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Necessidade de revisão técnica, e não política Se os irmãos Batista não eram os líderes da organização criminosa, então quem o seria? *Érica Gorga, O Estado de S.Paulo 30 Maio 2017 | 03h07 A defesa da infalibilidade do Ministério Público Federal (MPF), veementemente apresentada nos últimos dias por procuradores que se manifestaram em diversos veículos da mídia, tomou as proporções de “questão de fé”. No culto ao Ministério Público, o sr. procurador-geral da República argumenta que “não (...) corrompeu a política nacional”, que não erra, baseando-se sempre em provas e circunstâncias concretas, e que sua luta é apenas pelo futuro e prosperidade da sociedade brasileira. Inovam os procuradores ao alegar que o Judiciário – no caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) – não poderia rever os termos da delação do acordo celebrado com os srs. Joesley e Wesley Batista, a despeito da previsão legal de revisão judicial contida no caput e no § 8.º? do artigo 4.º?da Lei 12.850/2013. Argumentam que isso desnaturaria o instituto da colaboração premiada e poria em xeque o futuro de novas delações e da própria Operação Lava Jato. Esquivam-se do cerne do problema. A lógica do instituto da colaboração premiada baseia-se e justifica-se na busca da revelação da hierarquia da organização criminosa para que se possa desbaratá-la com a identificação de seus líderes. O Estado dedicou três excelentes

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Necessidade de revisão técnica, e não política

Se os irmãos Batista não eram os líderes da organização criminosa, então quem o seria?

*Érica Gorga, O Estado de S.Paulo

30 Maio 2017 | 03h07

A defesa da infalibilidade do Ministério Público Federal (MPF),

veementemente apresentada nos últimos dias por procuradores que se

manifestaram em diversos veículos da mídia, tomou as proporções de

“questão de fé”. No culto ao Ministério Público, o sr. procurador-geral

da República argumenta que “não (...) corrompeu a política nacional”,

que não erra, baseando-se sempre em provas e circunstâncias

concretas, e que sua luta é apenas pelo futuro e prosperidade da

sociedade brasileira.

Inovam os procuradores ao alegar que o Judiciário – no caso, o

Supremo Tribunal Federal (STF) – não poderia rever os termos da

delação do acordo celebrado com os srs. Joesley e Wesley Batista, a

despeito da previsão legal de revisão judicial contida no caput e no §

8.º? do artigo 4.º?da Lei 12.850/2013. Argumentam que isso

desnaturaria o instituto da colaboração premiada e poria em xeque o

futuro de novas delações e da própria Operação Lava Jato.

Esquivam-se do cerne do problema. A lógica do instituto da

colaboração premiada baseia-se e justifica-se na busca da revelação da

hierarquia da organização criminosa para que se possa desbaratá-la

com a identificação de seus líderes. O Estado dedicou três excelentes

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editoriais à delação dos irmãos Batista (22, 23 e 24/5) e

especificamente apontou que os líderes de uma organização criminosa

não podem receber o benefício do não oferecimento de denúncia, pelo

que rege o artigo 4.º?, § 4.º,? I, da lei – argumento já constante no

editorial de 23/4.

A primeira resposta do sr. Rodrigo Janot, publicada no portal UOL em

23/5, não aprofundou argumentos jurídicos, além de menções

genéricas à “gravidade de fatos”, a “crimes graves em execução” e

“dezenas de documentos e informações concretas”. O editorial de 24/5,

em réplica à resposta de Janot, reforçou o questionamento técnico:

“Não era necessária especial sagacidade à Procuradoria para atinar que

o sr. Joesley era, de fato e de direito, o líder da organização criminosa.

Nos vídeos gravados pela PGR, a fala do sr. Joesley é explícita a

respeito de quem tinha a voz de comando na operação, definindo o que

fazer e o que não fazer”.

Ora, esse é o ponto fundamental que põe em xeque a legalidade da

decisão do procurador-geral, que, em vez de atacar a principal questão

técnica suscitada pelo editorial (o que, por questão de

responsabilidade, lhe competiria), em contratréplica publicada

na Folha de S.Paulo de 25/5 novamente não enfrentou o ponto,

limitando-se a discutir argumentos secundários entremeados por

frases de efeito, em nítida defesa política das ações do MPF.

Vamos aos fatos. O pré-acordo de colaboração premiada foi assinado

em 7 de abril e o acordo final, em 3 de maio. Portanto, o prazo de todas

as tratativas, do início ao fim, durou menos de um mês – prazo exíguo

para a apuração técnica séria e cuidadosa dos fatos e das provas

apresentadas e produzidas.

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A cláusula 4.ª do pré-acordo de delação estabelecia que as “medidas

premiais” avaliariam a quantidade, a gravidade, o período dos ilícitos

praticados, os benefícios auferidos por Joesley Batista e a repercussão

social e econômica dos fatos, em atendimento aos critérios listados

pelo artigo 4.º, § 1.º,? da Lei 12.850 para a concessão do benefício

premial. Assim, difícil é entender como, de posse de todas as

informações que surgiram no período entre o pré-acordo e o acordo

definitivo, envolvendo corrupção de quase 2 mil políticos, pôde Janot

concluir que os srs. Joesley e Wesley não eram líderes da organização

criminosa. Quem, então, o seria?

Não foi a quantidade de corrompidos por eles grande e grave o

suficiente? O R$ 1,4 bilhão estimado na distribuição de recursos

ilegais, incluindo propinas, não atenderiam ao critério da repercussão

econômica e social do crime? O período de tempo dos delitos, que em

dez anos possibilitaram o crescimento estrondoso do faturamento do

grupo, seria, então, curto? Os benefícios bilionários auferidos teriam

sido pequenos? Seriam os srs. Joesley e Wesley apenas vítimas do

sistema de corrupção política – como sua nota de desculpas levou a

crer –, sem nenhum poder para freá-la? Teriam sido coagidos a

praticar crimes?

No caso do petrolão, a identificação dos líderes da organização

criminosa é obscura porque os ilícitos foram perpetrados via sociedade

de economia mista (Petrobrás), cujo controle é exercido pela pessoa

jurídica da União Federal. Logo, questiona-se quem seriam os líderes

políticos que controlavam a empresa e a orientavam para a realização

dos crimes: Lula, Dilma ou os ministros da Fazenda do governo do PT?

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Eis a questão controvertida em discussão nos processos criminais em

Curitiba.

Mas no caso da JBS tal problema não se coloca. Trata-se de sociedade

privada, com poder de controle acionário bem definido nas mãos das

pessoas físicas dos irmãos Batista. Os presidentes do conselho de

administração e da diretoria da empresa eram os próprios Joesley e

Wesley – este último continuando no comando do grupo empresarial.

Tivessem Wesley e Joesley dito “não”, os crimes não teriam sido

cometidos. Não reconhecer isso é negar a estrutura de controle do

grupo, regrada pelo direito privado brasileiro (Lei 6.404/76, artigo

116). O controle das decisões e dos atos criminosos no caso da JBS

simplesmente não se encontra na esfera política, tal como ocorre na

Petrobrás.

As justificativas políticas apresentadas por Janot levam a crer que nada

seria revelado à sociedade se ele não aceitasse a condição da

“imunidade criminal total” para os irmãos Batista. Tal argumento é

retórico e não supre o requisito legal da necessidade de análise e

fundamentação sobre o porquê de o colaborador não se configurar

como líder da organização criminosa, que é fundamental para a

aplicação do benefício maior da ausência da denúncia criminal. É o que

se espera que o STF analise de maneira técnica, e não política.

*Doutora em direito (USP), professora no MPGC-FGV, lecionou nas

universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt e foi pesquisadora em

Stanford e Yale

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A falta de reparação pelos crimes na Lava Jato

A maioria dos recursos desviados da Petrobrás deve ser restituída aos acionistas minoritários

*Érica Gorga, O Estado de S.Paulo

02 Agosto 2017 | 03h04

O sucesso do combate à corrupção, no plano internacional, é medido

não só pela condenação e prisão dos criminosos, mas também pelo

ressarcimento financeiro às vítimas dos crimes. Enquanto a segunda

instância da Justiça americana determinou o prosseguimento do

processo de indenização dos acionistas minoritários (via American

Depositary Receipts) da Petrobrás na Bolsa de Nova York – ensejando

novo recurso da companhia –, ainda não se vê processo indenizatório

equivalente no Brasil.

Países com aparato institucional evoluído de combate à corrupção

cumprem a lei para punir culpados e, sobretudo, para forçá-los a

devolver todos os valores ilicitamente auferidos aos lesados

patrimonialmente pelo crime. É o clássico binômio punição e

reparação. A obrigação de indenização do dano é, aliás, prevista pelo

artigo 91 do Código Penal brasileiro.

É na esfera cível que se dá o ressarcimento dos prejuízos causados pela

corrupção. Apesar de provocar menor comoção popular, a área cível é

tão ou mais importante que a penal. Afinal, a maioria dos brasileiros

não vive da esfera penal, mas, sim, do bom funcionamento da

economia regida por normas de direito privado.

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Laureados com o Nobel, Ronald Coase e Douglass North

demonstraram que o desenvolvimento econômico depende da

segurança que as instituições jurídicas promovam ao proteger a

propriedade privada, imobiliária ou mobiliária. A primeira refere-se à

propriedade de bens imóveis e a segunda, à propriedade de valores

mobiliários ou títulos de investimento, tais como ações de sociedades

anônimas.

O sucesso do combate à corrupção abrange necessariamente a

compensação dos prejudicados, dependendo da correta identificação

de quem é a propriedade lesada ou a quem pertence o dinheiro

desviado. É justamente na reparação que a Lava Jato mais vem

deixando a desejar. Já denominei o fenômeno da não distinção entre os

desvios de dinheiro público e privado no petrolão como

“petromonialismo” da Lava Jato (Estado, 5/4), que a leva a focar a

proteção do que equivocadamente considera patrimônio estatal.

É necessário rigor técnico ao distinguir o dinheiro público desviado,

como ocorreu no propinoduto do Estado do Rio de Janeiro, do

desviado de sociedades anônimas, tais como Petrobrás, Eletrobrás e

JBS.

Nem mesmo o ilustre juiz Sergio Moro, que revoluciona as áreas penal

e processual penal, inspirado na doutrina e na jurisprudência do

Direito americano – talvez o sistema mais implacável do mundo no

combate à corrupção – é imune a críticas. Moro tem menosprezado as

instituições do direito privado brasileiro, referindo-se à Petrobrás

como companhia estatal (“state owned company”), como fez em

palestras e por 12 vezes na sentença que condenou Lula. É

tecnicamente equivocado.

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No Direito brasileiro a Petrobrás é definida como sociedade anônima

de economia mista regida pelo direito privado – artigos 61 da Lei

9.478/1997 e 235 da Lei das Sociedades Anônimas (LSA). A União

Federal, apesar de acionista controladora que detém a maior parte das

ações votantes, possui apenas 28,7% do capital acionário total da

petroleira, que na sua maioria é privado. Assim, os recursos da

Petrobrás destinados ao pagamento de propinas em obras

superfaturadas provieram na proporção de 72,3% de seus demais

acionistas.

Ao mesmo tempo que está na vanguarda nas áreas pública e penal, o

juiz propõe tese que contribui para retrocessos do direito privado ao

sustentar que a “estatal” foi “vítima” dos esquemas de corrupção (Valor

Econômico, 7/2). De fato, o juiz tem autorizado o ingresso da Petrobrás

como “vítima” nos processos da Lava Jato. Se tal interpretação pode

ser admissível no Direito Penal, não pode jamais ser aceita no direito

privado. A Petrobrás não é “dona” de si própria e, portanto, não é a

vítima final do propinoduto. As vítimas finais são os proprietários da

companhia – os acionistas –, que proveram o capital que foi desviado.

Quando processada por agentes privados lesados almejando reparação,

a Petrobrás é defendida com a alegação de que é a “maior vítima de

todos os fatos” (Folha de S.Paulo, 3/4). E a tese do juiz, seja por sua

reputação, seja por sua influência sobre outros juízes, ou por

corporativismo judicial, tem sido aplicada nas varas cíveis, sendo

desprezadas as normas de ressarcimento civil do Direito nacional.

Lamy Filho e Bulhões Pedreira, os consagrados autores da LSA

brasileira, também se inspiraram no Direito americano para regrar os

deveres e obrigações das sociedades e dos diretores perante seus

acionistas. Não deixa de ser irônico que Sergio Moro “importe” a parte

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penal do sistema americano que coíbe a corrupção, mas desconsidere a

parte cível do Direito americano incluída na LSA desde 1976. Se

companhias não são consideradas vítimas nos Estados Unidos – vide a

ação coletiva dos investidores contra a petroleira nos EUA –, também

não deveriam sê-lo no Brasil. Lá, como aqui, as companhias são

responsáveis pelo destino do dinheiro captado de investidores.

O “petromonialismo” da Lava Jato desconsidera a propriedade privada

e a reparação de 725.447 acionistas minoritários com nome e

sobrenome, segundo dados da Petrobrás. Neles se incluem milhares de

trabalhadores que investiram a poupança de uma vida inteira de

trabalho aplicando seu FGTS em ações da petroleira. Ainda amargaram

prejuízos os pensionistas dos fundos de pensão Funcef, Previ, Postalis e

Petros, convocados agora a fazer aportes para assegurarem sua

aposentadoria.

Quando procuradores propagam a visão de que o dinheiro desviado

pela corrupção poderia ser destinado à compra de remédios e ao

conserto de buracos, incidem no populismo que criticam, ameaçando

os resultados do seu trabalho técnico. Os recursos desviados no

“petrolão”, na maior parte, não poderiam ser assim destinados porque

simplesmente não pertencem ao Estado. E devem ser restituídos a

quem de direito.

*Doutora em direito comercial pela USP, lecionou nas universidades do

Texas, Cornell e Vanderbilt

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ARTIGO: A mais escandalosa das delações

Uma operação que visa a combater corrupção não pode permitir que criminosos fiquem soltos e se locupletem com o produto do crime

Érica Gorga*, O Estado de S.Paulo

22 Maio 2017 | 05h00

Gary Becker, ganhador do Nobel e autor de Crime and Punishment: An

Economic Approach (Crime e punição: uma abordagem econômica),

demonstrou que o comportamento criminoso é o resultado de decisões

de custo e benefício.

Se os benefícios do crime suplantarem os custos a ele associados, a

prática criminosa será incentivada. Nessa ótica, a alta taxa de

criminalidade e reincidência criminosa no Brasil é plenamente

explicada por seus modelos matemáticos. A probabilidade da

condenação e os custos associados à punição aplicada aos crimes são

muito baixos em relação aos benefícios financeiros alcançados. Em

síntese: aqui, praticar crimes compensa.

A divulgação do escandaloso acordo de colaboração premiada entre o

Ministério Público Federal e os irmãos Joesley e Wesley Batista, que

prevê imunidade completa e continuidade no controle do grupo J&F,

chocou os brasileiros, gerando manifestos de boicote a produtos da JBS

nas redes sociais.

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Os irmãos Batista não serão nem sequer denunciados criminalmente e

pagarão a multa pífia de R$ 220 milhões. Diferentemente de Marcelo

Odebrecht e outros célebres personagens da Lava Jato, não correm o

risco de serem presos nem de usar tornozeleira eletrônica em casas em

condomínios e bairros de luxo, desfechos, aliás, que mostram à maioria

da população que os crimes foram vantajosos.

Os irmãos Batista e o grupo JBS são investigados por dezenas de

ilícitos, incluindo irregularidades em financiamentos de R$ 8

bilhões do BNDES, investimentos irregulares de fundos de pensão no

grupo JBS, liberação de recursos do FGTS mediante pagamento de

subornos, fraudes na concessão de créditos pela Caixa Econômica

Federal e pagamentos de propinas a fiscais do Ministério da

Agricultura para obter certificados sanitários. Isso sem falar nos

pagamentos de propinas a 1.829 políticos de 28 partidos.

Joesley Batista corrompeu o próprio Ministério Público Federal,

mantendo como informante durante as tratativas do acordo o

procurador Ângelo Goulart Villela, preso na semana passada.

Ironicamente, o chefe do MPF foi bem mais rigoroso com o corrompido

da sua corporação do que com o corruptor.

O BNDES tem cerca de 21% das ações da JBS e a Caixa Econômica

Federal, 5%. Outros acionistas minoritários detêm 29,5% do capital

acionário da empresa, cujo faturamento cresceu de R$ 4,3

bilhões para R$ 170 bilhões em dez anos de governo petista, tornando-

se a maior companhia de proteína animal do mundo com aportes

suspeitos de dinheiro público.

Além de comprarem, de posse de informação privilegiada, às vésperas

do vazamento da delação, no mercado, cerca de US$ 1 bilhão,

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auferindo lucros estratosféricos, os irmãos Batista venderam

recentemente cerca de R$ 300 milhões em ações da própria JBS. Tais

negociações, realizadas durante as tratativas de delação com o

Ministério Público Federal, se confirmadas, configurariam crime de

insider trading previsto no artigo 27-D da Lei 6.385/76.

A quebra do dever de sigilo e o uso de informações privilegiadas sobre

o fechamento do próprio acordo de delação, visando a obter lucro no

mercado financeiro superior ao valor da multa firmada com o MPF,

reforçam a crítica de que o MPF acabou permitindo que colaborações

premiadas se transformem em negócios lucrativos para os criminosos.

Assim, foram ludibriados o MPF e os acionistas minoritários da JBS,

até mesmo o BNDES e a Caixa Econômica Federal, que, sem acesso às

informações privilegiadas, amargaram os prejuízos da desvalorização

das ações que detêm.

Os Batista ainda insistem em dar as cartas ao recusar o acordo de

leniência de R$ 11 bilhões proposto pelo MPF à J&F, correspondente a

apenas 5,8% do faturamento da empresa em 2016, a serem pagos em

dez anos. Era o acordo do século, considerando-se os lucros realizados

no mercado, a anistia pelos ilícitos investigados e que a Lei 12.846/13

permite multa de até 20% do faturamento. Não surpreenderá se os

Batista contratarem mais ex-procuradores para defender a J&F das

acusações nas ações judiciais.

Não é a primeira vez que o MPF falha ao negociar delações,

transformando-as em verdadeiro prêmio para os criminosos, na

contramão de práticas de outros países. No acordo com o doleiro

Alberto Youssef foi incluída espécie de “cláusula de performance” que

lhe atribuiu 2% dos valores de origem ilícita que ajudasse as

autoridades a recuperar. Tal arranjo assemelha-se a bônus de

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pagamento usualmente oferecido a altos executivos do mercado

financeiro. Mas há singela diferença: os executivos ganham sobre os

lucros lícitos que geram e não sobre o produto do crime que ajudaram

a desviar.

Os crimes concomitantes às tratativas neste caso requerem que o

acordo de colaboração premiada seja anulado. Uma operação que visa

a combater seriamente crimes associados à corrupção não pode

permitir que criminosos fiquem soltos e se locupletem com o produto

do crime. Nem pode sinalizar à sociedade brasileira que o crime

compensa.

Os Batista mudaram para os Estados Unidos. Na ânsia de adentrar no

cume do poder político e produzir provas contra o atual presidente, o

MPF, com a bênção do Supremo Tribunal Federal, conseguiu lhes

entregar oficialmente e de bandeja a realização do “sonho americano”.

*DOUTORA EM DIREITO PELA USP E PROFESSORA (MPGC-FGV).

LECIONOU NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E

VANDERBILT E FOI PESQUISADORA EM STANFORD E YALE

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ÉRICA GORGA

As viagens de Temer e Joesley Não é de hoje que as noções de público e privado confundem-se no Brasil. A mesma indistinção por vezes ocorre entre a propriedade da

empresa e a propriedade de seus acionistas controladores.

A novidade talvez seja que essa confusão contaminou o trabalho dos

próprios membros do Ministério Público, que, como técnicos, deveriam disseminar informações corretas sobre o dinheiro desviado em

propinas e benesses a infratores.

Um exemplo: procuradores divulgam dados a respeito do desvio de dinheiro "público" do "petrolão". Tecnicamente, segundo normas do

direito brasileiro, o dinheiro desviado pertence à empresa Petrobras, que tem personalidade jurídica própria e patrimônio separado em

relação ao Estado brasileiro.

A Petrobras é sociedade de economia mista na qual a União, apesar de ser acionista controladora, possui menos de 29% do capital total. A

análise da propriedade acionária revela, portanto, que investidores privados arcaram, proporcionalmente, com a maior parte dos prejuízos

advindos do megaesquema de corrupção.

Seguindo tal fenômeno, que denominei de "petromonialismo" por não

distinguir o desvio de dinheiro público do privado, vê-se agora o "Esleymonialismo," que confunde o patrimônio da empresa JBS com

propriedades particulares de Joesley e Wesley Batista, seus acionistas

controladores.

Noticiou-se que Joesley, após a divulgação do escandaloso acordo de

delação premiada, mudou-se com sua família para os Estados Unidos em "seu jato", fato que, aliás, causou enorme indignação nacional.

Ocorre que o citado jato, tecnicamente, não pertence aos irmãos

Batista, mas sim à companhia JBS, conforme noticiou esta Folha.

Pequeno detalhe que só faz aumentar tal indignação. A JBS possui

como acionistas o BNDES, com cerca de 21% das ações, a Caixa

Econômica Federal, com 5%, e outros investidores, detentores de 30%.

Isso significa que o custo do leasing e das viagens das aeronaves é pago na proporção de 26% com dinheiro do próprio Estado -já que BNDES e

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Caixa são empresas públicas -e de 30% com dinheiro de investidores e

acionistas privados.

Verifica-se, então, que Joesley ofereceu ao presidente da República -para, futuramente, poder cobrar o "favorzinho" financiado por chapéu

alheio- o uso da aeronave custeada irregularmente por acionistas

minoritários, tanto da esfera pública como da privada.

Se a utilização do jato fizesse parte da remuneração regular de

conselheiros e diretores da empresa -os próprios Joesley e Wesley-, tal informação precisaria constar na política de remuneração da JBS, que

deve ser oficialmente divulgada à Comissão de Valores Mobiliários

(CVM).

Todavia, o emprego das aeronaves não consta como benefício indireto -

ou seja, Joesley faz uso da propriedade da empresa para fins absolutamente particulares e alheios aos interesses dos demais

acionistas. Tal conduta já se encontra sob investigação em processo administrativo

aberto pela CVM após a notícia veiculada pela Folha.

Cabe agora também investigar o uso ilegal das aeronaves da JBS para

fins de lazer de convidados de Joesley, prática que lesa os acionistas minoritários da empresa, os quais não deveriam ser obrigados a

cofinanciar viagens a Nova York, a Comandatuba (BA) e,

provavelmente, a outros destinos turísticos.

ÉRICA GORGA, doutora em direito comercial pela Faculdade de Direito da USP, foi professora nas Universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt (EUA)

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para [email protected]

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos

problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do

pensamentos contemporâneo.

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O ‘petromonialismo’ da Operação Lava Jato

É necessária absoluta transparência sobre o destino de todos os valores recuperados

ÉRICA GORGA*, O Estado de S.Paulo

05 Abril 2017 | 03h00

Celebrados três anos da Operação Lava Jato, o patrimonialismo

permanece, mais do que nunca, arraigado entre nós. Aliás, pode-se

agora intitulá-lo de “petromonialismo”, que consiste na não distinção

entre os desvios de dinheiro público e privado no “petrolão”, e da

persecução, pela Lava Jato, somente dos crimes que atentam contra o

primeiro, mas não dos que atentam contra o segundo.

Conforme dados de fevereiro de 2017 do site da operação (A Lava Jato

em números), os crimes investigados compreendem “corrupção, crimes

contra o sistema financeiro internacional, tráfico transnacional de

drogas, formação de organização criminosa, lavagem de ativos, entre

outros”. São também citadas “acusações de improbidade

administrativa”.

Analise-se a natureza dos crimes listados pela própria Lava Jato como

os mais representativos dos seus esforços. Corrupção ativa enseja

“oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público”

(artigo 333 do Código Penal). Já corrupção passiva é a conduta

praticada por quem recebe vantagem indevida em razão da função que

ocupa (artigo 317 do mesmo código). Assim, primariamente, os crimes

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de corrupção ativa e passiva relacionam-se a condutas espúrias

praticadas nas relações com funcionários do Estado.

A lavagem de dinheiro, segundo o artigo 1.º da Lei 9.613/98, refere-se à

ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização ou

propriedade de valores provenientes de infração penal, a qual

determinará a natureza desse crime. Se a lavagem de dinheiro provém

de corrupção ativa ou passiva, também é relacionada a valores pagos a

funcionários públicos ou por eles recebidos.

Os crimes contra o sistema financeiro internacional na Lava Jato

abrangem os próprios crimes de lavagem de dinheiro relativos à

corrupção ativa e passiva de agentes do Estado, já que os recursos

muitas vezes se encontram no exterior.

O tráfico de drogas está na origem da operação, que detectou o desvio

de intitulados “recursos públicos” pelos doleiros que lavavam dinheiro

do tráfico (lembre-se a Range Rover dada por Alberto Youssef ao ex-

diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa, conectando, pela primeira

vez, o nome da empresa às atividades criminosas). Do mesmo modo, os

crimes de formação de quadrilha referem-se à associação de três ou

mais pessoas com o fim de cometer os crimes citados.

Os atos de improbidade administrativa listados na Lei 8.429/1992

também tratam do enriquecimento ilícito de ocupantes de cargos da

administração pública, direta ou indireta.

Em síntese, a conclusão é evidente: a Lava Jato tem-se restringido a

investigar e punir, grosso modo, as pessoas que praticam os tais crimes

tipificados contra o patrimônio tido como público.

Acontece que o dinheiro desviado no petrolão não pertence apenas ao

Estado brasileiro. A União Federal, apesar de acionista controladora, é

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proprietária de apenas 28,7% do capital acionário da Petrobrás, sendo

a maior parte dele detida por acionistas privados. A Petrobrás

protagonizou a maior oferta pública de ações do mundo em 2010,

quando angariou cerca de R$ 45 bilhões de acionistas e investidores

privados nacionais (inclusive via FGTS) e internacionais, para projetos

de expansão e exploração do pré-sal. Tais valores depois foram

desviados da companhia (e, portanto, dos acionistas privados) em

operações fraudulentas e pagamento de propinas.

Porém, no petromonialismo da Lava Jato, os crimes praticados contra

a poupança privada investida na Petrobrás e o sistema financeiro

nacional não foram ainda punidos, nem sequer são investigados. São

negligenciados inúmeros crimes previstos na Lei 7.492/86 cometidos

pelo acionista controlador e por diretores da Petrobrás, incluindo a

divulgação de informações falsas, gestão fraudulenta, indução do

investidor a erro e manutenção de contabilidade paralela à oficial,

entre outros. São também olvidados os crimes de manipulação de

mercado e uso indevido de informação privilegiada, previstos na Lei

6.385/76. Por que a operação não foca os crimes praticados contra o

sistema financeiro nacional, ao invés de se restringir aos praticados

contra o internacional?

A Petrobrás é sociedade de economia mista e, no que tange às

obrigações e aos deveres para com acionistas privados, por lei, segue o

regime das demais sociedades anônimas privadas, segundo o artigo

235 da Lei das Sociedades Anônimas. Mas, na esfera do ressarcimento

dos danos da atividade criminosa, o petromonialismo acaba por

disseminar para o grande público a confusão entre o patrimônio

público e o privado, gerando o mantra repetido pela opinião pública de

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que “o dinheiro desviado deve retornar ao Estado ou aos cofres

públicos”.

Noticiou-se que apenas cerca de R$ 661 milhões foram devolvidos até

agora pela Lava Jato à Petrobrás, enquanto se fala da recuperação de

mais de R$ 5 bilhões pela operação. É necessária absoluta

transparência da Lava Jato sobre o destino de todos os valores

recuperados. Nenhum dinheiro desviado da Petrobrás (e, portanto, dos

investidores privados) pode retornar diretamente à União Federal ou

aos “cofres públicos”, pois não se trata de “dinheiro público”. Se obras

contratadas pela Petrobrás (e com investimento dos seus acionistas)

foram superfaturadas e empreiteiras receberam valores muito

superiores ao preço justo de mercado, tais valores devem retornar à

companhia e, depois, ser destinados à reparação das vítimas finais, os

acionistas e investidores lesados. Urge criar mecanismos como os fair

fundsamericanos, que possibilitam o destino de recursos das multas e

acordos de conduta ou leniência aos reais prejudicados. Só assim os

investidores recuperarão a confiança no mercado de capitais brasileiro,

tornando viável a retomada econômica do País.

* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO COMERCIAL PELA

USP, PROFESSORA (MPGC-FGV) E ADVOGADA EM SÃO PAULO,

LECIONOU TAMBÉM NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL

E VANDERBILT E FOI PESQUISADORA NAS UNIVERSIDADES

STANFORD E YALE