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Necessidade de revisão técnica, e não política
Se os irmãos Batista não eram os líderes da organização criminosa, então quem o seria?
*Érica Gorga, O Estado de S.Paulo
30 Maio 2017 | 03h07
A defesa da infalibilidade do Ministério Público Federal (MPF),
veementemente apresentada nos últimos dias por procuradores que se
manifestaram em diversos veículos da mídia, tomou as proporções de
“questão de fé”. No culto ao Ministério Público, o sr. procurador-geral
da República argumenta que “não (...) corrompeu a política nacional”,
que não erra, baseando-se sempre em provas e circunstâncias
concretas, e que sua luta é apenas pelo futuro e prosperidade da
sociedade brasileira.
Inovam os procuradores ao alegar que o Judiciário – no caso, o
Supremo Tribunal Federal (STF) – não poderia rever os termos da
delação do acordo celebrado com os srs. Joesley e Wesley Batista, a
despeito da previsão legal de revisão judicial contida no caput e no §
8.º? do artigo 4.º?da Lei 12.850/2013. Argumentam que isso
desnaturaria o instituto da colaboração premiada e poria em xeque o
futuro de novas delações e da própria Operação Lava Jato.
Esquivam-se do cerne do problema. A lógica do instituto da
colaboração premiada baseia-se e justifica-se na busca da revelação da
hierarquia da organização criminosa para que se possa desbaratá-la
com a identificação de seus líderes. O Estado dedicou três excelentes
editoriais à delação dos irmãos Batista (22, 23 e 24/5) e
especificamente apontou que os líderes de uma organização criminosa
não podem receber o benefício do não oferecimento de denúncia, pelo
que rege o artigo 4.º?, § 4.º,? I, da lei – argumento já constante no
editorial de 23/4.
A primeira resposta do sr. Rodrigo Janot, publicada no portal UOL em
23/5, não aprofundou argumentos jurídicos, além de menções
genéricas à “gravidade de fatos”, a “crimes graves em execução” e
“dezenas de documentos e informações concretas”. O editorial de 24/5,
em réplica à resposta de Janot, reforçou o questionamento técnico:
“Não era necessária especial sagacidade à Procuradoria para atinar que
o sr. Joesley era, de fato e de direito, o líder da organização criminosa.
Nos vídeos gravados pela PGR, a fala do sr. Joesley é explícita a
respeito de quem tinha a voz de comando na operação, definindo o que
fazer e o que não fazer”.
Ora, esse é o ponto fundamental que põe em xeque a legalidade da
decisão do procurador-geral, que, em vez de atacar a principal questão
técnica suscitada pelo editorial (o que, por questão de
responsabilidade, lhe competiria), em contratréplica publicada
na Folha de S.Paulo de 25/5 novamente não enfrentou o ponto,
limitando-se a discutir argumentos secundários entremeados por
frases de efeito, em nítida defesa política das ações do MPF.
Vamos aos fatos. O pré-acordo de colaboração premiada foi assinado
em 7 de abril e o acordo final, em 3 de maio. Portanto, o prazo de todas
as tratativas, do início ao fim, durou menos de um mês – prazo exíguo
para a apuração técnica séria e cuidadosa dos fatos e das provas
apresentadas e produzidas.
A cláusula 4.ª do pré-acordo de delação estabelecia que as “medidas
premiais” avaliariam a quantidade, a gravidade, o período dos ilícitos
praticados, os benefícios auferidos por Joesley Batista e a repercussão
social e econômica dos fatos, em atendimento aos critérios listados
pelo artigo 4.º, § 1.º,? da Lei 12.850 para a concessão do benefício
premial. Assim, difícil é entender como, de posse de todas as
informações que surgiram no período entre o pré-acordo e o acordo
definitivo, envolvendo corrupção de quase 2 mil políticos, pôde Janot
concluir que os srs. Joesley e Wesley não eram líderes da organização
criminosa. Quem, então, o seria?
Não foi a quantidade de corrompidos por eles grande e grave o
suficiente? O R$ 1,4 bilhão estimado na distribuição de recursos
ilegais, incluindo propinas, não atenderiam ao critério da repercussão
econômica e social do crime? O período de tempo dos delitos, que em
dez anos possibilitaram o crescimento estrondoso do faturamento do
grupo, seria, então, curto? Os benefícios bilionários auferidos teriam
sido pequenos? Seriam os srs. Joesley e Wesley apenas vítimas do
sistema de corrupção política – como sua nota de desculpas levou a
crer –, sem nenhum poder para freá-la? Teriam sido coagidos a
praticar crimes?
No caso do petrolão, a identificação dos líderes da organização
criminosa é obscura porque os ilícitos foram perpetrados via sociedade
de economia mista (Petrobrás), cujo controle é exercido pela pessoa
jurídica da União Federal. Logo, questiona-se quem seriam os líderes
políticos que controlavam a empresa e a orientavam para a realização
dos crimes: Lula, Dilma ou os ministros da Fazenda do governo do PT?
Eis a questão controvertida em discussão nos processos criminais em
Curitiba.
Mas no caso da JBS tal problema não se coloca. Trata-se de sociedade
privada, com poder de controle acionário bem definido nas mãos das
pessoas físicas dos irmãos Batista. Os presidentes do conselho de
administração e da diretoria da empresa eram os próprios Joesley e
Wesley – este último continuando no comando do grupo empresarial.
Tivessem Wesley e Joesley dito “não”, os crimes não teriam sido
cometidos. Não reconhecer isso é negar a estrutura de controle do
grupo, regrada pelo direito privado brasileiro (Lei 6.404/76, artigo
116). O controle das decisões e dos atos criminosos no caso da JBS
simplesmente não se encontra na esfera política, tal como ocorre na
Petrobrás.
As justificativas políticas apresentadas por Janot levam a crer que nada
seria revelado à sociedade se ele não aceitasse a condição da
“imunidade criminal total” para os irmãos Batista. Tal argumento é
retórico e não supre o requisito legal da necessidade de análise e
fundamentação sobre o porquê de o colaborador não se configurar
como líder da organização criminosa, que é fundamental para a
aplicação do benefício maior da ausência da denúncia criminal. É o que
se espera que o STF analise de maneira técnica, e não política.
*Doutora em direito (USP), professora no MPGC-FGV, lecionou nas
universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt e foi pesquisadora em
Stanford e Yale
A falta de reparação pelos crimes na Lava Jato
A maioria dos recursos desviados da Petrobrás deve ser restituída aos acionistas minoritários
*Érica Gorga, O Estado de S.Paulo
02 Agosto 2017 | 03h04
O sucesso do combate à corrupção, no plano internacional, é medido
não só pela condenação e prisão dos criminosos, mas também pelo
ressarcimento financeiro às vítimas dos crimes. Enquanto a segunda
instância da Justiça americana determinou o prosseguimento do
processo de indenização dos acionistas minoritários (via American
Depositary Receipts) da Petrobrás na Bolsa de Nova York – ensejando
novo recurso da companhia –, ainda não se vê processo indenizatório
equivalente no Brasil.
Países com aparato institucional evoluído de combate à corrupção
cumprem a lei para punir culpados e, sobretudo, para forçá-los a
devolver todos os valores ilicitamente auferidos aos lesados
patrimonialmente pelo crime. É o clássico binômio punição e
reparação. A obrigação de indenização do dano é, aliás, prevista pelo
artigo 91 do Código Penal brasileiro.
É na esfera cível que se dá o ressarcimento dos prejuízos causados pela
corrupção. Apesar de provocar menor comoção popular, a área cível é
tão ou mais importante que a penal. Afinal, a maioria dos brasileiros
não vive da esfera penal, mas, sim, do bom funcionamento da
economia regida por normas de direito privado.
Laureados com o Nobel, Ronald Coase e Douglass North
demonstraram que o desenvolvimento econômico depende da
segurança que as instituições jurídicas promovam ao proteger a
propriedade privada, imobiliária ou mobiliária. A primeira refere-se à
propriedade de bens imóveis e a segunda, à propriedade de valores
mobiliários ou títulos de investimento, tais como ações de sociedades
anônimas.
O sucesso do combate à corrupção abrange necessariamente a
compensação dos prejudicados, dependendo da correta identificação
de quem é a propriedade lesada ou a quem pertence o dinheiro
desviado. É justamente na reparação que a Lava Jato mais vem
deixando a desejar. Já denominei o fenômeno da não distinção entre os
desvios de dinheiro público e privado no petrolão como
“petromonialismo” da Lava Jato (Estado, 5/4), que a leva a focar a
proteção do que equivocadamente considera patrimônio estatal.
É necessário rigor técnico ao distinguir o dinheiro público desviado,
como ocorreu no propinoduto do Estado do Rio de Janeiro, do
desviado de sociedades anônimas, tais como Petrobrás, Eletrobrás e
JBS.
Nem mesmo o ilustre juiz Sergio Moro, que revoluciona as áreas penal
e processual penal, inspirado na doutrina e na jurisprudência do
Direito americano – talvez o sistema mais implacável do mundo no
combate à corrupção – é imune a críticas. Moro tem menosprezado as
instituições do direito privado brasileiro, referindo-se à Petrobrás
como companhia estatal (“state owned company”), como fez em
palestras e por 12 vezes na sentença que condenou Lula. É
tecnicamente equivocado.
No Direito brasileiro a Petrobrás é definida como sociedade anônima
de economia mista regida pelo direito privado – artigos 61 da Lei
9.478/1997 e 235 da Lei das Sociedades Anônimas (LSA). A União
Federal, apesar de acionista controladora que detém a maior parte das
ações votantes, possui apenas 28,7% do capital acionário total da
petroleira, que na sua maioria é privado. Assim, os recursos da
Petrobrás destinados ao pagamento de propinas em obras
superfaturadas provieram na proporção de 72,3% de seus demais
acionistas.
Ao mesmo tempo que está na vanguarda nas áreas pública e penal, o
juiz propõe tese que contribui para retrocessos do direito privado ao
sustentar que a “estatal” foi “vítima” dos esquemas de corrupção (Valor
Econômico, 7/2). De fato, o juiz tem autorizado o ingresso da Petrobrás
como “vítima” nos processos da Lava Jato. Se tal interpretação pode
ser admissível no Direito Penal, não pode jamais ser aceita no direito
privado. A Petrobrás não é “dona” de si própria e, portanto, não é a
vítima final do propinoduto. As vítimas finais são os proprietários da
companhia – os acionistas –, que proveram o capital que foi desviado.
Quando processada por agentes privados lesados almejando reparação,
a Petrobrás é defendida com a alegação de que é a “maior vítima de
todos os fatos” (Folha de S.Paulo, 3/4). E a tese do juiz, seja por sua
reputação, seja por sua influência sobre outros juízes, ou por
corporativismo judicial, tem sido aplicada nas varas cíveis, sendo
desprezadas as normas de ressarcimento civil do Direito nacional.
Lamy Filho e Bulhões Pedreira, os consagrados autores da LSA
brasileira, também se inspiraram no Direito americano para regrar os
deveres e obrigações das sociedades e dos diretores perante seus
acionistas. Não deixa de ser irônico que Sergio Moro “importe” a parte
penal do sistema americano que coíbe a corrupção, mas desconsidere a
parte cível do Direito americano incluída na LSA desde 1976. Se
companhias não são consideradas vítimas nos Estados Unidos – vide a
ação coletiva dos investidores contra a petroleira nos EUA –, também
não deveriam sê-lo no Brasil. Lá, como aqui, as companhias são
responsáveis pelo destino do dinheiro captado de investidores.
O “petromonialismo” da Lava Jato desconsidera a propriedade privada
e a reparação de 725.447 acionistas minoritários com nome e
sobrenome, segundo dados da Petrobrás. Neles se incluem milhares de
trabalhadores que investiram a poupança de uma vida inteira de
trabalho aplicando seu FGTS em ações da petroleira. Ainda amargaram
prejuízos os pensionistas dos fundos de pensão Funcef, Previ, Postalis e
Petros, convocados agora a fazer aportes para assegurarem sua
aposentadoria.
Quando procuradores propagam a visão de que o dinheiro desviado
pela corrupção poderia ser destinado à compra de remédios e ao
conserto de buracos, incidem no populismo que criticam, ameaçando
os resultados do seu trabalho técnico. Os recursos desviados no
“petrolão”, na maior parte, não poderiam ser assim destinados porque
simplesmente não pertencem ao Estado. E devem ser restituídos a
quem de direito.
*Doutora em direito comercial pela USP, lecionou nas universidades do
Texas, Cornell e Vanderbilt
ARTIGO: A mais escandalosa das delações
Uma operação que visa a combater corrupção não pode permitir que criminosos fiquem soltos e se locupletem com o produto do crime
Érica Gorga*, O Estado de S.Paulo
22 Maio 2017 | 05h00
Gary Becker, ganhador do Nobel e autor de Crime and Punishment: An
Economic Approach (Crime e punição: uma abordagem econômica),
demonstrou que o comportamento criminoso é o resultado de decisões
de custo e benefício.
Se os benefícios do crime suplantarem os custos a ele associados, a
prática criminosa será incentivada. Nessa ótica, a alta taxa de
criminalidade e reincidência criminosa no Brasil é plenamente
explicada por seus modelos matemáticos. A probabilidade da
condenação e os custos associados à punição aplicada aos crimes são
muito baixos em relação aos benefícios financeiros alcançados. Em
síntese: aqui, praticar crimes compensa.
A divulgação do escandaloso acordo de colaboração premiada entre o
Ministério Público Federal e os irmãos Joesley e Wesley Batista, que
prevê imunidade completa e continuidade no controle do grupo J&F,
chocou os brasileiros, gerando manifestos de boicote a produtos da JBS
nas redes sociais.
Os irmãos Batista não serão nem sequer denunciados criminalmente e
pagarão a multa pífia de R$ 220 milhões. Diferentemente de Marcelo
Odebrecht e outros célebres personagens da Lava Jato, não correm o
risco de serem presos nem de usar tornozeleira eletrônica em casas em
condomínios e bairros de luxo, desfechos, aliás, que mostram à maioria
da população que os crimes foram vantajosos.
Os irmãos Batista e o grupo JBS são investigados por dezenas de
ilícitos, incluindo irregularidades em financiamentos de R$ 8
bilhões do BNDES, investimentos irregulares de fundos de pensão no
grupo JBS, liberação de recursos do FGTS mediante pagamento de
subornos, fraudes na concessão de créditos pela Caixa Econômica
Federal e pagamentos de propinas a fiscais do Ministério da
Agricultura para obter certificados sanitários. Isso sem falar nos
pagamentos de propinas a 1.829 políticos de 28 partidos.
Joesley Batista corrompeu o próprio Ministério Público Federal,
mantendo como informante durante as tratativas do acordo o
procurador Ângelo Goulart Villela, preso na semana passada.
Ironicamente, o chefe do MPF foi bem mais rigoroso com o corrompido
da sua corporação do que com o corruptor.
O BNDES tem cerca de 21% das ações da JBS e a Caixa Econômica
Federal, 5%. Outros acionistas minoritários detêm 29,5% do capital
acionário da empresa, cujo faturamento cresceu de R$ 4,3
bilhões para R$ 170 bilhões em dez anos de governo petista, tornando-
se a maior companhia de proteína animal do mundo com aportes
suspeitos de dinheiro público.
Além de comprarem, de posse de informação privilegiada, às vésperas
do vazamento da delação, no mercado, cerca de US$ 1 bilhão,
auferindo lucros estratosféricos, os irmãos Batista venderam
recentemente cerca de R$ 300 milhões em ações da própria JBS. Tais
negociações, realizadas durante as tratativas de delação com o
Ministério Público Federal, se confirmadas, configurariam crime de
insider trading previsto no artigo 27-D da Lei 6.385/76.
A quebra do dever de sigilo e o uso de informações privilegiadas sobre
o fechamento do próprio acordo de delação, visando a obter lucro no
mercado financeiro superior ao valor da multa firmada com o MPF,
reforçam a crítica de que o MPF acabou permitindo que colaborações
premiadas se transformem em negócios lucrativos para os criminosos.
Assim, foram ludibriados o MPF e os acionistas minoritários da JBS,
até mesmo o BNDES e a Caixa Econômica Federal, que, sem acesso às
informações privilegiadas, amargaram os prejuízos da desvalorização
das ações que detêm.
Os Batista ainda insistem em dar as cartas ao recusar o acordo de
leniência de R$ 11 bilhões proposto pelo MPF à J&F, correspondente a
apenas 5,8% do faturamento da empresa em 2016, a serem pagos em
dez anos. Era o acordo do século, considerando-se os lucros realizados
no mercado, a anistia pelos ilícitos investigados e que a Lei 12.846/13
permite multa de até 20% do faturamento. Não surpreenderá se os
Batista contratarem mais ex-procuradores para defender a J&F das
acusações nas ações judiciais.
Não é a primeira vez que o MPF falha ao negociar delações,
transformando-as em verdadeiro prêmio para os criminosos, na
contramão de práticas de outros países. No acordo com o doleiro
Alberto Youssef foi incluída espécie de “cláusula de performance” que
lhe atribuiu 2% dos valores de origem ilícita que ajudasse as
autoridades a recuperar. Tal arranjo assemelha-se a bônus de
pagamento usualmente oferecido a altos executivos do mercado
financeiro. Mas há singela diferença: os executivos ganham sobre os
lucros lícitos que geram e não sobre o produto do crime que ajudaram
a desviar.
Os crimes concomitantes às tratativas neste caso requerem que o
acordo de colaboração premiada seja anulado. Uma operação que visa
a combater seriamente crimes associados à corrupção não pode
permitir que criminosos fiquem soltos e se locupletem com o produto
do crime. Nem pode sinalizar à sociedade brasileira que o crime
compensa.
Os Batista mudaram para os Estados Unidos. Na ânsia de adentrar no
cume do poder político e produzir provas contra o atual presidente, o
MPF, com a bênção do Supremo Tribunal Federal, conseguiu lhes
entregar oficialmente e de bandeja a realização do “sonho americano”.
*DOUTORA EM DIREITO PELA USP E PROFESSORA (MPGC-FGV).
LECIONOU NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E
VANDERBILT E FOI PESQUISADORA EM STANFORD E YALE
ÉRICA GORGA
As viagens de Temer e Joesley Não é de hoje que as noções de público e privado confundem-se no Brasil. A mesma indistinção por vezes ocorre entre a propriedade da
empresa e a propriedade de seus acionistas controladores.
A novidade talvez seja que essa confusão contaminou o trabalho dos
próprios membros do Ministério Público, que, como técnicos, deveriam disseminar informações corretas sobre o dinheiro desviado em
propinas e benesses a infratores.
Um exemplo: procuradores divulgam dados a respeito do desvio de dinheiro "público" do "petrolão". Tecnicamente, segundo normas do
direito brasileiro, o dinheiro desviado pertence à empresa Petrobras, que tem personalidade jurídica própria e patrimônio separado em
relação ao Estado brasileiro.
A Petrobras é sociedade de economia mista na qual a União, apesar de ser acionista controladora, possui menos de 29% do capital total. A
análise da propriedade acionária revela, portanto, que investidores privados arcaram, proporcionalmente, com a maior parte dos prejuízos
advindos do megaesquema de corrupção.
Seguindo tal fenômeno, que denominei de "petromonialismo" por não
distinguir o desvio de dinheiro público do privado, vê-se agora o "Esleymonialismo," que confunde o patrimônio da empresa JBS com
propriedades particulares de Joesley e Wesley Batista, seus acionistas
controladores.
Noticiou-se que Joesley, após a divulgação do escandaloso acordo de
delação premiada, mudou-se com sua família para os Estados Unidos em "seu jato", fato que, aliás, causou enorme indignação nacional.
Ocorre que o citado jato, tecnicamente, não pertence aos irmãos
Batista, mas sim à companhia JBS, conforme noticiou esta Folha.
Pequeno detalhe que só faz aumentar tal indignação. A JBS possui
como acionistas o BNDES, com cerca de 21% das ações, a Caixa
Econômica Federal, com 5%, e outros investidores, detentores de 30%.
Isso significa que o custo do leasing e das viagens das aeronaves é pago na proporção de 26% com dinheiro do próprio Estado -já que BNDES e
Caixa são empresas públicas -e de 30% com dinheiro de investidores e
acionistas privados.
Verifica-se, então, que Joesley ofereceu ao presidente da República -para, futuramente, poder cobrar o "favorzinho" financiado por chapéu
alheio- o uso da aeronave custeada irregularmente por acionistas
minoritários, tanto da esfera pública como da privada.
Se a utilização do jato fizesse parte da remuneração regular de
conselheiros e diretores da empresa -os próprios Joesley e Wesley-, tal informação precisaria constar na política de remuneração da JBS, que
deve ser oficialmente divulgada à Comissão de Valores Mobiliários
(CVM).
Todavia, o emprego das aeronaves não consta como benefício indireto -
ou seja, Joesley faz uso da propriedade da empresa para fins absolutamente particulares e alheios aos interesses dos demais
acionistas. Tal conduta já se encontra sob investigação em processo administrativo
aberto pela CVM após a notícia veiculada pela Folha.
Cabe agora também investigar o uso ilegal das aeronaves da JBS para
fins de lazer de convidados de Joesley, prática que lesa os acionistas minoritários da empresa, os quais não deveriam ser obrigados a
cofinanciar viagens a Nova York, a Comandatuba (BA) e,
provavelmente, a outros destinos turísticos.
ÉRICA GORGA, doutora em direito comercial pela Faculdade de Direito da USP, foi professora nas Universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt (EUA)
PARTICIPAÇÃO
Para colaborar, basta enviar e-mail para [email protected]
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos
problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do
pensamentos contemporâneo.
O ‘petromonialismo’ da Operação Lava Jato
É necessária absoluta transparência sobre o destino de todos os valores recuperados
ÉRICA GORGA*, O Estado de S.Paulo
05 Abril 2017 | 03h00
Celebrados três anos da Operação Lava Jato, o patrimonialismo
permanece, mais do que nunca, arraigado entre nós. Aliás, pode-se
agora intitulá-lo de “petromonialismo”, que consiste na não distinção
entre os desvios de dinheiro público e privado no “petrolão”, e da
persecução, pela Lava Jato, somente dos crimes que atentam contra o
primeiro, mas não dos que atentam contra o segundo.
Conforme dados de fevereiro de 2017 do site da operação (A Lava Jato
em números), os crimes investigados compreendem “corrupção, crimes
contra o sistema financeiro internacional, tráfico transnacional de
drogas, formação de organização criminosa, lavagem de ativos, entre
outros”. São também citadas “acusações de improbidade
administrativa”.
Analise-se a natureza dos crimes listados pela própria Lava Jato como
os mais representativos dos seus esforços. Corrupção ativa enseja
“oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público”
(artigo 333 do Código Penal). Já corrupção passiva é a conduta
praticada por quem recebe vantagem indevida em razão da função que
ocupa (artigo 317 do mesmo código). Assim, primariamente, os crimes
de corrupção ativa e passiva relacionam-se a condutas espúrias
praticadas nas relações com funcionários do Estado.
A lavagem de dinheiro, segundo o artigo 1.º da Lei 9.613/98, refere-se à
ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização ou
propriedade de valores provenientes de infração penal, a qual
determinará a natureza desse crime. Se a lavagem de dinheiro provém
de corrupção ativa ou passiva, também é relacionada a valores pagos a
funcionários públicos ou por eles recebidos.
Os crimes contra o sistema financeiro internacional na Lava Jato
abrangem os próprios crimes de lavagem de dinheiro relativos à
corrupção ativa e passiva de agentes do Estado, já que os recursos
muitas vezes se encontram no exterior.
O tráfico de drogas está na origem da operação, que detectou o desvio
de intitulados “recursos públicos” pelos doleiros que lavavam dinheiro
do tráfico (lembre-se a Range Rover dada por Alberto Youssef ao ex-
diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa, conectando, pela primeira
vez, o nome da empresa às atividades criminosas). Do mesmo modo, os
crimes de formação de quadrilha referem-se à associação de três ou
mais pessoas com o fim de cometer os crimes citados.
Os atos de improbidade administrativa listados na Lei 8.429/1992
também tratam do enriquecimento ilícito de ocupantes de cargos da
administração pública, direta ou indireta.
Em síntese, a conclusão é evidente: a Lava Jato tem-se restringido a
investigar e punir, grosso modo, as pessoas que praticam os tais crimes
tipificados contra o patrimônio tido como público.
Acontece que o dinheiro desviado no petrolão não pertence apenas ao
Estado brasileiro. A União Federal, apesar de acionista controladora, é
proprietária de apenas 28,7% do capital acionário da Petrobrás, sendo
a maior parte dele detida por acionistas privados. A Petrobrás
protagonizou a maior oferta pública de ações do mundo em 2010,
quando angariou cerca de R$ 45 bilhões de acionistas e investidores
privados nacionais (inclusive via FGTS) e internacionais, para projetos
de expansão e exploração do pré-sal. Tais valores depois foram
desviados da companhia (e, portanto, dos acionistas privados) em
operações fraudulentas e pagamento de propinas.
Porém, no petromonialismo da Lava Jato, os crimes praticados contra
a poupança privada investida na Petrobrás e o sistema financeiro
nacional não foram ainda punidos, nem sequer são investigados. São
negligenciados inúmeros crimes previstos na Lei 7.492/86 cometidos
pelo acionista controlador e por diretores da Petrobrás, incluindo a
divulgação de informações falsas, gestão fraudulenta, indução do
investidor a erro e manutenção de contabilidade paralela à oficial,
entre outros. São também olvidados os crimes de manipulação de
mercado e uso indevido de informação privilegiada, previstos na Lei
6.385/76. Por que a operação não foca os crimes praticados contra o
sistema financeiro nacional, ao invés de se restringir aos praticados
contra o internacional?
A Petrobrás é sociedade de economia mista e, no que tange às
obrigações e aos deveres para com acionistas privados, por lei, segue o
regime das demais sociedades anônimas privadas, segundo o artigo
235 da Lei das Sociedades Anônimas. Mas, na esfera do ressarcimento
dos danos da atividade criminosa, o petromonialismo acaba por
disseminar para o grande público a confusão entre o patrimônio
público e o privado, gerando o mantra repetido pela opinião pública de
que “o dinheiro desviado deve retornar ao Estado ou aos cofres
públicos”.
Noticiou-se que apenas cerca de R$ 661 milhões foram devolvidos até
agora pela Lava Jato à Petrobrás, enquanto se fala da recuperação de
mais de R$ 5 bilhões pela operação. É necessária absoluta
transparência da Lava Jato sobre o destino de todos os valores
recuperados. Nenhum dinheiro desviado da Petrobrás (e, portanto, dos
investidores privados) pode retornar diretamente à União Federal ou
aos “cofres públicos”, pois não se trata de “dinheiro público”. Se obras
contratadas pela Petrobrás (e com investimento dos seus acionistas)
foram superfaturadas e empreiteiras receberam valores muito
superiores ao preço justo de mercado, tais valores devem retornar à
companhia e, depois, ser destinados à reparação das vítimas finais, os
acionistas e investidores lesados. Urge criar mecanismos como os fair
fundsamericanos, que possibilitam o destino de recursos das multas e
acordos de conduta ou leniência aos reais prejudicados. Só assim os
investidores recuperarão a confiança no mercado de capitais brasileiro,
tornando viável a retomada econômica do País.
* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO COMERCIAL PELA
USP, PROFESSORA (MPGC-FGV) E ADVOGADA EM SÃO PAULO,
LECIONOU TAMBÉM NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL
E VANDERBILT E FOI PESQUISADORA NAS UNIVERSIDADES
STANFORD E YALE