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Nemo - Jo e o Excesso do Mal
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JÓ E O EXCESSO DO MAL
É o título de um outro livro que já encontramos em um momento
precedente de nossa reflexão, Philippe Nemo1. Segundo ele, longe de ser um
texto marginal na literatura bíblica, o livro de Jó é um dos maiores lugares onde
acontece a revolução ética e escatológica da Bíblia. Ele define essa revolução
– ou essa Revelação – como a invenção de uma moral absolutamente nova, a
da compaixão e do amor, para a qual o mal não é tolerável; em função disso, o
sentido da vida humana só pode ser lutar contra o mal mesmo além da morte.
Nesse sentido, a Bíblia apanha no contra pé a “sabedoria”, visão comum de
todos os paganismos, do Egito para a Grécia e Roma, que repousa no crédito
dado a uma natureza boa e estável, sobre a qual pode ser construída uma vida
imutável, onde voltam em ciclos de eterno retorno as mesmas misturas de bem
e de mal, que precisam ser aceitas como tais. A essa concepção ao mesmo
tempo serena e cruel do mundo, a Bíblia opõe a visão de um mundo louco,
intolerável, e – idéia misteriosamente vinculada a essa – de um mundo criado,
e por isso, incompleto, chamado pelo Criador a um futuro infinitamente aberto.
Os profetas bíblicos pensaram, de fato, que se o mundo é ferido até o coração
pelo pecado e o mal, deve ser curado, reerguido, transformado, transfigurado.
Não poderá ser deixado como está. A revolução ética da Bíblia determina um
“tensionamento escatológico2” do tempo da História. O livro de Jó representa
um momento essencial dessa revolução, um dos momentos onde ela tornas-e
intelectualmente mais manifesta e melhor argumentada. Lá onde outras
contribuições bíblicas mostram-se sensíveis à dimensão coletiva, social,
política, histórica do mal, ele esclarece sua dimensão pessoal, no momento em
que a alma privada e isolada vê o inferno se aproximar para ela, sozinha. Tenta
então, somente a partir dos imediatos da consciência nesse momento, fundar
um imperativo categórico de luta contra o mal – uma lei de amor. E tenta
fundamentá-lo com a razão a partir da universal fenomenologia de uma
experiência do mal que todo mundo pode fazer a qualquer momento.
1 NEMO, Philippe, Job et l’excès du mal, Paris, Albin Michel, 2001
2 Expressão do próprio autor
A ANGÚSTIA
Existe no livro de Jó uma fenomenologia da angústia, sua meticulosa
descrição tal como ela aparece e transforma a aparência do resto. A angústia
predomina sobre o sofrimento, mesmo se a doença física de Jó deveria colocar
o sofrimento no primeiro plano3. O que permite identificar com a angústia o
sentimento predominante de Jó, é o cenário no qual esse sentimento está
implicado: o da lenta aproximação da morte4. Existe a temática da ferida e do
apodrecimento da carne5. O que domina outros textos é a idéia de “nunca mais
como antes” que coloca a existência numa outra luz: daqui para frente se sabe
que o termo da vida está próximo, ou, mais precisamente, que o processo que
conduz invisivelmente todo ser humano para a morte tornou-se visível6. O
tempo que sobra é percebido como curto. Sendo o fim considerado
concretamente, é já presente mesmo que não tão próximo. A impossibilidade
de esquecer a verdade é o constitutivo da angústia. O estreitamento do tempo
é acompanhado do desaparecimento das esperanças e dos projetos. Está no
tempo normal o ser capaz de projeto. É o desaparecimento repentino de toda
ocasião de projeto – porque projetar tornou-se absurdo – que marca a entrada
na nova modalidade do tempo: “passaram se meus dias, com meus projetos,
as fibras de meu coração se romperam.” (Jó 17, 11). “Demoliu tudo em redor
de mim, desenraizou minha esperança como uma árvore.” (Jó 19, 10)7. A
consciência está totalmente submergida pelo desejo da fuga porque qualquer
objeto sobre o qual Jó fixa o olhar para se repousar vira ocasião de um novo
pânico e de uma nova angústia: “Quando me deito, penso: quando virá o dia?
Ao me levantar: quando chegará a noite?” (Jó 7, 4) Que ele deva fugir sem
cessar o que ele permaneça no mesmo lugar, de todo jeito ele é atacado: “Por
que não afastas de mim o olhar e não me deixas até que tiver engolido a
saliva? Se pequei, que mal te fiz com isso, sentinela dos homens? Por que me
tomas por alvo?” (Jó 7, 19-20) Nem a comunicação com seus amigos alivia o
sofrimento: “Tais sois para mim agora: à vista da praga, ficais com medo.” (Jó
6, 21)
3 Ver por exemplo Jó 7, 14; 13, 21; 23, 15 etc
4 Ver Jó 14, 2; 18, 16; 30, 16 etc
5 Jó 8, 19; 19, 20
6 Jó 30
7 Como o autor o faz no texto original, uso a Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002
As pessoas próximas ficam apavoradas. Percebem que o abismo da
angústia de Jó é tão vertiginoso que eles arriscam escorregar junto com ele.
Como Jó conseguiria encontrar coragem contra um mal que faz recuar os
outros. Pelo contrário, seus próximos não estão dispostos a perdoar a Jó uma
doença que joga nas suas caras a imagem da perspectiva iminente de sua
própria morte. Jó está, a seus olhos, muito mais culpado de uma doença, pela
qual ele não é evidentemente responsável, do que de uma transgressão que
ele teria podido não cometer. Estão prontos a discutir a transgressão, mas
estão apavorados pela doença. Essa é a moral dos seres carnais. Ela
testemunha de uma espécie de angústia universal diante do processo por
excelência do qual não se pode escapar, a corrupção da carne, e de uma
espécie de cumplicidade universal na capitulação diante de sua vitória. As
“blasfêmias” de Jó fornecem a desculpa: um ímpio abandonado por Deus
merece ser abandonado por eles! Assim, além de abandonado, Jó é insultado
e odiado: “Só as zombarias me acompanham, sobre sua hostilidade pousam
meus olhos.(...) tornei-me objeto de sátira entre o povo, alguém sobre o qual se
cospe no rosto.” (Jó 17, 2.6)
A última dimensão da angustia consiste no fato de que a pessoa de
Jó se alterou: ele não está mais no seu estado normal, está num outro mundo
onde, embora ele possa entender intelectualmente o que dizem seus amigos,
ele não consegue integrá-lo na sua realidade. A distancia entre Jó e seus
amigos não está mais no discurso: eles estão a vontade no próprio discurso
enquanto Jó escorregou fora do discurso e não acha mais nas palavras
consistência nem apoio: daí seu horror. A unidade do pensamento, a
continuidade da consciência são ilusões; na realidade, a identidade, os “eu”
humanos são sem consistência. O que a provação mostra, é que o homem não
tem os dois pés solidamente postos no chão; sob o solo que ele acredita
permanente, existe o vazio. Jó sofre de um mal desmedido que o atinge até
quebrar seu “eu” e que a loucura desse sofrimento que ele qualifica de injusto e
é esse sofrimento, que ele quer suprimir a qualquer custo, que é o pano de
fundo de todos as suas atitudes e de todos os seus discursos. No fundo, poder-
se-ia resumir o discurso de Jó aos seus amigos: não sabem – ou esqueceram
– o fato de que o mundo pode faltar, e que é o fato que ele não desaba que é
surpreendente, e que, por causa de sua inautenticidade: “vossas lições
aprendidas são cinzas e vossas defesas, defesas de barro.” (Jó 13, 12)
O OUTRO: OUTRA CENA
O mal de Jó seria a punição de um pecado que deve ser expiado por
práticas de purificação?8 Nos, modernos, pensamos que, diante de um quadro
“clínico” de uma crise de angústia, poderíamos recorrer a uma interpretação
psicanalítica ou médica. A questão é saber se, adotando essa atitude,
estaríamos em ruptura com o pensamento dos três amigos; se a modernidade
muda alguma coisa; e si, por causa disso, a argumentação de Jó não teria mais
valor para nós.
A ciência dos amigos de Jó considera o mal sofrido por Jó como
uma anomalia identificável no quadro de sua concepção do mundo. Jó sofre
por causa de um erro que ele cometeu, que teria podido não cometer, que ele
evitará no futuro, quando tiver sido suficientemente instruído por pessoas
competentes e que, de repente, com um pouco de sorte, pode ser consertado.
O mal de Jó é uma disfunção marginal da ordem do mundo, que não o
questiona globalmente. Pode se considerar que as concepções técnicas
modernas são a transposição dessa interpretação dos amigos. As técnicas
modernas são muito diferentes, empiricamente, do sistema religioso e das
práticas mais ou menos supersticiosas que podiam prevalecer no quinto século
antes de Cristo. Mas as duas atitudes são comparáveis no seu princípio. Nos
dois casos, trata-se de interpretar o mal como um fenômeno limitado, que pode
estar situado dentro de um conjunto mais vasto de fenômenos, usando um
saber adequado e de acreditar que essa anomalia poderá ser corrigida por uma
técnica que explore esse saber. Essas duas atitudes são variações da técnica,
duas figuras de uma concepção tecnicista do mundo.
Ora essa posição do problema é combatida por Jó com uma força
demonstrativa forte e, de um certo modo, irrefutável. Jó tem o sentimento que o
que ele sofre manifesta, pelo contrário, uma desordem essencial do mundo;
que existe no mundo algo “que não vai” e que passa desapercebido ao
discurso tecnicista de seus amigos. Ele vai pôr em evidencia a cegueira dos
8 NEMO, ibid. p. 47 ss
amigos, a uni dimensionalidade do seu pensamento. Ele vai ver no desarranjo
essencial do mundo a mão de “Deus”, que os amigos denegam, embora
tenham sempre na boca o nome de “Deus”, mas um “Deus” do qual ele não
enxergam o absoluto, o desvinculo, a transcendência. Se admitirmos que a
posição dos amigos e a da ciência moderna são filosoficamente homologas,
podemos perguntar se a argumentação de Jó não conserva todo seu valor em
relação ao positivismo moderno.
Qual é o princípio da crítica de Jó, ou mais precisamente da crítica
oposta ao “positivismo”dos amigos pelo autor dos diálogos do Livro de Jó? Os
diálogos parecem assim construídos que é impossível que os amigos parecem
o que eles querem parecer, quer dizer como estando numa posição de ver de
onde vem o mal de Jó. Tal visão tornaria possível a possibilidade de uma
intervenção técnica: ela seria visão definida por uma ordem na qual a angústia
de Jó seria inclusa como uma peça numa máquina. Segundo essa ordem, a
angústia vem sempre, do ponto de vista do sujeito angustiado, de uma outra
cena, de um outro nível dessa ordem, que ele não pode ver. A possibilidade da
técnica repousa então na hipótese de duas visões diferentes do mundo. A partir
daí, o autor vai mostrar que, pelo contrário (apresentando rigorosamente a
demonstração) não existe nenhuma diferença entre as duas visões do mundo,
a de Jó e a de seus amigos. Ficará assim claro que esses não estavam
autorizados a denegar a verdade do que Jó dizia.
Jó diz o horror do mal. Esse horror, ele o atribui a um Totalmente
Outro, a uma loucura que arruína qualquer ordem. A técnica diz que ele se
engana porque, de lá onde ele se encontra, ele que é uma peça do mecanismo
do mundo, ele não pode ver a ordem inteira na qual ele está apanhado. Se ele
enxergasse a ordem em todos os seus estratos, na completa transparência de
sua estrutura, ele não poderia dizer o que ele está dizendo. Ou então, seria
dizer que a ordem do mundo é louca, o que é uma loucura.
É preciso então saber quem pode dizer que Jó não diz a verdade.
A técnica se apresenta. Resumindo todas as críticas positivistas da
religião, ela diz que contrariamente ao que Jó pensa, seu mal está bem na
ordem. Mesmo a impressão de loucura que ele sente ante o mal está na ordem
e é comum no homem que sofre. Mas a ordem está estratificada de tal modo
que, a partir de um estrato, ninguém pode ver todos os estratos. Esses só
podem ser descobertos no esforço do saber, sempre difícil e nunca acabado, e
especialmente inacessível ao louco, ao homem que está à derive. A técnica
não se contenta em dizer que o mundo é ordenado. Se ela se contentava de
formular uma outra tese a partir de uma mesma visão do mundo, seria matéria
a opinião. Ora a técnica se quer objetivamente verdadeira. É preciso que ela
prova que se Jó visse o que ela, a técnica, vê, ele diria a mesma coisa. É
preciso que ela prove que sua visão é diferente da de Jó. Para isso, os amigos
de Jó vão interpretar as causas do mal, fazendo valer desde o inicio que seu
saber é superior ao dele.
E Jó vai fazer valer, pelo contrário, que ele já sabe tudo o que eles
sabem, no mínimo detalhe.
Suas visões aparecerão então como idênticas. Somente diferirão
suas interpretações, resultados de escolhas “metafísicas”, ou mais exatamente,
“existenciais” opostas.
Aparecerá assim que os amigos também, e não somente Jó, não
sabem de onde vem a loucura do mal. O mal será situado para eles numa outra
cena, não simplesmente porque é desconhecido para eles, mas porque eles o
procuram e procurarão sempre num lugar diferente de onde ele está, falha
quebrando toda a estratificação do mundo. Para eles também, se
conseguissem enxergá-lo, ele seria desordem e loucura; mas, procurando
unicamente no mundo o que se conforma a uma ordem, eles estão
predispostos a perder até a pegada do mal como desordem. Tudo que Jó diz
será para ele inaudível. A ordem na qual os amigos de Jó entendem integrar
seu mal é o sistema da concepção tradicional do mundo, a “moral da
retribuição”.
Resumindo o problema: Jó quer dizer o horror do mal, a loucura do
mundo. Os sábios invalidam esse discurso, porque acreditam poder atribuir a
causa do mal a um acontecimento do mundo, invisível para o que sofre mas
acessível aos que sabem. O nervo da prova está instalado na decalagem das
visões. A redução para eles do escândalo do mal a um acontecimento
imanente ao mundo, acessível ao pensamento e à técnica humanas, enquanto
Jó percebe uma ferida do mundo, parece sempre como uma petição de
princípio.