11
1 Necessidade e Desejo: Um diálogo entre Freud e Marx Por Ricardo Jardim Andrade “Desejar é o âmago de nosso ser”, declara Freud numa de suas obras mais importantes: A interpretação dos sonhos. Marx, por sua vez, afirma em A ideologia alemã, ensaio que escreveu em parceria com Engels: “O primeiro fato histórico é a produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades *humanas+”. Freud teorizou o desejo e Marx a necessidade, procurando cada um deles determinar, a partir de horizontes distintos, o que poderíamos denominar, na esteira de F. Tinland, “diferença antropológica”. Em que medida estes dois enfoques da realidade humana se complementam e se diferenciam? É possível conciliar Marx e Freud ou, antes, suas perspectivas teóricas divergem fundamentalmente? É o que discutiremos a seguir. Freud sempre teve a preocupação de oferecer às suas investigações e descobertas clínicas um arcabouço conceptual. Seu projeto era construir um novo campo de

Necessidade e desejo um dialogo entre freud e marx ricardo jardim andrade

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

1

Necessidade e Desejo: Um diálogo entre Freud e Marx

Por Ricardo Jardim Andrade

“Desejar é o âmago de nosso ser”, declara Freud numa

de suas obras mais importantes: A interpretação dos

sonhos. Marx, por sua vez, afirma em A ideologia alemã,

ensaio que escreveu em parceria com Engels: “O primeiro

fato histórico é a produção dos meios que permitem a

satisfação das necessidades *humanas+”. Freud teorizou o

desejo e Marx a necessidade, procurando cada um deles

determinar, a partir de horizontes distintos, o que

poderíamos denominar, na esteira de F. Tinland,

“diferença antropológica”. Em que medida estes dois

enfoques da realidade humana se complementam e se

diferenciam? É possível conciliar Marx e Freud ou, antes,

suas perspectivas teóricas divergem fundamentalmente?

É o que discutiremos a seguir.

Freud sempre teve a preocupação de oferecer às

suas investigações e descobertas clínicas um arcabouço

conceptual. Seu projeto era construir um novo campo de

Page 2: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

2

inteligibilidade para os fenômenos e processos psíquicos

com base na observação clínica das neuroses e dos

sonhos. Surgiu, assim, o que ele próprio denominou

“metapsicologia”, vale dizer, a teoria psicanalítica. Trata-

se do estudo do psiquismo – ou, da alma (Seele) humana,

para empregarmos, como nos mostrou B. Bettelheim, um

termo usado e valorizado pelo próprio Freud – sob tríplice

ponto de vista, a saber, o tópico, que recorre à metáfora

do lugar psíquico (sistemas inconsciente e pré-

consciente/consciente, na primeira tópica; as instâncias

do id, ego e superego, na segunda tópica); o ponto de

vista econômico, que emprega a metáfora da energia

psíquica e dos investimentos energéticos

(desinvestimento, contrainvestimento e

superinvestimento); e, finalmente, o ponto de vista

dinâmico, que corresponde à metáfora do conflito

psíquico, cuja base é sempre de ordem pulsional (pulsões

sexuais versus pulsões de autoconservação ou do ego, na

primeira classificação; pulsões de vida versus pulsões de

morte, na segunda classificação).

Freud, contudo, não se limitou à investigação dos

fenômenos clínicos e à elaboração de uma teoria

complexa para explicar os fenômenos e processos

psíquicos, mas procurou aplicar os modelos

metapsicológicos no campo da cultura. O mesmo desejo

que dinamiza o “aparelho psíquico” e produz sonhos,

sintomas e atos falhos sustenta as mais elevadas criações

Page 3: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

3

humanas, no plano da arte, da moral, da ciência, da

filosofia e da religião. A interpretação da cultura, porém,

é mais do que uma psicanálise aplicada, pois a própria

metapsicologia foi modificada sob o impacto do dado não

clínico. Com efeito, nem a segunda tópica, nem a segunda

classificação das pulsões seriam viáveis se a atenção de

Freud não tivesse se desviado do recalcado para a

instância que recalca, do desejo para a autoridade, da

clínica para a cultura.

Tendo em vista o objetivo da presente exposição,

vou deter-me na primeira classificação das pulsões, para

estabelecer um confronto entre a teoria freudiana do

desejo e a teoria marxista da necessidade. Freud, na fase

inicial de seu percurso teórico, distingue explicitamente a

ordem biológica, correspondente às necessidades vitais

(comer, beber, dormir etc.) da ordem sexual,

correspondente ao desejo. Enquanto as pulsões de

autoconservação (necessidades vitais) possuem fontes

(sua base somática), objetos (as coisas que levam à

satisfação) e objetivos (as satisfações provocadas pelos

objetos correspondentes) fixos, as pulsões sexuais são, no

dizer de Freud, “plásticas”, quer dizer, mudam de fontes,

objetos e objetivos[1]. Em relação à fome, sede, micção,

respiração etc., ou seja, a tudo o que concerne à

autoconservação, a única solução possível para reduzir as

tensões do organismo, que provocam insatisfação, é a

realização de certos “atos específicos”, mediante os quais

Page 4: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

4

se obtém diretamente, sem qualquer mediação e sem

demora excessiva, a satisfação. Não há como eliminar

fome e sede senão pela ingestão de líquidos e de

refeições sólidas (objetos reais e predeterminados) e não

se pode protelar excessivamente o apaziguamento – logo,

no entender de Freud, a satisfação – de tais excitações

(objetivos imediatos), bem localizadas no organismo

(fontes fixas), sem que o indivíduo corra risco de morte

(por isto, falamos de necessidades vitais). O mesmo,

porém, não ocorre em relação à sexualidade. Suas fontes

(zonas erógenas), como demonstrou Freud com a sua

teoria da libido, situam-se em diversas partes do corpo

[2], seus objetos são flexíveis e mutáveis[3] e seus

objetivos, proteláveis. Por isto Freud se refere, como já

foi lembrado, à “plasticidade” das pulsões sexuais. A

plasticidade é de tal ordem que permite até a sublimação

(mudança de objetos e objetivos pulsionais) e o amor

inibido quanto à finalidade (mudança apenas de objetivo

pulsional)[4], ou seja, o prazer sexual humano, como na

sublimação da química, pode mudar de estado,

transformando-se de satisfação genital em prazer

sociocultural. Freud aproxima, portanto, a sublimação

química do sublime estético. Quando a libido se converte

em Eros, a pulsão sexual se transforma em “pulsão

social”, segundo a expressão do próprio Freud. Pode-se

dizer, portanto, que todos os que se dedicam à criação

artística, filosófica e cientifica possuem uma vida sexual

Page 5: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

5

intensa, pois a energia que mobiliza tais atividades é

sempre a libido e o prazer alcançado desta forma é de

natureza sexual, já que a sexualidade humana ultrapassa

em muito o nível genital. “O destino pouco pode fazer

contra aqueles que se dedicam à sublimação estética”,

declara Freud em Mal estar na civilização. “A obra de arte

é ao mesmo tempo o sintoma e a cura”, afirma, por sua

vez, P. Ricoeur, como intérprete do discurso freudiano.

Convém lembrar que esta leitura de Freud, apenas

esboçada acima, foi realizada por grandes teóricos

franceses, em particular J. Lacan, J. Laplanche e J. B.

Pontalis e, ainda, pelo filósofo P. Ricoeur, que acabo de

citar. Estes pesquisadores ressaltaram, também, a noção

freudiana de “apoio”, segundo a qual a sexualidade

humana se apoia na ordem vital ou biológica, para se

manifestar. Vale dizer, ela só pode emergir a partir do

que não é sexual[5]. Nada mais equivocado, portanto, do

que a crítica, tantas vezes dirigida a Freud, de que a sua

teoria do inconsciente reduz toda a existência humana à

sexualidade (o suposto “pansexualismo” do discurso

freudiano).

Os objetos das necessidades (pulsões de

autoconservação) são reais e produzem satisfação; já os

objetos do desejo são irreais (imaginários e simbólicos) e

provocam prazer. A sexualidade humana, ressalte-se,

pertence às duas ordens, vale dizer, é simultaneamente

necessidade e desejo. Por isto, pode ser fonte tanto de

Page 6: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

6

satisfação como de prazer. Convém mencionar outro

ponto importante da teoria freudiana da libido: a

satisfação das necessidades é claramente limitada, ou

seja, ultrapassando certo nível, deixa de ser satisfação,

para se tornar insatisfação (como se diz à mesa: “estou

satisfeito: não aguento comer mais nada”). Já o desejo

nunca é plenamente realizado. Como mostrou Lacan, ele

emerge com a perda da mãe, ou mais precisamente, no

momento em que o pai, representante da Lei, porta-voz

da cultura, castra a relação simbiótica da criança com a

mãe – o famoso “complexo de Édipo” -, levando-a a

buscar incessantemente substitutos simbólicos do objeto

perdido. O novo objeto se torna representante (ou

significante) do objeto perdido, vale dizer, significa ou

simboliza este objeto. A perda dolorosa da mãe é a

condição de possibilidade de emergência da cultura, é o

que faculta ao homem a inserção na ordem simbólica. O

símbolo é o elemento chave da cultura. Esta, com efeito,

pode ser definida, segundo a célebre fórmula de Cl. Lévi-

Strauss, como “um conjunto de sistemas simbólicos”. O

homem é este ser radicalmente inconcluso, sempre

insatisfeito consigo mesmo, sempre a procura de “algo”

mais. O fundamento da existência humana não é “logos”,

como afirma a metafísica ocidental, mas “Eros”: o desejo.

Este, no dizer de Lacan, é falta e é enquanto falta que

humaniza o homem, introduzindo-o na ordem simbólica.

Page 7: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

7

Temos de convir com Sófocles: “De todas as coisas

extraordinárias, a mais extraordinária é o homem”.

Marx, como Freud, não concebe o fundamento da

existência como “logos”. A razão não é primeira, mas

segunda. De fato, ele define o homem pelo trabalho. O

primeiro fato histórico, que distingue os homens dos

animais, não é o fato de pensar, como sustenta a

metafísica ocidental, mas o de produzir os seus próprios

meios (ou instrumentos) de subsistência.

Originariamente, o pensamento vinculava-se, portanto, à

criação de instrumentos para satisfação das necessidades

humanas. Enquanto animal, o homem é um feixe de

necessidades, no núcleo das quais se encontram as

necessidades biológicas: comer, dormir, reproduzir etc.

Contudo, diferentemente dos animais, o homem não

satisfaz suas necessidades diretamente, mas pela

mediação de instrumentos[6]. Não nos alimentamos pura

e simplesmente, como os animais, mas utilizamos

talheres e vasilhas para nos nutrirmos e, a certo

momento de nossa história, inventamos o fogo para

transformar o cru em cozido. Mesmo para satisfazer a

necessidade de dormir utilizamos instrumentos, como,

por exemplo, pijama, rede, cama, ar refrigerado, sem

falar do quarto (ou do recinto). Marx, como se vê, enraíza

a razão na ação (práxis). Contudo, ele não distingue,

como Freud, a ordem vital (necessidades biológicas) da

ordem sexual (desejo). Embora seu conceito de

Page 8: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

8

necessidade seja, como insiste Agnes Heller no seu ensaio

sobre o assunto, extremamente sofisticado, Marx não

diferencia desejo e necessidade, prazer e satisfação. Esta

distinção, ao que parece, pode enriquecer

consideravelmente o discurso marxista, assim como os

temas acima mencionados e outros deste discurso, em

particular a teoria marxista da ideologia, podem

contribuir para um melhor entendimento do freudismo.

Quando, por exemplo, o fundador da psicanálise se refere

em Mal-estar na civilização à “natural aversão do homem

pelo trabalho” e, em outro momento deste mesmo

ensaio, lamenta que a sublimação seja um recurso

disponível apenas para uma minoria, seus discípulos,

instruídos pelos ensinamentos de Marx, devem denunciar

os elementos ideológicos de tais afirmações.

Voltemos à teoria freudiana, enquanto apta a

complementar o enfoque marxista do homem. O apoio

da ordem sexual na ordem vital, estudado por Freud na

sua primeira classificação das pulsões, permite entender

a projeção permanente, peculiar à condição humana, do

imaginário e do simbólico sobre a satisfação das

necessidades. Enquanto animais, alimentamo-nos;

enquanto seres humanos, porém, complexificamos as

nossas refeições com inúmeros rituais, alguns

extremamente requintados, como, por exemplo, o

banquete. O mesmo se pode dizer da satisfação de todas

as outras necessidades (vestir, dormir, tomar banho etc.).

Page 9: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

9

Articulamos a satisfação das necessidades com o prazer

alcançado pela realização de nossos desejos. Não é a

mesma coisa tomar um vinho de safra especial num copo

de plástico – que horror! – ou numa taça de cristal – que

maravilha! A satisfação é a mesma, mas o prazer muda

completamente num caso e noutro. Na verdade, não é

qualquer instrumento que nos interessa, mas aquele que

além de útil possui uma forma esteticamente agradável,

ou seja, que corresponda a nossos desejos. Daí não ser

possível ao homem, na satisfação de suas necessidades,

privar-se de certo luxo e sofisticação, sem correr o risco

de se desumanizar. Nem todo luxo é lixo, embora isto

ocorra frequentemente. A ironia do Joãozinho 30 a certa

militância de esquerda, não muito esclarecida, é

perfeitamente legítima: “Quem gosta de pobreza é

intelectual; pobre gosta de luxo”. Pobre e todo ser

humano que assume, sem culpa de classe injustificada,

sua humanidade e seu erotismo criador (no sentido

amplo que Freud atribuiu ao termo “Eros”). Destas duas

ordens – biológica e sexual –, sem dúvida é a segunda que

distingue os homens dos animais. “Viver não é preciso,

navegar é preciso”.

Marx, pensador pelo qual tenho grande admiração,

não distingue as duas ordens. Daí a conveniência de

completar a sua teoria da necessidade – e o seu

importantíssimo e atualíssimo conceito de alienação,

ligado a esta teoria, além da sua noção de ideologia, já

Page 10: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

10

mencionada – com a teoria freudiana do desejo. Afinal,

“nem só de pão vive o homem”.

[1] Freud distingue instinto (Instinkt) de pulsão (Trieb). O

primeiro termo designa uma herança genética que

permite a uma espécie animal adaptar-se rígida e

mecanicamente ao meio físico e natural. Trieb , ao

contrário, não se refere a um comportamento

preestabelecido, específico e hereditário. Freud emprega

este termo, sobretudo, para caracterizar a grande

plasticidade da sexualidade humana, o que a diferencia

essencialmente da sexualidade animal. Enquanto esta é

instintiva e, por isto mesmo, rígida, aquela muda, como

estamos analisando, de fontes, objetos e objetivos ao

longo da nossa história pessoal. A libido percorre todo o

nosso corpo (fases oral, anal, fálica) até alcançar, apenas

na puberdade, a fase genital.

[2] Freud emprega, inclusive, a expressão “corpo

erógeno”, já que o corpo inteiro pode ser fonte de prazer

sexual.

[3] O primeiro objeto de amor – ou objeto libidinal – de

todo ser humano é a própria mãe, que é abandonado na

situação edipiana, pela interferência paterna. A escolha

definitiva de objeto (por exemplo, uma escolha

heterossexual ou homossexual) só ocorre na puberdade,

ou melhor, na fase genital.

Page 11: Necessidade e desejo  um dialogo entre freud e marx           ricardo jardim andrade

11

[4] É com esta noção que Freud explica a ternura e os

vínculos sociais. Nas relações familiares, por exemplo, o

objeto da libido é o mesmo (mãe, pai ou irmãos), mas o

objetivo sexual é “freado” e se transforma em ternura ou

amizade. É assim que Freud explica, também, a formação

dos vínculos sociais necessários à transformação da

natureza pelo trabalho. Curiosamente, ele apresenta

como modelo do amor inibido quanto ao objetivo a figura

de Francisco de Assis.

[5] Daí J. Laplanche afirmar que “a pulsão sexual é

estruturalmente perversa”, ou seja, desviante em relação

à ordem vital ou biológica.

[6] É o que mostra, de modo admirável, o início do filme

“2001, uma odisseia no espaço” de Stanley Kubrick.