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Nelson Rodrigues [=] A fome do Nordeste

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NNNNeeeellllssssoooonnnn RRRRooooddddrrrriiiigggguuuueeeessss

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Cada época tem suas fatalidades próprias,

inconfundíveis, inalienáveis. Por exemplo: — os golpes de

ar. Não há, hoje, nada mais antigo, obsoleto, espectral.

Ninguém fala em golpes de ar e ninguém os teme. Mas a

geração do Eça, dos “Vencidos da vida”, conheceu esse

pânico profundo.

E mais: — o golpe de ar era, inclusive, recurso

literário. Eu citaria, ao acaso, a Correspondência de

Fradique Mendes. Ao escrever a primeira parte do livro, o

autor esbarrou num sério problema dramático e

estilístico. Matar Fradique, eis a questão. Mas, como? Eça

não pensou duas vezes. Transfixou-lhe o pulmão com um

dos golpes de ar que eram igualmente válidos tanto na

ficção como na vida real. E o que é a tuberculose da Dama

das camélias senão, exatamente, outro golpe de ar?

Ah, a morte foi, para as gerações passadas, de uma

simplicidade total. Bastava que uma mão imprudente

abrisse, de supetão, uma porta ou uma janela. E o vento

súbito vinha agredir o pulmão de uma tia, de um cunhado,

de uma filha ou até de uma visita. E assim se instalava um

processo pneumônico irreversível.

Mas o tempo passou e os golpes de ar sumiram dos

romances e da vida prática. Se me perguntarem qual a

fatalidade de nossa época, responderia que são as

esquerdas. Dirá o leitor que elas sempre existiram.

Gerações passadas também conheceram o seu gesto, a sua

ênfase, o seu palavrão. E o próprio Eça já citado refere o

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caso de um rapaz esguio e pálido como um suicida. Por

onde andava ia exalando a sua cava depressão. Ainda por

cima vestia-se de um luto pesado e inconsolável. Um dia,

vendo-o suspirar perto da janela, alguém perguntou pela

origem de tão funda melancolia. Ele alça a fronte e diz,

cheirando uma camélia: — “Como posso sorrir se a

Polônia sofre?”. A Polônia era o Vietnã da ocasião e o

mancebo, uma flor das esquerdas.

Mas, nos dias do Eça, do Ramalho, a esquerda era

minoritária como a torcida do Botafogo. Sim, estava

reduzida a um grupo seletíssimo. E o personagem do Eça

explica tudo. Já naquele tempo havia uma distância entre

a esquerda e o perigo. Só que a distância de Portugal para

a Polônia é menor que a do Antonio’s para o Vietnã.

Alguém poderá objetar que estou insistindo muito

nas esquerdas. Mas explico. Primeiro, qualquer autor tem

suas fixações fatais e o d. Hélder é um exemplo.

Interrogado certa vez sobre o amor livre, respondeu: — “E

a fome do Nordeste?”. De outra feita pediram sua opinião

sobre o Egito e Israel e o arcebispo retrucou: — “E a fome

do Nordeste?”. Vejam bem: — não interessam as outras

fomes. Se, fora do Nordeste, há brasileiros bebendo, a

mãos ambas, a água das sarjetas, não contem com d.

Hélder. Deu exclusividade à fome do Nordeste.

Portanto, admitam que também cultive eu as

minhas obsessões. Por outro lado, a esquerda é a

fatalidade da nossa época. Eu sei que ela continua

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minoritária. Mas a torcida do Botafogo, também

minoritária, é mais feroz que a do Flamengo (só o Salim

Simão, com o seu berreiro individual, solitário, lota o

Estádio Mário Filho).

Eis o que eu queria dizer: — não me interessa a

expressão numérica da “festiva”. O que importa é a sua

capacidade de influir nos usos, costumes, idéias,

sentimentos, valores do nosso tempo. Ela não briga, nem

ameaça as instituições. Mas, em todas as áreas, as pessoas

assumem as poses das esquerdas.

Ontem, falei do teatro. Mas não é só o teatro,

também a música popular. Outro dia, num programa de

televisão, apareceu uma musiquinha sobre o Vietnã. Meu

Deus, por que não sobre Magé? Temos solidariedades mais

urgentes, mais prementes. Magé está ali, a dois passos.

Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Assim como o

rapaz do Eça suspirava pela Polônia, eis-nos aqui a

arrotar pelo Vietnã. Há todo um Brasil para ser feito.

Acontece que esse Brasil incriado é uma tarefa, sim, uma

tarefa que ninguém quer assumir nem a tiro.

Passem no Antonio’s e façam esta singela e casta

observação: — a “festiva” é morena. Nem se pense que se

trata de uma cor nata e hereditária. Nunca. Essa pele

dourada foi arduamente conquistada na praia. Lembrei-

me de que, na terça-feira depois do Natal, passei de táxi

por Copacabana. E confesso meu deslumbramento. Praia

apinhada, de um Forte a outro Forte, isto é, da igrejinha

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ao Leme. Dia utilíssimo, depois de quatro feriados. E lá

estavam as esquerdas, todas as esquerdas, lustrando-se ao

sol, dourando-se ao sol, com o cavo umbigo à mostra. E, à

noite, lá se instalam no Antonio’s, tomando cerveja em

lata.

Mas insisto: — apesar da eugenia da manhã, da

boêmia da noite, é uma potência. Não sai da praia nem do

Antonio’s, mas influi em tudo. Influi num verso de

modinha e até num decote de mulher. Vi, outro dia, num

sarau de grã-finos, uma menina da “festiva”. Nas costas

abria-se um generoso decote. Aparecia, de alto a baixo, a

espinha dorsal ou, como queria o poeta, a “flauta de

vértebras”. Eu imaginava que também aquele era um

decote ideológico.

Ah, ninguém consegue ser nada, em nossa época,

sem o empurrão promocional das esquerdas. Waldomiro

Autran Dourado acaba de publicar sua Ópera dos mortos.

É uma obra-prima. Mas ninguém escreve sobre a Ópera

dos mortos. É apenas uma obra de arte, irredutível obra

de arte e nada mais. A qualidade estilística parece uma

alienação insuportável. E como é a “festiva” que promove

o artista, ou o enterra, faz-se para o livro de Autran um

feio e vil silêncio.

Mas há, de vez em quando, uma surpresa. Ligo para

o Hélio Pellegrino. E me diz o poeta e psicanalista: —

“Estou aqui com o doce radical”. O assim chamado “doce

radical” é Antônio Callado. E continua o Hélio: — “Acaba

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de me ler um poema”. Há o suspense de uma pausa. O

Hélio completa: — “De amor. Poema de amor”. Nada

descreve e nada se compara ao meu espanto. Ainda

perguntei: — “De amor mesmo? Tem certeza? É só de

amor?”. O Hélio deu-me a sua palavra: — “Amor, e só de

amor”.

Na minha crassa ingenuidade, imagino que o doce

radical estivesse lendo um Verlaine, ou sei lá. Mas Hélio,

qual um parnasiano, deixara para o fim a chave de ouro:

— “Poema dele mesmo. O autor é o próprio radical”.

Na minha confusão imaginava eu o que diriam as

esquerdas, o escândalo amargo da “festiva”. Depois dos

versos de amor, como poderá Callado voltar ao Antonio’s e

lá exibir o seu bonito perfil de medalha, de moeda, de

cédula? Mas esperem, esperem. O doce radical corre, sem

o saber, um risco físico. Por enquanto, os rapazes das

Belas Artes queimam os poemas. Um dia, queimarão os

poetas.

[O GLOBO, 03.02.1968]