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Negros, Índios e Católicos... - Soares Revista Diálogos – Dossiê Procadi – Out/2019 48 Os “Negros, Índios e Católicos” Segundo a perspectiva de um pai fundador do Protestantismo Brasileiro Aldenor Alves Soares 1 Resumo: O missionário norte-americano Ashbel Green Simonton (1833-1867) veio para o Brasil em 1859 fundar a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), atualmente a maior denominação calvinista do país. Em seu Diário, Simonton registrou pensamentos sobre os “selvagens”, “negros” e “católicos” para os quais vinha pregar, onde demonstrou uma visão preconceituosa e racista a respeito dos mesmos. O objetivo deste ensaio é descrever e analisar os aspectos centrais do etnocentrismo do fundador da IPB. Palavras-chaves: Simonton, presbiterianismo, etnocentrismo, negros, selvagens, católicos. Abstract: The North American missionary Ashbel Green Simonton (1833-1867) came to Brazil in 1859 to establish the Presbyterian Church of Brazil (IPB), currently the largest calvinist denomination of the country. In his Diary, Simonton recorded thoughts on the "savages", "blacks" and "catholics" for which it he came to preach; in it he demonstrated a vision which showed prejudice and racism about the same ones. The objective of this essay is to describe and analyze the central aspects of the ethnocentrism of the founder of the IPB. Key-words: Simonton, presbyterianism, ethnocentrism, blacks, savages, catholics. 1 Doutor em Antropologia (PPGA/UFBA) e Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE).

Negros, Índios e Católicos - Soares · 2020. 10. 3. · Protestantismo Brasileiro . Aldenor Alves Soares. 1. Resumo: O missionário norte-americano Ashbel Green Simonton (1833-1867)

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Page 1: Negros, Índios e Católicos - Soares · 2020. 10. 3. · Protestantismo Brasileiro . Aldenor Alves Soares. 1. Resumo: O missionário norte-americano Ashbel Green Simonton (1833-1867)

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Os “Negros, Índios e Católicos” Segundo a perspectiva de um pai fundador do

Protestantismo Brasileiro

Aldenor Alves Soares1 Resumo: O missionário norte-americano Ashbel Green Simonton (1833-1867) veio para o Brasil em 1859 fundar a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), atualmente a maior denominação calvinista do país. Em seu Diário, Simonton registrou pensamentos sobre os “selvagens”, “negros” e “católicos” para os quais vinha pregar, onde demonstrou uma visão preconceituosa e racista a respeito dos mesmos. O objetivo deste ensaio é descrever e analisar os aspectos centrais do etnocentrismo do fundador da IPB. Palavras-chaves: Simonton, presbiterianismo, etnocentrismo, negros, selvagens, católicos. Abstract: The North American missionary Ashbel Green Simonton (1833-1867) came to Brazil in 1859 to establish the Presbyterian Church of Brazil (IPB), currently the largest calvinist denomination of the country. In his Diary, Simonton recorded thoughts on the "savages", "blacks" and "catholics" for which it he came to preach; in it he demonstrated a vision which showed prejudice and racism about the same ones. The objective of this essay is to describe and analyze the central aspects of the ethnocentrism of the founder of the IPB. Key-words: Simonton, presbyterianism, ethnocentrism, blacks, savages, catholics.

1 Doutor em Antropologia (PPGA/UFBA) e Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE).

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Neste texto pretendo desenvolver uma análise antropológica, de tonalidade crítica, sobre o modo de visar as pessoas (antropovisão), demonstrado pelo missionário protestante Ashbel Green Simonton (1833-1867), pioneiro do presbiterianismo brasileiro. A escolha deste missionário deveu-se a duas razões: ele atuou no Brasil e, também fundou a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), maior ramo do protestantismo calvinista da América Latina. Para alcançar o objetivo proposto, esclarecerei em que sentido utilizo a categoria “etnocentrismo”; em seguida oferecerei, de modo sintético, alguns dados biográficos indispensáveis ao conhecimento do missionário (sua vida e obra), e finalmente, analisarei seu modo de visar as pessoas (antropovisão), a saber, seus preconceitos racistas e etnocêntricos em relação aos seus missionados brasileiros (os negros, índios/selvagens e ibéricos/católicos). Para a composição desses registros etnográficos fundamentei-me estritamente numa fonte primária, o Diário que o próprio Simonton escreveu; o que, a meu ver, valida e fortalece as conclusões ora exaradas. É preciso frisar que a publicação póstuma de Diários, como já ficou provado no caso de Malinowski, geralmente submete seu autor à exposição visceral de seus aspectos negativos; todavia, felizmente, também permite aos estudiosos a construção de uma visão mais lúcida sobre a atuação de certos agentes históricos. Pretendo demonstrar que Simonton possuía em relação aos seus missionados, uma antropovisão com fortes traços de etnocentrismo norte-americano; etnocentrismo este, situado não apenas no nível comum (veja a seção seguinte), mas com um grau profundo de preconceito em relação à cultura brasileira.

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1. O Etnocentrismo do missionário

O problema de que nos ocupamos aqui é denominado classicamente de “etnocentrismo”, que nada mais é do que olhar, interpretar e posicionar-se diante da cultura do “outro” a partir do quadro de referências da própria cultura do observador. Este fenômeno pode adquirir um cunho “negativo” ou “positivo”, pois podemos avaliar a cultura do “outro” como sendo “pior” ou “inferior” à nossa, ou simplesmente como tendo características “diferentes”. Para Luis Gonzaga de Mello, “um grupo humano que não cultiva o etnocentrismo possivelmente não possui cultura própria” (Melo 1987: 91).

Ainda que o etnocentrismo seja um elemento importante para a sobrevivência de uma etnia (Herskovitz 1963; Linton 1971), lamentavelmente, na maioria dos casos, termina transformando as grandes realizações em motivo de opressão e domínio sobre outras etnias, não raro considerados inferiores. O etnocentrismo pode variar de intensidade e de grau, todavia, estou convencido de que é impossível não ser etnocêntrico em algum grau, afinal só é possível interpretar a realidade circundante com base em certos referenciais mínimos. Ninguém parte de uma epistemologia pura e objetiva, pois “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Só percebemos as diferenças de outras culturas porque as visamos a partir da nossa própria cultura. A categoria “diferença” é relacional, ou seja, a cultura do “outro” só é do outro porque vista por “mim”. O centro da visão sou eu, e esta realidade que chamamos de “eu” é forjada dentro de uma cultura específica. O etnocentrismo, em algum grau, é inevitável!

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Outra realidade, porém, é o etnocentrismo que toma proporções negativas; quando isto acontece, menosprezamos, inferiorizamos, desconsideramos e oprimimos a cultura alheia. Assim sendo, o missionário está “inevitavelmente” fadado ao primeiro tipo, mas, “opcionalmente” tentado ao segundo. Para usar uma linguagem eminentemente filosófica, o etnocentrismo tem uma qualidade “ontológica” e outra “contingente”.

Demonstrarei nas seções seguintes que Simonton cometeu o etnocentrismo nos dois níveis, tanto no “inevitável” (ontológico) como no “opcional” (contingente). De toda sorte, porém, argumento que, dependendo do modo de visar as pessoas (antropovisão), poder-se-ia determinar o tipo e o grau de intensidade dos etnocentrismos. Partindo do modo de visar as pessoas que Simonton revelou em relação aos negros, índios/selvagens e portugueses/católicos, poder-se-ia analisar o espectro de seu etnocentrismo enquanto missionário.

Concluindo esta primeira seção, citarei alguns exemplos do etnocentrismo de Simonton (1982), enquanto grau “ontológico” (a inevitável percepção das diferenças) do fenômeno: ■ “havia vinho à mesa e palitos de dentes; esta é uma peculiaridade do Brasil: palitos estão sempre à mesa e são usados por damas e cavalheiros” (Simonton 1982:144); ■ “Fui à cidade e estive presente a uma revista de tropas pelo imperador... jamais tinha eu visto soldadesca tão heterogênea” (Simonton 1982: 146); ■ “Que diferença de todas as outras vésperas de Natal! Vou simplesmente perder o Natal este ano, pela total impossibilidade de me

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convencer que ele chegou. Natal no trópico não é Natal” (Simonton 1982: 155); ■ “Fui lá hoje; informaram-me que é necessário requerimento, que devo levar segunda-feira. É assim o formalismo brasileiro, com veneráveis adiamentos” (Simonton 1982: 152).

A partir da seção 3, após o necessário conhecimento sintético da biografia de nosso missionário (seção 2), demonstrarei o etnocentrismo em grau “contingente” perpetrado por Simonton. 2. Vida e obra do missionário

Ashbel Green Simonton2 nasceu em 1833 em West Hanover,

município de Dauphin, no Estado da Pennsylvânia, Estados Unidos da América. Seu pai, William Simonton, era médico e político influente, tendo morrido quando Ashbel Simonton possuía apenas treze anos. Sua mãe, Martha Davis, era filha de pastor, e além do caçula Simonton, teve mais oito filhos, sendo quatro meninos e quatro meninas.

Simonton fez seu curso primário em Harrisburg e terminou seus estudos secundários no Colégio de New Jersey. Entre janeiro de 1853 e julho de 1854 regeu a “Acedemy of boys” em Staskville, no Mississipi. Estudou Direito, mas acabou abandonando o curso para estudar teologia,3 tendo se formado no Seminário de Princenton em 1858. 2 Para maiores detalhes sobre a biografia e obra de Simonton veja Júlio Andrade Ferreira (1959: 9-72), autor de quem recolhi os dados para essa seção 2. 3 Quanto às tendências teológicas de Simonton, veja o excelente trabalho de Mendonça (1995: 178-185).

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Tendo sido consagrado ao ministério pastoral pelos pais desde seu batismo, Simonton professou sua fé em Cristo em 06 de maio de 1855 e foi ordenado pastor em 14 de abril de 1859 pelo Presbitério de Carlisle, de New York, concílio integrante da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América.

Embora tenha tomado consciência de sua vocação missionária desde outubro de 1855, Simonton esperou até novembro de 1858 para apresentar-se ao Dr. J. Leighton Wilson, um dos secretários do “Board of Foreigne Missions”, e solicitar transferência para o exterior, indicando o Brasil como campo preferencial para o exercício de sua missão.

Em 18 de junho de 1959, nosso missionário saiu de Baltimore com destino ao Brasil, onde chegou em 12 de agosto de 1859 para se tornar o pioneiro e fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB)4.

O início do trabalho não foi fácil, como bem assinala Émile G. Léonard:

ignorante da língua do país, teve que começar como uma espécie de capelão entre os anglo-saxões da capital, pregando a bordo de navios ou nas cidades sempre em inglês, e casando ou entretendo seus compatriotas (Léonard 1963: 54).

Durante os três primeiros anos, Simonton desenvolveu seu

trabalho basicamente entre os imigrantes ingleses e americanos, tendo batizado o primeiro brasileiro somente em 22 de junho de 1862. Apesar do curto período que atuou no Brasil (morreu em São Paulo em 1867, provavelmente de febre amarela) – além da prematura morte de sua esposa Helen em 19 de junho de 1864 (apenas nove dias depois de gerar

4 Para um conhecimento sintético sobre o universo presbiteriano brasileiro e sua configuração atual, veja Mendonça e Filho (1990: 35-39).

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sua primeira filha) –, Simonton deixou muitos frutos, entre eles: a Catedral Presbiteriana do Rio (fundada em 12 de agosto de 1862), o Jornal “Imprensa Evangélica”, a organização do primeiro Presbitério em solo brasileiro em 1864 e a criação do primeiro Seminário, que contou inicialmente com quatro seminaristas.

Outrossim, é preciso lembrar com Mendonça e Filho que a Igreja Presbiteriana do Brasil “foi a denominação que mais se expandiu no século XIX...” (Mendonça e Filho 1990:35), contando em 1869, dois anos após a morte de Simonton, com “um total de 08 obreiros... um Presbitério com seis igrejas... com um total de 279 membros” (Ferreira 1959: 73). 3. O missionário e os negros

Ao chegar em Norfolk (06.11.1852), Simonton descreve um típico dia de feira naquele lugar. Diz-nos que “a maioria na feira eram negros... provavelmente os dias de feira têm sido assim desde tempos imemoráveis e continuarão a ser enquanto existirem pretos, cavalos, carroças na Velha Virgínia” (Simonton 1982: 12).

Esta descrição revela que uma diferença racial específica foi percebida, bem como, aponta para valores quantitativos em relação à outra raça, o que sugere preocupação com a questão da hegemonia e primado racial. Também, explica a indelével e tradicional realidade do Estado da Virgínia pintando um quadro de conservadorismo baseado na existência de certos “objetos”: carroças, cavalos e negros! Essa maneira de encarar a raça de outrem é bastante sintomática, visto que se tem uma percepção da cultura alheia como uma coisa, algo objetivado.

Essa mesma preocupação com a superioridade racial dos negros em termos numéricos pode ser vista quando da visita de Simonton a Petersburg (08.11.1852). Ele registra em seu Diário que “a cidade tem

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umas dezesseis mil almas, entre negros e brancos, mas pareceu-me que a maioria era de negros” (Simonton 1982: 14).

Apesar disto, os negros possuem, conforme Simonton, capacidade de julgamento inferior, o que fazia o dado qualitativo sobrepor-se ao dado quantitativo, ou seja, mesmo sendo maioria não dispunham os negros da mesma capacidade dos brancos para avaliar algumas situações típicas. Um bom exemplo disso nos é oferecido quando da visita de Simonton a Columbia (19.11.1852). Lá, ele teria ouvido o boato de que “as melhores terras para o algodão e o arroz estão nos brejos das terras ao longo do litoral, insalubre para os brancos, mas o paraíso dos negros” (1982:21). Tal afirmação, com aparência de elogio à forte estrutura da raça negra, guarda na verdade, a idéia de que os negros se prestam a serviços vis e baixos, enquanto os brancos os rejeitam por considerá-los insalubres para seu nível racial.

Noutra parte, Simonton expressa o quanto a presença negra era vista como sinal de “estranheza”, como signo de uma outra “terra,” que, diga-se en passant, trabalhava servilmente e agia publicamente com notória promoção da desorganização, da poluição sonora e do caos. Estando em Atlanta (25.11.1852), ele assevera:

enquanto olhava ao longo das enormes ruas cheias de carroças de algodão arrastadas lentamente por mulas, cavalos e burros promiscuamente amontoados, e ouvia os gritos dos negros que chicoteavam os lerdos animais, comecei a sentir, pela estranheza da cena, que não estava em minha terra (Simonton 1982: 25).

Apesar de interpretar e encarar a raça negra de forma etnocêntrica, a saber, a partir de sua cultura racista de branco norte-americano, Simonton considerava a prática da escravidão dos negros como

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maldade, opressão, e, portanto, um grande pecado. Neste ponto, convém considerar que nosso missionário, de origem nortista, encontrava-se sob um peso maior da ideologia abolicionista, como também, conseguia fazer uma ponte entre realidade social e implicações teológicas evangélicas, afinal, repudiava a escravidão em nome dos princípios teológicos cristãos.

Interessante é a implicação abolicionista deduzida da teologia calvinista do pacto, enquanto fundamentação bíblico-teológica para a prática sacramental do batismo, e sua relação com a situação dos escravos. Embora a prática do batismo no cristianismo tenha sido largamente usada para patrocinar a opressão, em Simonton subjaz um conteúdo altamente libertador na compreensão deste sacramento. Em 07 de outubro de 1853, Simonton registra em seu Diário tal perspicácia teológica de seu amigo Joe Bardwell, que com certeza, admirava e adotava para si. O texto merece ser citado integralmente:

ele concluiu que é dever de todo senhor cristão apresentar os filhos de seus escravos ao batismo, e responsabilizar-se por sua instrução. Se conseguir persuadir os senhores cristãos de todos os estados do Sul (os quais raramente dispensam um único pensamento à situação espiritual de seus escravos), a prometer e depois cumprir as promessas de batismo, terá feito um bom trabalho... Baseia-se no costume patriarcal de circuncidar ‘todos os servos nascidos na casa’. Se esta opinião estiver certa, os senhores cristãos não poderão conciliar as promessas de batismo de seus filhos com o direito de vendê-los (Simonton 1982: 40).

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O contexto em que Simonton estava inserido era altamente controvertido e incoerente. Os próprios cristãos mantinham e defendiam a escravidão dos negros. Ainda que nosso missionário procurasse fundamentar teologicamente a abolição, assim como promover de direito a libertação dos negros (e é tendo esse intuito em vista que a teologia calvinista do pacto é resgatada em seu aspecto libertador e sacramental); parece-nos óbvio, no entanto, que o desejo pela libertação da cultura do “outro” perpassava apenas a dimensão teórica – e, quando muito, a esfera sentimental –, sem conseqüências objetivas e sem respaldo numa práxis política que incrementasse a pretendida libertação.

Pior que isso seria somente uma ilusória e ingênua mentalidade a respeito dos senhores de escravos, detentores de um poder econômico ao qual não pretendiam abdicar. Em 02 de janeiro de 1854, Simonton registra em seu Diário tal tipo de inocência:

É costume entre os senhores dar uma semana de folga aos escravos por ocasião do Natal, não exigindo trabalho durante esse período... alguns senhores são tão generosos que emprestam carroças e mulas aos escravos para levarem lenha e vendê-la... a chegada do Natal é, portanto, um acontecimento importante para todos os pretos, é celebrada como jubileu: uma semana de liberdade (Simonton 1982: 46).

É evidente que a “generosidade” dos senhores, e justamente na

época do Natal, se revestia, muito diferentemente do que pensava nosso missionário, de uma refinada hipocrisia religiosa; como se gestos isolados, praticados num determinado período de significado religioso, apagassem a opressão imposta como regra durante todo o ano. Estes

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atos retóricos, de alto conteúdo demagógico, visavam alienar os escravos de sua situação opressiva, bem como objetivavam amenizar o sentimento de culpa religioso e promover a manipulação dos símbolos religiosos, com a finalidade de manter o status quo intocável.

Esta estratégia dos opressores de posarem de “bons moços” (religiosos) não é coisa do passado, que o digam aqueles que, no mundo inteiro, recebem a presença “opressora” dos norte-americanos, enquanto seus presidentes recentes, todos de confissão evangélica, posam para os fotógrafos com suas famílias nas pomposas e religiosas ceias de Natal.

De certo modo, fica patente a cisão interna de que Simonton é presa. Por um lado rejeita a escravidão e, por outro, mantém a ideologia racista típica dos senhores de escravos. Num momento afirma que “o comércio de negros... é um tráfico desumano e nenhum homem com sentimento humanitário poderia se engajar nele...” (Simonton 1982: 53), no entanto, em outro momento, coloca-se ao lado da perspectiva dos senhores de escravos quando relata que acabara de saber que o Rev. Morrow vendera fazenda e negros para mudar-se para Columbus. O que acontecera para que o tal reverendo mudasse sua residência?

Vejamos que resposta altamente comprometedora e a que grau chegava a credulidade de nosso missionário:

Há vários anos a Srª Morrow bateu em uma jovem negra, que morreu logo depois da surra; daí a notícia de que a Srª Morrow tinha-a matado a pancada. Mais tarde outra jovem negra morreu depois de umas chibatadas do feitor — alguns dizem que de uma pancada do cabo do chicote que o feitor sempre carrega — e outra vez a Srª Morrow foi implicada. Essas duas infelizes ocorrências, e os rumores que levantaram, a tal ponto os aborreceram que

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decidiram vender tudo e nunca mais terem lavoura (Simonton 1982: 53).

O lamento é dirigido à Srª Morrow, pois a pobre e inocente

senhora fôra caluniada! Por que será que não ouvimos nenhum lamento em relação às jovens negras assassinadas? Protesta-se contra a injustiça da mudança de residência do Sr. Morrow, no entanto, onde estão os protestos contra a injustiça dos espancamentos? Por que tal veneranda e honrada família resolveu “partir” ao invés de apurar os fatos e punir os culpados? O sofrimento das negras é relegado a segundo plano em relação ao sofrimento dos senhores. Por que razão? Seria pelo fato do “historiador” também ser branco e amigo dos opressores?

O posicionamento de Simonton em relação à “dor” dos negros é bastante incoerente, todavia, seu posicionamento diante da “alegria” dos negros também é questionável. Em 18 de fevereiro de 1854, nosso missionário exibe sua “grande moralidade” norte-americana e protestante (leia-se puritana e calvinista), ao registrar em seu Diário:

como não havia damas em número suficiente para dançar-se uma quadrilha, muitos rapazes ficaram nos entretendo com danças negras, o que apesar de divertido era triste ver em festa de brancos sensatos (Simonton 1982: 54).

Destas palavras tão éticas saltam crenças bastante etnocêntricas

e racistas. A cultura africana (as danças fazem parte da cultura!) é “divertida”, mas não é apropriada para “brancos sensatos”, ou seja, decreta-se um aparthaid social, onde brancos e negros devem manter suas culturas distantes umas das outras. O contrário é, segundo Simonton, “triste” e “insensato”. Mais, a cultura negra é despida de sua riqueza e significação, sendo reduzida à categoria de “diversão”

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imprópria. Seguindo-se tal raciocínio ao nível político, decretar-se-ia uma certa “tolerância” à existência da cultura alheia, contanto que se mantenha afastada sua influência sobre os legítimos representantes da alegria sã e sensata!

Com uma antropovisão desse quilate, resta visar a cultura do “outro" apenas pela ótica da "curiosidade”, assim como se faz num jardim botânico ou num jardim zoológico, lugares de plantas e animais irracionais. Escrevendo em seu Diário por volta de 12 de julho de 1854, quando de visita a Harrisburg, Simonton nos conta epopéia análoga:

Fomos conhecer a cidade. Os sinos repicavam sem parar, as ruas estavam cheias de pretos, muitos deles vestidos na última moda. Decididamente, havia mais pretos que brancos. Por curiosidade James começou a contar e o resultado foi trinta negros para um menininho branco. Fomos andando para a praia, e ali sentados na praça, olhando o porto, tomamos um sorvete e aproveitamos a deliciosa brisa marítima (Simonton 1982: 67).

Além desse espaço “turístico”, aos negros estava associada a

imagem do serviço. Em 28 de junho de 1859, Simonton estava a bordo do navio Banshee, quando observou algo em relação ao café da manhã, dizendo que “pouco se falava e ninguém sorria, a não ser... o negro que nos servia” (Simonton 1982: 128).

O fato das telenovelas brasileiras mostrarem os negros geralmente em ocupações subservientes não é algo sem propósito, afinal a própria realidade brasileira confirma o fato de que, apesar de livres das senzalas, os negros ainda perdem para os brancos na disputa pelos melhores empregos e salários; esta é uma característica notável em sociedades nas quais as minorias são oprimidas. Na verdade, ainda

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que possamos dizer com Simonton que “existe aqui a mesma mistura das raças branca e negra” (Simonton 1982: 143), tal mistura se baseia numa divisão de papéis sociais que sempre obedece ao critério do poder econômico-político, que no nosso caso, coincidentemente encontra-se sempre nas mãos dos brancos e não dos negros.

Ao chegar ao Brasil, nosso missionário encontra um cenário análogo ao norte-americano. Também aqui, o status do “serviço” foi imposto aos negros. Em 03 de janeiro de 1860, ao mudar de residência, Simonton diz:

ontem com a ajuda de quatro negros fiz trazer da cidade uma mesa e algumas cadeiras; bacia de rosto e seu suporte bem como todos os pertences que estavam em casa do Sr. Garret; coloquei tudo em meu novo quarto na casa do Sr. Petterson (Simonton 1982: 158).

Num contexto assim, a própria linguagem é cunhada para

expressar a identificação dos negros com realidades negativas. Dizer com Simonton que “é um dia negro... pois encontram no oceano seu funeral” (Simonton 1982: 164), é associar coisas ruins à negritude. Fenômeno semelhante ocorria, quando em plena guerra-fria, falava-se bem ao gosto da propaganda anticomunista, que alguma situação estava “russa”, querendo associar a isso a “dificuldade” ou “negatividade”.

Poder-se-ia contra-argumentar dizendo que esta lógica de interpretação vê deuses onde só existem o sol e a lua, e que chamar os negros de “negros” apenas indica uma menção indicativa qualquer, sem nenhuma conotação pejorativa, afinal os negros são realmente “negros”. Contra esse tipo de justificativa, deve-se lembrar que o próprio Simonton identificava os brancos com designativos diversos (nome, profissão etc.), enquanto os negros eram geralmente identificados e

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diferenciados dos brancos pelo fato de serem “negros”. Até mesmo quando batizou missionados no Brasil e os admitiu à eucaristia, cometeu este tipo de deslize, citando em vários locais os nomes dos brancos e fazendo de modo diferente no caso dos negros: “tivemos Santa Ceia no último domingo; admiti João Marques Mendonça, um negro” (Simonton 1982: 194). A presença do negro na sociedade e na igreja é estigmatizada como presença de “negro”, palavra que, como já demonstrei no decorrer deste texto, guarda significados altamente preconceituosos. 4. O missionário e os selvagens

Em 1855, Simonton tomara consciência de sua vocação missionária; esta, segundo ele registra em seu Diário (14.10.1855), consistiria num programa claro e objetivo: “que os pagãos devem ser convertidos a Deus” (Simonton 1982: 106 – itálico meu). A palavra “pagão”, nesse contexto, possui um significado que vai além do religioso (o não-cristão): identifica-se também com aqueles que pertenciam às etnias ainda não “civilizadas”, segundo os moldes ocidentais de então.

É importante lembrar que o Dr. Hodge, mentor intelectual de Simonton, ensinava que “havia necessidade absoluta de instruir os pagãos antes de poder esperar qualquer sucesso na propagação do Evangelho” (apud Simonton, 1982: 106). Os pagãos, então, formam aquelas culturas que necessitam da “educação” norte-americana para adquirirem a capacidade de acolher o Evangelho; os missionados, portanto, possuem uma cultura não evoluída e, portanto, inapta para a cristianização, exceto se “aprenderem” com os mestres norte-americanos.

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Nessa linha de raciocínio, Simonton elogiava e aspirava imitar o modelo missionário implantado na Nova Zelândia, pois, segundo nos conta em seu Diário (04.02.1856):

foi apresentado um relatório profundo e interessantíssimo do progresso feito pelo trabalho missionário na Nova Zelândia... em toda a ilha há igrejas e pelo testemunho de pessoas capazes que visitam aquelas terras, aqueles selvagens... são hoje nação civilizada e cristã (Simonton 1982: 110).

Há uma identificação peremptória entre “cristianismo” e

“sociedade civilizada”, que acaba por implicar numa associação entre cristianismo e cultura anglo-saxã. Missionar, portanto, é cristianizar e civilizar: num mesmo pacote os selvagens recebem a fé cristã e a cultura norte-americana!

Nunca é demais lembrar que a palavra “selvagem” relaciona os membros das etnias missionadas com a selva, lugar de animais, seres menos evoluídos. O pagão é visado, de certo modo, como um quase-homem, afinal, o modelo de “homem” evoluído é aquele no qual o missionário vive. A linguagem missionária em foco traduz uma antropovisão bastante densa em preconceito e estigma.

Quando chega ao Brasil, nosso missionário implementa sua visão de homem: “às multidões de nativos e ignorantes, a elas que fui mandado e não terei descanso enquanto não lhes proclamar a mensagem” (Simonton 1982: 166). Aos nativos são dados vários adjetivos: pagão, ignorante, selvagem, bárbaro etc. Para que ninguém pense que Simonton possuía a respeito desses termos alguma conotação positiva, que suas próprias palavras o digam: “considero qualquer terra que não tenha mulheres bonitas em condição deplorável; ainda que seja terra de aprazível paisagem, para residência não serve, é terra bárbara”

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(Simonton 1982: 166 – itálico meu). Terras “bárbaras” não são passíveis de habitação civilizada, pois contam com um nível de vida deplorável. Nosso missionário não vê beleza a não ser nas mulheres brancas de sua própria terra, confundindo sua percepção estética localizada culturalmente, com a beleza em si.

Ao sediar sua missão no Brasil, Simonton tomaria consciência da textura racial de nosso povo: miscigenação, mistura de negros, índios e brancos/lusitanos. Os índios, mais que os negros “introduzidos” na sociedade branca, se enquadravam muito bem nessa concepção de selvagem; como se não bastasse a presença das missões católicas desde o século XVI, agora os índios seriam submetidos a uma nova dose de “evangelização”; para o azar deles, por missionários que possuíam uma teologia diferente, mas uma antropovisão cultural similar à de outrora! 5. O missionário e os ibéricos católicos

Em 12 de outubro de 1854, Simonton foi impedido de votar em New York, pelo fato de ser cidadão do Mississipi. Embora este seja um fato comum, chama à atenção a explicação de nosso missionário: “mas Owen Mcabe, o juiz, um irlandês católico, decidiu que meu voto seria ilegal... com isso, quase fez de mim um Know-nothing” (Simonton 1982: 78 – itálico meu).

A expressão “Know-nothing” era usada naquele contexto para referir-se a um movimento político radical, contrário às minorias imigrantes e à ingerência do catolicismo romano a que pertenciam essas minorias na política. O fato de Simonton confessar-se “simpatizante” desse movimento revela seu preconceito em relação à Igreja Católica, bem como sua postura política contrária à participação das minorias religiosas nas instâncias de poder de um país de maioria protestante.

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Ao participar de uma missa, anotou que “enquanto olhava esse espetáculo de devoção cega ficou refletindo sobre suas causas e significados” (Simonton 1982: 85 – itálicos meus). Na verdade, nosso missionário não considerava o catolicismo5 uma expressão do autêntico cristianismo, senão seria desnecessária seria sua vinda para evangelizar os “pagãos” aqui residentes e com missões estabelecidas há pelo menos três séculos.

Quando de viagem a Sorocaba (20.01.1861), Simonton fez o seguinte lamento sobre o fato do Brasil não ser para ele um país cristão: “temo que o fato de viver sem os privilégios para crescimento em graça que têm os que vivem em países cristãos se torna evidente em minha falta de espiritualidade” (Simonton 1982: 167). “Cristão”, nesse caso, identifica-se com “protestante”.

Na verdade, diferentemente dos Reformadores protestantes do século XVI, Simonton sequer reconhecia a validade sacramental do batismo conferido pela Igreja Católica, e nem mesmo descartava os padres da necessidade de evangelização. O anticatolicismo do presbiterianismo ao qual Simonton estava vinculado não possuía limites, fitava a Igreja de Roma com extrema severidade.

Sem dúvida, o fato mais importante para a missão nascente, foi a conversão do padre José Manoel da Conceição ao presbiterianismo. Sobre o sacerdote católico, Simonton afirmara: “ele decidiu deixar Roma e obedecer ao Evangelho” (1982:193), e a seguir, conta-nos sobre o seu rebatismo:

5 Para um apanhado sobre as críticas de Simonton em relação à Igreja Católica, exaradas em seus sermões no Brasil, veja Mendonça (1995: 82-84).

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O sr. Blackford e o padre José vieram no mesmo dia e desde então tivemos o tempo todo ocupado. No último domingo ele fez sua profissão de fé e foi batizado por Blackford. Foi solene. Terminada a cerimônia, fiz alguns comentários e depois ele, de modo muito apropriado e em linguagem vigorosa explicou o passo que tinha dado (Simonton 1982: 194).

Ao contrário do espírito ecumênico peculiar à segunda metade

do século XX, onde católicos e protestantes pugnam pelo diálogo e pelo mútuo reconhecimento e trabalho conjunto, o período em que Simonton exerceu sua atividade missionária, caracterizava-se pela polêmica e pela agressão ao catolicismo romano.

Assim sendo, nosso missionário nutria uma antropovisão negativa a respeito de seus missionados brasileiros, visto que a maioria era de formação católica, adjetivo este altamente pejorativo na mentalidade do fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil; sinônimo de idolatria, erro, pecado, paganismo, papismo etc. Embora os “portugueses” não fossem tratados com preconceito por serem “brancos” (preconceito étnico e racial), acabariam sendo por serem “católicos” (preconceito religioso). Conclusão

Sob a ótica da Antropologia Cultural, todo trabalho missionário implica na introdução de elementos culturais do missionário sobre os missionados. Ou de outra perspectiva: toda adesão a uma missão culturalmente alienígena, causa mudanças na cultura nativa. Missionar é, necessariamente, transfigurar a cultura do “outro”.

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Este fenômeno pode variar de grau ou intensidade, mas sempre e

inevitavelmente acontece. Da perspectiva cristã também é assim, pois, se fazer missão é anunciar a mensagem de Cristo com esperanças de adesão da fé e vida dos missionados, haverá na cultura (crenças, valores etc.) alguma mudança; o que implicará, como já foi dito, em transfiguração cultural.

Com Simonton aconteceu exatamente assim; e pior, aconteceu o fenômeno do etnocentrismo negativo. Nosso missionário possuía um modo de visar as pessoas (antropovisão) – e “pessoas” ai como referência concreta a negros, índios e lusitanos/católicos –, que era pejorativo, racista e preconceituoso: este tipo de etnocentrismo pode ser considerado negativo e destrutivo.

Como a obra de um missionário “fundador” geralmente causa uma reação em cadeia, talvez se explique assim o fato da Igreja Presbiteriana do Brasil, à imagem e semelhança de seu patriarca fundador, possuir uma postura de gueto social e cultural. A IPB vive sem inserção nos meios populares, com forte tendência anticatólica e sem a presença de negros em sua hierarquia ou de índios em suas fileiras (até porque sobraram bem poucos para freqüentá-la!). Mais: é uma igreja com forte incidência de uma mentalidade do tipo pequeno-burguês, pois como bem assinalou Antonio Gouveia Mendonça, “seus membros situam-se predominantemente na camada média da população” (Mendonça 1990: 37).

Em última análise, o “cristianismo” trazido por Simonton ao Brasil possuía uma coloração tipicamente norte-americana e puritana, o que fez da adesão a sua missão, um processo de rompimento com a cultura afro-ibérico-ameríndia. Sem sombra de dúvida: o etnocentrismo onera consideravelmente o trabalho missionário, bem como a identidade cultural de missionados!

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Finalmente, já que o etnocentrismo, pelo menos no nível

contingente é algo de que não se pode fugir; quero registrar aqui minha discordância de Simonton: Natal de verdade só é Natal nos Trópicos! Melhor que ver neve, é celebrar o Advento nas praias brasileiras, louvando ao Criador por todas as belíssimas atrações morenas que ela contém! Referências Bibliográficas FERREIRA, Júlio Andrade, 1959, História da Igreja Presbiteriana do Brasil (vol. I). São Paulo, Casa Editora Presbiteriana. HERSKOVITS, Melville J, 1963, Antropologia Cultural. São Paulo, Editora Mestre Jou. LÉONARD, Émile G, 1963, O protestantismo brasileiro. Rio de Janeiro, JUERP/ASTE. LINTON, Ralph, 1971, O homem: uma introdução à antropologia. São Paulo, Livraria Martins Editora. MELLO, Luiz Gonzaga, 1987, Antropologia Cultural: iniciação, teoria e temas. Petrópolis, Editora Vozes. MENDONÇA, Antonio Gouveia, 1995, O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo, ASTE. MENDONÇA, Antonio Gouveia e Prócoro Velásquez Filho, 1990, Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo, Loyola. SIMONTON, Ashbel Green, 1982, Diário (1852-1867). São Paulo, Casa Editora Presbiteriana.