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Nem Deus, Nem Senhor
Se do Império
Poder
As Contas de Deus
Canção dos Despedidos
Onofre
Eram Mais de Cem
O Papão do Anão
A Vida Rompeu
Do que Um Homem é Capaz
Cantos dos Torna-Viagem
Fado em Dó Maior
Pão-Pão
Amor Gigante
Tenho Dó das Estrelas
Elogio de Caeiro
01.
02.
03.
04.
05.
06.
07.
08.
09.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
(letra e música: José Mário Branco)
A luz é tão cegaQue nunca se entregaSó se deixa verNuma razão de serSem sequer entenderOs olhos que a vão receber
E o rasto que ficaÉ uma coisa antigaQue a gente tem p’ra darE só pode encontrarQuando morrer a procurar
Salvo pelo amorSó se pode ser salvo pelo amorDo sentido perdido ganhador
Não tem Deus nem SenhorEsta dorAnda à solta por aíQue eu bem a viAi, se eu pudesse pararSe eu vos pudesse contar
Salvo pelo amorNão existe derrota para a dorCom o seu capital triturador
Não tem Deus nem SenhorÉ simplesmente dorQue é o que faz questão de serSem entenderQue a vida toda surgiuDe um Sol que nunca se viuNem sei se existe
(letra e música: José Mário Branco)
Se do Império os mortos vais contarSão tantas as parcelas p’ra somarQualquer pequena história ao virar da esquinaGuatemala, Indonésia, ArgentinaDjenine e Hiroshima
Para bem contar, não contes pelos dedosNenhuma conta conta a dorQue essas contas contarãoAí nessa rua a seguir à tuaSangue, lágrimas - e medos
Tem cuidadoSe do Império os mortos vais contarMelhor será saber recomeçarQue os mortos do Império vão voltar
Se do Império os mortos vais contarTerás milhões de vidas p’ra somarA grande história escrita ao virar da esquinaVietname, Curdistão, FilipinasAngola e Palestina
Para bem contar, preciso é ter coragemE deitar contas ao horrorQue essas contas contarãoE a conta continua a seguir à tuaFome, cárcere - pilhagem
Sê pacienteSe do Império os mortos vais contarMelhor será saber recomeçarQue os mortos do Império vão voltar
São mortos distantesEm tudo semelhantesA esses outros mortos que estão vivosEm tímidas vidasAlmas cativasMas prometidas
Os vivosSão o regresso dos mortosQue os impérios dãoÀ revolução
(letra e música: José Mário Branco)
1.Um heróiÀ mesuraDa sua estaturaVai sempre à procuraOnd' inda ninguém foi
Um heróiNão descuraUm ou outro dói-dóiUma dura aventuraNão mata mas mói
Caso venha a ser precisoArriscar qualquer coisinhaNa operaçãoUm herói no seu juízoLeva sempre uma pilinhaEm cada mão
Com a cobertura da instituiçãoMais aquilo do Deus-Pátria-CanhãoUm herói nunca se cortaMeio olho-vivo, meio mão-mortaA portaNão importa
(refrão)
2.Um heróiFaçanhudoÉ de tudo capazFaz ao peixe miúdoO que mais ninguém faz
Um heróiCatrapásSalta dos quadradinhosPuxa os cordelinhosE eles vêm atrásCom algum equipamentoAssegura a quadraturaDa operaçãoE o simbólico instrumentoÉ uma armadura duraEm cada mão
Um herói é o garante, o bastãoDessa coisa do Deus-Pátria-CanhãoNunca teme, nunca se cortaCome peixinhos da hortaMulher mortaNão aborta
(refrão)
Refrão:PoderQuem o tem, tem ascendentePoderQuem o tem, faz-se valenteBem usadoMal usadoO poder é prepotente
AssimDiz o povo amiúdeAssimHerói era toda a genteMais val' rico e com saúdeDo que pobre e doente
(letra e música: José Mário Branco)
Folhas de calendário sãoAlmas em busca de água e pãoQuanto mais o tempo passaMenos a desgraçaTem valor
Que buscas tu, ó meu irmãoIndustrial da opressãoCada letra do teu nomeÉ um ano de fomeE de dor
Contas e contas se fazem num diaAi quantas contas se fazem num diaCorpos caídosVidas aos bocadosTapados dos ladosPor cima e por baixoE eu, ou vou ou rachoO que eu não fariaCom as contas de um só diaSe eu fosse DeusSe Deus não fosse eu
Alguém que acorde esse paísQue pegue fogo aos alibisDe quem pensa que o dinheiroSe gasta primeiroQue o amor
Como se pode ser felizSabendo a dor que não se dizCada minuto da horaAlguém vai emboraOu pior
Contas e contas se fazem num dia...
Como se Deus não fosses tu.
(letra e música: José Mário Branco)
Somos explorados no trabalho, e não sóTambém somos o lixoLixo na tê-vê, quem lá está e quem vêLixo no jornal, voz do seu capitalEstamos entregues aos bichosE o lixo produz mais lixo
E o tempo a passarE eu a cantarEu também faço parte do lixo
Há quem viva bem do nosso mal-viverNós somos lixoSomos só lixoJá não há gente, há só lixoDispensável, descartável, reciclávelE agora parem um minuto p’ra pensar
Há que humanizar a humanidade, e não sóHá que varrer o lixoO do Capital, que é o lixo globalLixo do Estado, que é o seu braço armadoO mundo é de quem mandaE o resto é propaganda
Tudo é publicidadeMas a liberdadeÉ escolher entre ser ou estar
Tens a boca cheia de palavras lindasP’ra ti sou lixoSomos só lixoNós não somos gente, somos lixoDispensável, descartável, reciclávelMas vou parar mais um minuto p’ra pensar
Vamos a casaAo fim do diaSó p’ra regenerar a mais-valiaGanhar forças, fazer filhosCada um no seu caixoteE amanhã tomar o botePara o paraíso dos cadilhos
Quem é o lixoEles são o lixo do corpo e da almaComo é que se pode ter calmaP’ra varrer este monturoDos escombros do futuro
(música e letra: José Mário Branco)
“Onofre”: nome português para “on-off”
Quando o espectro de Goebbels me ensombrae me agride com maisGuerra mediáticaE a sua matilha se maquilhaQuando essa escolha cuidada de coisas reaisficcionadas, iguaisSem lei nem gramáticaFaz de cada Homem uma ilhaQuando vem a maré negra dessa matilhaobscenaE para sobreviver há que sair de cenaResta só a solução de premir o botãoQuem sofreQuem sofreQuem sempre sofre é o Onofre
Quando a voz do Grande Irmão mostrasempre outra cara escondendoA paz totalitáriaNo negócio do seu matadouroQuando propagandeando a janela do mundosó abre p’ra dentroE é sempre o cenárioEm que o sangue valoriza o ouroOs jornalistas clonados facturam a desgraçaNem no amor nem na dor a caravana passaVou vomitar e então carrego no botãoO OnofreO OnofreTriste poder de quem sofre
Quando p’ra tanto poder parece que já nadapodemos fazerP’ra nos mantermos vivosE eles tão seguros da vitóriaQuando agressivos, banais, sorridentes,coprófagos fartos de serPlurais digestivosAté resistir é uma históriaSó o Onofre me diz que o dono inda sou euQue esse terrível poder ninguém o elegeuE logo a alma da mão carrega no botãoOnofreOnofreÉs o segredo do cofre
(música e letra: José Mário Branco)
Refrão:Eram mais de cemEram mais de milNão os contei bemUm milhão de lil- iputianos pr'aí
Os homens pequenosQuando são demaisNão fazem por menosTornam-se fatais - vão por mim que o vivi
1.Como é que um freguês duma freguesiaqualquerVê o seu destinoFazer o pinoSem saber ler - nem 'screver
Homem avisado sempre ouviu alguém dizerCada naufrágioÉ um presságioDo que vai a- contecer
2.Vá-se lá saber o que é que esta gente me querEste lugarTão singularAi quem me val' - a valer
Há sempre um lugar que falta a gente conhecerAi se eu souberaComo isto eraNunca viera - aqui ter
3.Preso assim que nem é modo d' alguém presoserPequenos fiosNós corrediosQue assim me estão - a prender
Já 'stá tecida uma teia para me tecerCabeça e pésOs dedos dezJá não me po- sso mexer
(letra e música: José Mário Branco)
O papão do anãoÉ o anão do próprio anãoO pior p'rò anãoÉ ter um irmão menorÉ ter um irmão maiorÉ ter um irmão...
Só de costas o anão é parecidoCom o menino que pode ter sido
Os anões não se medem aos palmosEu sou o melhorEu sou o maiorQuero serHei-de ser sempre o mais pequeninoEstreitinhoManeirinhoQue há-de haver
Propriamente ser anão não custa putoO que custa é manter esse estatuto
(poema: Nuno Júdice, segundo Raúl Brandão;música: José Mário Branco)
A vida rompeuOnde tudo era breuE embora fosse morrerA morteComeçou a reverdecerA morteComeçou a reverdecer
O papão do anãoÉ o anão do próprio anãoO pior p'rò anãoÉ ter um irmão menorÉ ter um irmão maiorÉ ter um irmão melhorO pior p'rò anãoÉ ter um irmão...
Ser anão não é coisa do corpoÉ forma do espírito morto
São anões p’ra quem tudo são palmosEu sou o melhorEu sou o maiorQuero ser sempre o mais pequeninoEstreitinhoMirradinhoQue há-de haver
Propriamente ser anão não é defeitoÉ gostar de ser pequeno sem proveito
O papão do anão (…)
Eram dois mendigosE amavam-se de amorDemorou Deus a olhá-los
CORO: Demorou Deus a olhá-los
Demoraram os carrascosA levá-losA levá-los
A vida rompeuOnde tudo era breu
Toda a terra fermentou
E embora fosse morrerA morte
Vozes, ventos e murmúrios
Eram dois mendigosE amavam-se de amor
Deu água a fonte que secou
Demorou Deus a olhá-losA morte
Vozes, ventos e murmúrios
Passou a noite absortoNo negrume opaco da noiteSóis, núvens, avesUm deus mortoNo negrume opaco da noite
(letra e música: José Mário Branco)
1.Do que um homem é capazAs coisas que ele fazP'ra chegar aonde querÉ capaz de dar a vidaP'ra levar de vencidaUma razão de viver
2.A vida é como uma estradaQue vai sendo traçadaSem nunca arrepiar caminhoE quem pensa estar paradoVai no sentido erradoA caminhar sozinho
3.Vejo gente cuja vidaVai sendo consumidaPor miragens de poderAgarrados a alguns ossosNo meio dos destroçosDo que nunca hão-de fazer
4.Vão poluindo o percursoCo' as sobras do discursoQue lhes serviu pr' abrir caminhoÀ custa das nossas utopiasUsurpam regaliasP'ra consumir sozinho
5.Com políticas concretasImpõem essas metasQue nos entram casa dentroComo a TrilateralCo' a treta liberalE as virtudes do centro
5.Com políticas concretasImpõem essas metasQue nos entram casa dentroComo a TrilateralCo' a treta liberalE as virtudes do centro
6.No lugar da consciênciaA lei da concorrênciaPisando tudo p'lo caminhoP'ra castrar a juventudeMascaram de virtudeO querer vencer sozinho
7.Ficam cínicos, brutaisDescendo cada vez maisP'ra subir cada vez menosQuanto mais o mal se expandeMais acham que ser grandeÉ lixar os mais pequenos
8.Quem escolhe ser assimQuando chegar ao fimVai ver que errou o seu caminhoQuando a vida é hipotecadaNo fim não sobra nadaE acaba-se sozinho
9.Mesmo sendo os poderososTão fracos e gulososQue precisam do poderMesmo havendo tanta genteP'ra quem é indif'rentePassar a vida a morrer
10Há princípios e valoresHá sonhos e há amoresQue sempre irão abrir caminhoE quem viver abraçadoÀ vida que há ao ladoNão vai morrer sozinhoE quem morrer abraçadoÀ vida que há ao ladoNão vai viver sozinho
(letra e música: José Mário Branco)
Melodia 1 (solistas, depois coro adulto misto)
1. Foi no sulco da viagemJá sem armas nem bagagemNem os brazões da equipagemFoi ao voltar
Pátria moratóriaNo coração da HistóriaQue consumiste a glóriaNum jantar
2. Foi como se PortugalP'ra seu bem e p'ra seu malAndasse em busca dum finalP'ra começar
Ávida violênciaReverso de inocênciaSal da inconsciênciaQue há no mar
3. Império tão pequeninoDe portulano caprinoBolsos de sina e de sinoEm cada mão
Pátria imagináriaDe consistência váriaAfirmação diáriaDo teu não
4. As malas dos portuguesesSão como os olhos das rezesQue se mastigam três vezesEm cada chão
Cândida ignorânciaGrande desimportânciaOs frutos da errânciaJá lá vão
Melodia 2 (solistas, depois coro adulto misto)
1. Ai Senhora dos Navegantes me valeiDe África, do sal e do mar só eu sobreiFoi p'ra me encontrar que amanhã já me perdiLonge vai o tempo em que eu já não estouaqui
2. Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-SinaisSocorrei estes desperdícios coloniaisFoi na noite fria que o dia me cegouInda agora fui, inda agora cá não estou
3. Ai Senhora dos Esquecidos me lembraiO caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vaiEtecetra e tal, Portugal é nós no marInda agora vim e estou longe de chegar
4. Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraíFoi pataca a mim e não foi pataca a tiSe é tão grande a alma na palma do meu serAlgum dia eu vou finalmente acontecer
Melodia 3 (coro infantil +JMB)
1. Porque não tentar outro ponto de vistaA história dos outros, quem a contaráSe qualquer colónia sem colonialistaSão os que já estavam lá
2. Tentemos então ver a coisa ao contrárioDo ponto de vista de quem não chegouPois se eu fosse um preto chamado Zé MárioEu não era quem eu sou
3. Os navegadores chegaram cá a casaE foi tudo novo p’ra eles e p’ra mimA cruz e a espada e os olhos em brasaPorque me trataste assim ?
4. Não é culpa nossa se quem p’ra cá veioNão se incomodou ao saber do horrorA História não olha a quem fica no meioE o que foi é de quem fôr
(letra e música: José Mário Branco)
1.Qualquer sítio do mundoTem o seu portuguêsOu antigo portuguêsOu resto de português
O resto desse resto portuguêsÉ que faz a vezDo todo português
Abismo vagabundoChamado PortugalViaduto naturalEntre a Índia e o quintal
É tão longe de Portugal a PortugalDói mas não faz malÉ o mal de Portugal
(refrão)
2.Arrisco quase tudoE quase pela certaQuando a sorte nos apertaPerder é quase ganhar
Eu sempre que abalei à descobertaDeixei a porta abertaPara quem quisesse entrar
Por isso apareçoOnde menos se esperaTaberneiro de quimeraMarinheiro sempre à mão
O ir-e-vir é que me dilaceraMas o futuro que já eraVai pagando a redenção
(refrão)
3.Talvez eu chegue um diaAo fim desta viagemFicando aqui na paragemA andar p’ra cá e p’ra lá
Se a camioneta nunca mais chegarEu não vou parar de andarE alguma coisa virá
A vida é assim feitaQue tudo o que pareceÉ mesmo aquilo que aconteceOu parece acontecer
Certo, certo, é que ao fim deste carrilHá-de haver algum um BrasilPara eu me refazer
(refrão)
Refrão:
Por aíMais ou menosO que eu viJá te viOstrogodos sarracenosInda agora os conheci
Saio da cascaÉ já aliFico à rascaNa borrascaPortugal agora é aquiQuem não pode, desenrasca
(letra e música: José Mário Branco)
1.
Pé de milhoPé da portaPai p'ra filhoPão-pão
A culturaMesmo àgri-Dura, duraPão-pão
Dois lados tem o espelhoO da mão, o do umbigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo
2.
Pedra a pedraAno a anoSe não medraPão-pão
Um que nasceUm que morreO tempo faz-sePão-pão
Dois lados tem o espelhoO da paz, o do perigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo
3.
Gota a gotaChove a chuvaAbarrotaPão-pão
O rebanhoPela encostaVerde brancoPão-pão
Dois lados tem o espelhoO já-está, o não-consigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo
4.
CastanheiroCentenárioChão e cheiroPão-pão
PensamentosPorque há tempoSedimentosPão-pão
Dois lados tem o espelhoO vizinho, o amigoUma coisa é ser velhoOutra é ser antigo
(letra e música: José Mário Branco)
Um mundo à justa medidaNunca houveNem sei se haveráContam-se histórias da vidaTão estranhasTão cruéis que sei láComo a de certa donzelaQue era extensamente bela
Tão grande e tão amadaPor quem - nadaEra ao pé dela
Tão grande e tão amadaE cortejadaPor quem - nadaEra ao pé dela
(refrão)
A menina desta históriaEra grandeMuito grande atéGrandeza contraditóriaMas que poucoEsse louco era ao péPensando não ser bastanteSentir um amor gigante
Assim cantava o ditoPequenitoSeu amante
Mais que um canto era um gritoO do ditoPequenitoSeu amante
(refrão)
As histórias de gigantesEra dantesQue acabavam bemHoje escolhe-se o amanteConsoanteSe o tamanho convém
Refrão:Não vejo poder amar-teNa desejada proporçãoEmbora não sei por que arteCaibas de pé no meu coraçãoMenina giganteQue 'stás tão distanteAqui mesmo dianteDe mim
Percorro pressurosamenteA longa rota do teu corpoSem conseguir, por mais que tenteChegar ao fim-de-ti antes de mortoMenina colossoQue eu quero e não possoPorque é que assim troçoDe mim
(Poema: Fernando Pessoa)
Tenho dó das estrelasLuzindo há tanto tempoHá tanto tempo…Tenho dó delas.
Não haverá um cansaçoDas coisas,De todas as coisas,Como das pernas ou de um braço ?
Um cansaço de existir,De ser,Só de ser,O ser triste brilhar ou sorrir…
Não haverá, enfim,Para as coisas que são,Não a morte, mas sim(Uma) outra espécie de fim,Ou uma grande razão –Qualquer coisa assimComo um perdão ?
(letra e música: José Mário Branco)
Olhar p'ra tudo como um movimentoCerto, elegante comprometimentoCom a cor, com a normaCom a vez, com o tempoO tempo justo para a formaO tempo justo para dentroE só falar para dizer
Viver unido, unido com a terraSem ter sequer qualquer uso p'rà guerraProduzir, repartirDescansar a seguirO olhar incrível de um cavaloSageza, amor, tudo a habitá-loE ser igual dar ou receber
Cantar nitidamente a naturezaSer cantar, ser só simples certezaComo o vivo, o primeiroComo a voz de CaeiroDesconhecer o fel da falaOu conhecendo-o, ignorá-laE tudo o que é, acontecer
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 01
Nem Deus nem Senhor (letra e música: José Mário Branco)
A luz é tão cega
Que nunca se entrega
Só se deixa ver
Numa razão de ser
Sem sequer entender
Os olhos que a vão receber
E o rasto que fica
É uma coisa antiga
Que a gente tem p’ra dar
E só pode encontrar
Quando morrer a procurar
Salvo pelo amor
Só se pode ser salvo pelo amor
Do sentido perdido ganhador
Não tem Deus nem Senhor
Esta dor
Anda à solta por aí
Que eu bem a vi
Ai, se eu pudesse parar
Se eu vos pudesse contar
Salvo pelo amor
Não existe derrota para a dor
Com o seu capital triturador
Não tem Deus nem Senhor
É simplesmente dor
Que é o que faz questão de ser
Sem entender
Que a vida toda surgiu
De um Sol que nunca se viu
Nem sei se existe
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 02
Do que um homem é capaz (letra e música: José Mário Branco)
1.
Do que um homem é capaz
As coisas que ele faz
P'ra chegar aonde quer
É capaz de dar a vida
P'ra levar de vencida
Uma razão de viver
A vida é como uma estrada
Que vai sendo traçada
Sem nunca arrepiar caminho
E quem pensa estar parado
Vai no sentido errado
A caminhar sozinho
2.
Vejo gente cuja vida
Vai sendo consumida
Por miragens de poder
Agarrados a alguns ossos
No meio dos destroços
Do que nunca hão-de fazer
Vão poluindo o percurso
Co' as sobras do discurso
Que lhes serviu pr' abrir caminho
À custa das nossas utopias
Usurpam regalias
P'ra consumir sozinho
3.
Com políticas concretas
Impõem essas metas
Que nos entram casa dentro
Como a Trilateral
Co' a treta liberal
E as virtudes do centro
No lugar da consciência
A lei da concorrência
Pisando tudo p'lo caminho
P'ra castrar a juventude
Mascaram de virtude
O querer vencer sozinho
4.
Ficam cínicos, brutais
Descendo cada vez mais
P'ra subir cada vez menos
Quanto mais o mal se expande
Mais acham que ser grande
É lixar os mais pequenos
Quem escolhe ser assim
Quando chegar ao fim
Vai ver que errou o seu caminho
Quando a vida é hipotecada
No fim não sobra nada
E acaba-se sozinho
5.
Mesmo sendo os poderosos
Tão fracos e gulosos
Que precisam do poder
Mesmo havendo tanta gente
P'ra quem é indif'rente
Passar a vida a morrer
Há princípios e valores
Há sonhos e há amores
Que sempre irão abrir caminho
E quem viver abraçado
À vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho
E quem morrer abraçado
À vida que há ao lado
Não vai viver sozinho
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 03
As contas de Deus (letra e música: José Mário Branco)
Folhas de calendário são
Almas em busca de água e pão
Quanto mais o tempo passa
Menos a desgraça
Tem valor
Que buscas tu, ó meu irmão
Industrial da opressão
Cada letra do teu nome
É um ano de fome
E de dor
Contas e contas se fazem num dia
Ai quantas contas se fazem num dia
Corpos caídos
Vidas aos bocados
Tapados dos lados
Por cima e por baixo
E eu, ou vou ou racho
O que eu não faria
Com as contas de um só dia
Se eu fosse Deus
Se Deus não fosse eu
Alguém que acorde esse país
Que pegue fogo aos alibis
De quem pensa que o dinheiro
Se gasta primeiro
Que o amor
Como se pode ser feliz
Sabendo a dor que não se diz
Cada minuto da hora
Alguém vai embora
Ou pior
Contas e contas se fazem num dia
……
Como se Deus não fosses tu…
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 04
Poder (letra e música: José Mário Branco)
1.
Um herói
À mesura
Da sua estatura
Vai sempre à procura
Ond' inda ninguém foi
Um herói
Não descura
Um ou outro dói-dói
Uma dura aventura
Não mata mas mói
2.
Um herói
Façanhudo
É de tudo capaz
Faz ao peixe miúdo
O que mais ninguém faz
Um herói
Catrapás
Salta dos quadradinhos
Puxa os cordelinhos
E eles vêm atrás
Caso venha a ser preciso
Arriscar qualquer coisinha
Na operação
Um herói no seu juizo
Leva sempre uma pilinha
Em cada mão
Com a cobertura da instituição
Mais aquilo do Deus-Pátria-Canhão
Um herói nunca se corta
Meio olho-vivo, meio mão-morta
A porta
Não importa
Com algum equipamento
Assegura a quadratura
Da operação
E o simbólico instrumento
É uma armadura dura
Em cada mão
Um herói é o garante, o bastão
Dessa coisa do Deus-Pátria-Canhão
Nunca teme, nunca se corta
Come peixinhos da horta
Mulher morta
Não aborta
Poder
Quem o tem, tem ascendente
Poder
Quem o tem, faz-se valente
Bem usado
Mal usado
O poder é prepotente
Assim
Diz o povo amiúde
Assim
Herói era toda a gente
Mais val' rico e com saúde
Do que pobre e doente
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 05
Canção dos despedidos (letra e música: José Mário Branco)
1 Somos explorados no trabalho, e não só
Também somos o lixo
Lixo na tê-vê, quem lá está e quem vê
Lixo no jornal, voz do seu capital
Estamos entregues aos bichos
E o lixo produz mais lixo
…
E o tempo a passar
E eu a cantar
Eu também faço parte do lixo
Há quem viva bem do nosso mal-viver
Nós somos lixo
Somos só lixo
Já não há gente, há só lixo
Dispensável, descartável, reciclável
E agora parem um minuto p’ra pensar
2 Há que humanizar a humanidade, e não só
Há que varrer o lixo
O do Capital, que é o lixo global
O lixo do Estado, que é o seu braço armado
O mundo é de quem manda
E o resto é propaganda
…
Tudo é publicidade
Mas a liberdade
É escolher entre ser ou estar
Tens a boca cheia de palavras lindas
P’ra ti sou lixo
Somos só lixo
Nós não somos gente, somos lixo
Dispensável, descartável, reciclável
Mas vou parar mais um minuto p’ra pensar
3 Vamos a casa
Ao fim do dia
Só p’ra regenerar a mais-valia
Ganhar forças, fazer filhos
Cada um no seu caixote
E amanhã tomar o bote
Para o paraíso dos cadilhos
Quem é o lixo
Eles são o lixo do corpo e da alma
Como é que se pode ter calma
P’ra varrer este monturo
Dos escombros do futuro
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 06
Onofre (música e letra: José Mário Branco)
“Onofre”: nome português para o botão “on-off”
Quando o espectro de Goebbels me ensombra e me agride com mais
Guerra mediática
E a sua matilha se maquilha
Quando essa escolha cuidada de coisas reais ficcionadas, iguais
Sem lei nem gramática
Faz de cada Homem uma ilha
Quando vem a maré negra dessa matilha obscena
E para sobreviver há que sair de cena
Resta só a solução de premir o botão
Quem sofre
Quem sofre
Quem sempre sofre é o Onofre
Quando a voz do Grande Irmão mostra sempre outra cara escondendo
A paz totalitária
No negócio do seu matadouro
Quando propagandeando a janela do mundo só abre p’ra dentro
E é sempre o cenário
Em que o sangue valoriza o ouro
Os jornalistas clonados facturam a desgraça
Nem no amor nem na dor a caravana passa
Vou vomitar e então carrego no botão
O Onofre
O Onofre
Triste poder de quem sofre
Quando p’ra tanto poder parece que já nada podemos fazer
P’ra nos mantermos vivos
E eles tão seguros da vitória
Quando agressivos, banais, sorridentes, coprófagos fartos de ser
Plurais digestivos
Até resistir é uma história
Só o Onofre me diz que o dono inda sou eu
Que esse terrível poder ninguém o elegeu
E logo a alma da mão carrega no botão
Onofre
Onofre
És o segredo do cofre
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 07
Eram mais de cem (letra e música: José Mário Branco)
Refrão:
Eram mais de cem
Eram mais de mil
Não os contei bem
Um milhão de lil- iputianos pr'aí
Os homens pequenos
Quando são demais
Não fazem por menos
Tornam-se fatais - vão por mim que o vivi
1.
Como é que um freguês duma freguesia qualquer
Vê o seu destino
Fazer o pino
Sem saber ler - nem 'screver
Homem avisado sempre ouviu alguém dizer
Cada naufrágio
É um preságio
Do que vai a- contecer
2.
Vá-se lá saber o que é que esta gente me quer
Este lugar
Tão singular
Ai quem me val' - a valer
Há sempre um lugar que falta a gente conhecer
Ai se eu soubera
Como isto era
Nunca viera - aqui ter
3.
Preso assim que nem é modo d' alguém preso ser
Pequenos fios
Nós corredios
Que assim me estão - a prender
Já 'stá tecida uma teia para me tecer
Cabeça e pés
Os dedos dez
Já não me po- sso mexer
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 08
O papão do anão (letra e música: José Mário Branco)
O papão do anão
É o anão do próprio anão
O pior p'rò anão
É ter um irmão menor
É ter um irmão maior
É ter um irmão...
Só de costas o anão é parecido
Com o menino que pode ter sido
Os anões não se medem aos palmos
Eu sou o melhor
Eu sou o maior
Quero ser
Hei-de ser sempre o mais pequenino
Estreitinho
Maneirinho
Que há-de haver
Propriamente ser anão não custa puto
O que custa é manter esse estatuto
O papão do anão
É o anão do próprio anão
O pior p'rò anão
É ter um irmão menor
É ter um irmão maior
É ter um irmão melhor
O pior p'rò anão
É ter um irmão...
Ser anão não é coisa do corpo
É forma do espírito morto
São anões p’ra quem tudo são palmos
Eu sou o melhor
Eu sou o maior
Quero ser sempre o mais pequenino
Estreitinho
Mirradinho
Que há-de haver
Propriamente ser anão não é defeito
É gostar de ser pequeno sem proveito
O papão do anão (…)
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 09
Canto dos Torna-Viagem (letra e música: José Mário Branco)
Ao Fausto Melodia 1 (JMB, depois coro adulto misto)
1. Foi no sulco da viagem
Já sem armas nem bagagem
Nem os brazões da equipagem
Foi ao voltar
Pátria moratória
No coração da História
Que consumiste a glória
Num jantar
2. Foi como se Portugal
P'ra seu bem e p'ra seu mal
Andasse em busca dum final
P'ra começar
Ávida violência
Reverso de inocência
Sal da inconsciência
Que há no mar
3. Império tão pequenino
De portulano caprino
Bolsos de sina e de sino
Em cada mão
Pátria imaginária
De consistência vária
Afirmação diária
Do teu não
4. As malas dos portugueses
São como os olhos das rezes
Que se mastigam três vezes
Em cada chão
Cândida ignorância
Grande desimportância
Os frutos da errância
Já lá vão
Melodia 2 (Fausto, depois coro adulto misto)
1. Ai Senhora dos Navegantes me valei
De África, do sal e do mar só eu sobrei
Foi p'ra me encontrar que amanhã já me perdi
Longe vai o tempo em que eu já não estou aqui
3. Ai Senhora dos Esquecidos me lembrai
O caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vai
Etecetra e tal, Portugal é nós no mar
Inda agora vim e estou longe de chegar
2. Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-Sinais
Socorrei estes desperdícios coloniais
Foi na noite fria que o dia me cegou
Inda agora fui, inda agora cá não estou
4. Ai Senhora dos Meus Iguais que eu subtraí
Foi pataca a mim e não foi pataca a ti
Se é tão grande a alma na palma do meu ser
Algum dia eu vou finalmente acontecer
Melodia 3 (coro infantil +JMB)
1. Porque não tentar outro ponto de vista
A história dos outros, quem a contará
Se qualquer colónia sem colonialista
São os que já estavam lá
3. Os navegadores chegaram cá a casa
E foi tudo novo p’ra eles e p’ra mim
A cruz e a espada e os olhos em brasa
Porque me trataste assim ?
2. Tentemos então ver a coisa ao contrário
Do ponto de vista de quem não chegou
Pois se eu fosse um preto chamado Zé Mário
Eu não era quem eu sou
4. Não é culpa nossa se quem p’ra cá veio
Não se incomodou ao saber do horror
A História não olha a quem fica no meio
E o que foi é de quem fôr
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 10
Pão-pão (letra e música: José Mário Branco)
1.
Pé de milho
Pé da porta
Pai p'ra filho
Pão-pão
A cultura
Mesmo àgri-
Dura, dura
Pão-pão
3.
Gota a gota
Chove a chuva
Abarrota
Pão-pão
O rebanho
Pela encosta
Verde branco
Pão-pão
Dois lados tem o espelho
O da mão, o do umbigo
Uma coisa é ser velho
Outra é ser antigo
Dois lados tem o espelho
O já-está, o não-consigo
Uma coisa é ser velho
Outra é ser antigo
2.
Pedra a pedra
Ano a ano
Se não medra
Pão-pão
Um que nasce
Um que morre
O tempo faz-se
Pão-pão
4.
Castanheiro
Centenário
Chão e cheiro
Pão-pão
Pensamentos
Porque há tempo
Sedimentos
Pão-pão
Dois lados tem o espelho
O da paz, o do perigo
Uma coisa é ser velho
Outra é ser antigo
Dois lados tem o espelho
O vizinho, o amigo
Uma coisa é ser velho
Outra é ser antigo
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 11
Fado em dó maior (letra e música: José Mário Branco)
1.
Qualquer sítio do mundo
Tem o seu português
Ou antigo português
Ou resto de português
O resto desse resto português
É que faz a vez
Do todo português
Abismo vagabundo
Chamado Portugal
Viaduto natural
Entre a Índia e o quintal
É tão longe de Portugal a Portugal
Dói mas não faz mal
É o mal de Portugal
(ao refrão)
2.
Arrisco quase tudo
E quase pela certa
Quando a sorte nos aperta
Perder é quase ganhar
Eu sempre que abalei à descoberta
Deixei a porta aberta
Para quem quisesse entrar
Por isso apareço
Onde menos se espera
Taberneiro de quimera
Marinheiro sempre à mão
O ir-e-vir é que me dilacera
Mas o futuro que já era
Vai pagando a redenção
(ao refrão)
3.
Talvez eu chegue um dia
Ao fim desta viagem
Ficando aqui na paragem
A andar p’ra cá e p’ra lá
Se a camioneta nunca mais chegar
Eu não vou parar de andar
E alguma coisa virá
A vida é assim feita
Que tudo o que parece
É mesmo aquilo que acontece
Ou parece acontecer
Certo, certo, é que ao fim deste carril
Há-de haver algum um Brasil
Para eu me refazer
(ao refrão)
Refrão:
Por aí
Mais ou menos
O que eu vi
Já te vi
Ostrogodos sarracenos
Inda agora os conheci
Saio da casca
É já ali
Fico à rasca
Na borrasca
Portugal agora é aqui
Quem não pode, desenrasca
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 12
Amor gigante (letra e música: José Mário Branco)
Um mundo à justa medida
Nunca houve
Nem sei se haverá
Contam-se histórias da vida
Tão estranhas
Tão cruéis que sei lá
Como a de certa donzela
Que era extensamente bela
Tão grande e tão amada
Por quem - nada
Era ao pé dela
Tão grande e tão amada
E cortejada
Por quem - nada
Era ao pé dela
Refrão:
Não vejo poder amar-te
Na desejada proporção
Embora não sei por que arte
Caibas de pé no meu coração
Menina gigante
Que 'stás tão distante
Aqui mesmo diante
De mim
Percorro pressurosamente
A longa rota do teu corpo
Sem conseguir, por mais que tente
Chegar ao fim-de-ti antes de morto
Menina colosso
Que eu quero e não posso
Porque é que assim troço
De mim
A menina desta história
Era grande
Muito grande até
Grandeza contraditória
Mas que pouco
Esse louco era ao pé
Pensando não ser bastante
Sentir um amor gigante
Assim cantava o dito
Pequenito
Seu amante
Mais que um canto era um grito
O do dito
Pequenito
Seu amante
Ao refrão
As histórias de gigantes
Era dantes
Que acabavam bem
Hoje escolhe-se o amante
Consoante
Se o tamanho convém
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 13
A vida rompeu (da peça “A morte do palhaço”)
(poema: Nuno Júdice, segundo Raúl Brandão; música: José Mário Branco)
A vida rompeu
Onde tudo era breu
E embora fosse morrer
A morte
Começou a reverdecer
A morte
Começou a reverdecer
Eram dois mendigos
E amavam-se de amor
Demorou Deus a olhá-los
CORO: Demorou Deus a olhá-los
Demoraram os carrascos
A levá-los
A levá-los
A vida rompeu
Onde tudo era breu
Toda a terra fermentou
E embora fosse morrer
A morte
Vozes, ventos e murmúrios
Eram dois mendigos
E amavam-se de amor
Deu água a fonte que secou
Demorou Deus a olhá-los
A morte
Vozes, ventos e murmúrios
Passou a noite absorto
No negrume opaco da noite
Sóis, núvens, aves
Um deus morto
No negrume opaco da noite
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 14
Se do Império (letra e música: José Mário Branco)
1. Se do Império os mortos vais contar
São tantas as parcelas p’ra somar
Qualquer pequena história ao virar da esquina
Guatemala, Indonésia, Argentina
Djenine e Hiroshima
Para bem contar, não contes pelos dedos
Nenhuma conta conta a dor
Que essas contas contarão
Aí nessa rua a seguir à tua
Sangue, lágrimas - e medos
Tem cuidado
Se do Império os mortos vais contar
Melhor será saber recomeçar
Que os mortos do Império vão voltar
2. Se do Império os mortos vais contar
Terás milhões de vidas p’ra somar
A grande história escrita ao virar da esquina
Vietname, Curdistão, Filipinas
Angola e Palestina
Para bem contar, preciso é ter coragem
E deitar contas ao horror
Que essas contas contarão
E a conta continua a seguir à tua
Fome, cárcere - pilhagem
Sê paciente
Se do Império os mortos vais contar
Melhor será saber recomeçar
Que os mortos do Império vão voltar
3. São mortos distantes
Em tudo semelhantes
A esses outros mortos que estão vivos
Em tímidas vidas
Almas cativas
Mas prometidas
Os vivos
São o regresso dos mortos
Que os impérios dão
À revolução
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 15
Tenho dó das estrelas (Fernando Pessoa / J.M. Branco)
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço ?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
(Uma) outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão ?
José Mário Branco
Letras das canções do álbum “RESISTIR É VENCER”
Canção 16
Elogio de Caeiro (letra e música: José Mário Branco)
ao Zé Peixoto
Olhar p'ra tudo como um movimento
Certo, elegante comprometimento
Com a cor, com a norma
Com a vez, com o tempo
O tempo justo para a forma
O tempo justo para dentro
E só falar para dizer
Viver unido, unido com a terra
Sem ter sequer qualquer uso p'rà guerra
Produzir, repartir
Descansar a seguir
O olhar incrível de um cavalo
Sageza, amor, tudo a habitá-lo
E ser igual dar ou receber
Cantar nitidamente a natureza
Ser cantar, ser só simples certeza
Como o vivo, o primeiro
Como a voz de Caeiro
Desconhecer o fel da fala
Ou conhecendo-o, ignorá-la
E tudo o que é, acontecer