre

isso, Moraes e Alves (2009, p. 259) concluem:

A ciência não teria nenhum papel senão o de enumerar à exaustão todas as situações e depois a humanidade poderia ou ir dormir tranquilamente para sempre ou praticar um suicídio coletivo, pois todo o futuro estaria irremediavelmente determinado.

Nas linhas seguintes, percebemos o cerne da refutação de Aristóteles:

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Nada obsta que alguém prediga com antecedência de, digamos, uns dez mil anos algum evento futuro, enquanto outra pessoa prediga o contrário; o que ocorrerá necessariamente corresponderá a uma das duas predições, não importa qual, tornada verdadeira no momento de sua realização. E, com efeito, é totalmente irrelevante se predições contraditórias foram realmente feitas de antemão, pois o fato de alguém ter afirmado ou negado não altera o curso dos acontecimentos. E acontecimentos não são produzidos ou evitados pela afirmação ou negação de que virão a se realizar num tempo futuro; nem tampouco, acresçamos, importa a idade das predições. E, por conseguinte, se ao longo das eras a natureza das coisas foi tal que uma certa predição se revelou verdadeira, esta teria necessariamente que se tornar real; e a natureza de todas as coisas foi tal que os eventos se produziram necessariamente. Pois qualquer acontecimento que alguém no passado haja uma vez verdadeiramente predito tem forçosamente que, no devido decorrer do tempo, se produzir, e no que se refere àquele que numa ocasião se produziu, revelou-se verdadeiro sempre afirmar que se produziu no devido tempo (Da Interpretação, 9, 18b26-19a6).

O cerne da refutação de Aristóteles é a constatação de que proposições

não são capazes de determinar o futuro, portanto, há um problema em adotar

apenas proposições contraditórias como possibilidades para eventos futuros.

Comentando a esse respeito, Moraes e Alves (2009, p. 259) admitem:

“há contingência, há não necessários, eventos de causas indeterminadas, isto é,

eventos cujas causas não eram, antes de ocorrerem, antífases [proposições

contraditórias] conhecidas”. Aristóteles reconhece que embora seja logicamente

plausível a concepção de que os eventos futuros não são contingentes, o fato é

que eles são.

O parágrafo seguinte é a última passagem da segunda parte, onde

Aristóteles refuta completamente a tese lógica determinista, assumindo sua

posição com base na percepção de que eventos futuros estão diretamente

ligados aos eventos passados, contudo, por não haver a ingerência da

necessidade, eventos inusitados podem ocorrer por causas indeterminadas.

Tudo isso é, todavia, impossível. Estamos cientes, com base em nossa experiência pessoal, que eventos futuros podem depender das deliberações e ações e que, nos expressando de um modo geral, essas coisas que não estão ininterruptamente em ato exibem uma potência, isto é, “a possibilidade de ser e de

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não ser”. Se tais coisas podem ser ou podem não ser, os acontecimentos podem ocorrer ou podem não ocorrer. Disto há numerosos exemplos evidentes. Este casaco pode ser cortado em duas metades; não obstante isso, pode não ser cortado em duas metades; pode desgastar-se antes de que isso venha a acontecer, de modo que pode não ser cortado em dois, pois salvo fosse realmente este o caso, não teria sido possível, em primeira instância, o desgaste do casaco. O mesmo vale para todos os demais eventos que em qualquer desses sentidos são potenciais [isto é, aos quais é atribuída possibilidade]. Fica claro que nem tudo é ou se produz por necessidade. Há casos de contingência, com o que a proposição afirmativa não é mais verdadeira ou mais falsa do que a negativa. Constatamos que alguns casos, ademais, ao menos no que tange à maioria e ao mais comum, apresentam tendência numa certa direção, o que não os impede, não obstante, de poderem, ocasionalmente, surgir na outra direção ou direção mais esporádica (Da Interpretação, 9, 19a7-22).

Aristóteles conclui a segunda parte de seu capítulo reconhecendo ser

impossível aceitar que tudo ocorre por necessidade. O exemplo do casaco ilustra

perfeitamente seu ponto de vista. Embora possa se afirmar que o casaco será

cortado em duas partes, ou que não será cortado em duas partes, o fato é que,

por causa da contingência do tempo, ele pode vir a desgastar-se, ou por causa

de deliberação e ação humanas, pode haver outra direção qualquer, como se,

por exemplo, o casaco vier a ser desfeito.

Dessa forma, as proposições acerca do futuro não podem ser

necessariamente verdadeiras ou falsas no momento em que são ditas, antes que

o que foi dito se concretize. Embora para a maioria dos casos comuns possam

ser admitidas tendências numa certa direção, é absolutamente possível que os

eventos ocorram numa direção diferente. Com isso, Aristóteles admite a

contingência do futuro, isto é, a não necessidade, o não determinismo, no que

diz respeito ao futuro. Na concepção de Aristóteles, portanto, o princípio da

bivalência com respeito ao futuro não pode ser aplicado (MORAES E ALVES,

2009, p. 261). É pertinente observar que “o que ARISTÓTELES pretende refutar,

[…] é a tese de que enunciados sobre futuros contingentes possuem um dos

dois valores-de-verdade, isto é, que o princípio de bivalência se aplica a eles”

(FLECK, 1991, p. 5).

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Em resumo, na segunda parte do capítulo 9 da Interpretação Aristóteles

apresenta a tese lógica determinista, a qual defende que se uma proposição

relativa ao futuro vier a se concretizar, então ela é verdadeira, e, portanto,

necessária. Essa tese é rejeitada por Aristóteles.

2.3.3. Sobre a solução proposta por Aristóteles (19a23 a 19b4)

A parte derradeira do capítulo 9 da Interpretação é onde Aristóteles

apresenta a sua solução para o problema do determinismo. Aqui consta o

argumento da Batalha Naval:

Aquilo que é deve ser necessariamente quando é; aquilo que não é não pode ser quando não é. Isto não quer dizer que tudo aquilo que é será necessariamente e que tudo aquilo que não é não será necessariamente. Com efeito, dizer que tudo o que é é necessariamente quando é, não é algo idêntico a dizer incondicionalmente que é por necessidade. Analogamente com aquilo que não é. E no caso de duas proposições contraditórias constata-se que vale o mesmo, ou seja, todas as coisas têm que ser ou não ser, têm que se produzir (vir a ser) ou não se produzir (vir a não ser) neste ou naquele tempo no futuro. Não podemos, contudo, dizer determinadamente qual alternativa tem que se produzir necessariamente. Por exemplo, uma batalha naval amanhã necessariamente ocorrerá ou amanhã não ocorrerá uma batalha naval; não é necessário que amanhã ocorra uma batalha naval, como também não é necessário que amanhã não ocorra uma batalha naval (Da Interpretação, 9, 19a23-32).

A conclusão lógica de Aristóteles para contemplar a irrefutável

contingência (não necessidade) dos eventos futuros, é que aquilo que é é

necessariamente quando é, e aquilo que não é não é necessariamente quando

não é. Em outras palavras, não é porque um evento ocorre que ele sempre foi

necessário; o evento se torna necessário exatamente no momento em que se

dá (quando é). Outrossim, não é porque um evento não ocorreu que sempre foi

necessário que ele não ocorresse; a não ocorrência de um evento é necessária

exatamente no momento da não ocorrência (quando não é). Ou seja, uma

proposição a respeito do futuro nunca pode ser considerada verdadeira até que

corresponda com os fatos.

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O argumento da Batalha Naval é usado para ilustrar o ponto. Aristóteles

diz: “não é necessário que amanhã ocorra uma batalha naval, como também não

é necessário que amanhã não ocorra uma batalha naval”. A ocorrência da

batalha naval é absolutamente contingente, não necessária. Portanto, a

proposição que afirma que amanhã ocorrerá uma batalha naval não é

necessariamente verdadeira ou falsa, assim como a proposição que afirma que

amanhã não ocorrerá uma batalha naval não é necessariamente verdadeira ou

falsa.

A correspondência com os fatos é que torna uma proposição falsa ou

verdadeira. Na última passagem do capítulo torna-se inequívoca a lógica

aristotélica a respeito de proposições relativas ao futuro:

E assim, como a verdade das proposições consiste na correspondência com os fatos, fica claro, no caso de eventos nos quais se encontra contingência ou potencialidade em sentidos opostos, que as duas proposições contraditórias acerca deles terão o mesmo caráter. Vemos ser exatamente este o caso das coisas que nem sempre são, ou que não são todo tempo, pois uma metade da dita contradição tem que ser verdadeira e a outra metade, falsa. Mas não há como distinguir qual uma metade e qual a outra. Embora talvez uma seja mais provável do que a outra, ainda assim não pode ser verdadeira ou falsa. Tratando-se de afirmações ou negações, não há, evidentemente, portanto, nenhuma necessidade de uma ser verdadeira e a outra, falsa, uma vez que o caso das coisas que não são ainda, mas têm a potência de ser, é distinto daquele das coisas que são. É como o asseveramos anteriormente (Da Interpretação, 9, 19a32-19b4).

Uma síntese do exposto por Aristóteles no capítulo 9 da Interpretação

pode ser a seguinte: Na primeira parte, Aristóteles faz introdutoriamente

distinção entre proposições relativas ao passado e ao presente, daquelas

relativas ao futuro. Na segunda parte, ele empreende uma argumentação

contrária ao que foi dito introdutoriamente, considerando pertinente que o

mesmo tratamento dado às proposições relativas ao passado e ao presente seja

dado às proposições relativas ao futuro, isto é, que uma proposição pode ser

caracterizada como verdadeira ou falsa mesmo antes da ocorrência, assimilando

assim o evento futuro como necessário; isso é feito a fim de mostrar que o

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argumento é insustentável com base na experiência no que se percebe na

realidade. E por fim, na terceira parte, Aristóteles propõe sua solução ao

problema, afirmando que uma proposição deve ser considerada verdadeira ou

falsa somente quando da ocorrência dos fatos.

Neste segundo capítulo, procuramos descrever o ponto de vista de

Aristóteles a respeito dos eventos futuros, demonstrando que sua experiência

com o mundo é determinante em sua filosofia, diferentemente de seus

antecessores.

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CAPÍTULO 3 OS FUTUROS CONTINGENTES NA CONSOLAÇÃO DE BOÉCIO

Objetiva-se neste derradeiro capítulo dissertar a respeito da interpretação

que Boécio atribuiu ao problema dos futuros contingentes, outrora tratado por

Aristóteles com solução lógico-filosófica, em sua obra A consolação da filosofia.

Isso faremos na etapa final do capítulo, pois parece-nos pertinente situar antes

o pensamento de Boécio a respeito dos futuros contingentes em seu contexto

biográfico e literário. Para tanto, inicialmente trataremos da vida e da obra de

Boécio e, depois, faremos uma apresentação da Consolação.

3.1. VIDA E OBRA DE BOÉCIO

Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius, ou simplesmente Boécio,

nasceu em aproximadamente 480 d.C. na cidade de Roma, e morreu 524 d.C.

em Ticino, atual Pávia. Seu nascimento se deu em data próxima à queda do

Império Romano do Ocidente (476 d.C.), quando o imperador Rômulo Augusto

foi deposto pelo bárbaro Odoacro. O ano 476 d.C. é considerado o ano do fim

do Império Romano e o início do que é considerado período medieval.

Odoacro tornou-se rei da Itália, subordinado ao Império Romano do

Oriente, e contou com o apoio do senado romano. No ano 493 d.C., porém, foi

morto pelo então rei dos ostrogodos, Teodorico, que tinha o apoio de Zenão I,

imperador romano em Constantinopla.

Aquele foi um período em que os bárbaros estavam no comando de

Roma, mas não sem o auxílio de nobres famílias patrícias. Boécio descendia da

família dos Anicius, uma daquelas que prestavam serviços importantes ao

Império. Seu pai foi nomeado cônsul em 487 d.C. e faleceu pouco tempo depois,

deixando Boécio órfão com cerca de sete anos de idade.

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Boécio gozou de muito prestígio por sua linhagem familiar e sua erudição,

conhecia como ninguém a cultura clássica e era versado em grego. Por tradição

familiar, tornou-se senador e, posteriormente, em 510, conseguiu o favor de

Teodorico que o nomeou cônsul.

Quanto à qualidade e o alcance de sua obra, Gilson (2007, p. 160)

reconhece que “é multiforme, não havendo um só de seus aspectos que não

tenha influenciado a Idade Média, mas em parte alguma sua autoridade foi mais

difundida do que no terreno da lógica”. Longa bibliografia é atribuída a Boécio,

por meio da qual a Idade Média pôde estudar especialmente o campo da lógica.

Dentre as obras de Boécio, destacam-se os comentários à Isagoge de Porfírio;

a tradução e os comentário das Categorias de Aristóteles; a tradução e os

comentários à Interpretação de Aristóteles, sendo um em linguagem simplificada

e outro em linguagem erudita; traduções dos Primeiros Analíticos, Segundos

Analíticos, Argumentos Sofísticos e Tópicos de Aristóteles; e muitos outros

tratados de lógica. Diante da vasta obra de Boécio, Gilson afirma:

Pode-se dizer que, pelo conjunto desses tratados, Boécio tornou-se o professor de lógica da Idade Média até o momento em que, no século XIII, o Organon completo de Aristóteles (isto é, o conjunto de suas obras de lógica) foi traduzido em latim e diretamente comentado (GILSON, 2007, p. 160)

A influência de Boécio na Idade Média foi, digamos, planejada. Seu

intento foi “traduzir todos os tratados de Aristóteles, todos os diálogos de Platão

e demonstrar por comentários a concordância fundamental das duas doutrinas”

(GILSON, 2007, p. 161). Esse grande projeto não pôde ser concluído, devido à

condenação injusta que recebeu de Teodorico, à qual trataremos mais adiante.

Mas, apesar de sua morte prematura, Boécio foi autor de uma vasta literatura

que influenciou com seu conhecimento da filosofia grega os séculos que se

seguiram. Gilson afirma ainda que “ele próprio se atribuía esse papel de

intermediário entre a filosofia grega e o mundo latino” (GILSON, 2007, p. 161).

Reale (1990, p. 462) o reconhece como “o mais significativo mediador entre a

Antiguidade e a Idade Média” e Padovani e Castagnola (1967, p. 216) o

consideram o último filósofo ocidental ilustre antes do fim da Idade Patrística.

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Está fora de dúvida que Boécio tenha contribuído decisivamente para que

o mundo medieval pudesse conhecer a filosofia grega, mas sua influência não

ficou circunscrita a esse particular. Sua formação cristã influenciou radicalmente

seu pensamento, a ponto de Gilson (2007, p. 168) dizer que “mesmo quando

fala apenas como filósofo, Boécio pensa como cristão”.

Boécio foi profícuo também em sua produção teológica, da qual destaco:

De Trinitate, De fide catholica, Tractatus Theologici, e Utrum Pater et Filius et

Spiritus sanctus de diuinitate substantialiter praedicentur.

Dentre todas as obras que produziu, aquela que recebeu maior prestígio

e teve maior repercussão foi A consolação da filosofia, escrita no corredor da

morte. A Consolação foi a obra mais lida na Idade Média, depois da Bíblia e da

A regra monástica de São Bento. Nela, Boécio trabalha temas filosóficos em

prosa e poesia.

Embora Boécio tivesse a confiança de Teodorico, viu-se condenado à

morte depois de defender o senador Albino, que havia sido acusado de traição

em favor de Justiniano I, imperador do então Império Bizantino. Boécio foi

condenado à morte por Teodorico sob acusação de pretender restaurar o

Império Romano. De modo abrupto, sem direito à defesa, viu-se privado de sua

liberdade, da honra e dos bens que possuía. Foi durante sua prisão em Ticino,

atual Pávia, onde foi torturado e executado em 524 d. C., que Boécio escreveu

a Consolação.

3.2. A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA

Posto o panorama biográfico de Boécio, voltemos agora nossa atenção à

sua obra A consolação da filosofia. A Consolação foi uma das “principais fontes

da escolástica medieval na questão [dos futuros contingentes]” (FLECK, 1991,

p. 4), no entanto, não foi a única obra relacionada ao tema escrita por Boécio.

Pelo menos outras duas obras tratam diretamente do mesmo tema: os

comentários que a respeito da Interpretação de Aristóteles – o Comentário

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Menor, escrito em 512 d.C., em linguagem acessível a principiantes no estudo

filosófico, e o Comentário Maior, escrito em 515 d.C., que contém uma carga

filosófica mais densa (PIAUÍ, 2008, p. 211).

A Consolação foi escolhida como lócus de pesquisa em razão de conter

nela a resposta definitiva de Boécio ao problema dos futuros contingentes

(PIAUÍ, 2008, p. 211). William de Siqueira Piauí (2008, p. 210) afirma que

A Consolação da Filosofia é com certeza a obra mais importante para entender como parte da Baixa Idade Média e mesmo parte da Idade Moderna formularam suas soluções para o problema dos futuros contingentes. Nessa obra a relação entre presciência e livre-arbítrio volta a ser a questão central.

Savian Filho (2005, p. 109) resume o propósito da obra nesses termos:

Boécio narra, no De consolatione philosophiae, a história da consolação que lhe foi proporcionada, no cárcere, pela filosofia. Tal consolação resulta de um itinerário, a um só tempo, doloroso e libertador, começando pelo despertar da letargia que o fazia esquecer-se da verdade mais profunda sobre si mesmo e permitia se instalasse, em seu interior, certa confusão causada por vários enganos que o levavam a desesperar-se com a perda dos bens de sua vida anterior à prisão.

A obra é dividia em cinco livros que narram o diálogo entre Boécio e uma

mulher, a personificação da Filosofia, enquanto este estava na prisão, logo antes

de ser morto. O diálogo é entremeado por poesias, cujos versos demonstram o

conhecimento singular de Boécio da cultura grega clássica e da mitologia antiga.

Também é nos versos que se percebe a fé em um Deus todo-poderoso, criador

e governador do Universo. É no quinto livro que o problema dos futuros

contingentes é tratado especificamente. Não obstante, ao longo de toda a obra,

o tema está presente como pano de fundo. Por essa razão, convém indicar

panoramicamente os principais temas tratados nos quatro primeiros livros e

como a argumentação é desenvolvida para, no próximo tópico, tratarmos

especificamente da abordagem do problema dos futuros contingentes constante

no quinto livro.

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3.2.1. Livro I

O Livro I começa com Boécio lamentando-se pela infelicidade em que se

encontra, em razão de ter perdido a glória da juventude e, por ver-se à beira da

morte, sente que a velhice chegou repentinamente e o arrebatou. Boécio se

lamenta em lágrimas e pede para si a morte, em razão de ter a Fortuna

arrebatado tudo que lhe dera. A Fortuna era considerada a deusa romana do

acaso, da sorte, do destino e da esperança. A inspiração dos versos lamuriosos

que dão início à obra é atribuída às Musas. Na mitologia grega, as musas eram

consideradas como entidades inspiradoras da criação artística.

Logo após o primeiro poema, Boécio descreve a visão de uma mulher.

Essa mulher é identificada adiante como a Filosofia, que vem ao encontro de

Boécio para remediar seu sofrimento. Ao ver que as Musas estavam junto a

Boécio, cantando versos de dor, logo as expulsa, dizendo que elas não poderiam

remediar a sua dor por matarem, por meio de lamentos estéreis, a acuidade da

Razão. O motivo da indignação da Filosofia é que as Musas estavam

importunando um erudito, a quem chama de discípulo, não um inculto. Por isso,

a partir de então assume os cuidados com aquele a quem que é tido como

doente, Boécio, por estar sofrendo as perdas materiais e sociais por sua

condenação.

Adiante, Boécio questiona o fato de estar nessa situação. Seu sentimento

é de que por ter aderido à filosofia, isto é, à busca pelo conhecimento, pela

sabedoria, e pelas ciências das coisas humanas e divinas, não deveria ter

recebido essa condenação injusta como recompensa. Inclusive, chega a se

justificar dizendo que foi à vida pública por causa da filosofia. Depois de

defender-se e culpar a Fortuna por seu infortúnio, pronuncia uma poesia, que

mais parece ser uma oração a Deus, onde se encontram esses versos:

Ó fundador dos orbes plenos de estrelas, Tu que, apoiado em eterno trono, Cortas o céu com o célebre relâmpago E obrigas os astros a seguirem tua lei […]

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Nada escapa à tua antiga lei: Tudo permanece em seu devido lugar, E tu governas tudo com um fim certo. Desprezas apenas as ações dos homens Quando te fora preciso dirigi-las. Por que a Fortuna nos toma Por joguetes de seu capricho? […]

Lança teu olhar sobre esta pobre terra, Tu, que entrelaças as regras do universo: Nós, os homens, que somos parte não desprezível De tua grande obra, fomos vítimas dos caprichos da Fortuna. Governa e detém teu rápido estridor, E, do mesmo modo com que reges o imenso céu, Firma estatutos estáveis sobre a terra. (BOÉCIO, Consolação, I.9)

Após a narração das mágoas de Boécio, a Filosofia, sem nenhuma

comoção, lhe diz que foi útil ouvir tudo o que ouviu para que pudesse saber quão

distante ele estava em seu exílio, e que não havia sido despatriado, mas que

somente havia se desviado. Por isso, propõe-se a tratar dele, primeiro com

“remédios paliativos”, dada a situação grave da desordem de suas emoções, a

fim de prepara-lo para, por fim, trata-lo com “medicamento eficaz”. A fim de trata-

lo adequadamente, na passagem I.12 a Filosofia lhe faz algumas perguntas, tais

como: “Achas que este mundo é conduzido por fatos acidentais e governado

pela Fortuna, ou achas que é governado por uma Razão?” A isto, Boécio

respondeu: “Seria impossível crer que um universo tão bem ornado fosse movido

pelo cego acaso: sei que Deus preside aos destinados à Sua obra, e nunca me

desapegarei dessa verdade”. Depois de ser elogiado pela resposta, a Filosofia

estranha que se encontrasse naquela situação, tendo pensamentos tão elevados

a esse respeito. Então, adiante faz outras perguntas, às quais Boécio nega ter

uma resposta: “já que afirmas que o mundo é dirigido por Deus, distingues

também por que meios ele é dirigido?”, “tu te recordas da finalidade do universo

e para onde tende toda a Natureza?”, e depois de Boécio dizer que sabia que

todas as coisas provinham de Deus, a Filosofia lhe perguntou: “como podes

conhecer o princípio de tudo e ignorar o fim?”. Outras perguntas ainda, às quais

Boécio vacilou em responder, foram: “tu te lembras de que és um homem?”, “o

que é afinal um homem?”, “não sabe que és mais alguma coisa [além de ser um

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animal racional]?”. O Livro I termina com a Filosofia dizendo a Boécio que via

grande chance de cura para ele, em razão dele crer na verdade a respeito de

um governo no mundo, que não é sujeito aos acidentes, mas à Razão Divina.

3.2.2. Livro II

O Livro II começa com o diagnóstico da Filosofia:

Se eu compreendi perfeitamente as causas e a natureza de tua doença, creio que é por sentires profundamente a perda de tua fortuna anterior que desfaleces. É apenas o que tomas por uma reviravolta da Fortuna que agita teu espírito (BOÉCIO, Consolação, II.1).

A inquietude de Boécio foi causada pela perda dos seus bens e atribuída

à reviravolta da Fortuna. A fim de trata-lo paulatinamente, a Filosofia lhe oferece

um primeiro remédio, doce e suave, a Retórica. Por meio de um longo diálogo,

a Filosofia o leva a refletir sobre se são justos os seus lamentos, e a considerar

a quantidade e extensão de todas as alegrias que teve em sua vida. Por óbvio,

Boécio reconhece serem injustas suas lamúrias e que, contudo, ainda possui

sua família em segurança. Vendo que o espírito de Boécio está mais calmo, a

Filosofia lhe diz: “Já ganhei um ponto se não estás mais inteiramente insatisfeito

com a situação atual. Não posso suportar esse comportamento fraco, essa

maneira de exaltar teu desespero com o pretexto de que algo falta à tua

felicidade” (BOÉCIO, Consolação, II.7). A Filosofia segue sua argumentação

lembrando-o que ninguém há que possa dizer que está absolutamente contente

com sua situação, e que tanto a desgraça como a felicidade podem ser vividas

em qualquer situação, dependendo do modo como as situações são encaradas:

se com queixas, desgraça, se sem queixas, felicidade. Ou seja, nesse sentido,

a felicidade independe da Fortuna, mas do modo como os acontecimentos são

vistos.

Estando Boécio já pronto para receber um “remédio mais forte”, a Filosofia

empreende uma argumentação um pouco mais complexa, fazendo-o pensar a

respeito do valor dos objetos. Ela argumenta que os objetos possuem o valor

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que os homens atribuem a eles, e que é mais justo buscar valor em bens próprios

e inerentes à própria natureza humana, do que em objetos externos; do contrário

é uma ofensa ao Criador que imprimiu nos homens a sua própria imagem e

semelhança. Para finaliza a argumentação a respeito do valor dos objetos, a

Filosofia afirma: “Estranha felicidade esta, proporcionada pelos bens terrestres:

só se pode possuí-la ao custo da própria tranquilidade!” (BOÉCIO, Consolação,

II.9).

No mesmo tom, a Filosofia segue agora sua argumentação quanto à

honra e ao poder, fazendo-o pensar na fragilidade inerente ao ser humano e na

ausência de virtudes inerentes às riquezas, poder e honrarias. Tentando

contrapô-la, Boécio diz: “Tu bem sabes que a ambição de sucesso neste mundo

jamais foi para mim a busca fundamental. Mas eu quis aproveitar a ocasião de

seguir a carreira política para evitar que minhas habilidades ficassem inativas”

(BOÉCIO, Consolação, II.13). A isto, a Filosofia responde dissertando a respeito

da inutilidade da busca pela fama diante do fato de que a terra é apenas um

ponto extremamente pequeno em comparação à extensão dos céus e o período

que a fama perdura é extremamente pequeno, quase inexistente, em

comparação com a eternidade.

Na conclusão do Livro II, a Filosofia retorna ao diagnóstico proferido

inicialmente, de que Boécio atribuía à reviravolta da Fortuna a agitação do seu

espírito, reconhecendo nela um benefício: o de levar os infortunados aos

verdadeiros valores.

A Fortuna é mais benéfica aos seres humanos quando se mostra adversa do que quando se mostra favorável. Quando se mostra sedutora e atraente, está sempre mentindo com sua aparência de felicidade; a adversa, porém, é sempre sincera quando revela por suas reviravoltas seu caráter instável. Uma engana, a outra instrui. Uma, ludibriando os homens com uma falsa felicidade, captura a alma daqueles que desfrutam de seus dons; a outra, pelo contrário, libera a alma fazendo-a ver a precariedade da sorte. […] a Fortuna favorável usa de todos os seus encantos para desviar as pessoas do verdadeiro bem, enquanto a Fortuna desfavorável trava-lhes o caminho para leva-las novamente aos verdadeiros valores. […] Agora, tu te queixas da ruína; contudo, encontraste por isso mesmo tua mais preciosa riqueza: teus verdadeiros amigos (BOÉCIO, Consolação, II.15).

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3.2.3. Livro III

O Livro III trata fundamentalmente do conceito de felicidade. Em seu

início, Boécio mostra-se fascinado com o que ouvira até aquele momento,

fortalecido para resistir aos golpes da Fortuna e preparado para receber

“remédios mais fortes”. Diante disso, a Filosofia reconhece ser oportuno o

momento para dizer que pretende leva-lo à felicidade, “a felicidade verdadeira, a

felicidade que teu coração vê em sonhos, mas que não podes contemplar tal

como ela é porque tua vista se desvia para as aparências” (BOÉCIO,

Consolação, III.1). Essa declaração da Filosofia torna Boécio ainda mais

entusiasmado.

A argumentação da Filosofia visa demonstrar que todos os homens

aspiram por felicidade e a buscam em diversos lugares, como na estima dos

outros, no poder supremo e na celebridade, sendo que a maioria realmente

credita que a possui quando está alegre e contente; e quais são as falsas formas

de obter felicidade: as riquezas, as honrarias, o reconhecimento público, os

méritos dos ancestrais e os prazeres sensuais possuem vantagens transitórias

e circunscritas a limites, inclusive geográficos, sendo incapazes de levar o

homem à felicidade que prometem. Chegando a concluir o seguinte:

os atrativos incapazes de garantir os bens que prometem e que não reúnem em si a totalidade dos bens existentes não são caminhos que levam à felicidade, e portanto não são suficientes para levar o homem à verdadeira felicidade (BOÉCIO, Consolação, III.15).

Depois de mostrar as falsas formas de felicidade, a Filosofia se propõe a

mostrar a verdadeira. A argumentação segue os seguintes passos. Primeiro,

estabelece-se que a felicidade seria um estado de total independência, poder,

celebridade, consideração social e alegria, ou seja, todas essas são uma e a

mesma coisa. Porém, quando o homem busca uma dessas coisas não consegue

o obter o que só se poderia obter pelo todo; elas dão falsa impressão de

felicidade:

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Aquilo que é por natureza uno e simples é dividido pela ignorância dos homens, e, esforçarem-se por obter uma parte de um todo que não comporta partes, não obtêm nem a parte almejada, visto que ela não existe, nem a totalidade, que nem sonham obter (BOÉCIO, Consolação, III.17).

Depois, estabelece-se que o bem perfeito é a verdadeira felicidade, e que

Deus é o supremo bem, logo, “a verdadeira felicidade reside necessariamente

no Deus soberano”. O passo seguinte é salientar que o supremo bem não foi

recebido por Deus do exterior, mas ele mesmo é, por sua substância, o soberano

bem, de forma que é correto dizer que “Deus é a suprema felicidade” (BOÉCIO,

Consolação, III.19) e que é pela aquisição do divino que os homens podem se

tornar felizes, porém o homem que se tornar feliz não há de se tornar um deus,

pois há um único Deus, mas há de ser partícipe do divino. Deus, considerado o

supremo bem, é descrito como aquele que dispõe todas as coisas no universo

em vista do bem, e que nada poder contrapor-se a ele. A essa altura conveio

tratar do mal, que não pode ser realizado por Deus, e que não tem existência

própria (BOÉCIO, Consolação, III.23).

3.2.4. Livro IV

O Livro IV começa mostrando que mesmo diante do fato de haver um ser

totalmente bom governando o Universo, Boécio ainda se vê angustiado pela

existência do mal e da impunidade. Diante disso, a Filosofia se propõe a mostrar

que a realidade não é como Boécio a está percebendo. Ela argumenta para

provar que o poder está sempre do lado dos bons e os malfeitores são sempre

e completamente impotentes, chegando até a perder sua natureza humana por

meio da prática do mal. Boécio aceita esse entendimento, porém se queixa de

que seja permitido que pelo exercício da crueldade os maus flagelem as pessoas

de bem. A isto, a Filosofia argumenta em favor da tese de que quanto mais

maldade aos homens é permitido praticar, mais infelizes eles se tornam, ou seja,

se fossem privados de praticar a maldade, sua infelicidade seria diminuída. A

condenação dos maus assemelha-se remédio para doentes; aplica-la a eles é

trata-los com indulgência.

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Conquanto estivesse convencido das conclusões apresentadas, Boécio

questiona o motivo pelo qual os castigos que deveriam ser aplicadas para o bem

dos criminosos recaem sobre as pessoas de bem, ao mesmo tempo em que as

recompensas devidas às pessoas de bem são apoderadas pelos criminosos.

Seguindo seu raciocínio, Boécio admite que lhe seria mais compreensível se

todas essas desordens fossem atribuídas ao acaso e não a um Deus bom que

governa o Universo. A hipótese de Boécio, nesse ponto, é que Deus não seria

diferente do acaso. A partir dessa passagem (BOÉCIO, Consolação, IV.9),

vemos alguns temas relacionados ao problema dos futuros contingentes

emergirem sobre os anteriores. Daqui em diante o curso da argumentação é

estritamente ligado ao propósito central dessa pesquisa, a saber, verificar como

Boécio interpreta a proposição lógica dos futuros contingentes apresentada por

Aristóteles.

Seguindo o diálogo, Boécio pede à Filosofia que lhe desvende a questão

apresentada. Depois de reconhecer a importância e complexidade do assunto,

a Filosofia aponta outras questões envolvidas, tais como as da indivisibilidade

da Providência, do curso do Destino, dos acontecimentos imprevisíveis, do

conhecimento e da predestinação divinas e do livre-arbítrio.

A etapa final do quarto livro apresenta os conceitos de Providência e

Destino, os quais são tomados como sendo um a consequência do outro. A

Providência é descrita como o plano uno, indivisível e atemporal de Deus, e o

Destino como a execução múltipla da Providência no curso do tempo. A distinção

desses conceitos torna-se útil para a conclusão de que ainda que o homem seja

incapaz de compreender o encadeamento das coisas (Destino) e, por isso, ser

levado a perceber confusão e desordem, o fato é que tudo é regido por uma lei

que dirige todas as coisas para o bem (Providência). Desse modo, a reviravolta

da Fortuna, tida por Boécio como sendo a causa de sua desgraça, é assimilada

como sendo sempre justa ou útil – justa para recompensar e pôr à prova os bons

e útil para corrigir os malfeitores.

Os conceitos de Providência e Destino servem de base para as

discussões posteriores em torno do problema dos futuros contingentes. O livro

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V será tratado em um tópico distinto em razão de tratar especificamente do tema

desta pesquisa.

3.3. OS FUTUROS CONTINGENTES NO PENSAMENTO

DE BOÉCIO

O problema dos futuros contingentes é tratado especificamente no Livro

V da Consolação, porém tudo o que Boécio tratou até então é relevante e isso

pôde ser verificado no tópico anterior. Aqui pretendemos, assim como fizemos

na exposição do pensamento de Aristóteles, acompanhar passo a passo a sua

argumentação.

A questão fundamental é, se o futuro é contingente, isto é, não necessário,

como Deus pode conhece-lo? No que segue pretendemos expor a resposta de

Boécio.

A pergunta de Boécio à Filosofia feita no Livro IV a respeito do acaso foi

parcialmente respondida com a exposição da distinção entre o conceito de

Providência e o conceito de Destino. Porém, o argumento deve seguir adiante.

Por essa razão, Boécio retoma a pergunta nesses termos:

Teus conselhos são sem dúvida certos e dignos de tua autoridade, mas o que acabas de dizer a respeito da Providência, isto é, que essa questão não pode ser tratada independentemente de muitas outras questões, pude eu próprio experimentar. Peço-te portanto que agora me digas se achas que o acaso existe realmente e, caso exista, em que ele consiste (BOÉCIO, Consolação, V.1).

A Filosofia se dispõe a tratar desse assunto, porém reconhece que

constitui um desvio do alvo que pretende chegar, chegando inclusive a cogitar

não haver tempo suficiente para alcança-lo. Uma digressão pertinente nesse

ponto é perceber que talvez a Filosofia pense não haver tempo suficiente em

razão das torturas a que Boécio era submetido, as quais poderiam leva-lo a óbito,

antes que o objetivo fosse alcançado. Boécio responde que ela não deve temer,

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pois o tema muito o interessa para refrear sua inquietude. Em seguida a Filosofia

começa sua argumentação.

Introdutoriamente, define-se acaso como um fato produzido sem causa,

ou seja, surgido do nada. Contudo, é impossível que algo surja do nada. O

acaso, nesse sentido, inexiste. Boécio então pergunta se há algo que possa

então ser chamado de acaso ou acidente. A isto a Filosofia responde citando

Aristóteles nesses termos:

Ele diz que toda vez que uma ação é realizada com um determinado fim, mas algo além do que estava sendo procurado acontece por uma razão ou outra, isto se chama acaso, como por exemplo quando alguém cava o solo para fazer um plantio e encontra ali um tesouro que estava escondido (BOÉCIO, Consolação, V.1).

Embora eventos inesperados e fortuitos aconteçam, a Filosofia

argumenta que não ocorrem do nada, e que todo acontecimento possui uma

causa própria. No exemplo citado, é evidente que se o homem não tivesse

cavado exatamente aquele pedaço de terra e outro, anteriormente, não tivesse

colocado ali seu tesouro, o evento jamais teria acontecido. Uma nova definição

de acaso então é proposta:

Um acontecimento inesperado, resultado de uma somatória de circunstâncias, que aparece no meio de ações realizadas com uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal conjunto de circunstâncias é justamente a ordem que procede de um encadeamento inevitável e tem como fonte a Providência, que dispõe todas as coisas em seus lugares e tempo (BOÉCIO, Consolação, V.1)

Embora pareça correr livremente, O acaso é regrado e seu curso obedece a leis (BOÉCIO, Consolação, V.2)

Tendo aceito a nova definição apresentada pela Filosofia, Boécio avança

para uma questão ainda mais complexa: “nesse encadeamento de causas

solidárias umas às outras, resta-nos ainda um pouco de livre arbítrio ou o

encadeamento do destino abrange também os movimentos da alma humana?”

(BOÉCIO, Consolação, V.3). A resposta recebida é no sentido de que nenhum

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ser dotado de razão existiria sem que tivesse liberdade e a capacidade de julgar

entre o que é desejável e o que deve ser evitado. Daí é feita uma distinção entre

seres mais e menos livres. Os mais livres possuem uma vontade sem mácula e

são capazes de realizar seus desejos, apontados como as substâncias celestes

e divinas. Ao tratar das almas humanas, a Filosofia argumenta que, quando elas

se mantem na contemplação da inteligência divina, são mais livres, e, quando

se dedicam às coisas terrenas e carnais, são menos livres – tornam-se

prisioneiras de sua própria liberdade. Conquanto, os seres racionais possuam

de fato liberdade, nesse sentido ora colocado, a Filosofia salienta que a

Providência prevê desde a eternidade todas essas coisas e “dispõe tudo o que

está predestinado a cada uma, segundo seu mérito” (BOÉCIO, Consolação,

V.3). Ao que parece, a relação entre a Providência e o livre arbítrio das criaturas

racionais não é colocada como uma sendo a causa da outra.

A poesia descrita na sequência esboça a distinção entre o limitado

conhecimento dos deuses gregos a onisciência de Deus, o Criador:

‘Ele tudo vê e tudo ouve.’ Assim é Febo, que ilumina com uma límpida luz: Tal o canta Homero, de cuja boca corre o mel; E no entanto ele é incapaz de sondar As secretas profundezas da terra ou do oceano, Pois para isso seus raios são muito fracos. Mas assim não é o Criador do vasto mundo: Nada faz obstáculo ao seu olhar Que pousa sobre todas as coisas; Nem a terra opaca nem o negrume de uma noite nebulosa. Tudo o que é, foi e será, Ele o vê de uma só vez; É a ele, pois somente ele vê tudo, Que podemos chamar de verdadeiro sol. (BOÉCIO, Consolação, V.4)

O que foi posto é no sentido de que o livre arbítrio e a onisciência de Deus

coexistem, sem uma relação de causa e efeito. Tais proposições são

aparentemente inconciliáveis. Boécio, então, toma a palavra e empreende um

longo discurso a esse respeito. Para ele, analisando logicamente a questão, se

Deus conhece previamente todas as coisas, inclusive as intenções e vontades

do homem, então não pode existir livre-arbítrio, ou se os acontecimentos podem

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seguir outro rumo diferente daquele previsto, então a presciência de Deus não

seria mais do que uma opinião incerta. Esta última conclusão lógica parece para

Boécio mais inaceitável do que a primeira.

Quanto ao que causa o que – se a previsão torna necessário o

acontecimento ou se o acontecimento torna necessária a previsão –, Boécio se

propõe a defender a tese de que “um acontecimento, uma vez previsto, deve

necessariamente se realizar, mesmo se a previsão divina pareça não atribuir aos

acontecimentos futuros a necessidade de se realizarem” (BOÉCIO, Consolação,

V.5). Neste ponto do diálogo nota-se que o conceito de necessidade toma

grande importância. Por isso, a definição de Mora (1978) parece indispensável:

Desde Aristóteles, entendeu-se por necessário aquilo que não pode ser de outro modo, aquilo que, por conseguinte, só existe de um modo. Pode entender-se esta noção de duas maneiras: a) como necessidade ideal, que expressa o encadeamento das ideias, e b) como necessidade real, que expressa o encadeamento de causas e efeitos. É frequente, em muitos filósofos, passar da necessidade real para a ideal e vice-versa.

Boécio argumenta que assim como há uma necessidade em comum de

um fato ocorrer e uma proposição que o descreva ser verdadeira – por exemplo,

é mutuamente necessário que alguém esteja sentado e uma opinião segundo a

qual esse alguém esteja sentado –, “de igual modo com relação à Providência e

aos acontecimentos futuros” (BOÉCIO, Consolação, V.5). Porém, se a previsão

divina não pode prever coisas incertas, mas prevê todas as coisas sem risco de

erro, então os homens não podem ser responsabilizados por suas maldades,

nem tão pouco recompensados por seus méritos, anulando-se completamente o

movimento livre e voluntário da alma; ainda, seria necessário admitir que as más

ações dos homens provém daquele é o supremo bem; e enfim, anular-se-ia o

sentido de toda esperança e prece feita a Deus.

Ao que parece, Boécio em seu longo discurso dirigido à Filosofia, não

parece ter demonstrado a contento o que havia proposto, quanto a demonstrar

que a previsão divina não atribui aos acontecimentos futuros a necessidade de

se realizarem. Antes, nota-se que seu discurso mais enfatizou a dificuldade de

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conciliar a onisciência divina com a liberdade da vontade humana, do que trouxe

uma resposta satisfatória. É pela voz da Filosofia, que vem a proposta de solução

do paradoxo.

No começo de sua resposta, a Filosofia reconhece que o problema em

tela é antigo e faz menção a Marco Túlio (Cícero), que viveu de 103 a 46 a.C., o

qual, diante da dificuldade de compreensão da relação entre a presciência divina

e a liberdade humana, e até mesmo a presença do mal, preferiu recusar

completamente a possibilidade de haver presciência (PIAUÍ, 2007, p. 3). Fleck

(1991, p. 4) reconhece a necessidade de compreender a compatibilidade entre

a presciência divina e a liberdade da vontade humana:

A atitude de considerar o problema dos futuros contingentes um problema principalmente do ponto-de-vista epistêmico-teológico: admitida, por um lado, a presciência divina como abrangendo todos os eventos futuros, e, por outro lado, a liberdade humana como fonte de contingência, surge a questão de mostrar a compatibilidade entre ambas (FLECK, 1991, p. 4)

Antes de explicitar a relação entre a presciência ou onisciência divina com

a liberdade das criaturas racionais, a Filosofia tange o campo da epistemologia

a fim de atribuir à falta de capacidade intelectual do ser humano a compreensão

dessa relação entre a presciência divina e a liberdade das criaturas racionais:

Se o problema continua obscuro é que o encadeamento do raciocínio humano não se pode aplicar à simplicidade da presciência divina, e, se ela pudesse ser pensada pelos homens de alguma maneira, não restaria mais a menor dificuldade (BOÉCIO, Consolação, V.7)

A primeira premissa que a Filosofia procura estabelecer é que a

presciência não torna necessário o evento futuro. Uma série intrincada de

argumentos é apresentada. A Filosofia sugere que alguém poderia defender que

a presciência não torna necessário o evento futuro recorrendo à comparação da

presciência como um sinal que tem a função de indicar e não produzir o que ele

indica. Porém, ela esclarece que o fato é que todo acontecimento é causado por

uma necessidade absoluta, e se não houver nenhuma necessidade, também não

existirá a presciência como sinal.

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Seguindo sua argumentação, a Filosofia sugere que alguém defenda que

a presciência não seja a causa da necessidade de um evento futuro, defendendo

que acontecimentos previstos podem não vir a se produzir. Porém, ela esclarece

que essa objeção não faz sentido algum, uma vez que seu ponto é demonstrar

que os acontecimentos previstos de fato se realizarão, embora a previsão não

seja a causa dos acontecimentos futuros.

Pela experiência de observação, a Filosofia defende que o ciclo de

acontecimentos sucessivos como no exercício que os condutores de carros

fazem não é determinado por nenhuma necessidade. Embora se possa prever

os movimentos executados pelos condutores de carros, tais movimentos não são

necessários por causa da previsão. Daí as conclusões de que “os atos que não

são necessários no momento em que se realizam também não o eram

anteriormente, mesmo se eles devessem ocorrer mais tarde” e “a presciência do

que vai acontecer não impõe nenhuma necessidade aos acontecimentos futuros”

(BOÉCIO, Consolação, V.7).

Posta essa argumentação em favor de que a presciência não produz a

necessidade dos acontecimentos futuros, a questão sobre a aparente

contradição não foi esclarecida. Avançando um pouco mais, a Filosofia recupera

a questão epistemológica enunciada no início de sua fala.

A segunda premissa que a Filosofia procura estabelecer é que o paradoxo

em tela não pode ser compreendido a partir das características próprias da

presciência ou da contingência dos eventos, mas sim conforme a capacidade de

apreensão dos homens que pretendem compreende-lo. Aqui é pressuposta a

incapacidade epistemológica do ser humano para apreender satisfatoriamente a

relação existente entre a presciência divina e a liberdade das criaturas racionais.

A fim de provar seu ponto, a Filosofia distingue a diferença de

conhecimentos que podem ser obtidos pelos sentidos, pela imaginação, pela

razão e pela inteligência; sendo que os sentidos podem apreender a matéria do

objeto, a imaginação pode apreender a forma do objeto, a razão pode apreender

as ideias gerais do objeto e a inteligência pode apreender a ideia da forma

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absoluta. Faz parte desse argumento que os últimos possuem ascendência

sobre os primeiros. Para exemplificar essa última afirmação, vale observar essa

questão: “nós que possuímos a faculdade do raciocínio, assim como as de

imaginar e sentir, não consentiríamos em dar a primazia à razão?” (BOÉCIO,

Consolação, V.9).

Segundo essa argumentação, o que se pode conhecer pelos sentidos

pode ser conhecido pela imaginação; o que se pode conhecer pela imaginação

pode ser conhecido pela razão; e o que se pode conhecer pela razão, pode ser

conhecido pela inteligência. Porém, não o contrário: o sentido é incapaz de

conhecer o que só se pode ser apreendido pela imaginação; a imaginação não

pode conhecer o que só se pode ser apreendido pela razão; e a razão não pode

conhecer o que só se pode ser apreendido pela inteligência.

Avançando um pouco mais nessa argumentação, a Filosofia esclarece

que o homem só possui as faculdades do sentido, da imaginação e da razão, e

a inteligência se trata de uma faculdade divina, de forma que a razão humana

não pode acreditar que a inteligência divina conheça o futuro do mesmo modo

que ela o apreende. Nesse sentido, retomando o paradoxo em tela, a Filosofia

afirma:

Eis, com efeito, como tu raciocinas: se a realização de certos eventos não parece certa e necessária, eles não podem ser conhecidos a priori com certeza de que se realizarão. Por conseguinte, não há nenhuma presciência de tais acontecimentos e, se cremos que há presciência de tais acontecimentos, é preciso consentir que tudo acontecerá fatalmente. Se portanto nós temos a razão, que é partícipe da inteligência divina, devemos pensar que, do mesmo modo que a imaginação deve ceder à razão, é natural que a razão reconheça a superioridade da inteligência divina. Dessa forma, elevemo-nos, tanto quanto possível, ao nível dessa suprema inteligência divina; então, com efeito, a razão verá o que ela não pode ver em si mesma, o que concebe a presciência divina, com toda a precisão e certeza, mesmo que esses acontecimentos não se realizem, e apreenderá, não por uma simples conjectura, mas por uma intuição suprema, absoluta e sem limites (BOÉCIO, Consolação, V.9).

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Em suma, a Filosofia argumenta em favor da tese de que a razão humana

não pode sobrepor-se à inteligência divina; o homem deve elevar-se acima de

sua própria razão a fim de participar da inteligência divina e obter o conhecimento

daquelas coisas que sozinho jamais poderia apreender.

A etapa final do livro contém uma longa e ininterrupta fala da Filosofia, na

qual parte das premissas: a) a presciência não torna necessário o evento futuro,

e b) o ser humano com suas próprias faculdades é incapaz de apreender o

conhecimento de coisas divinas. Sua proposta, finalmente, é demonstrar qual é

a natureza da substância divina, para que então se possa discernir de que

espécie é seu saber.

O primeiro conceito que busca definir é a respeito da eternidade. Partindo

do pressuposto de que o homem concebe Deus como um ser eterno, a Filosofia

a acredita que pelo compreender a eternidade, será possível compreender a

natureza divina e a sua sabedoria. Uma definição preliminar é proposta: “a

eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada” (BOÉCIO,

Consolação, V.11). A toda criatura só é possível viver o tempo presente, tendo

vindo do passado e caminhando rumo ao futuro. Nenhuma criatura é capaz de

abarcar toda a extensão da vida ao mesmo tempo, de forma que nenhuma delas

pode ser concebida como um ser eterno. Em outras palavras, aquele que vive

sob os limites do tempo, já não possui o passado e nem pode desfrutar do futuro,

de forma que, ainda que tivesse uma vida ilimitada, não poderia abarcar toda

extensão de vida de uma só vez.

Dito de outra forma, o ser humano não é eterno, pois só pode ser

considerado eterno “aquele que apreende e possui de uma só vez a totalidade

da plenitude de uma vida sem limites, à qual não falta nada do futuro nem nada

escapa do passado” e “é necessário que ele esteja sempre presente e em plena

posse de si mesmo, já que para ele o presente abarca todo o tempo ilimitado”

(BOÉCIO, Consolação, V.11).

Para Platão, conforme a fala da Filosofia – certamente uma alusão ao

Timeu – o mundo possui uma expressão imperfeita da eternidade de seu criador,

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ou seja, possui uma vida sem limites, mas não a capacidade de abarcar de uma

só vez toda a presença de uma vida sem limites. Essa capacidade, conforme a

argumentação, é própria da inteligência divina. Seguindo o fluxo do pensamento,

anota-se o fato de que Deus não pode ser considerado como anterior à criação

em termos de quantidade de tempo, pois sua natureza é indivisível e ele não

está submetido à categoria temporal. Dessa forma, quando o homem atribui

movimento e uma quantidade infinita de passado e futuro a Deus, ele está

degradando-o e limitando-o, pois Deus é imóvel e indivisível.

A partir da compreensão de Deus como ser imóvel e indivisível, a

argumentação segue aplicando esses conceitos ao conhecimento de Deus:

Uma vez que todo juízo abarca segundo sua própria natureza aquilo que lhe é submetido e que Deus tem uma natureza sempre eterna e presente, também seu saber, que ultrapassa todo o movimento do tempo, permanece imutável em seu presente e, abarcando os espaços infinitos do passado e do futuro, considera a todos os acontecimentos como se eles já estivessem se desenrolando. É dessa forma que, se queres ter uma ideia de sua presciência, pela qual ele distingue todas as coisas, estarás mais próximo da verdade se a considerares não como a presciência do futuro, mas como a ciência de uma eminência a qual não se pode ultrapassar; assim, preferimos chama-a de previdência, e não previsão, pois ela se estabelece longe do que há mais abaixo, e é dessa forma que dos cimos do universo ela supervisiona todas as coisas (BOÉCIO, Consolação, V.11).

O conhecimento de Deus é, portanto, segundo a Filosofia, mais do que

mera previsão: Deus vê todo o curso da história em um só momento no seu

eterno presente, de modo que essa sua visão não torna necessário nenhum dos

eventos conquanto seja também verdadeira.

Essa é a razão por que a presciência divina não modifica a natureza das coisas em suas propriedades e as vê presentes em seus lugares tais como elas se realizarão um dia no tempo. Ela não se engana com o juízo que faz das coisas e, de uma só visada de sua inteligência, distingue perfeitamente o que ocorrerá de maneira necessária (BOÉCIO, Consolação, V.11).

Os eventos futuros, portanto, podem ser considerados necessários do

ponto de vista do conhecimento que Deus possui desses eventos, porém, é

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contingente do ponto de vista de sua própria natureza. São admitidas duas

espécies de necessidade: a necessidade absoluta e a necessidade condicional.

A necessidade absoluta diz respeito a impossibilidade de um evento conhecido

por Deus não vir a ocorrer. Já a solução de Aristóteles, de que uma proposição

deve ser considerada verdadeira ou falsa somente no momento da ocorrência à

qual se refere, é corretamente categorizada como necessidade condicional, ou

seja, estará correto dizer que um homem está andando se ele de fato estiver.

Logo, a liberdade da vontade dos seres racionais é preservada e os eventos

futuros são, portanto, contingentes. Esse resumo é pertinente: “se vemos as

coisas da perspectiva divina, são necessárias; mas, consideradas nelas

mesmas, estão livres de qualquer vínculo com a necessidade” (BOÉCIO,

Consolação, V.11).

A última passagem do livro, ainda na voz da personificação da Filosofia,

Boécio escreve na segunda pessoa do plural, traçando alguns conselhos a seus

leitores. Ele encerra dizendo que, diante da contingência dos eventos futuros,

baseada no livre arbítrio dos seres humanos, e diante do conhecimento imediato

de Deus de todas as coisas, convém ao homem afastar-se do mal, cultivar o

bem, elevar sua alma à altura de suas justas esperanças e fazer chegar aos céus

suas humildes preces, pois suas ações estão sob olhos de um juiz que tudo vê.

Neste terceiro capítulo, examinamos panoramicamente a biografia de

Boécio bem como dos Livros I a IV da Consolação, e fizemos uma leitura

exploratória e analítica da solução ao problema dos futuros contingentes

apresentado no seu Livro V.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos introdutoriamente, inquietações a respeito do futuro

estiveram e ainda estão presentes no ser humano. Compreender se os eventos

futuros foram traçados por alguém e acontecerão inevitavelmente, ou se de fato

os homens possuem alguma ingerência no curso da história, sempre causou

inquietação.

A pergunta central que esta dissertação pretendeu responder foi: como

Boécio trata a proposição lógico-filosófica dos futuros contingentes de

Aristóteles?

A pesquisa teve cunho bibliográfico, baseado na leitura exploratória e

analítica das obras Da Interpretação, capítulo 9, de Aristóteles, e A Consolação

da Filosofia, de Boécio, e seguiu a seguinte estrutura de capítulos:

Pudemos analisar no primeiro capítulo, de forma panorâmica, as soluções

mitológica, pré-socrática e platônica, como uma forma de demonstrar que

Aristóteles não é original quanto ao tratamento do tema, mas sim quanto ao

modo de sua tratativa.

No segundo capítulo focamos na tratativa de Aristóteles descrita no

capítulo 9 da Interpretação com respeito à contingência do futuro pelo viés

lógico-filosófico.

Por fim, no terceiro capítulo, depois de examinarmos a biografia e o

contexto dos Livros I a IV da Consolação, vimos no Livro V que o tratamento que

Boécio faz à proposição lógico-filosófica dos futuros contingentes de Aristóteles

é de cunho teológico. Boécio entende que o conhecimento que Deus possui de

todos os eventos – passados, presentes e futuros – é um conhecimento

imediato, pois, sendo eterno, Deus não está circunscrito aos limites do tempo, e

que da perspectiva de Deus, os eventos futuros não podem não ocorrer de

acordo com o seu conhecimento, ainda que da perspectiva do homem, os

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eventos são absolutamente contingentes, em razão da liberdade da vontade das

criaturas racionais.

A importância desse trabalho se justifica, em primeiro lugar, pela

penetrante influência que a Consolação de Boécio teve no período medieval e

para além desse período nas discussões sobre os futuros contingentes e a

relação entre fé e razão.

Em segundo lugar, a importância desse trabalho se justifica pela escassez

de pesquisas contemporâneas a respeito da solução teológica de Boécio ao

problema dos futuros contingentes.

Por fim, uma terceira razão que justifica a importância desse trabalho é

pela contribuição que pode oferecer a toda comunidade de filósofos, teólogos e

religiosos contemporâneos interessados na discussão a respeito do paradoxo

existente entre a onisciência divina e a contingência da vida.

Essa pesquisa demonstrou a solução teológica de Boécio para o

problema dos futuros contingentes, apresentando a plausibilidade lógica de

conceber a onisciência de Deus – sem atribuir a ela a causa necessária dos

eventos futuros – e a contingência dos eventos futuros – com base na liberdade

da vontade humana.

Ao longo de toda a Consolação, Boécio põe na boca da Filosofia suas

próprias elucubrações.

Embora nessa história a Filosofia como “pessoa” tenha levado alívio às

inquietações de Boécio, o fato é que foi a meditação profunda nas coisas divinas

que contribuiu para tira-lo de seu estado de lamentação.

Parece correto dizer que não foi a Filosofia sozinha que o consolou, mas

sim a consciência de que Deus conhece todas as coisas e retribui a cada um

conforme suas ações. A fé religiosa de Boécio concorreu com seu lúcido

pensamento filosófico, ensejando essa magnífica obra!

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Bem-aventurado será o gênero humano Se seu coração obedecer ao Amor, O mesmo a quem o próprio Céu estrelado obedece. (BOÉCIO, Consolação, Livro II.16).

Pesquisas futuras poderão ser feitas para identificar como a solução de

Boécio na Consolação influenciou o pensamento medieval, ou, quiçá o

pensamento moderno e contemporâneo, a respeito dos futuros contingentes.

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