9
1 Nem oito nem oitenta: O Nordeste entre o urbano e o rural no cinema brasileiro da Retomada. Carlos Adriano F. de Lima O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História. Marc Ferro Nosso objetivo nesse trabalho é traçar um panorama da produção cinematográfica nacional no período compreendido como cinema da retomada (1992-2003) com ênfase nos filmes que têm o nordeste como representação. Entretanto, se faz necessário compreender que é considerado por grande parte da crítica e do público como cinema da Retomada todos os filmes produzidos no Brasil com o advento das leis Rouanet e de Incentivo a cultura. Considerado como “marco zero” temos Carlota Joaquina (1995) dirigido pela então estreante em longas-metragens Carla Camurati, o “percursor da Retomada” recebe esse título mais pelo retorno do público aos cinemas do que por qualquer outro fator. A importância desse filme para esse momento está no fato que depois de uma década de ocaso o relativo sucesso de crítica e grande apoio do público torna as produções que compartilham desse modelo factíveis. Os filmes produzidos no período não seguem um eixo temático. Encontramos desde comédias, filmes históricos e dramas encontramos as mais variadas produções. As produções são marcadas pela diversidade, característica considerada por muitos como bastante positiva por refletir em certos aspectos nosso próprio olhar da sociedade. Nesse ínterim, um espaço geográfico muito específico (para outros nem tanto) quanto o nordeste representado nesse período, não poderia ser diferente. Por isso o mesmo nos parece tão paradoxal. Contudo, certas categorias ainda estão presentes, em especial dois espaços. O primeiro que torna o Nordeste reconhecido como um lugar paradisíaco (litoral), enquanto, o segundo e conflitante onde esse mesmo local é também fonte de miséria e hostilidade (sertão) essas atribuições “espaciais” terminam criando no cinema um determinismo geográfico e social. Em alguns casos, os filmes criam arquétipos de personagens que se tornam tão ou mais marcantes como definidores da região como a própria geografia representada na película.

Nem Oito Nem Oitenta

Embed Size (px)

DESCRIPTION

cine

Citation preview

  • 1Nem oito nem oitenta:O Nordeste entre o urbano e o rural no cinema brasileiro da Retomada.

    Carlos Adriano F. de Lima

    O filme, imagem ou no da realidade,documento ou fico, intriga autntica oupura inveno, Histria.

    Marc Ferro

    Nosso objetivo nesse trabalho traar um panorama da produo cinematogrficanacional no perodo compreendido como cinema da retomada (1992-2003) com nfase nosfilmes que tm o nordeste como representao. Entretanto, se faz necessrio compreender que considerado por grande parte da crtica e do pblico como cinema da Retomada todos osfilmes produzidos no Brasil com o advento das leis Rouanet e de Incentivo a cultura.Considerado como marco zero temos Carlota Joaquina (1995) dirigido pela ento estreanteem longas-metragens Carla Camurati, o percursor da Retomada recebe esse ttulo mais peloretorno do pblico aos cinemas do que por qualquer outro fator. A importncia desse filmepara esse momento est no fato que depois de uma dcada de ocaso o relativo sucesso decrtica e grande apoio do pblico torna as produes que compartilham desse modelofactveis. Os filmes produzidos no perodo no seguem um eixo temtico. Encontramos desdecomdias, filmes histricos e dramas encontramos as mais variadas produes. As produesso marcadas pela diversidade, caracterstica considerada por muitos como bastante positivapor refletir em certos aspectos nosso prprio olhar da sociedade. Nesse nterim, um espaogeogrfico muito especfico (para outros nem tanto) quanto o nordeste representado nesseperodo, no poderia ser diferente. Por isso o mesmo nos parece to paradoxal. Contudo,certas categorias ainda esto presentes, em especial dois espaos. O primeiro que torna oNordeste reconhecido como um lugar paradisaco (litoral), enquanto, o segundo e conflitanteonde esse mesmo local tambm fonte de misria e hostilidade (serto) essas atribuiesespaciais terminam criando no cinema um determinismo geogrfico e social. Em algunscasos, os filmes criam arqutipos de personagens que se tornam to ou mais marcantes comodefinidores da regio como a prpria geografia representada na pelcula.

  • 2Essas tentativas de reproduo de uma regio to plural terminam simplificando umarealidade cada vez mais multifacetada. Em alguns casos remetem a simplificaes ereducionismos. Hoje cada vez mais vlido falar em nordeste(s). Contudo, isso no significaque devemos ignorar essas representaes, muito ao contrrio. Afinal, o nordeste do cinemanos informa sobre como somos vistos, representados e como nos representamos.

    Dividiremos nossa anlise a partir de dois modelos que o cinema insiste emrepresentar o nordeste: o serto e o litoral. Entretanto, no ficaremos apenas nessas duascategorias espao-geogrfico. Ser objeto de nossa anlise uma nova categoria em que ascidades nordestinas em especial as grandes cidades so cada vez mais urbanas, violentas edesencantadas, quase uma espcie de resposta ao outro modelo de se fazer cinema.

    No cinema nacional existem dois sertes. Ambos possuem caractsticas em comumtais como: calor claudicante que parece ultrapassar a pelcula potencializados pelo uso defiltros e recursos cinematogrficos que ampliam essa sensao ou na superexposio dapelcula. O cinema nos faz pensar que, O serto do nosso imaginrio do cacto, da terrarachada pela seca, do sol causticante. (ORICCHIO, 2006:131). As pessoas com expressesfortes, fotografadas numa analogia ao prprio solo que tem o sofrimento marcado em suaface, assim como o solo, ambos transtornados pelos anos de fome e seca. Essas sogeralmente as imagens snteses da representao do serto nordestino, notadamente marcadospelas secas, numa simplificao da geografia da regio que equaciona esse espao comoNordeste. Pois bem, esse Nordeste representado em dois momentos distintos da histriado cinema no Brasil. Primeiro, no cinema novo quando:

    A favela e o serto so dois dos cenrios utilizados pelo cinema novo. A escolharemete a possibilidade de anlise ou uma espcie de laboratrio sociolgico noqual seriam observveis, in vrito e in vivo, as contradies que organizam ofuncionamento do pas. (ORICCHIO, 2006:212).

    Podemos observar que essa leitura da regio est vinculada a uma profunda crticapoltica o que no ser uma constante no cinema da retomada. O cinema era visto na dcadade 1960 como mobilizador social para o processo revolucionrio por dois dos maisimportantes cinemanovistas: Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Ruy Guerra queconduziram filmes com uma clara mensagem libertria. Nesse perodo, para o cinema novo,nordeste era o lugar de conflito e dessa forma seria a mais apropriada das representaes dasdificuldades impostas sociedade. Podemos notar essa mensagem presente em trs dos

  • 3principais filmes do perodo que se passam justamente nesse espao: Deus e o diabo na terrado sol (1964), Os fuzis (1964) e Vidas Secas (1963).

    Nossa proposta, todavia vem na anlise da representao desse espao na Retomada.Sobre o Cinema Novo e o Nordeste, tendo o serto nfase especial, os trabalhos de PauloEmilo Salles, Joo Carlos Avellar e Jean-Claude Bernadet so produes consideradasclssicas, mesmo que o Nordeste em si no tenha sido o foco principal de nenhum dostextos, alm dos escritos do Glauber Rocha como Reviso Crtica do Cinema Brasileiro.

    Antes de nos determos nessa representao do serto uma questo que no deixa deser pertinente sobre o fim da retomada. Afinal, algo no pode retornar continuamentecomo diz Orichio (2006) que defende o fim da retomada com Cidade de Deus (2003), e emnosso trabalho tambm precisamos fazer um recorte possibilitando assim a anlise dos filmesproduzidos.

    No proposta desse trabalho discutir em que momento termina a retomada, masutilizar alguns dos filmes que tem a temtica do nordeste como mote principal seguindo essaproduo realizada na dcada de 90 e incio do sculo XXI. Afinal,

    Muitos criticam esse batismo, que seria apenas um rtulo da mdia, ou mesmo umeco dos velhos vcios de profissionais do cinema brasileiro, sempre inclinados a darprioridade ao setor da produo em detrimento de outros pilares da indstriaaudiovisual ( a distribuio e a exibio, sem os quais o filme no chegam aopblico). (BUTCHER, 2005:14)

    O que nos interessa, so os filmes produzidos nesse perodo que tem o nordeste comocenrio ou foco. Contudo nosso recorte segue at 2007 com o lanamento de Baixio dasBestas do diretor Cludio Assis. Observamos com raras excees que esse material seguebasicamente trs linhas. A primeira o serto como um dos elementos principais da narrativa(seja enquanto espao para a histria seja como um personagem com tempo em cena maiordo que qualquer outro personagem), a segunda o litoral e sua plasticidade transformada empropaganda turstica. Essas duas dimenses possuem o incauto nordestino e a terceira umnovo nordeste com uma dimenso crtica diferente das anteriores. Mesmo que possa pareceruma espcie de novo cinema novo esse novo cinema no tem como preocupaoprincipal uma vinculao poltica mais a construo e s vezes at mesmo de umadesconstruo de uma identidade. Independente dessa diviso terica esse cinema atual no visto de maneira favorvel pelos defensores do cinema novo. Falta a crtica poltica e socialque mobilizam as produes dos diretores citados anteriormente: Glauber Rocha, Joaquim

  • 4Pedro de Andrade e Ruy Guerra, para citar apenas os nomes mais famosos desse engajamentoideolgico. Essa leitura no poderia ser mais inadequada e por que no dizer anacrnica.Vivemos um perodo totalmente distinto tanto do ponto de vista poltico, econmico quantoideolgico. Como falar a uma nao sobre opresso e processos revolucionrios para umapopulao que est desacreditada, diramos mesmo desencantada. Ainda mais no incio dosanos 1990 quando os ecos do neo-liberalismo comeava a mostrar seus resultados. Emespecial no Brasil onde as artes, teatro e cinema de forma mais forte sofreram com o descasodo Estado. Essa apenas uma das discusses para uma questo to complexa. Talvez a grande vantagem da produo cinematogrfica atual sobre o nordeste tenhasido justamente a diversidade. Afinal, temticas e abordagens diversas fizeram nosso sertomenos sofrido e feliz. Mesmo que isso tenha recebido a adjetivao de comstica, que nodeixa de ser uma leitura vlida, mas que precisa ser relativizada. Pensemos por exemplo, no nordeste multicolorido que remete aos cordis, festas deinterior e recordaes de um passado que se torna cada vez mais distante em um mundoglobalizado e individualizado. Algo inconcebvel no cinema novo. Seria escapismo fugaz efrvolo. Talvez no o deixe de ser. Seguindo a mxima americana cinema ThatsEntertaiment. Gostaramos de dizer que cinema entretenimento tambm no precisa claroser apenas isso. Pensemos no caso de trs filmes que formam uma trilogia aparentemente noproposital: O auto da compadecida (2000), Lisbela e o prisioneiro (2002) e O coronel e olobisomem (2004). Tendo como responsveis diretos e indiretos a mesma equipe esses filmesnos apresentam um nordeste feliz, festivo e em alguns momentos utpico. Um lugar que serecorda com saudade na velhice, uma espcie de reino do desejado.

    Joo Grilo e Chic personagens do filme O Auto da Compadecida (2000) nos fazemesquecer aquele serto rido e pauprrimo, com sua alegria e sabedoria nas dificuldadescotidianas para conseguir o que comer. Isso sem falar que ao rir das desventuras dospersonagens ante os opressores (leia-se detentores de posses) e suas artimanhas, terminamosno levando to a srio os elementos de subordinao presentes nessa relao desigual. Issopode ser analisado como um reintegrador de um sistema injusto. A violncia simblica toem voga nos escritos de Bordieu e dos culturalistas se no for observado outros elementos dapelcula. Afinal, nesse mesmo filme temos a tentativa de castigo divino aos envolvidos nasmaldades com os oprimidos, mesmo que o popular jeitinho Brasileiro de que tanto fala oantroplogo Roberto da Matta aparea de forma to latente. Lelu, o heri de Lisbela e oPrisioneiro(2002) segue o mesmo caminho. Fazendo de suas andanas pelo serto palco para

  • 5conquista de senhoras casadas e vendas de produtos milagrosos. A esperteza do Joo Grilodos cordis e cinematogrfico est presente nesse personagem e suas desventuras pelo sertonos fazem lembrar velhos causos contatos por pessoas que possuam algum contato comesse serto mtico.

    J O coronel e o lobisomem (2004) apela para o fantstico, outra categoria bastantepresente nos cordis, como os de Leandro Gomes de Barros. O sobrenatural tambm estpresente em O auto da compadecida (2000) quando os principais personagens morrem e vopara o julgamento no purgatrio. Interessante notar esse mesmo purgatrio que remete asromarias tambm est presente em outro filme do perodo Deus Brasileiro (2003).

    Seguindo essa linha de comdia com toques sobrenaturais Deus Brasileiro (2003)apela para os velhos clichs do cinema norte-americano. O rapaz desonesto, mas simpticocom ditos populares na ponta da lngua, remete-nos no primeiro momento ao personagemRandulfo de Cinema, Aspirinas e Urubu, mais a analogia acaba por ai que tambm encontra aredeno no final. Outra verso do Joo Grilo dos cordis. Em sua abertura o filme apresentaum nordeste devoto e em seu sincretismo relembramos o auto da compadecida nas cenas queantecedem o julgamento. Temos um Nordeste que em suas romarias uma espcie decristianismo medieval em sua relao com a f. To forte que Deus em pessoa decideaparecer nessa regio.

    Esse nordeste litoral-serto do filme um mero ornamento para uma histriasimptica com o clssico final feliz. Entretanto, devemos nos deter nessa cosmtica. Asimagens do filme lembram uma espcie de carto-postal em movimento. Panormicas dasbelas praias e travellings de praias que nos revelam reas belssimas. Um nordeste praia paraturista ver e sonhar. Nada to evidente quanto Bela Donna (1998) que mais parece umagrande pea publicitria e que muito difere do livro que lhe deu origem Riacho Doce.

    Esse nordeste paradisaco no est presente em Eu tu eles (2000), comdia baseadaem fatos reais da mulher que tinha trs maridos no serto do Cear. Mesmo que o diretordefenda a universalidade da histria no deixa de ser curioso ver um nordeste consideradomachista e que em alguns pontos ainda conserva valores considerados cada vez mais arcaicos.O fato de a mesma ser bia-fria no tratado como algo relevante mais no revela muito sobrea explorao das pessoas na regio mesmo que tal discusso nunca seja tornada central nanarrativa o que seria pouco provvel de ocorrer se essa obra fosse realizada durante o CinemaNovo.

  • 6Esse nordeste mais realista tambm est presente em Central do Brasil (1998) fazuma clara oposio aos conceitos de cidade / serto. Afinal, na maioria dos filmes, cidade um espao fsico em sua grande parte distinto do Nordeste. A metrpole nesse filme m ecruel enquanto o serto o lugar de pessoas afveis e humildes. Esse serto nos muito maisagradvel de ver seja pela fotografia de Walter Carvalho ou pelos simpticos moradores.Naturalmente, essa leitura no agradou a todos e vem recebendo as mais variadas crticasindependente dos prmios e aspectos tcnicos. Contudo, devemos observar que o filme ainterveno (olhar) do outro sobre uma realidade que vai sendo descoberta a medida que seproduz o filme. Independente das crticas negativas o filme tem inegveis qualidadesestticas e artsticas tornando-se um dos mais importantes da retomada. Esse nordeste dossonhos o palco de sada em O caminho das nuvens (2003) que fala de uma famlia quedecide ir da Paraba ao Rio de Janeiro atrs do sonhado emprego de mil reais. Ao contrriode Central do Brasil (1998), o filme chega a parecer uma saga, uma espcie de busca peloGraal, na epopia de cruzar mais de 2000 km de bicicleta. Mesmo com cenas dramticas ocarter cmico se sobressai na pelcula. As cenas finais no Rio de Janeiro mostram odesengano e complexidade dessa relao cidade / trabalho.

    Contudo, nenhum outro gnero mais forte no imaginrio cinematogrfico daspessoas sobre o nordeste que o cangao. Corisco e Dad (1996) e O cangaceiro (1997) solanados quase ao mesmo tempo. O primeiro uma biografia do casal de cangaceiroshomnimos que pertenciam ao grupo de Lampio e que sofrem com o fim do cangao asduras perseguies da polcia. J O cangaceiro (1997) uma tentativa de reproduzir os filmesda poca da Vera Cruz em que o serto muito mais parecido com o oeste americano, comopodemos observar na leitura de Durval Muniz (2001) do filme original, mas que pode serfacilmente aplicado ao seu remake,

    o nordeste visto a partir da esttica do western, esttica voltada para mostrar odistanciamento entre estes dois plos da sociedade americana: o da civilidade,representado pelo mundo urbano-industrial, e o da barbrie, representado peloOeste. (ALBUQUERQUE, 2001:268).

    Poderamos supor por esses dois exemplos, que o cangao na retomada seria apenas oclich. A reiterao de modelos. No to simples. Enquanto alguns cineastas apenasrepetem modelos, outros inovam e reinventam o nordeste como Baile Perfumado (1997).Esteticamente o filme faz o que seria considerado em um primeiro momento impossvel noimaginrio cinematogrfico. Um serto com vegetao abundante, fotografado priorizando

  • 7esse verde em contraste com um lmpido cu azul. Esse serto montado na pelcula tem umdos personagens mais famosos da regio (Lampio) retratado como um homem de gostosrefinados e sofisticados que continua implacvel mais que em muito difere do que estamosacostumados a ver no cinema. A trilha sonora mostra uma vitalidade e contemporaneidadeque nos faz esquecer do serto individualizado e comearmos a pensar em sertes. Ondepodemos entender que no existe um, mais vrios, numa elucubrao tpica daps-modernidade. Esse filme que originalmente uma biografia do Libans BenjaminAbraho se torna um libelo, espcie de manifesto cinematogrfico sobre um outro serto todiferente dos filmes citados anteriormente. Esse sinal do(s) nordeste(s) ultrapassa o serto echegam s cidades nordestinas. Mas isso no torna o filme isento de crticas. Alguns crticosvm nessa obra uma esttica (ou cosmtica como defende a crtica Ivana Bentes) quesimplificam o nordeste. Independente da leitura esse filme se torna crucial para a leitura erepresentao posterior do nordeste cinematogrfico. Dois filmes na retomada tratam disso,mudando o cenrio para os grandes centros.

    O primeiro o conturbado Amarelo manga (2002) visto por muitos como uma leituras vezes esquizofrnica de Recife e da sociedade contempornea enquanto para outros umretrato sem artifcios de uma sociedade cada vez mais obscura e degradada moralmente. Ospersonagens no so bonitos, bons ou falam com sotaque estranho. So normais numaleitura em que o consideramo normal no mnimo digno de uma leitura psicologizante. Efeito parecido ocorre tambm em Cidade Baixa (2004). Afinal, a Salvador dos carnavais edo misticismo que nos habituamos a ver nos cinemas e campanhas publicitrias, d lugar auma cidade suja, urbana e perigosa mais prxima da nossa realidade e do que seja umametrpole. Surpreende a demora nessa leitura das capitais do nordeste. Mesmo que amensagem seja universal (a histria no sofreria grandes diferenas narrativas se fossemlocalizadas em qualquer outra regio). No podemos esquecer que esses dois filmes, tm suaequipe tcnica formada por pessoas da regio em que o filme gravado, o que talvez expliquea sensao de inquietao de quem assiste essas pelculas e conhece essas cidades ouqualquer cidade com problemas que se tornam cada vez mais universais. Mesmo no seguindo essa linha de desconstruo, Abril despedaado (2001) que podeser simplificado como uma histria de vingana (ou seja, universal), nos relembra asdesigualdades no serto. O que poderia remeter a uma espcie de retomada ao cinema novo.A analogia acaba por ai. A bolandeira que assim como a canga do curta metragem A canga(?) so elementos de opresso, simbolicamente lembrando a servido dos homens ante uma

  • 8regio rspida que enlouquece homens e fazem mulheres e crianas sofrerem. Afinal, osofrimento aqui tem dimenses picas que mais lembram as tragdias gregas que apossibilidade de revoluo que seria a abordagem proposta pelo cinema novo.

    O que podemos concluir? Primeiro, que no existe um nordeste no cinema, maisnordeste(s). Que esses nordestes so leituras de uma realidade sem, entretanto ser arealidade. Que A representao no a cpia do real, sua imagem perfeita, espcie dereflexo, mas uma construo feita a partir dele (PESAVENTO, 2005:25). Que o litoral e oserto representado nesses filmes so simulacros de um espao cada vez mais complexo. Queno podemos exigir dos filmes produzidos nos anos 1990 um carter revolucionrio edialtico to em voga nos anos 60 comum nas produes do cinema novo. Ao fazermos issoestamos deixando de lado o momento histrico em que a pelcula produzida e as escolhasde quem as produzem. Afinal, o cinema novo era a tentativa de um elemento de denncia,crtica e mobilizao social mesmo que em alguns casos os resultados nunca tenham sido osdesejados. E que isso no torna as produes contemporneas melhores ou piores. Apenascom preocupaes diferentes.

    notria a pouca influncia do cinema novo entre as camadas populares. Os filmessempre falam a um pblico muito especfico. Isso que foi motivo de crticas por muitotempo deve ser contextualizado para no cairmos em simplificaes. Mesmo sua leiturasociolgica da histria o cinema novo no se tornou isento de crticas e lembrado queconsciente ou no terminou por reiterar arqutipos sobre o nordeste.

    Cabe-nos tentar compreender at que ponto essas relaes entre representao e regiose interpenetram, hora se confirmando ou rejeitando, mas que independente das discussesterico-metodolgicas de serem no campo do simblico ou do real so histria. Uma histriaviva e inquietante como a histria do prprio nordeste.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz. A inveno do Nordeste e outras artes. So Paulo: Cortez, 2001.

    AVELLAR, Jos Carlos. Deus e o diabo na terra do Sol: a linha reta, o melao de cana e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

    BERNADET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

  • 9BUTCHER, Pedro. Cinema Brasileiro hoje. Publifolha, So Paulo: 2005.

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2005.

    SALLES, Paulo Emlio. Cinema: trajetria no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, ?.