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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS - CCSA DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL - DESSO
GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
MARIA AUGUSTA BEZERRA DA ROCHA
NEOLIBERALISMO, DESIGUALDADE E PANDEMIA: UMA ANÁLISE DAS IMPLICAÇÕES DO AJUSTE FISCAL ESTRUTURAL PARA O AGRAVAMENTO DA POBREZA E DA DESIGUALDADE SOCIAL NA PANDEMIA
DA COVID-19 NO BRASIL (2020-2021)
NATAL/RN
2021
Maria Augusta Bezerra da Rocha
Neoliberalismo, desigualdade e pandemia: uma análise das implicações do ajuste fiscal estrutural para o agravamento da pobreza e da desigualdade
social na pandemia da COVID-19 no Brasil (2020-2021)
Monografia submetida à coordenação do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social. Orientador: Prof. Dr. Roberto Marinho Alves da Silva.
NATAL-RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
Rocha, Maria Augusta Bezerra da.
Neoliberalismo, Desigualdade e Pandemia: uma análise das
implicações do ajuste fiscal estrutural para o agravamento da
pobreza e da desigualdade social na Pandemia da COVID-19 no
Brasil (2020-2021) / Maria Augusta Bezerra da Rocha. - 2021.
103f.: il.
Monografia (Graduação em Serviço Social) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais
Aplicadas, Departamento de Serviço Social. Natal, RN, 2021.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Marinho Alves da Silva.
1. Pandemia - Monografia. 2. Neoliberalismo - Monografia. 3.
Ajuste fiscal - Monografia. 4. Desigualdade social - Monografia.
5. Pobreza - Monografia. I. Silva, Roberto Marinho Alves da. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 316.34
Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355
Maria Augusta Bezerra da Rocha
Neoliberalismo, desigualdade e pandemia: uma análise das implicações do ajuste fiscal estrutural para o agravamento da pobreza e da desigualdade
social na pandemia da COVID-19 no Brasil (2020-2021) Monografia submetida à coordenação do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social.
Aprovada em: ___/___/____
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Roberto Marinho Alves da Silva – UFRN (Orientador)
Profa. Dra. Edla Hoffmann – UFRN (Membro interno)
Profa. Dra. Íris Maria de Oliveira – UFRN (Membro interno)
Angely Dias da Cunha – Assistente Social CRESS/RN (Membro externo)
NATAL/RN
2021
Às vítimas da Covid-19 e do genocídio em
curso que não tiveram a possibilidade de
se vacinar, sobretudo as pessoas mais
pobres que não tiveram como proteger-se
do vírus e foram as mais expostas à
contaminação e a morte. Essas mortes e
adoecimentos políticos decorrentes de um
governo genocida não são esquecidos no
presente nem tampouco serão
esquecidas no futuro, pois o luto
transforma-se em luta tanto para as
inúmeras famílias enlutadas e dilaceradas
quanto para os lutadores sociais do nosso
país que seguem firmes na resistência
contra as injustiças do tempo presente.
AGRADECIMENTOS
O ar e o vento
Pelos caminhos vou, como o burrinho de São
Fernando, um pouquinho a pé e outro pouquinho
andando. Às vezes me reconheço nos demais. Me
reconheço nos que ficarão, nos amigos abrigos,
loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza
e demais vadios e mal cuidados que andam por aí e
que por aí continuarão, como continuarão as estrelas
da noite e as ondas do mar. Então, quando me
reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me
continuado no vento.
Acho que foi Vallejo, César Vallejo, que disse que às
vezes o vento muda de ar.
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará
estando.
Eduardo Galeano (2002)
Pelos caminhos da vida que nem sempre são fáceis, sigo um pouquinho
andando, conforme diz Galeano, enfrentando obstáculos, desafios, mas também
contando com oportunidades de aprendizados, vivências e com pessoas que me
apoiam na caminhada ou seguem comigo nela. E é nessas pessoas que me
reconheço, primeiro na família com meus irmãos Adriana, Ana Paula e Adriano que
estiverem presente em toda minha vida e também foram importantíssimos,
contribuindo e me incentivando direta e indiretamente durante a Graduação; no meu
primo Alexandro Rocha, pois durante a jornada de escrita ainda no projeto de TCC
meu notebook quebrou e ele teve o gesto carinhoso e solidário de me doar seu
antigo computador, um ato essencial para que eu conseguisse concluir essa jornada;
aos meus sobrinhos Antônio, Mariana, Ana Maria e Pedrinho, amores da minha vida
que me presenteiam com carinho, afeto e boas risadas, extremamente necessários
nesses tempos tão duros. Apesar de distante devido à pandemia, o afeto continua
presente. Pedrinho, sobrinho mais novo de 10 anos e mais presente cotidianamente,
ao saber que estaria nos meus agradecimentos, comentou feliz que vai ficar famoso,
e ficará sim porque a maior fama é estar presente no coração e nas memórias de
quem amamos. E é justamente nas memórias que também residem meu pai e minha
avó (in memoriam), que me contemplaram com uma formação humana repleta de
carinho, simplicidade e com muita leveza, de quem leva um sorriso no rosto, cheio
de ternura e, ao mesmo tempo, de muita coragem. Mesmo em momentos adversos
e árduos, aprendi com vocês a “endurecer sem perder a ternura”. E a minha mãe,
meu amor maior, que esteve presente nessa caminhada me apoiando em momentos
de muita felicidade e também de muita dureza, representa um abraço forte,
acolhedor e uma companhia que me ensina e me encanta todos os dias.
Também me reconheço “nos que ficarão”, como diz o poeta, ou seja,
naqueles que tive contato durante a caminhada na Graduação e ficarão presentes
na vida. Aos professores do Departamento de Serviço Social agradeço pelo carinho,
diálogo sempre aberto e pela própria humanização na relação com os alunos, bem
como reconheço a dedicação e o compromisso com o projeto profissional do serviço
social, fornecendo uma formação profissional qualificada que é a base que sustenta
um futuro profissional crítico, propositivo e comprometido ética e politicamente. O
contato com os professores também contemplou uma das primeiras experiências na
universidade e como pude conhecer grandes referências profissionais e de vida,
como a Professora Íris que me acolheu no Grupo de Estudos e Pesquisas Questão
social, Política social e Serviço Social, ainda no primeiro semestre do curso, e
continuou me “criando” na Iniciação Científica (IC), apresentando o universo da
pesquisa, dos debates coletivos e dos estudos sobre pobreza e desigualdade. Nesse
contato além da experiência na pesquisa, dos aprendizados e de ter me encontrado
na discussão sobre desigualdade e pobreza também se desenvolveu muito carinho e
admiração pela professora, profissional e pessoa que com muita alegria hoje
compõe minha banca.
No grupo de estudos também tive a oportunidade de conhecer os demais
professores e professoras que o integram, me aproximar e ter ricas trocas e
aprendizados, com destaque para os que me orientaram e tiveram contato maior na
iniciação científica como a Professora Larisse, o Professor Roberto e as professoras
que possuo muita admiração e hoje compõe minha banca, Profa. Edla e Angely
Cunha. Além de ser meu orientador na IC, o Prof. Roberto seguiu como orientador
na monografia, de modo muito compreensivo, acolhedor e como um educador, de
fato, que não simplesmente determina um prazo, uma cobrança e repassa as
orientações, mas que na verdade se preocupa com seu aluno, busca estabelecer
uma relação carinhosa e respeitosa e, com isso, demonstra no sentido Freiriano que
“a educação é um ato de amor”.
Galeano também cita os “amigos abrigos” e neles também me reconheço,
principalmente nas amizades que fiz durante a graduação e pretendo levar para
além dela: Ana Luiza (Aninha), Tathiane, Ana Paula, Camila Furtado, Camila Rocha,
Inaê, Alice, Júlia e Erica. Obrigada pelos bons momentos nas rosquinhas do Setor I,
na biblioteca, no RU e em vários outros espaços da universidade que entre o
intervalo de uma aula e outra aproveitamos para dar boas risadas, dividir as
angústias do semestre e também compartilhar muito carinho. A jornada na
graduação não seria tão rica sem vocês e esses momentos. Os amigos abrigos
também se juntam com os “loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza”
que representam as companheiras de militância do Centro Acadêmico de Serviço
Social (CASS) principalmente Clarice, Clara e Isa, parceiras de luta nas
manifestações. Aos demais companheiros do movimento estudantil e de vários
outros movimentos sociais que admiro e que ao lutarmos juntos, ombro a ombro, me
fazem jamais duvidar que nossa luta é justa, importante, necessária e que
venceremos.
Todos esses fazem parte da minha jornada acadêmica, neles me reconheço,
agradeço por tudo que fizeram e os levo para vida porque eles continuarão nas
lembranças dessa importante etapa da minha formação profissional, mas também
enquanto experiência de vida que guardo com carinho, pois são aqueles que
continuarão em mim assim “como continuarão as estrelas da noite e as ondas do
mar”. Ao me reconhecer nos demais sou, como diz o poeta: “ar aprendendo a saber-
me continuado no vento” e espero, enquanto ar, fazer parte do vento que compõe a
vida de outras pessoas e que seja tão especial quanto os que aqui citados foram e
são para mim.
Cidade Prevista
Cantai esse verso puro, que se ouvirá no Amazonas,
na choça do sertanejo e no subúrbio carioca,
no mato, na vila X, no colégio, na vila oficina, território de homens livres
que será nosso país e será pátria de todos.
Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá um dia, dentro em mil anos,
talvez mais… não tenho pressa. Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras, sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras, sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro, um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade, a multiplicidade toda
que há dentro de cada um. Uma cidade sem portas, de casa sem armadilha, um país de riso e glória
como nunca houve nenhum. Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas. mas ele será um dia
o país de todo homem.
Carlos Drummond de Andrade (2012)
RESUMO
O presente estudo versa sobre a relação entre neoliberalismo, desigualdade e a
pandemia de COVID-19 tendo como objetivo analisar as implicações do ajuste fiscal
estrutural para o agravamento da pobreza e da desigualdade social na pandemia da
COVID-19 no Brasil (2020-2021). Trata-se de uma pesquisa exploratória com
abordagem quanti-qualitativa, realizada a partir de estudos bibliográficos, coleta de
dados em fontes secundárias e levantamento de informações documentais,
buscando apreender o real para além de sua aparência fenomênica, ao ter como
método o materialismo histórico-dialético. A partir da análise dos indicadores de
pobreza e de desigualdade relativos à realidade brasileira antes da chegada da
pandemia e durante o seu decorrer no país, verificamos que ocorreu um aumento da
insegurança alimentar, da pobreza e do desemprego, o que requeria uma decisiva
atuação do Estado para proteção sanitária e social. Mas o Estado encontrava-se de
“calças curtas” diante do aprofundamento das medidas neoliberais de austeridade
fiscal. Em um cenário de cortes nos investimentos sociais, com a desestruturação
das ações iniciadas em 2020 e o não enfrentamento real do agravamento das
condições de pobreza e de desigualdade no país, ficam explícitos os impactos
latentes do ajuste fiscal e da austeridade neoliberal, reduzindo significativamente a
capacidade do Estado de garantia dos direitos humanos da população brasileira.
Diante dessas limitações impostas pelo ajuste fiscal e do aviltamento das condições
de vida da classe trabalhadora, a resistência popular que insurgiu nas ruas em plena
pandemia demonstra que apesar das determinações do capital, não estamos diante
de um fatalismo histórico tendo em vista que a história é um processo aberto e em
disputa.
Palavras-Chave: Pandemia. Neoliberalismo. Ajuste fiscal. Desigualdade social e
pobreza.
ABSTRACT
This study deals with the relationship between neoliberalism, inequality and the
COVID-19 pandemic, aiming to analyze the implications of structural fiscal
adjustment for the worsening of poverty and social inequality in the COVID-19
pandemic in Brazil (2020-2021) . This is an exploratory research with a quantitative-
qualitative approach, carried out from bibliographic studies, data collection from
secondary sources and survey of documentary information, seeking to apprehend the
real beyond its phenomenal appearance by using historical materialism as a method.
From the analysis of inequality poverty indicators related to the Brazilian reality
before the onset of the pandemic and during its course in the country, we verified that
there was an increase in food insecurity, poverty and unemployment, which required
a decisive action by the State for health and social protection. But the State was in
“short pants” in the face of the deepening of neoliberal fiscal austerity measures. In a
scenario of cuts in social investments, with the de-structuring of actions started in
2020 and the non-real confrontation of the worsening conditions of poverty and
inequality in the country, the latent impacts of fiscal adjustment and neoliberal
austerity are explicit, significantly reducing the capacity of the State to guarantee the
human rights of the Brazilian population. Faced with these limitations imposed by the
fiscal adjustment and the degradation of living conditions of the working class, the
popular resistance that emerged on the streets in the midst of a pandemic
demonstrates that despite the determinations of capital, we are not facing a historical
fatalism given that history is an open and disputed process.
Keywords: Pandemic. Neoliberalism. Fiscal adjustment. Social inequality and
poverty.
LISTA DE SIGLAS
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CNDM - Conselho Nacional dos direitos das Mulheres
CNS - Conselho Nacional de Saúde
CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente
EBIA - Escala Brasileira de Insegurança Alimentar
EC – Emenda Constitucional
EIR – Exército Industrial de Reserva
FGO - Fundo de Garantia de Operações
FPE - Fundo de Participação dos Estados
FPM - Fundo de Participação dos Municípios
FUNDEB - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INESC – Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos
LDO - Leis de Diretrizes Orçamentárias
LOA – Lei Orçamentária Anual
NRF – Novo Regime Fiscal
OMS – Organização Mundial da Saúde
PEAC - Programa Emergencial de Acesso a Crédito
PFEC - Programa Federativo de Enfrentamento a Covid-19
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar
PRONAMPE - Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte
PENSSAN - Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
SSAN - Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
STF - Supremo Tribunal Federal
TCU - Tribunal de Contas da União
UNE - União Nacional dos Estudantes
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Tabela do INESC com descrição de despesas discricionárias (não obrigatórias com gastos sociais) – valores em milhões de reais constantes de janeiro de 2020 ......................................................................................................................... 30 Figura 2 - Cartaz Vida, Pão, Vacina e Educação empunhada pelo então Presidente da UNE Iago Montalvão ................................................................................................ 52 Figura 3 - Cartaz de protesto na Colômbia: Se um povo protesta e marcha em meio
a uma pandemia, é porque seu governo é mais perigoso que o vírus. ......................... 54 Figura 4 - Comparação das estimativas de Segurança Alimentar do Inquérito VigiSan e os inquéritos nacionais reanalisados conforme escala de oito itens ............. 70 Figura 5 - Distribuição proporcional dos domicílios por nível de
Segurança/Insegurança Alimentar no Brasil e macrorregiões....................................... 72 Figura 6 - Distribuição percentual dos níveis de Segurança/Insegurança Alimentar de acordo com a situação de desemprego e perda de renda nas famílias ................... 73 Figura 7 - Relação da presença do auxílio emergencial e os níveis de
Segurança/Insegurança Alimentar no Brasil (%) ........................................................... 74 Figura 8 - Principais gastos diretos do Governo Federal para o enfrentamento da Covid-19 (em bilhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de dezembro de 2020) ............................................................................................................................. 77 Figura 9 - Recursos para a pandemia não acompanham óbitos em 2021 ................... 83
Figura 10 - Gastos federais para o enfrentamento da pandemia 1º semestre de 2020
x 1º semestre de 2021 (em bilhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de maio de 2021) ........................................................................................................................ 84 Figura 11 - Auxílio emergencial: valor da parcela e número de beneficiários por
etapa ............................................................................................................................. 85
LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Domicílios com restrição a condições de moradia (2017-
2019..................................58 Tabela 2 - Proporção de pessoas residentes em domicílios com restrição, por sexo e
raça (%)...61
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1- Percentual de domicílios com restrição a serviços de saneamento no
Brasil e por regiões (2017 -2019) ....................................................................................................................59 Gráfico 2 - Taxa de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14
anos ou mais de idade (%) - Brasil (2014-2021) ........................................................... 64 Gráfico 3 - Taxa de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade (%) - Regiões brasileiras (2014-2021) ...................................... 65 Gráfico 4 - Percentual de pessoas desalentadas na população de 14 anos ou mais
de idade fora da força de trabalho (%) - (2014-2021)................................................... 66 Gráfico 5 Distribuição percentual das pessoas de 14 anos ou mais desocupadas ou subocupadas por insuficência de horas trabalhadas - (%) Brasil 2014-2021 ............... 67
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 12
2. A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E O AJUSTE FISCAL: DETERMINANTES
SÓCIO-HISTÓRICOS DO AGRAVAMENTO DA POBREZA E DA DESIGUALDADE
SOCIAL ............................................................................................................................... 16
2.1 Crise estrutural do capital e neoliberalismo: o mundo refém do capital financeiro e o
Estado deixado de “calças curtas” ...........................................................................................17
2.2 Ofensiva neoliberal e o ajuste fiscal estrutural .................................................................20
2.3 Austeridade fiscal pré-pandemia no Brasil: um país com “imunidade baixa” ................25
3. PANDEMIA E POBREZA NO BRASIL EM TEMPOS DE AJUSTE FISCAL ................... 33
3.1 Pobreza e desigualdade social: exploração e expropriação capitalista na cena
contemporânea ..........................................................................................................................34
3.2 Pandemia e pandemônio no Brasil: a determinação social da saúde e do adoecimento
.....................................................................................................................................................40
3.3 Pandemia e genocídio: descaso governamental e reações populares ..........................49
4. AJUSTE FISCAL E A PANDEMIA DA DESIGUALDADE NO BRASIL........................... 55
4.1 Agravamento da pobreza e das desigualdades no Brasil: é tudo culpa da pandemia?
.....................................................................................................................................................56
4.1.1 Sem condição digna de moradia.....................................................................................56
4.1.2 Sem trabalho .....................................................................................................................62
4.1.3 Sem comida ......................................................................................................................68
4.2 O ajuste fiscal puxando as “calças curtas” do Estado: implicações no enfrentamento à
pandemia de COVID-19 no Brasil (2020-2021) ......................................................................75
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 87
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 92
12
1. INTRODUÇÃO
No final de 2019 ocorreram na China os primeiros casos de Covid-19, uma
doença causada por um tipo de vírus da família corona vírus denominado Sars-Cov-
2, que em pouco tempo tomaria proporções pandêmicas em todo o mundo. Tal
doença está situada em um conjunto de transformações ecológicas, sobretudo
estimuladas pela expansão capitalista na qual ocorre, como cita Chesnais (2020), o
aumento do consumo de combustíveis fósseis para energia, a destruição de
florestas, a conversão de habitats naturais em áreas de produção agrícola ou
pecuária, que figuram entre as principais fontes de emissão de gases de efeito
estufa e facilitam o surgimento de novas doenças com potencial pandêmico.
Dessa forma, a pandemia possui ligação com fatores político-econômicos
inseridos nas relações sociais de produção capitalista, da mesma forma que o seu
modo de atingir os países também perpassa as relações da divisão internacional do
trabalho, visto que apesar de atingir a todos é notório que os países periféricos
enfrentam mais dificuldades e desafios em controlar a doença.
Assim, a pandemia coloca em evidência fatores sanitários, econômicos e
políticos, principalmente dos países periféricos, explicitando a situação política e
social que possui impactos significativos na condução e capacidade do país
enfrentar a crise, posto que expõe déficits e insuficiências orçamentárias no Sistema
Público de Seguridade Social (saúde, assistência e providência) e impacta
fortemente as atividades econômicas. Em relação aos impactos nas economias
dependentes, de início, a retração no mercado externo atua negativamente das
atividades exportadoras, mas o prejuízo maior é no mercado interno, ao esgarçar os
seus limites e impactar os micro e pequenos negócios, sobretudo, dos setores
populares urbanos.
Nesse contexto em que se situa a realidade brasileira, país de capitalismo
periférico que vivencia o aprofundamento das políticas neoliberais de austeridade
fiscal e as contrarreformas nas políticas sociais. De fato, desde 2015, no primeiro
ano do segundo mandato da Presidenta Dilma, que se pôs em marcha um plano de
ajuste fiscal que buscava conter a expansão da crise econômica e o
aprofundamento da crise política no Brasil, impactando na redução dos gastos
públicos e do papel do Estado em suas funções de promotor do bem-estar social.
13
Com o golpe jurídico, midiático e parlamentar sofrido pela Presidenta Dilma
Rousseff e a ascensão do bloco no poder, capitaneado por Michel Temer em 2016,
o ajuste que se pretendia temporário tornou-se estrutural, sobretudo a partir da
aprovação da Emenda Constitucional nº 95 em 2016 que determinou um Novo
Regime Fiscal (NRF) limitando por 20 anos os gastos correntes do governo,
impactando notadamente as políticas sociais.
Esse processo de congelamento das despesas primárias que afeta o
financiamento das políticas sociais como saúde, educação e assistência social
dentre várias outras foi agravado em 2019, quando emergiu mais um governo
neoliberal de extrema direita que acirrou as medidas de ajuste fiscal no país. A
política fiscal do governo que já apontava para o congelamento dos investimentos
nas áreas sociais, conforme aponta Evilásio Salvador (2020), praticamente
congelando os gastos em saúde, faz com que o país adentre o ano de 2020
totalmente despreparado para enfrentamento à pandemia.
No cenário caótico proporcionado pela pandemia, o governo seguiu, no início,
buscando preservar a todo custo (de vidas humanas) as medidas de ajuste fiscal,
derruindo o financiamento das políticas sociais e afetando principalmente os
trabalhadores brasileiros mais pobres que em virtude da pandemia viram a renda
cair e o desemprego subir ainda mais. Diante desse cenário, o Congresso Nacional
aprovou, em maio de 2020, a EC 106, que institui Regime Extraordinário Fiscal para
enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia relativa à
COVID-19, o que possibilitou um auxílio emergencial (para trabalhadores/as
desempregados, trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa Família), embora
os recursos orçamentários tenham sido aquém do necessário para fazer frente à
calamidade sanitária, social e econômica que o país atravessava.
É nesse contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil que se busca
compreender quais são os impactos das medidas de austeridade e ajuste fiscal
neoliberal, exatamente quando o país tem a necessidade de um Estado com
capacidade de realizar maiores investimentos públicos nas políticas sociais e,
sobretudo, para garantia de renda, trabalho e sobrevivência dos trabalhadores mais
pobres?
Essa questão de pesquisa se justifica exatamente porque, no contexto da
pandemia mundial, a situação interna do Brasil adquiriu tons dramáticos, com
elevado percentual de infecção e de mortalidade na população desassistida, além de
14
se verificar a tendência de agravamento nos indicadores de pobreza e das
desigualdades sociais, com destaque para o aumento do desemprego, a queda na
renda dos trabalhadores, a gravidade da insegurança alimentar e nutricional,
recolocando o Brasil no mapa mundial da fome.
O presente estudo tem, portanto, como objetivo geral analisar as implicações
do ajuste fiscal estrutural para o agravamento da pobreza e da desigualdade social
na pandemia da COVID-19 no Brasil (2020-2021). Considerando as questões
norteadoras da pesquisa, foram definidos os seguintes objetivos específicos: 1.
Entender como a pobreza e desigualdade se expressam/apresentam na pandemia
de COVID-19; 2. Identificar com base em indicadores se ocorreu agravamento da
pobreza e desigualdade social no período pandêmico do Brasil; e 3. Desvelar os
limites impostos pelo ajuste fiscal para a intervenção do Estado nas ações
emergenciais sanitárias e de auxílio financeiro à população mais empobrecida
durante a pandemia.
Trata-se de uma pesquisa exploratória com abordagem quanti-qualitativa,
realizada a partir de estudos bibliográficos, coleta de dados em fontes secundárias
como a PNAD Contínua e síntese de indicadores sociais do IBGE e levantamento de
informações documentais a partir da análise dos documentos do INESC que
realizam um balanço do orçamento geral da União debatendo ações realizadas e
prioridades no gasto público. Uma análise realizada a partir de uma leitura crítica da
realidade fazendo uma apreensão do real para além de sua aparência fenomênica
ao ter como método o materialismo histórico-dialético.
A partir desse caminho metodológico, o estudo encontra-se organizado em
cinco sessões, incluindo essa introdução e as considerações finais. O capítulo 2
apresenta as determinações socio-históricas que possibilitam a compreensão dos
processos contemporâneos de agravamento da pobreza e da desigualdade no
contexto da pandemia da Covid-19. No capítulo 3 busca-se discutir a pobreza e a
pandemia no Brasil delimitando uma concepção crítica de pobreza que norteia o
presente estudo a partir do debate sobre exploração e expropriação contemporânea,
uma discussão da determinação social na saúde como também as particularidades
da realidade brasileira na pandemia com as ações problemáticas e omissões do
Governo Federal na condução da pandemia e a irrupção de lutas populares. Por
conseguinte, no capítulo 4 concentra-se a análise de como o ajuste fiscal implicou
no agravamento da pobreza e desigualdade do país restringindo a capacidade de
15
atuação do Estado no período pandêmico. Por último, as considerações finais
realizam uma articulação entre a questão central de pesquisa, os estudos
desenvolvidos, as conclusões provisórias bem como indicações de posteriores
estudos para maior aprofundamento.
16
2. A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E O AJUSTE FISCAL:
DETERMINANTES SÓCIO-HISTÓRICOS DO AGRAVAMENTO DA POBREZA E
DA DESIGUALDADE SOCIAL
“[...] A pobreza não explode como as bombas, nem ecoa como os tiros. Dos pobres, sabemos tudo: em que não trabalham, o que não comem,
quanto não pesam, quanto não medem, o que não têm, o que não pensam, em quem não votam, em quem não creem.
Só nos falta saber por que os pobres são pobres. Será por que sua nudez nos veste e sua fome nos dá de comer?”.
Eduardo Galeano (2014).
Numa análise realizada a partir da busca do entendimento das múltiplas
dimensões da realidade e por isso, numa perspectiva de totalidade, compreende-se
que cada dimensão se insere em um movimento de maior complexidade que a
contém e a determina. Isto é, quando se olha a pobreza e desigualdade na
sociedade trata-se de um fenômeno que aparece no cotidiano, no entanto, necessita
ser entendido de modo contextualizado no âmbito da sociabilidade capitalista
vigente que por basear-se fundamentalmente na produção social da riqueza e
apropriação privada desta, acarreta um conjunto de iniquidades.
Desta forma, a pobreza e a desigualdade social só podem ser entendidas na
sociabilidade que estão situadas, no modo de produção capitalista, como aponta
Luana Siqueira (2011, p. 210), ao dissertar que “o concreto da sociedade capitalista
contém e determina a pobreza pela sua forma de estruturação das relações sociais
e dinâmica de funcionamento: Lei geral de acumulação capitalista, em que se
sustenta a questão social”.
Consideramos central o entendimento do modo de produção capitalista, sua
dinâmica e modo de funcionamento bem como suas conformações atuais para
desvelar as determinações sócio-históricas da pobreza e da desigualdade social.
Nessa perspectiva, desvelando as conformações contemporâneas do capitalismo,
sobretudo em seu cenário atual de crise estrutural, pode-se compreender as
estratégias que o capital executa para superar a crise reestabelecendo as condições
máximas favoráveis de sua reprodução e acumulação que, por conseguinte,
agravam as condições de pobreza e de desigualdade. Medidas essas que se
aprofundam e se expressam na realidade com o neoliberalismo e um dos seus
principais instrumentos: o ajuste fiscal que, no caso brasileiro, tem sido estrutural.
17
No presente capítulo, busca-se refletir e apreender essas importantes
determinações sócio-históricas para compreensão dos processos contemporâneos
de agravamento da pobreza e da desigualdade no contexto da pandemia da Covid-
19.
2.1 Crise estrutural do capital e neoliberalismo: o mundo refém do capital
financeiro e o Estado deixado de “calças curtas”
Enquanto regime de acumulação pautado na busca incessante de lucro e
acumulação de riquezas, o capitalismo se organiza a partir da produção social da
riqueza pelos trabalhadores, mas da apropriação privada desta pela classe
burguesa, acarretando um conjunto de desigualdades denominado questão social1.
Essa forma de organização da sociedade capitalista é uma das formas de realização
do capital enquanto uma relação social estabelecida pela separação dos
trabalhadores e dos meios necessários para a produção e reprodução da sua vida
social (MÉSZÁROS, 2002). Então, o sistema capitalista expressa uma maneira de
realização do capital e por isso uma maneira historicamente determinada de como
os homens e mulheres produzem e reproduzem a vida social, conforme explicitam
Iamamoto e Carvalho (2009):
O processo capitalista de produção expressa, portanto, uma maneira historicamente determinada de os homens produzirem e reproduzirem as condições materiais da existência humana e as relações sociais através das quais levam efeito a produção. Neste processo se reproduzem, concomitantemente, as ideias e representações que expressam estas relações e as condições materiais em que se produzem, encobrindo o antagonismo que as permeia. (IAMAMOTO; CARVALHO, 2009, p.30)
Por se basear na contradição entre a produção voltada incessantemente para
o lucro enquanto milhões de trabalhadores não se apropriam da própria riqueza que
geram e vivem em condições tão aviltantes que não conseguem nem consumir itens
básicos, o sistema do capital periodicamente entra em crises, como já sinalizava
Marx e Engels (2008, p. 18): “crises comerciais que, repetidas, periodicamente e
cada vez maiores, ameaçam a sociedade burguesa. Nas crises irrompe uma
epidemia social que em épocas anteriores seria considerada um contra-senso – a
1 [...] “diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana - o trabalho -, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos” (IAMAMOTO, 2001, p. 17).
18
epidemia da superprodução”. Dessa forma, as crises de duração e intensidade
variadas fazem parte desse modo de produção, da sua forma de existência e
funcionamento. No entanto, a partir dos anos 1970 vive-se uma novidade histórica
no âmbito das crises do capital, da qual Mészáros (2002, p.795-796) chama atenção
para 4 aspectos fundamentais:
(1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade etc.); (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises no passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na “administração da crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia.
Deve-se considerar que historicamente, diante do cenário de crise, o capital
orquestra um conjunto de estratégias econômicas, políticas e ideológicas para
recompor suas taxas de lucro e estender seu dinamismo. Felizmente, não se trata
de um determinismo histórico imutável, mas que pode ser denunciado e enfrentado
pela classe trabalhadora que, em cenários contraditórios, marcados por avanços e
refluxos nas lutas sociais, mantém viva a utopia e o horizonte humanitário de
construir uma nova sociabilidade para além do Capital (Mészáros, 2002).
As estratégias do capital, de exploração do trabalho e apropriação privada da
riqueza, são aprofundadas sob a perspectiva neoliberal cujo objetivo é transferir para
o setor privado uma parcela ainda maior dos recursos destinados ao atendimento de
interesses públicos, demolindo as bases do Estado de Bem Estar Social em países
de capitalismo avançado e sucateando os serviços e políticas sociais já fragilizadas
nos países periféricos, porém preservando o controle e a ordem para evitar
insubordinações: “o remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua
capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco
em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas” (ANDERSON, 1995,
p.11).
Segundo Harvey (2005) O neoliberalismo se caracteriza, portanto, como uma
teoria das práticas político-econômicas que estabelece a liberdade de mercado, a
19
livre concorrência e o individualismo como motores para o bem-estar coletivo. Dentro
desses postulados, a teoria neoliberal propõe a reformulação do papel do Estado
que ao invés de intervencionista e com forte atuação na promoção de políticas
sociais deveria agora enfatiza a dimensão regulatória, transferindo ou privatizando
empresas públicas e serviços sociais para a iniciativa privada, sendo parco e
comedido nos investimentos sociais.
Esta contrarreforma 2 do Estado explica-se, também, em virtude do atual
período do capitalismo marcado pela hegemonia do capital financeiro e dos setores
a ele ligados que mobilizam estratégias econômicas e políticas para implementar as
estratégias neoliberais que atendam as necessidades de reprodução do capital. O
Estado reformado, então, para atender às novas necessidades do capital em crise,
configura-se como “Estado mínimo para o social e máximo para o capital” (NETTO,
1995), dado o objetivo de assegurar liberdade de movimento para o capital
financeiro e as contrarreformas que asseguram maior grau de exploração da força
de trabalho como também retirada de direitos dos trabalhadores.
Nesse sentido, percebe-se a disputa existente no Estado, pois ainda que atue
como “um comitê executivo dos interesses da burguesia” 3, seu espaço também é
marcado por conflitos, disputas e tensões no qual a classe trabalhadora também
está inserida e disputa esse espaço na arena política das lutas de classe. Isso
porque a visão de Estado adotado nesse estudo não se restringe a visão de Marx (e
seu momento histórico no qual apontava para o Estado como um aparelho
coercitivo, instrumento de dominação de classe e que somente atuava como comitê
executivo da burguesia), mas sim compreende-se uma perspectiva ampliada de
Estado de acordo com os estudos de Antonio Gramsci no qual o Estado não é algo
“impermeável às lutas de classe, mas é atravessado por elas” (SIMIONATTO, 1999,
p. 64).
Conforme destaca Simionatto (1999) as discussões gramscianas sobre
Estado se apresentam a partir de 2 esferas distintas: a sociedade política ou Estado
que refere-se ao aparato de coerção ou domínio e a sociedade civil que consiste
num espaço onde se organizam os interesses em confronto e a busca da
2 O termo foi utilizado para referir-se ao conjunto de reformas regressivas aos direitos, adotado por Behring (2003). 3 “O poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo” (MARX; ENGELS, 2008, p.12)
20
hegemonia, sendo por isso, “o lugar onde se tornam conscientes os conflitos e
contradições” (SIMIONATTO, 1999, p. 66). Nesse espaço de contradições e
disputas que se situa a classe trabalhadora está no espaço da arena política das
lutas de classe opondo-se as medidas neoliberais e o conjunto de contrarreformas.
Na cena contemporânea do capitalismo essa disputa de interesses configura-
se a partir da hegemonia do capital financeiro que, com a base dos ideais
neoliberais, passa a orientar a condução política-econômica dos governos, conforme
salienta Anderson (1995, p. 10-11) ao discorrer sobre a implementação do
receituário neoliberal no Chile e na Inglaterra:
A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa “natural” de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos.
Buscando atender esses imperativos do capital com as orientações
neoliberais, intensificam-se as medidas de contenção estatal, deixando o Estado “de
calças cada vez mais curtas” para atender as demandas sociais, mas,
simultaneamente, capaz de fazer acordos e benesses para o capital, sendo,
portanto, maximizado para o capital, conforme já anotamos. Sob a narrativa da
insuficiência estatal, diante da crise fiscal, e do Estado deixado de “calças curtas”
para os investimentos sociais, ao passo que exalta a lógica de mercado, a burguesia
coloca na ordem no dia dos governos neoliberais um necessário ajustamento das
contas públicas para que haja o controle da ordem econômica, com medidas de
contingenciamento e enxugamento dos recursos sociais, conforme detalharemos no
item seguinte.
2.2 Ofensiva neoliberal e o ajuste fiscal estrutural
O ajuste fiscal se situa no contexto de crise estrutural do capital e avanço do
receituário neoliberal, sendo implementado e difundido em diversos governos do
mundo como solução do endividamento público causado pelo crescente
desequilíbrio entre receitas e despesas. No Brasil, país de capitalismo periférico e
dependente, esse receituário é introduzido no contexto de redemocratização
enquanto outros países latino-americanos à exemplo do Chile já estavam embebidos
desse receituário e com os investimentos sociais bastante deteriorados.
21
Nesse solo histórico de implementação e espraiamento do receituário
neoliberal, que se propaga diariamente (desde os anos 1980) aos quatro cantos do
país, a crise fiscal do Estado tem como consequência direta o sofrimento da
população com a baixa qualidade dos serviços prestados resultantes dos cortes de
investimento nas áreas sociais. Cenário que vem sendo cada vez mais acentuado,
posto que:
Os últimos anos foram fortemente marcados pelo contingenciamento dos recursos públicos para gerar o superávit primário. A política de austeridade fiscal, iniciada por Fernando Henrique Cardoso e mantida pelo governo Lula, faz parte de um conjunto de medidas adotadas – advindas do receituário neoliberal – preconizadas pelas agências financeiras internacionais (STICOVSKY, 2010, p. 148-149).
Sticovsky (2010) cita a austeridade fiscal no Brasil sob a influência do
neoliberalismo, adotada desde o governo Collor (1990-1993), continuada na gestão
do presidente Itamar Franco (PMDB), com a implementação do Plano Real, e
aprofundada no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Embora o pacote
de ajuste fiscal tenha sido concebido no contexto pós-transição democrática, das
décadas de 1980/90, foi com consolidado com o Plano Real que, segundo Salvador
(2017a), possuía um tripé baseado em: a) uma política monetária com altas taxas de
juros; b) política de câmbio sem controle para entrada de investimentos
estrangeiros– permitindo entrada e saída de divisas e; c) uma política fiscal, que se
ancora no superávit primário, isto é, o resultado positivo entre as despesas e as
receitas do governo, sem contabilizar os juros da dívida.
Em 1999, no segundo mandato de FHC, por imposição do Fundo Monetário
Internacional, foram implementadas metas de superávits fiscais para garantia do
pagamento dos juros da dívida visando um compromisso com a estabilidade
econômica e com algumas contrarreformas. Não é à toa que, nesse período, foram
engendradas contrarreformas do Estado, entre as quais a privatização de empresas
estatais e a transferência de serviços sociais de caráter público para a iniciativa
privada. Sendo assim, a política fiscal foi direcionada para criação de superávit
primário, conforme recomendada pelo chamado “Consenso de Washington”4, onde
4 “Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado "think tank" de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do documento escrito por John Williamson, "In Search of a Manual for Technopols" (Em Busca de um Manual de 'Tecnopolíticos), num seminário internacional cujo tema foi: "The Political Economy of Policy Reform" (A Política Econômica da Reforma Política). Durante dois dias de debates, executivos de governos, dos bancos multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos,
22
FHC recebeu do capital as orientações das medidas de ajuste e de limitação da
intervenção do Estado, como solução do endividamento público, dos elevados
índices inflacionários e da estagnação econômica dos países de baixo
desenvolvimento.
O fato é que o endividamento dos Estados nacionais por meio da dívida
pública, nesse contexto de crise estrutural do capital, desempenha um papel
fundamental para permitir o funcionamento da lógica de acumulação, beneficiar a
burguesia financeira e colocar o ônus da dívida na classe trabalhadora, de modo
que: “[...] a crise financeira foi assumida pelos Estados por meio da dívida pública e
está sendo paga pela classe trabalhadora, via imposição de um ajuste fiscal que
restringe direitos, contribui para o aumento do desemprego e precariza as condições
de vida de grandes parcelas da população” (BRETTAS, 2012, p. 115).
Assim, a dívida é uma forma de usurpar, ainda mais, os valores produzidos
pela classe trabalhadora para apropriação privada numa estratégia de captar a mais-
valia e garantir a reprodução do capital. E enquanto se prioriza o pagamento dos
juros da dívida que alargou sua fatia no orçamento público 5 , nota-se o
contingenciamento e a retração no investimento das políticas sociais, absolutamente
essenciais para garantia de sobrevivência e melhores condições de vida e trabalho
para a classe trabalhadora.
discutiram com representantes de 11 países da Ásia, África e América Latina "as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar um 'technopol' a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso" o programa de estabilização e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de "Washington Consensus" (Consenso de Washington). Um plano único de ajustamento das economias periféricas, chancelado, hoje, pelo FMI e pelo Bird em mais de 60 países de todo mundo. Estratégia de homogeneização das políticas econômicas nacionais operada em alguns casos, como em boa parte da África (começando pela Somália no início dos anos 80), diretamente pelos técnicos próprios daqueles bancos; em outros, como por exemplo na Bolívia, Polônia e mesmo na Rússia até bem pouco tempo atrás, com a ajuda de economistas universitários norte-americanos; e, finalmente, em países com corpos burocráticos mais estruturados, pelo que Williamson apelidou de "technopols": economistas capazes de somar ao perfeito manejo do seu "mainstream" (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus países a mesma agenda e as mesmas políticas do "Consensus"” (FIORI, 1994, p. 1).
5 Conforme a Auditoria Cidadã da Dívida (2020), uma associação sem fins lucrativos que realiza a auditoria da dívida pública brasileira em todos os entes da federação, em 2019 o orçamento federal executado esteve no montante de R$2,7 trilhões de reais, dos quais R$1,038 milhões que corresponde a 38,27% do orçamento federal foi destinado para juros e amortização da dívida pública. Análise que expressa o peso do endividamento no orçamento federal e sua pouca alteração em relação aos anos anteriores, continuando próximo ao percentual de 40%.
23
Nota-se, com isso, as disputas de classe que perpassam o fundo público6,
sobretudo em relação ao orçamento público, sua parte visível que, conforme
Salvador (2012), não se restringe a uma peça técnica, mas de cunho político, que
expressa interesses em disputa. Nessa perspectiva, o que está em jogo para a
classe trabalhadora é a garantia de recursos suficientes para o financiamento das
políticas sociais:
Assim, vê-se que o orçamento público está longe de ser uma peça técnica. Trata-se de um instrumento político, que expressa as relações de poder prevalecentes numa sociedade. No nosso país, onde as elites políticas, culturais e econômicas são majoritariamente masculinas, brancas, ricas e cristãs não é de se estranhar que o fundo público esteja estruturado em torno de seus interesses. Pouca atenção é outorgada aos trabalhadores – do campo, das cidades e das florestas –, aos pobres, às mulheres, aos negros, aos quilombolas, aos jovens, aos indígenas e às comunidades LGBTQIA+, entre outros grupos populacionais estruturalmente excluídos do usufruto da riqueza nacional. (INESC, 2020, p.12).
Dessa forma, o contingenciamento dos recursos públicos para as políticas
sociais, ao mesmo tempo em que se prioriza o pagamento dos juros da dívida e a
geração do superávit primário para alimentar o capital, compõe o ajuste fiscal
enquanto uma das estratégias do capital em cenário de crise. Orientado pelos
organismos internacionais7, o ajuste fiscal concentra medidas desenvolvidas pelo
Estado para criação de superávits primários com vistas a garantir o pagamento dos
juros, encargos e amortização da dívida pública (SALVADOR, 2017). No momento
contemporâneo, compreende-se que conforme Behring (2018) estamos em um
momento com aprofundamento do ajuste visto que:
Os parâmetros macroeconômicos do Plano Real de 1994 e do acordo do FMI de 1999 permanecem, em geral, vigentes, porém não se trata mais do momento fundacional do projeto neoliberal entre nós. Hoje estaríamos numa espécie de retomada da programática mais dura do Consenso de Washington (de 1993). Temos chegado a conclusão de que vivemos uma espécie de ajuste fiscal permanente desde a crise da dívida (1980/1982) e que após 14 planos econômicos, teve uma inflexão em 1994 com o Plano Real, em que pese aqueles deslocamentos suaves dos governos petistas [...] (BEHRING, 2018, p. 62. grifos próprios)
6 Obtido por meio de impostos, contribuições, taxas, bem como da mais-valia proveniente da riqueza produzida socialmente.
7 A condução política do pós-Segunda Guerra Mundial, no cenário internacional, com o regime econômico internacional estabelecido pelos acordos de Bretton Woods contribuiu para o ressurgimento das ideias liberais elaborando novas regras do jogo que devia reger o funcionamento da reconstituída economia mundial e a criação de organismos internacionais que garantam sua vigência, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM). (SADER; GENTILI, 1995).
24
As medidas de estabilidade monetária e de ajuste fiscal permanente
sustentadas no Plano Real 8 seguiram sendo implementadas desde FHC por
sucessivos governos que ocuparam o Palácio de Planalto, inclusive os governos
petistas (2004-2016) que, apesar de terem contribuído com a expansão de políticas
e programas sociais - que conseguiram minorar a desigualdade no Brasil e reduzir
os níveis de pobreza tirando o Brasil do mapa da fome como supracitado –,
seguiram com a priorização de pagamento de juros e amortização da dívida pública.
No período mais recente, após o golpe institucional de 2016, que tirou o
mandato presidencial legítimo da presidenta Dilma (PT) e colocou no poder Michel
Temer (PMDB), acentua-se o que na literatura econômica, denomina-se política de
austeridade, em particular, a fiscal, segundo Salvador (2020). A chegada de Temer
ao poder representou o avanço da burguesia e o recrudescimento da ofensiva do
capital que, como salienta Salvador (2020, p. 4-5), volta com grande carga da
“ortodoxia neoliberal com brutal corte de direitos sociais, sobretudo, no campo do
financiamento das políticas públicas, como denota o Novo Regime Fiscal (NRF),
aprovado pela Emenda Constitucional 95”.
Assim, desde 2016 está em curso o NRF, determinado através da EC 95 que
limita por 20 anos os gastos correntes do governo afetando, sobretudo, o
financiamento das políticas sociais, visto que inviabiliza a vinculação dos recursos
para as políticas sociais nos moldes desenhados na Constituição Federal de 1988,
ao congelar as despesas primárias do governo (exceto as despesas financeiras com
o pagamento de juros da dívida que beneficia justamente a burguesia rentista do
capital financeiro).
Destaca-se a continuidade de realização do superávit primário como indicador
importante para os rentistas e a maior captura do fundo público para o pagamento
das dívidas interna e externa. Isso tudo aliado ao congelamento e a redução de
gastos sociais com a supracitada EC 95 que representa “um draconiano ajuste
fiscal, que impede a expansão do orçamento, em particular, das despesas públicas
8 “Poucos ainda têm dúvidas de que o Plano Real, a despeito de sua originalidade operacional, integra a grande família dos planos de estabilização discutidos na reunião de Washington, onde o Brasil esteve representado pelo ex-ministro Bresser Pereira. E aí se inscreve não apenas por haver sido formulado por um grupo paradigmático de "technopols", mas por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo: ajuste fiscal, reforma monetária, reformas liberalizantes, desestatizações, etc, para que só depois de restaurada uma economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento” (FIORI, 1994, p.1).
25
discricionárias nas políticas de saúde, educação, ciência e tecnologia, infraestrutura
[...]” (SALVADOR, 2020, p. 4).
Apesar do cenário dramático que já se apontava com a radicalidade neoliberal
de Temer, em 2018, a extrema direita com traços fascistas se elege ao poder
Executivo na figura de Jair Bolsonaro, com apoio de frações da burguesia nacional e
internacional, contando com uma base social caracterizada pelo conservadorismo
exacerbado, orientado pela disseminação do ódio e de ataques à democracia.
Mantém-se o comando do governo marcado pela política de austeridade fiscal,
aprofundando as contrarreformas do Estado nos direitos sociais (trabalhista e
previdenciário) e sucateando ainda mais sistemas públicos essenciais para a
população empobrecida, como é o caso da educação, saúde e assistência social.
A limitação de financiamento público demarca a radicalidade da austeridade
fiscal no país e o ajuste fiscal estrutural que vem prevalecendo, com cortes nas
áreas sociais, elevando ainda mais os níveis de pobreza e desigualdade. Com esse
conjunto de medidas em vigor ocorre a não priorização de investimento para
enfrentar a pandemia e a própria desaceleração da atividade econômica diante do
aumento do desemprego e perda do poder de consumo das famílias. Dessa forma, é
interessante analisar como o Brasil, nesse cenário de ajuste fiscal e radicalidade
neoliberal, realizou as destinações orçamentárias para as políticas sociais em 2019
e como se encontrava a realidade socioeconômica da população diante da
ausência/retração do Estado no cenário pré-pandemia, conforme refletiremos a
seguir.
2.3 Austeridade fiscal pré-pandemia no Brasil: um país com “imunidade baixa”
A crise chega num país fragilizado, com altos níveis de
desigualdade, crescimento baixo, elevado desemprego e
número elevado de trabalhadores na informalidade. (INESC,
2020, p. 22).
Com o avanço da austeridade fiscal, a realidade brasileira apresentava-se
exatamente como citado pelo INESC em seu estudo sobre o orçamento da União de
2019: um país que seguindo a cartilha neoliberal avançava com o ajuste fiscal e
recuava os investimentos sociais. Dessa forma, não é de se surpreender que a
desigualdade social no país tenha sido agravada, bem como as condições deletérias
da população que, além de conviver com a precarização das políticas sociais em
26
seu cotidiano, também lidava com desafios do mercado de trabalho, em que se
predominava o desemprego e a informalidade.
Nesse cenário pré-pandêmico no país, é essencial buscar desvelar o que o
orçamento anual da União de 2019 expressava em relação ao enfrentamento das
desigualdades e garantia de direitos sociais e mantinha as diretrizes de austeridade
fiscal e de retração nos investimentos sociais. Encontramos base para essa análise
no estudo “O Brasil com baixa imunidade Balanço do Orçamento Geral da União
2019”, produzido e divulgado pelo INESC (2020), que realiza uma análise do
orçamento público considerando a garantia dos direitos humanos e a
responsabilidade do Estado em garanti-los9.
A análise tem por pressuposto que:
Os direitos humanos são garantidos em nossos sistemas jurídicos, internacionais e nacionais (tanto nas constituições como nas diversas leis), e se expressam por meio de uma institucionalidade jurídico-normativa que os indivíduos, os governos e a comunidade internacional devem proteger, respeitar e promover. Nesse sentido, se os direitos humanos são a referência central para a estruturação das nossas sociedades, como manda a Constituição Federal, o orçamento público deve ser pautado por eles. (INESC, 2020, p.14; grifos próprios)
Na análise do orçamento a partir dessa perspectiva, o INESC considera que
as políticas públicas promovem direitos quando atendem a cinco requisitos ou
pilares:
1. Financiamento com justiça social: em que o sistema tributário deve ser
progressivo, isto é, a carga tributária deve ser distribuída entre os indivíduos
de uma nação de maneira equitativa, tributando menos os que ganham
menos e tributando mais os que ganham mais.
2. Mobilização máxima de recursos disponíveis: trata-se da avaliação em
relação a obrigação dos Estados nacionais em arrecadar, bem como aplicar a
9 “[...] direitos humanos são valores que, uma vez assumidos institucional e culturalmente, impactam a vida das pessoas e das comunidades. As declarações e os tratados internacionais elencaram, ao longo do tempo, um conjunto de direitos à que todo ser humano deveria ter acesso a fim de gozar de vida livre e digna. São eles: direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, à propriedade, a votar e a ser votado, ao trabalho, ao lazer, à saúde, à alimentação, à habitação, à seguridade social, à educação, à cultura, ao transporte e ao meio ambiente, à nacionalidade, entre outros. Esses direitos são os chamados direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, sexuais e reprodutivos, e ambientais que inspiram a concepção de diversas constituições e as legislações de inúmeros países. Os direitos estão em constante elaboração, expressando a contínua necessidade de nossas sociedades de construir estratégias para superar as injustiças e as desigualdades” (INESC, 2020, p. 13).
27
maior quantidade possível de recursos em políticas que promovam os direitos
humanos.
3. Realização progressiva de direitos: no sentido de que os direitos devem,
ano a ano, ser progressivamente realizados por meio de políticas públicas
universais e inclusivas.
4. Não-discriminação: o combate às desigualdades e às segregações
existentes em nossas sociedades, que fazem com que determinados grupos
e populações historicamente discriminados tenham mais dificuldades de
acesso aos seus direitos.
5. Participação social: um mecanismo que deve estar presente no desenho de
todas as políticas e no orçamento para garantir a transparência e o controle
social. A participação permite que a sociedade tome parte do planejamento,
da deliberação e formulação de programas, projetos e ações a ela
destinados. (INESC, 2020)
Com base nesses critérios estabelecidos e utilizados pelo INESC em sua
análise do orçamento de 2019, podemos desvelar como estava a configuração e a
prioridade orçamentária no país: se estava atuando com vistas a garantir os direitos
sociais e aumentar seus investimentos sociais ou seguia com a retração das
políticas sociais seguindo a risca a cartilha neoliberal de ajuste fiscal? E ainda, o
orçamento público de 2019 está de acordo com os cinco critérios de viabilização de
direitos humanos utilizados pelo INESC ou foi reprovado nesse teste? A realidade
brasileira pré-pandêmica, então, encontrava-se com imunidade e humanidade
baixas?
A meta do Governo em 2019, como já vinha sendo priorizado desde 2015,
continuava sendo o equilíbrio das contas públicas na perspectiva neoliberal de
redução dos investimentos sociais. Porém, no ano de 2019 foram adotadas três
medidas vinculadas diretamente à promoção do ajuste fiscal: a reforma de
previdência, os contingenciamentos na execução orçamentária e financeira e a
obtenção de receitas extraordinárias, conforme o estudo do INESC (2020).
A primeira das medidas de ajuste fiscal elencadas em 2019 corresponde à
contrarreforma da previdência que foi sendo introjetada no imaginário da população
a partir de uma retórica neoliberal de economizar R$855 bilhões nos próximos anos.
O que aquela reforma significou na verdade, foi mais uma penalização da classe
28
trabalhadora do país, atingindo, sobretudo, os setores mais empobrecidos que
vivenciam as dificuldades de garantir a continuidade em um trabalho formalizado
num país que bate recordes de desemprego e ainda terão que comprovar 40 anos
de trabalho necessários para o recebimento de 100% dos seus benefícios.
Já a segunda grande medida de ajuste fiscal realizada em 2019 corresponde
ao contingenciamento de recursos realizado no início do ano, uma medida que
significou cortes expressivos de mais de R$ 31 bilhões de reais em políticas sociais
essenciais, co mo educação, direitos humanos, defesa e habitação (INESC, 2020).
Apesar de parte dos valores contingenciados ter sido liberado no final do ano, o
atraso no desbloqueio, além de impossibilitar maiores investimentos, também
desorganizou a gestão dos ministérios que não conseguiram realizar as metas e
entregar à população as iniciativas aprovadas no orçamento anual.
Essa estratégia de limitação nos investimentos sociais representa a essência
das medidas de ajuste fiscal que prioriza o superávit primário e a destinação do
fundo público para garantir o fluxo contínuo de pagamento de juros e serviços da
dívida pública, atendendo os interesses da burguesia financeira. Em 2019, a meta
dessas medidas de ajuste intencionais reduziram o déficit primário de 1,8% para 1%
do PIB, sendo uma medida que agradou sobremaneira os investidores internacionais
como garantia do pagamento dos juros da dívida, expressando o compromisso do
governo ultraliberal com a estabilidade econômica e com as contrarreformas sociais,
tendo como exemplo salutar a reforma da previdência, já implementada.
Vê-se assim a dimensão de totalidade que as medidas de ajuste fiscal
expressam, pois o contingenciamento de recursos está atrelado à garantia de
cumprimento de metas do superávit primário e, ao mesmo tempo, o
descontingenciamento de recursos para os investimentos sociais justificou a criação
de receitas extraordinárias ao Tesouro, mantendo a captação de recursos no
mercado por meio da venda de títulos públicos a juros escorchantes e a privatização
de patrimônio público, o que caracteriza a terceira frente ou dimensão do ajuste
fiscal em 2019.
A criação de receitas extraordinárias esteve ligada, sobretudo, a venda do
patrimônio público, do qual é um grande exemplo o Leilão da Cessão Onerosa que
se constituiu na venda de duas áreas petrolíferas na região do pré-sal, descobertas
pela Petrobrás e arrecadou R$ 69,90 bilhões. Percebe-se que “em prol do
cumprimento de metas fiscais, o Estado vende seus bens e seus recursos naturais,
29
em detrimento de uma estratégia de desenvolvimento e crescimento de longo
prazo”. (INESC, 2020, p. 36).
Importante sinalizar que com essa tríade de medidas de ajuste fiscal
implementadas em 2019, os detentores da Dívida Pública Federal (DPF) viram o
estoque da dívida crescer em 10%, de 2018 para 2019, sendo os maiores
detentores da dívida e beneficiados com essas medidas os fundos de investimento
(26,7%), seguido pelos fundos de previdência (24,9%) e os bancos (24,7%).
Conforme estudo do INESC (2020). Assim, ao passo que se beneficia os rentistas e
a burguesia financeira nessa disputa do fundo público, os investimentos sociais são
solapados e a população lida com a insuficiência e precarização dos serviços
públicos. Quanto a este aspecto, o INESC (2020) aponta que em 2019 foram pagos
R$ 278 bilhões em juros aos detentores da DPF o que significa, segundo dados do
Siga Brasil, que esse valor é 2,5 vezes maior que o gasto total do governo federal
com educação.
Dessa forma, é perceptível o quanto as medidas de ajuste estavam sendo
implementadas desde a realidade pré-pandêmica e como elas incidiam fortemente
no corte dos investimentos sociais afetando o financiamento das políticas sociais
dos quais a população necessita para acesso aos seus direitos básicos. As medidas
de ajuste fiscal então seguiam penalizando fortemente a área social, resultando na
violação de direitos de grande parte da população brasileira, marcando os últimos
anos (dada a radicalidade neoliberal) com significativos cortes nos gastos sociais,
principalmente quando se analisa os gastos que não são obrigatórios ao governo, e
que são os mais afetados pelas metas fiscais, as chamadas despesas
discricionárias.
Para demonstrar o impacto das medidas de austeridade no orçamento
público, sobretudo em relação aos investimentos sociais nas políticas sociais,
reproduzimos (Figura 1) uma tabela síntese organizada pelo INESC (2020) que
reúne, com base na plataforma Siga Brasil, as despesas discricionárias com
investimentos em diversas políticas sociais essenciais em 2019, comparando com
anos anteriores.
Verifica-se, com base nos dados sintetizados, que as áreas de educação,
trabalho e cultura perderam cerca de 50% de seus recursos discricionários quando
comparamos 2019 com 2014, o ano anterior ao início da austeridade mais incisiva.
Além dessas áreas, ao longo dos últimos cinco anos, políticas sociais essenciais
30
sofreram cortes significativos de 2014 para 2019, como a Assistência Social com
redução orçamentária de 45,39%, habitação com 69,33% a menos de recursos,
Previdência Social com 26,16% e saneamento com redução de 49,65%.
Figura 1 – Tabela do INESC com descrição de despesas discricionárias (não obrigatórias com gastos sociais) – valores em milhões de reais constantes de
janeiro de 2020
Fonte: INESC (2020).
Também é importante destacar que além da redução orçamentária
acumulada nos últimos anos, em 2019 áreas estratégicas para promoção dos
direitos socais e enfrentamento das desigualdades como Saúde e Trabalho sofreram
redução orçamentária se comparado ao orçamento de 2018. Redução essa na
saúde de 4,46% e de 15,50% na área do trabalho em um país que no ano seguinte
teria que lidar com uma pandemia que sobrecarregou o sistema de saúde e
dificultou o acesso a renda e trabalho por grande parte da população brasileira.
31
Diante dessa configuração orçamentária que prioriza a austeridade fiscal
enquanto as políticas sociais sofrem ano após anos cortes sucessivos em seus
orçamentos, pode-se afirmar que o orçamento esteve longe de ser uma peça central
para assegurar a realização dos direitos humanos no Brasil. Inclusive reprovado na
análise do INESC sobre orçamento comprometido com direitos humanos e com a
centralidade do Estado em garanti-los, conforme os cinco critérios que
apresentamos anteriormente:
1. Em relação ao financiamento com justiça social, verifica-se que o
financiamento realizou-se de forma injusta, taxando proporcionalmente mais
os que têm menos;
2. Quanto à mobilização máxima de recursos, o governo não mobilizou o
máximo de recursos disponíveis, tendo limitado à regra do teto de gastos e
sofrendo cortes expressivos que afetaram os mais vulneráveis;
3. No quesito de realização progressiva de direitos, não assegurou a realização
progressiva dos direitos humanos, tendo em vista que os recursos não
acompanharam o crescimento da população nem a magnitude dos problemas
que afetam o Brasil;
4. No que se refere à participação social, também não foi concretizada na
medida em que a maior parte das instâncias de interlocução entre governo e
sociedade foram desmontadas10; e
5. Quanto à Não discriminação, o orçamento não atendeu essa dimensão tendo
em vista que as instituições e recursos destinados à população negra,
quilombola, mulheres e comunidade LGBTQI+, entre outros públicos
historicamente excluídos e oprimidos, foram desmantelados. (INESC, 2020)
Percebe-se assim que após mais um ano de aprofundamento de ajuste fiscal
estrutural, o Brasil encontrava-se no início de 2020 com imunidade e humanidade
10 [...] Em 2019, o governo do Presidente Bolsonaro publicou o Decreto 9.759/2019 que eliminou boa parte dos conselhos de políticas públicas. Sobraram os que foram criados por lei, como é o caso do Conselho Nacional de Saúde (CNS), do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e do Conselho Nacional dos direitos das Mulheres (CNDM). Contudo, mesmo esses passaram por profundas modificações, como a diminuição do número de representantes da sociedade civil do Conama. Além disso, várias conferências nacionais, previstas para serem realizadas no ano passado foram canceladas, como a da Assistência Social e a de Segurança Alimentar e Nutricional. (INESC, 2020, p. 21)
32
orçamentárias baixas. Tal realidade é mais grave por se tratar de um contexto pré-
pandêmico tendo a austeridade fiscal e a manutenção do teto de gastos como
instrumentos que potencializavam a penalização dos mais pobres da sociedade. A
realidade já evidenciava as limitações impostas à atuação do Estado no
financiamento das políticas sociais, e, por conseguinte no não enfrentamento à
pobreza e a desigualdade.
É nesse cenário de acirramento da austeridade fiscal, com cortes
substantivos nas políticas sociais essenciais, e com uma tendência de avanço da
pobreza e desigualdades no Brasil que o país tem que enfrentar uma crise inusitada
da pandemia da Covid-19 em 2020 e 2021, aprofundando e agravando ainda mais a
crise social, conforme será aprofundado no capítulo seguinte.
33
3. PANDEMIA E POBREZA NO BRASIL EM TEMPOS DE AJUSTE FISCAL
Escrever sobre a pandemia da Covid-19, neste momento, é como fotografar um pássaro voando. As atualizações sobre óbitos, infectados e capacidade de atendimento do sistema de saúde, no Brasil e no mundo, são constantes. Os primeiros registros da Covid-19 foram observados na China, espalhando-se através das rotas do turismo e do comércio internacional, a começar pela Ásia. Chegou ao Brasil em fevereiro, pelas mãos da classe média e da burguesia capitalista, encontrando no estado de São Paulo sua principal porta de entrada.
Luciana Caetano Silva (2020)
No final de 2019 ocorreram na China os primeiros casos de Covid-19, uma
doença causada por um tipo de vírus da família corona vírus denominado Sars-Cov-
2, que em pouco tempo tomaria proporções pandêmicas em todo o mundo. Tal
doença está situada em um conjunto de transformações ecológicas, sobretudo
estimuladas pela expansão capitalista na qual ocorre, como cita Chesnais (2020), o
aumento do consumo de combustíveis fósseis para energia, a destruição de
florestas, a conversão de habitats naturais em áreas de produção agrícola ou
pecuária, entre outras formas de degradação ambiental, que figuram entre as
principais fontes de emissão de gases de efeito estufa e facilitam o surgimento de
novas doenças com potencial pandêmico.
Dessa forma, a pandemia possui ligação com fatores político-econômicos
inseridos nas relações sociais de produção capitalista, da mesma forma que o seu
modo de atingir os países também perpassa as relações da divisão internacional do
trabalho, visto que, apesar de atingir a todos, é notório que os países periféricos
enfrentam mais dificuldades e desafios em controlar a doença. A pandemia coloca
em evidência fatores sanitários, econômicos e políticos, principalmente nos países
periféricos, onde os déficits e insuficiências orçamentárias já são uma constante no
sistema de saúde e nas demais áreas de proteção social. Além disso, a Pandemia
afeta a economia, principalmente dos países mais dependentes do mercado externo,
além de esgarçar os limites do mercado interno para os micro e pequenos negócios
dos setores populares urbanos. De modo geral, explicita as fragilidades da situação
política e social impactando significativamente na capacidade do país de
enfrentamento da crise na sua complexidade.
É nesse contexto que se situa a realidade brasileira. Vivemos em um país de
capitalismo periférico que vivencia o aprofundamento das políticas neoliberais de
34
austeridade fiscal e as contrarreformas nas políticas sociais, sobretudo a partir de
2015, como já abordado anteriormente. O cenário que já se encontrava bastante
delicado para o financiamento das políticas sociais tendo em vista a vigência do
NRF com congelamento das despesas primárias por 20 anos, complicou-se ainda
mais em 2019, com a ascensão do governo de Jair Bolsonaro, político de extrema
direita com traços fascistas, que aprofundou a política econômica ultraneoliberal,
conduzida pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes.
Desse modo, a pandemia que chega ao Brasil em 2020 possui
particularidades colocando ainda mais em evidência que o processo saúde-doença
não se determina meramente pela dimensão biológica, mas também pelo contexto
social, econômico e político, tendo em vista que o as medidas de austeridade fiscal
determinam o desfinanciamento das políticas sociais que no momento pandêmico
são essenciais para conter os impactos da pandemia e proteger a população mais
vulnerável.
Com essa perspectiva, temos como pressuposto que a pandemia agrava a
situação da pobreza e das desigualdades no Brasil, o que requer uma discussão
teórica acerca da pobreza, enquanto fenômeno social, destacando os processos de
exploração e expropriação contemporâneos. Assim, nesse capítulo buscamos
delimitar uma concepção crítica de pobreza que norteia o presente estudo,
considerando que a pobreza possui determinantes na sociabilidade em que se
insere e, por isso, não é algo natural. Em seguida, será feita uma discussão a
respeito de como a pobreza no cenário pandêmico tende a ser agravada em virtude
da continuidade das medidas de ajuste fiscal a partir da discussão sobre
determinação social na saúde-doença.
3.1 Pobreza e desigualdade social: exploração e expropriação capitalista na
cena contemporânea
A partir da análise do orçamento de 2019 que realizamos na seção anterior
deste TCC, verificamos que no contexto de aprofundamento de ajuste fiscal
estrutural, o Brasil encontrava-se no início de 2020 com “imunidade e humanidade
orçamentárias baixas”. A realidade já evidenciava as limitações impostas à atuação
do Estado no financiamento das políticas sociais, e, por conseguinte no não
enfrentamento à situação de pobreza e às desigualdades. Ficam evidentes os
35
impactos das medidas de ajuste fiscal enquanto o país atravessa uma pandemia que
escancara a necessidade do Estado estar devidamente preparado para realizar
maiores e melhores investimentos públicos nas políticas sociais e, sobretudo, para
garantia de renda, trabalho e sobrevivência dos trabalhadores mais pobres.
Mas se a pobreza é agravada nesse contexto, faz-se necessário esclarecer o
que compreendemos pela mesma, buscando identificar suas causas e as formas em
que ela se apresenta na realidade. Esse esclarecimento é importante na presente
análise, pois existem vários conceitos - e pré-conceitos – com diferentes formas de
entendimento sobre a pobreza. As diversas concepções de pobreza possuem
determinadas formas de enxergar e interpretar a realidade, bem como expressam
diferentes interesses e compromissos políticos, sejam conservadores ou sejam
críticos. Assim, não existe definição neutra de pobreza tendo em vista que consiste
em um fenômeno que pode ser visto através de diferentes perspectivas, teorias ou
abordagens teóricas (SILVA e SILVA, 2013).
Dentre as várias concepções de pobreza existentes, destaco aqui dois
grandes campos de entendimento desse fenômeno: o campo liberal e o campo
marxista. No primeiro, a discussão sobre as causas da pobreza se fundamenta nos
princípios liberais, sendo considerada como resultado da livre concorrência do
mercado, com oportunidades iguais, onde os que são menos qualificados fracassam
nas disputas e acumulam desvantagens. Siqueira (2011), ao discutir sobre a
concepção neoliberal de pobreza, sobretudo na figura de um dos seus maiores
expoentes, Friedrich Hayek,11 destaca que nessa perspectiva “a pobreza [...] é vista
como questão de responsabilidade individual, contudo a desigualdade é necessária,
pois funciona como um motor que impulsiona o desenvolvimento” (SIQUEIRA, 2011,
p.138).
11 “O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944 enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, neste momento Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de francomaçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro” (ANDERSON, 1995, p. 9-10).
36
Assim, na visão neoliberal a desigualdade é completamente naturalizada, de
modo que: “A desigualdade de acesso a bens e serviços não seria resultado de um
sistema estruturalmente desigual, mas da desigualdade de competências
individuais. Não tem o sistema, portanto, qualquer responsabilidade no fracasso ou
no sucesso do indivíduo no livre jogo do mercado” (SIQUEIRA, 2011, p.138). Dessa
forma, não cabe ao Estado regular o mercado, mas somente garantir a liberdade
individual dos sujeitos e atuar de modo limitado diante do enfrentamento da
desigualdade tendo em vista que ela é natural.
A atuação do Estado com políticas sociais na perspectiva neoliberal é
“compreendida como assistencialista, emergencial, transitória e focalizada na
população mais pobre, desde que não afete o livre jogo do mercado [...]”
(SIQUEIRA, 2011, p. 138). É exatamente essa perspectiva culpabilizante dos pobres
por sua condição de pobreza e que impõe um Estado retraído no enfrentamento das
desigualdades que norteia o avanço do neoliberalismo nos países e as medidas de
ajuste fiscal, tendo como exemplo salutar o contexto de contrarreformas que se
vivencia no Brasil e as limitações do Estado brasileiro, conforme expusemos na
Seção anterior.
Diferentemente de uma concepção de culpabilização do indivíduo e que
escamoteia a sociabilidade na qual se está inserido, a abordagem marxista
compreende que só é possível analisar a pobreza na contemporaneidade
considerando as relações sociais próprias do modo de produção capitalista, ou seja,
a pobreza está diretamente articulada à concentração e acumulação da riqueza,
conforme aponta Siqueira (2011). Isto porque a pobreza não é um resquício de
sociedades anteriores ao capitalismo, nem tampouco o produto de um insuficiente
desenvolvimento. A pobreza é um produto necessário do MPC visto que, “como
sistema social de produção de valores, tem como resultado do seu próprio
desenvolvimento a acumulação de capital por um lado, e a pauperizaçao absoluta e
relativa12 por outro” (SIQUEIRA, 2011, p.212).
12 Pauperização absoluta entendida como resultado cada vez mais expandido e atingindo cada vez maior volume da população trabalhadora, do próprio desenvolvimento das forças produtivas, da própria expansão capitalista, onde o trabalhador é constantemente expropriado dos meios de produção, não tendo assim qualquer possibilidade de sustentação a não ser mediante a venda da sua força de trabalho. O trabalhador sem emprego é um trabalhador sem salário, e, portanto sem fonte de renda para atender suas necessidades vitais de subsistência. Já a pauperização relativa pode ser caracterizada como o processo de progressivo aumento da distância entre o valor produzido pelo trabalhador e a parcela dessa riqueza produzida da qual este se apropria. Ou seja, a riqueza produzida pelo trabalhador se divide numa parte cada vez maior de mais-valia (apropriada pelo
37
Desse modo, a pobreza não é uma decorrência da ordem natural nem de
responsabilidade individual, mas é uma condição de classe, de forma que a
desigualdade social é à dinâmica de funcionamento do capitalismo, conforme a sua
“lei geral de acumulação” (MARX, 2013): crescimento do investimento no capital
constante diminuindo o dispêndio com a força de trabalho, pressionando e
aumentando a exploração sobre os trabalhadores ao passo em que se amplia um
exército industrial de reserva, correspondente às necessidades do capital.
Essa superpopulação relativa ou um exército industrial de reserva (EIR) é
fruto da Lei Geral de acumulação capitalista visto que há um acréscimo na parte
constante da composição do capital (matéria-prima e meios de produção) em
detrimento da variável (força de trabalho) que leva à expulsão dos trabalhadores do
processo de produção. Importante salientar que esse excedente populacional não é
marginal, mas sim necessário e funcional ao capital, como aponta Marx (1980,
p.733-4):
Se uma população trabalhadora excedente é produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza com base no capitalismo, essa superpopulação torna-se, por sua vez, a alavanca da acumulação capitalista, até uma condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta, como se ele o tivesse criado e mantido por ele. (MARX, 1980, p.733-4)
Siqueira (2011) aponta que para Marx todo trabalhador desempregado ou
parcialmente empregado faz parte dessa superpopulação relativa cujas formas de
existência são assim compreendidas:
a. Flutuante – trabalhadores que ora são repelidos, ora atraídos de acordo com
as necessidades do capital; o que chamamos de sazonais.
b. Latente – trabalhadores que podem imigrar para a zona industrial, tendo
como causa a possibilidade latente da imigração campo-cidade, produto da
apropriação da agricultura pela produção capitalista que expulsa os
trabalhadores do campo.
c. Estagnada – trabalhadores em atividade, mas com ocupação irregular ao
exemplo do “setor informal” e trabalhadores precarizados que tem duração
máxima de trabalho e mínima de salário.
capital), e outra parte, proporcionalmente cada vez menor, que corresponde ao seu salário (parte da riqueza produzida que fica com o trabalhador). (SIQUEIRA, 2011).
38
d. Pauperismo: o mais profundo segmento da superpopulação relativa que
vegeta na indigência, onde estão inclusas as pessoas aptas para trabalhar
(em condições precárias e executando atividades degradantes), os órfãos e
filhos de indigentes e os incapazes de trabalhar (usuários da assistência
social).
A lei geral de acumulação explicita a desigualdade social enquanto traço
indissociável do funcionamento desse modo de produção, conforme Marx (2013, p.
877), de modo que “[...] a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a
acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a
brutalização e a degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que
produz seu próprio produto como capital”. Verifica-se que a acumulação de miséria
no polo que produz a riqueza e não se apropria dela é portanto uma das resultantes
da desigualdade engendrada pela sociedade burguesa, conforme a sua lei geral de
acumulação, sendo denominada como pobreza.
Esse conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na
sociedade capitalista madura, que possuem sua gênese no caráter coletivo da
produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana -
o trabalho -, denomina-se questão social e ancora-se nessa lei geral de acumulação
capitalista (IAMAMOTO, 2001).
Pode-se apontar, então, que se compreende e adota nesse estudo uma visão
crítica e marxista sobre pobreza como a expressão da questão social vista na sua
essência, fruto da contradição entre a produção social da riqueza e a acumulação e
centralização privada da mesma, gerando a desigualdade social enquanto um
abismo social que se alarga entre a miséria e a riqueza. Ambas fruto de um mesmo
processo que soma-se às múltiplas formas históricas, culturais e políticas de
iniquidades que são produzidas e reproduzidas na sociabilidade do capital, tais
como as relativas à condição de gênero, de raça e etnia, de geração, identidade de
gênero, orientação sexual e de origem (territorial).
No capitalismo contemporâneo, no entanto, esse processo de exploração da
qual se origina a questão social e consequentemente a pobreza e desigualdade,
soma-se aos processos de expropriação realizados pelo capital. De acordo com
Mauriel (2020), as expropriações conformam a exigência permanente e crescente da
autoexpansão do capital que se aprofundam em determinados momentos de
39
reorganização da reprodução econômica e social do capital, sobretudo em períodos
de crise, como o vivenciado na cena contemporânea. Sobre esse mesmo aspecto,
Boschetti (2018) aponta que desde a crise dos anos 1970 o capital busca a
expropriação de parcelas do fundo público que reduzem a participação do Estado na
reprodução da força de trabalho e das famílias da classe trabalhadora, diminuindo a
atuação estatal em várias políticas e serviços que antes eram acessadas pelas
mesmas, o que os impele a se submeter às formas mais bárbaras de exploração.
Essas formas contemporâneas de expropriação estão diretamente articuladas
com o ajuste fiscal permanente em execução, conforme apontam Boschetti e
Teixeira (2019) ao dissertarem que esses mecanismos de expropriação do fundo
público só são possíveis mediante uma “dialética interdependente entre as
expropriações de direitos e a dívida pública” (2019, p.81). Através de diversos
artifícios como o compromisso dos governos com o pagamento de juros e
amortizações da dívida, desvinculação de receitas orçamentárias sociais para
superávits financeiros, sistema tributário regressivo, contrarreformas nas políticas
sociais, configura-se um ajuste fiscal permanente que garante esse processo de
expropriação, conforme salienta Ana Paula Mauriel (2020).
A expropriação de direitos nos estudos de Boschetti e Teixeira (2019) refere-
se a um processo
[...] de subtração de condições históricas de reprodução da força de trabalho, mediada pelo Estado Social, por meio da reapropriação, pelo capital, de parte do fundo público antes destinado aos direitos conquistados pela classe trabalhadora, por intermédio de sucessivas e avassaladoras contrarreformas nas políticas sociais, que obriga a classe trabalhadora a oferecer sua força de trabalho no mercado a qualquer custo e a oferecer sua força de trabalho no mercado a qualquer custo e a se submeter às mais perversas e precarizadas relações de trabalho, que exacerbam a extração de mais-valia absoluta e relativa (BOSCHETTI; TEIXEIRA, 2019, p.81).
Dessa forma, a expropriação de direitos articula-se à exploração capitalista
enquanto processos imbricados e dialéticos que produzem e reproduzem a
desigualdade ao determinarem a retração do Estado no financiamento das políticas
sociais colocando uma parcela ainda maior do fundo público à disposição da
burguesia financeira.
Nesse contexto, a exploração e a expropriação contemporâneas agravam a
pobreza e a desigualdade já produzida e reproduzida pelo capitalismo. Isto ocorre
porque, apesar da pobreza ser uma das resultantes da desigualdade engendrada
com a Lei geral de acumulação, sendo por isso um produto necessário e
40
ineliminável13 do modo de produção capitalista, pode ser mediada ou atenuada com
os investimentos do Estado no campo das políticas sociais. Diante da realidade do
par exploração-expropriação em vigência com o avanço do neoliberalismo com suas
políticas de austeridade fiscal, seus impactos tornam-se ainda mais evidentes na
realidade brasileira em 2020 com a chegada de uma pandemia.
De fato, a pandemia de Covid-19 atinge o Brasil exatamente no momento em
que o país vive uma realidade socioeconômica de aprofundamento da precarização
da classe trabalhadora promovida por um Governo de extrema direita que, além da
postura negacionista dos impactos da pandemia, expressou não ter condições
políticas nem capacidade administrativa para lidar com a gravidade da situação de
crise sanitária e econômica. Por isso, em seguida será realizada uma análise da
determinação social no processo saúde-doença no Brasil durante a pandemia, o
agravamento dessa crise sanitária e das desigualdades no país.
3.2 Pandemia e pandemônio no Brasil: a determinação social da saúde e do
adoecimento
Pandemia é um termo que designa uma tendência epidemiológica. Indica que muitos surtos estão acontecendo ao mesmo tempo e espalhados por toda parte. Mas tais surtos não são iguais. Cada um deles pode ter intensidades, qualidades e formas de agravo muito distintas e estabelece relações com as condições socioeconômicas, culturais, ambientais, coletivas ou mesmo individuais. Uma pandemia pode até mesmo se tornar evento em escala global. É o caso da Covid-19. Levou menos de três meses para que, no início de 2020, mais de 210 países e territórios confirmassem contaminações com o novo coronavírus, casos da doença e mortes. A escala global, no entanto, não significa que se trate de um fenômeno universal e homogêneo. É possível estabelecer padrões, identificar seu patógeno, compreender a sua mecânica biológica e sua transmissibilidade. Mas um vírus sozinho não faz pandemia, tampouco explica o processo saúde e doença presente em diferentes contextos.
MATTA et al (2021, p.15)
De fato um vírus sozinho não explica o processo saúde doença em um
determinado país, porque esse processo também tem relação com o seu contexto
sociopolítico, com a postura do Governo diante da pandemia e suas ações para
13 “Mesmo em países que possuem o índice de miséria e indigência próximo de, ou igual a zero, e mesmo em locais ou cidades onde os trabalhadores vivam com conforto e suas necessidades básicas integralmente satisfeitas, suas aquisições são, em relação à riqueza produzida e acumulada, inferiores.” (SIQUEIRA, 2011, p.222)
41
conter ou não a disseminação do vírus bem como garantir a proteção da parcela da
população mais empobrecida.
Pode-se analisar esses aspectos na realidade brasileira marcada pelo
aprofundamento – ou mesmo regressão histórica - de formas de exploração e
expropriação capitalista com a precarização do trabalho, a máxima exploração da
natureza e as medidas de austeridade com o ajuste fiscal estrutural, afetando o
financiamento das políticas sociais que são essenciais para a classe trabalhadora.
Mas, no cenário da pandemia de COVID-19, as políticas sociais e a atuação do
Estado voltam a ser reafirmadas como decisivas no cenário público e de pressão da
sociedade, sobretudo dos setores críticos e de esquerda, devido à necessidade de
garantir as condições mínimas para proteção contra o vírus, quais sejam: o acesso à
moradia, renda, saneamento básico e alimentação adequada para subsistência para
assim conseguir cumprir o distanciamento social.
Diante desse cenário, para destravar o Estado, o Congresso Nacional teve
que aprovar, em maio de 2020, a EC 106, que institui o Regime Extraordinário Fiscal
para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia relativa
à Covid-19. Esta medida possibilitou a aprovação do auxílio emergencial para
trabalhadores/as desempregados, trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa
Família. No entanto, os recursos orçamentários têm sido aquém do necessário para
fazer frente à calamidade sanitária, social e econômica que o país atravessa, de
forma que, além da classe trabalhadora brasileira ter que enfrentar as
consequências objetivas de derruimento das políticas sociais por anos sucessivos,
passou a sofrer mais diretamente os impactos da pandemia diante de suas
carências materiais e financeiras (sobretudo da população mais pobre) que limitam e
impedem o cumprimento do distanciamento social.
Tal realidade mostrou que são exatamente os mais pobres as vítimas do
pandemônio14 que está no comando do Estado brasileiro. É publico e notório que
Jair Bolsonaro, presidente eleito em 2018, desconsiderou os efeitos da pandemia
desde sua chegada ao país e conduziu as medidas sociais e sanitárias com
14 “E o som das trombetas por toda a hoste proclama/ O conselho solene a se realizar/ No Pandemônio, alta capital/ De Satã e seus pares: a convocação chamava/ De todo bando e esquadrão/ Por local ou escolha, o mais valioso”. John Milton, Paraíso Perdido, Livro I (1667) pandemônio sm (ingl pandemonium) 1 Nome imaginado pelo poeta inglês Milton (1608-1674) para designar a corte dos infernos. 2 Conluio de indivíduos para fazer o mal ou armar desordens. 3 Balbúrdia, tumulto MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998. (AUGUSTO, Cristiane Brandão; SANTOS, Rogerio Dultra dos Santos, 2020).
42
descaso, atuando também como representante do capital, exigindo salvar a
economia “acima de tudo e de todos”, conduzindo milhares de pessoas ao abismo
diante de uma pandemia mortal.
Estudos, reportagens e a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada em
2021 no Senado Federal explicitam as formas e as principais expressões públicas
do descaso governamental, como por exemplo: a) Na demora na realização de
medidas emergenciais de proteção aos trabalhadores mais pobres; b) Em relação a
não prioridade e aumento do financiamento do sistema único de saúde para fazer
frente a pandemia e garantir testes em massa e equipamentos de proteção
individual aos trabalhadores da saúde; c) Na instabilidade na autoridade nacional de
saúde com, com remédios e tratamento ditos “preventivos” sem eficácia científica e
na morosidade e irresponsabilidade na aquisição de vacinas e de planejamento na
campanha de vacinação; e d) Em relação ao apoio aos governos estaduais e
municipais para enfrentamento da pandemia, aconteceu de modo atribulado,
marcado pelas disputas políticas e judiciais, tornando a implantação dessas medidas
públicas um processo lento e moroso.
Em relação a essas medidas realizadas pelo Governo Federal que na direção
oposta de proteger a população e de enfrentar a pandemia foram medidas que
incentivaram a livre circulação do vírus, a USP (2021) realizou uma pesquisa
intitulada “Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no
Brasil”, no Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Faculdade de
Saúde Pública da USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, uma
organização da sociedade civil, envolvendo também o Conselho Nacional de
Secretários de Saúde. A pesquisa investiga a hipótese de que está em curso no
Brasil uma estratégia de disseminação da Covid-19, promovida de forma sistemática
e contínua em âmbito federal.
O documento da USP (2021) com a linha do tempo da estratégia federal de
disseminação da Covid-19 foi publicada em janeiro de 2021, sendo posteriormente
atualizada mediante solicitação da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a
pandemia, do Senado Federal. A coleta resultou na identificação de três tipos de
evidências: atos normativos, atos de governo e propaganda contra a saúde pública
que contribuíram em cada uma isoladamente, e também em conjunto para
verificação da procedência da hipótese da existência de uma estratégia federal de
disseminação da Covid-19. O estudo destacou os seguintes atos e omissões:
43
a. Defesa da tese da imunidade de rebanho (ou coletiva) por contágio
como forma de resposta à Covid-19, disseminando a crença de que a
“imunidade natural” decorrente da infecção protegeria os indivíduos e
levaria ao controle da pandemia, além da apresentação de estimativas
infundadas de óbitos decorrentes desta estratégia e de previsões sobre o
término da pandemia;
b. Incitação constante à exposição da população ao vírus e ao
descumprimento de medidas sanitárias preventivas, baseada na negação
da gravidade da doença, na apologia à coragem e na existência de um
“tratamento precoce” para a Covid-19 que foi colocado como política
pública de saúde;
c. Banalização das mortes e das sequelas causadas pela Covid,
omitindo-se em relação à proteção de familiares de vítimas e de
sobreviventes, e disseminando a ideia de que faleceriam apenas pessoas
idosas ou com comorbidades, ou pessoas que não tivessem acesso ao
“tratamento precoce”, inclusive com recurso, pelo Presidente da
República, a expressões como “bundão” ou “maricas”;
d. Obstrução sistemática às medidas de contenção promovidas por
governadores e prefeitos, justificada pela suposta oposição entre a
proteção da saúde e a proteção da economia, que inclui a disseminação
da ideia de que medidas de quarentena causam mais danos do que o
vírus, inclusive o aumento do número de suicídios, e que elas é que
causariam a fome e o desemprego, e não a pandemia;
e. Foco em medidas de assistência e abstenção de medidas de
prevenção da doença, sendo as primeiras adotadas em reação à
determinação de outras instituições, especialmente o Congresso Nacional
e o Poder Judiciário;
f. Ataques a críticos da resposta federal à pandemia; Além das
numerosas ofensas feitas pelo Presidente e outras autoridades federais,
principalmente a governadores e jornalistas, que foram transcritas ou
citadas na linha do tempo, importante registrar que são acompanhadas de
intensa mobilização em redes sociais e manifestações de rua fomentadas
por apoiadores do governo federal, e por vezes são secundadas direta ou
44
indiretamente pela mobilização de meios policiais e judiciais contra críticos
do governo.
g. Ataques à imprensa e ao jornalismo profissional, questionando dados
sobre a doença no país, além de informações técnicas e científicas que
corroboram a eficácia de medidas de contenção da doença; e
h. Consciência da ilicitude de determinadas condutas, sobretudo por
parte do Presidente da República, que, por exemplo, reiteradas vezes
refere “aquilo que eu mostrei para a ema”, em lugar da referência explícita
à cloroquina, mas também por parte de outras autoridades como denota,
por exemplo, o comportamento do então Ministro da Saúde ao fazer
referência ao “atendimento precoce” em lugar do “tratamento precoce”.
Os resultados do estudo da USP (2021), a partir desses pontos analisados,
afastam a interpretação de que haveria incompetência ou negligência da parte do
governo federal na gestão da pandemia, e de que o discurso presidencial seria uma
exceção no âmbito governamental. Bem ao contrário, essa sistematização revela um
verdadeiro empenho e eficiência da atuação da União em prol da ampla
disseminação do vírus no território nacional.
Essa estratégia de disseminação do vírus (que dia pós dia continua ceifando
vidas) é materializada em diversas ações e falas da autoridade máxima do poder
executivo, tratando a Covid como “gripezinha” e não seguindo as recomendações da
OMS. O governo federal também passou a defender uma “quarentena vertical”
destinada a certos grupos de risco e a propagar o uso de medicações (cloroquina,
hidroxicloroquina e ivermectina) que não possuem nenhuma eficácia comprovada
cientificamente de prevenção à Covid-19.
Em relação à ineficácia desses medicamentos está amplamente respaldada
por estudos científicos e especialistas da área como a Natalia Pasternak
microbiologista da Universidade de São Paulo (USP) que afirma de modo didático
que:
A cloroquina já foi testada em tudo! Foi testada em animais, em humanos. Foi testada de todas as formas e não funcionou. Inclusive de 'tratamento precoce', que são os estudos de PEP e PrEP. PEP é a exposição profilática pós-exposição, ou seja, a pessoa foi exposta ao vírus e já começa o tratamento — não dá pra ser mais precoce do que isso. Não funcionou! Aí a gente teve os PrEP, que é profilático. 'Vamos dar para profissionais de saúde', porque eles são muito expostos: também não funcionou! Estamos
45
há pelo menos 6 meses atrasados em relação ao resto do mundo, que já descartou a cloroquina. (BRASIL, 2021a)
Além da não eficácia dessas medicações a pesquisadora chamou a atenção
para os efeitos colaterais que elas podem acarretar nas pessoas:
O 'kit covid' não têm nenhuma base científica, pelo contrário. No caso da hidroxicloroquina, ela junto com a azitromicina não tem um teste de segurança, e são dois medicamentos que podem ter como efeito colateral o aumento das complicações cardíacas. A hidroxicloroquina também nunca foi testada em conjunto com azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e outros que aparecem no 'kit covid'. Estes medicamentos nunca foram testados em conjunto. E podem ter, em conjunto, interações medicamentosas que podem ser nocivas para os rins, para o fígado e podem levar pessoas à fila do transplante, como tem ocorrido com usuários deste kit. (BRASIL, 2021a).
Mesmo com essas evidências o governo federal insistia em medidas sem
eficácia de modo a contribuir com a disseminação do vírus. Segundo Bueno, Soutto
e Matta (2021), no dia 3 de março de 2020, o então ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta, tentou buscar um alinhamento com as recomendações da OMS,
destacando a importância da quarentena e de medidas de distanciamento social. O
portal do Ministério era, até aquele momento, uma referência para dados
epidemiológicos e informações confiáveis, enquanto as fake news se espalhavam
nas redes sociais. A adesão do ministro ao discurso da OMS criou conflitos com o
Presidente da República que minimizava a gravidade da doença e afirmava que a
economia não poderia parar para conter a pandemia. Esse conflito levou à
exoneração do ministro Mandetta, em 16 de abril de 2020. O ministro que o
substituiu, Nelson Teich, também entregou o cargo após se recusar a assinar o
protocolo da hidroxicloroquina. Em meio a uma pandemia mortal o governo teve o
seu terceiro ministro da saúde no ano com a nomeação em maio de Eduardo
Pazuello, general da ativa especialista em logística e que já atuava como Secretário
executivo do Ministério da saúde.
Bueno, Souza e Matta destacam que apenas quatro dias depois da nomeação
de Pazuello, o ministério emitiu a nota (Brasil, 2020a) que recomendava o uso da
hidroxicloroquina para casos leves, conferindo ao médico a atribuição de prescrevê-
la a partir da assinatura de um Termo de Consentimento. As coletivas do MS
praticamente cessaram e boa parte do quadro técnico, que já havia trabalhado com
outras emergências importantes como a do zika, deixou a pasta.
Assim, o governo Bolsonaro adotou uma postura crítica em relação ao
distanciamento social e às demais medidas recomendadas pela OMS, reproduzindo
46
uma falsa dicotomia entre economia e saúde, na qual defendia o retorno imediato
das atividades econômicas mesmo com orientações sanitárias recomendando a
suspensão e funcionamento apenas de serviços essenciais. Ainda nesse período,
em uma postura de completo descompromisso com a vida da população declarou
em entrevista que o brasileiro é resistente à doença: “Ele não pega nada. Você vê o
cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.
Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou
meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí"15. Isso demonstra
que, na concepção do governo, se a população carente é resistente e estaria imune,
seriam “desnecessárias medidas governamentais para proteger a sua saúde”
(PELE; WILSON, 2020, p.160-161).
Em relação à “quarentena vertical”, a classe trabalhadora ativa não cumpriria
o distanciamento social, retornando ao trabalho sem medidas de segurança em um
cenário caótico. Por sua vez, burguesia poderia seguir cumprindo o distanciamento
social, enquanto a classe trabalhadora estaria colocando a vida em risco ao ter
acesso a um emprego precário, renda insuficiente e com mínimas condições de
subsistência. O capitalismo seguiria então o seu dinamismo “normal” legitimado por
um governo que menospreza a vida dos trabalhadores mais pobres, atuando em
direção a um genocídio.
Nesse cenário, torna-se evidente o quanto a realidade sociopolítica tem
ligação direta com as condições de saúde da população. Isto porque a saúde não é
um conceito abstrato ou meramente biológico, mas sim um processo com sentido
amplo como aponta o relatório da 8ª Conferencia Nacional de Saúde16:
Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1986, p. 4)
Esta definição ampla da saúde possui correlação com o conceito de
determinação social da saúde com notória importância da epidemiologia social
latino-americana e do movimento sanitário brasileiro, como apontam David e Rocha
15 Matéria publicada em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/26/brasileiro-pula-em-esgoto-e-nao-acontece-nada-diz-bolsonaro-em-alusao-a-infeccao-pelo-coronavirus.ghtml
16 Relatório que expressa a luta do movimento de reforma sanitária brasileira que lutou historicamente pelo acesso universal e equitativo aos serviços de saúde.
47
(2015). Um conceito também trabalhado por um conjunto de tradições acadêmicas
da medicina social latino-americana, da saúde coletiva no Brasil e o movimento de
promoção à saúde no Canadá. Mesmo com diferenças em relação ao alcance e
radicalidade das posições no questionamento da ordem social, todos os diferentes
estudos sobre determinação social concordam:
[...] sobre a importância da organização social nos aspectos sanitários de um dado território e em uma época específica. Afinal, a saúde e a doença também dependem das condições socioeconômicas, embora não somente delas. Estas abordagens concordam que os fatores econômicos (renda, emprego e organização da produção) podem interferir positiva ou negativamente na saúde de grupos populacionais; que os ambientes de convivência e de trabalho podem gerar efeitos mais ou menos lesivos à saúde das pessoas; e que a cultura e os valores também podem interferir ampliando ou restringindo as possibilidades de saúde das pessoas, pelo valor que se atribui à vida, reconhecimento de cidadania, concepção de saúde, e forma como cada povo lida com as diferenças de gênero, de etnia e até mesmo econômicas. (DAVID; ROCHA, 2015, p.131)
Além de a saúde ser definida no contexto histórico de determinada sociedade
e num dado momento de seu desenvolvimento, trata-se de um direito social previsto
constitucionalmente e que deve ser garantido pelo Estado aportando recursos e
serviços que possibilitem condições dignas de vida e de acesso universal e
igualitário as ações e serviços de promoção, proteção e recuperação de saúde em
todos os níveis e a todos os habitantes do território nacional. Um direito que se
materializa na necessidade do Estado assumir uma política de saúde consequente e
integrada as demais políticas econômicas e sociais, assegurando os meios que
permitam efetiva-las (BRASIL, 1986).
Ao invés de atuar para garantir esse direito social, o que se vê na realidade
brasileira é uma postura negacionista do atual governo federal que não trata com
seriedade a gravidade da situação pandêmica. Temos inclusive um caso
emblemático, quando passados 15 dias do primeiro óbito por Covid-19 no Brasil
(12/03/2020), uma empregada doméstica infectada pelos patrões que haviam
chegado de viagem ao exterior, Bolsonaro publicizou uma campanha intitulada “O
Brasil não pode parar”, na qual incita a população ao retorno das atividades
econômicas presencialmente, em conflito com as determinações dos estados e da
própria OMS. O STF proibiu a exibição da referida campanha, alegando que o papel
do governo era o de salvar vidas.
É preciso salientar, no entanto, que a desordem provocada pelo pandemônio
e a postura de menosprezar a vida dos mais pobres possui um recorte classista,
48
situando-se enquanto um governo de extrema direita aliado com o neoliberalismo e
o conservadorismo. Isto porque o conservadorismo consiste em uma ideologia
capaz de renovar as promessas burguesas de manter a ordem e estimular o
desenvolvimento econômico, sobretudo em momentos de crise, como a estrutural do
capital que se vive atualmente, conforme as reflexões de Souza (2016). Dessa
forma, o conservadorismo consegue:
[...] condensar os anseios das classes dominantes e o imaginário das classes subalternas, no sentido de “salvar a sociedade”, misturando autoritarismo, voluntarismo e intolerância. Com essas características, o conservadorismo acaba aparecendo como uma importante ideologia e estratégia política para manutenção da sociedade burguesa. (SOUZA; OLIVEIRA, 2018, p.1-2)
Possuindo a funcionalidade de manutenção da sociedade burguesa o
conservadorismo liga-se de modo umbilical com o neoliberalismo e o conjunto de
medidas de ajuste fiscal em voga no país, possuindo especificidades de como se
expressa na realidade brasileira a partir das particularidades da formação social
nacional, sendo um país de capitalismo periférico e dependente. Diante dessas
particularidades configura-se um “conservadorismo à brasileira” caracterizado por
Souza (2016) que adquire duas tendências bem delimitadas:
[...] ou realiza o elogio "presentista" e a apologia direta do capitalismo, associando-se ao discurso neoliberal, tal como se define mais nitidamente na contemporaneidade; ou, quando acentua as tendências ideológicas de "retorno do passado", adquire tons basicamente reacionários e de retrocesso civilizacional, dada a qualidade singular desse passado histórico específico: escravocrata, antidemocrático, patrimonialista, marcado pelo autoritarismo e cultura política de negação de direitos à classe trabalhadora. (SOUZA, 2016, p.232-233)
Pode-se perceber que a tendência do elogio presentista do conservadorismo
em se articular ao neoliberalismo soma-se com a tendência de retorno ao passado
com a negação de direitos, pois no momento presente, diante de um governo de
extrema direita com política de austeridade fiscal e de contrarreformas do Estado, o
que se aponta é a continuidade no derruimento do financiamento das políticas
sociais afetando sobremaneira o agravamento da pobreza e desigualdade social.
Em um cenário que já era caótico, irromperam outras situações
problemáticas, entre as quais a recusa, pelo governo federal, de oferta de vacinas e
a diminuição do valor do auxílio emergencial que já era insuficiente para atender
minimamente as necessidades da população.
49
3.3 Pandemia e genocídio: descaso governamental e reações populares
“Todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta. Lamento as mortes. Morre gente todo dia, de uma série de causas. É a vida”, afirma o Presidente em meio a uma aglomeração em Bagé (RS). Mentiu, ainda, que a cidade havia enfrentado a pandemia sem restrições à atividade econômica, quando na verdade o prefeito Divaldo Lara (PTB) adotou medidas quarentenárias, inclusive toque de recolher e barreiras sanitárias.
USP (2021)
A fala de Bolsonaro denota o desdém com a vida da população brasileira
diante de uma crise sanitária, mas também demonstra a estratégia em disseminar a
Covid-19 - evidenciada no estudo da USP (2021) - acarretando o agravamento da
situação pandêmica e consequentemente o adoecimento e morte de centenas de
brasileiros.
Esta má condução se agrava ao longo da pandemia, mesmo no momento em
que há oferta de vacinas e pode ser exemplificada ao ocorrido entre os fins de 2020
e inicio de 2021 com o Governo Federal sistematicamente recusando a oferta de
vacinas, a principal forma de imunizar a população e controlar a pandemia. Em um
dos exemplos mais evidentes da recusa na compra de vacinas está o da vacina da
Pfizer oferecida ao governo brasileiro ainda em meados de 2020. O
imunologista Gustavo Cabral, pesquisador da USP sobre desenvolvimento de
vacinas, afirma que a recusa de Bolsonaro em negociar a vacina com a Pfizer foi
prejudicial, pois poderia garantir mais do que as 70 milhões de doses ofertadas,
conforme entrevista para a Rede Brasil Atual (2021):
O governo federal esnoba o vírus desde o começo da pandemia, num ato de crueldade. Ele fala tanto de economia, mas esquece que é preciso manter sua população viva. A partir do momento que ele negligencia a compra de vacina, atira no pé do Brasil. A Pfizer fez uma oferta inicial que poderia ser muito mais explorada, fugindo da competitividade financeira do exterior. Com um acordo de compra, o Brasil conseguiria um número muito maior de vacinas do que foi oferecido”, disse à jornalista Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual. (2021)
Somado com a recusa de vacinas, encontra-se o descaso com a população
mais empobrecida que mais sofreu os impactos da pandemia. O processo de debate
e aprovação da EC 106, que determinou o fornecimento de auxílio emergencial para
trabalhadores informais, desempregados ou beneficiários do Bolsa Família, foi fruto
de uma intensa disputa pelo fundo público. A proposta inicial do governo, como
aponta André Singer, foi “de 200 reais, convertida pelo Congresso Nacional em 600.
Esse último valor foi responsável por minorar o impacto da recessão, por manter
50
algum grau de atividade econômica durante o momento mais grave de queda da
produção econômica” (SINGER, 2020).
No entanto, este valor de R$ 600,00 reais por pessoa e R$ 1.200,00 em caso
de mulher chefe de família, durou até setembro de 2020. Diante da continuidade e
dos sinais de agravamento da realidade pandêmica, o governo federal manteve o
auxílio, mas “cortou pela metade o valor que estava sendo recebido por essas
pessoas. Assim, nestes últimos meses do ano de 2020, a população que vinha
recebendo 600 reais passará a receber 300” (SINGER, 2020).
Apesar de extremamente importante para garantia de renda e consequente
sobrevivência dos setores mais empobrecidos da sociedade, o auxílio emergencial
foi suspenso em 2021 mesmo com o cenário de desemprego assolando o país e a
continuidade da pandemia. Diante da necessidade do auxílio para a população, da
pressão popular e de setores da esquerda, o governo voltou ao pagamento do
auxílio emergencial em abril de 2021, com mais 4 parcelas sendo finalizado em julho
de 2021. Essas parcelas, no entanto são menores ainda que as pagas no ano
passado com os valores irrisórios de R$ 150 por mês para trabalhador individual,
mulheres chefes de família: R$ 375 por mês e demais beneficiários: R$ 250 por mês.
Neste contexto, irrompe a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no
Senado Federal, sendo instalada em 13 de abril de 2021, com a seguinte finalidade:
Apurar, no prazo de 90 dias, as ações e omissões do Governo federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados; e as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, se valendo para isso de recursos originados da União Federal, bem como outras ações e omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais, no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela Pandemia do Coronavírus “SARS-CoV-2” (BRASIL, 2021)
Apesar do prazo inicial estipulado em 90 dias, as ações e omissões do
governo federal se afiguraram de tal maneira incoerente na condução da pandemia
que as investigações continuam e se aprofundam até o presente momento de escrita
deste trabalho. No que foi investigado até agora, já é de conhecimento público os
investimentos em remédios sem comprovação científica, a realização de campanhas
publicitárias a favor da reabertura comercial em cenário pandêmico caótico, as
recusas sistemáticas diante da oferta de vacinas e um esquema de corrupção,
51
envolvendo uma suposta tentativa de compra da vacina superfatura indiana
Covaxin17.
Esse cenário caótico desembocou na afirmação de que, diante de tantos
descasos e omissões do governo federal, se vive um genocídio do povo brasileiro,
com até o momento mais de 20 milhões de pessoas infectadas e alcançando a cifra
de 600 mil mortos18.
Assim, as ações do Governo Bolsonaro na disseminação da Covid-19, na
recusa de vacinas e na insistência em medicações sem comprovação colocou o país
em uma situação de colapso sanitário e social contribuindo para o aumento de
mortes que seriam evitáveis, configurando assim um genocídio do povo brasileiro.
Nota técnica divulgada em julho de 2021 pelo Grupo Alerta Covid-19, em parceria
com o Instituto de Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e a Oxfam
Brasil19 contém levantamentos de informações documentais e dados oficiais que
contribuem para uma apreciação de evidências sobre mortes evitáveis20 por Covid-
17 Esta última realizada pelo Deputado Federal Luis Miranda (DEM-DF) juntamente com o seu irmão Luís Ricardo Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde, sobre a denúncia de suspeitas de irregularidades na compra da vacina Covaxin, da Bharat Biotech. O deputado afirma em seu depoimento que se não fosse o depoimento dele e do irmão “US$ 45 milhões teriam sido pagos por uma vacina que não resolveu e nem sei se vai resolver. Queriam mandar esses valores para um paraíso fiscal” (BRASIL, 2021b).
18 O termo genocídio segundo a Enciclopédia do Holocausto (2021) foi um termo criado após 1944 como um conceito específico para designar crimes que têm como objetivo a eliminação da existência física de grupos nacionais, étnicos, raciais e/ou religiosos. Raphael Lemkin um advogado judeu polonês, ao tentar encontrar palavras para descrever as políticas nazistas de assassinato, incluindo a destruição dos judeus europeus, criou a palavra “genocídio” combinando a palavra grega geno-, que significa raça ou tribo, com a palavra latina –cídio, que significa matar. Assim Lemnik define genocídio como um plano coordenadora com ações que objetivam destruir os alicerces fundamentais da vida de grupos nacionais com o objetivo de aniquilá-los. Em 1948 diante da sombra recente do Holocausto e dos esforços de Lemkin as Nações Unidas aprovaram a convenção para a Prevenção e Punição de Genocídio estabelecendo o “genocídio” como crime de caráter internacional tendo as nações signatárias o comprometimento de efetivar as ações para evitá-ló e puni-lo sendo definido como: “Por genocídio entende-se quaisquer dos atos abaixo relacionados, cometidos com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial, ou religioso, tais como: (a) Assassinato de membros do grupo; (b) Causar danos à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) Impor deliberadamente ao grupo condições de vida que possam causar sua destruição física total ou parcial; (d) Impor medidas que impeçam a reprodução física dos membros do grupo; (e) Transferir à força crianças de um grupo para outro”. (HOLOCAUSTO, 2021)
19 A Oxfam é uma organização da sociedade civil brasileira com 20 membros que atuam em cerca de 90 países pelo mundo, por meio de campanhas, programas e ajuda humanitária. Foi criada em 2014 para a construção de um Brasil com mais justiça e menos desigualdades, atuando em três áreas temáticas: Setor Privado, Desigualdades e Direitos Humanos; Juventudes, Gênero e Raça, e Justiça Social e Econômica. Entre as estratégias de atuação estão o trabalho em parceria e aliança com outras organizações e setores da sociedade civil brasileira, o engajamento público, a realização de campanhas e a incidência com setores público e privado. 20 Esta Nota Técnica Alerta Covid-19 adota uma acepção pragmática de morte evitável considerando duas dimensões: evitáveis por medidas populacionais e por ações e serviços de saúde. Para tanto,
52
19 no Brasil. O estudo evidencia que cerca de 120 mil mortes seriam evitáveis no
país e que as mesmas possuem correlação com a conduta do Governo Federal:
No Brasil, a recusa às orientações para mitigar casos e mortes impediu poupar vidas. Aproximadamente 120 mil mortes, entre as que ocorreram até o final de março de 2021, poderiam ter sido evitadas por medidas não farmacológicas para o controle da transmissão na comunidade. [...] Outro contingente significativo de mortes evitáveis, embora também de difícil dimensionamento, são aquelas que poderiam não ter ocorrido pela efetiva atuação da rede básica de serviços de saúde, ou seja, incluindo testes, monitoramento de casos, providências para autoisolamento e referenciamento ágil para hospitais de qualidade. (ALERTA COVID, 2021, p.24)
Todo esse contexto de condução desastrosa do Governo Federal diante da
pandemia e das mortes que, em boa parte, poderiam ter sido evitadas, proporcionou
a irrupção nas ruas de uma articulação formada por movimentos, partidos, entidades
e organizações de esquerda intitulado “Povo na Rua, Fora Bolsonaro”. Assim, a
população segue nas ruas reivindicando o Fora Bolsonaro e o Lema de Vida, Pão,
Vacina e Educação, conforme demonstra o ex-presidente da UNE Iago Montalvão:
Figura 2 - Cartaz Vida, Pão, Vacina e Educação empunhada pelo então Presidente da UNE Iago Montalvão
Fonte: Correio Braziliense (2021)
os processos de adoecimento e morte pela Covid-19 [...]. Observa-se que as ações visando a redução da exposição ao vírus, da probabilidade de infecção e da gravidade da Covid-19 estão associadas a medidas e ações de natureza predominantemente econômica, social e de saúde. O modelo de representação das etapas dos processos de transmissão e adoecimento da Covid-19 sugere ainda a relevância da articulação e simultaneidade das ações governamentais (ALERTA COVID, 2021).
53
As mobilizações populares reivindicam agilidade da vacinação no país, luta
contra os cortes promovidos na educação brasileira21, a favor da prorrogação do
auxílio emergencial com o valor de R$ 600,00 e R$ 1.200,00 e também pressiona
pela abertura do processo de impeachment de Jair Bolsonaro. Essa pressão popular
contribuiu para a prorrogação do auxílio emergencial por mais 3 meses, sendo ainda
insuficiente diante dos valores irrisórios, embora seja uma importante conquista,
tendo em vista a realidade pandêmica e de avanço da desigualdade no país. Os
atos de rua continuam e demonstram a capacidade popular de mobilização em um
cenário pandêmico, exigindo direitos sociais básicos que são negados.
Esses protestos acontecem também no contexto de uma certa efervescência
política na América Latina durante a pandemia, começando pelo Chile que
reivindicava a construção de uma Nova constituição a partir de um plebiscito popular
e a eleição de uma nova Convenção Constitucional. Na Argentina, as mulheres
ganharam as ruas conquistando a partir de muita luta a aprovação da lei de
legalização do aborto com uma “Maré Verde” que tomou conta das principais
cidades do país, como aponta Michelle de Mello (2021). Na Colômbia, chama a
tenção a resistência das mobilizações populares contra a reforma tributária e a
contrarreforma da saúde, em plena pandemia, propostas pelo presidente Iván
Duque, bem como exigindo uma reforma policial e justiça pelos presos e mortos pelo
governo durante as manifestações de rua.
Esse processo de resistência latino-americana contra as propostas de
retrocessos dos seus governos é também uma luta contra o neoliberalismo e suas
medidas de ajuste que atacam os direitos sociais, conforme destacado por Mello
(2021) ao trazer a fala de Rita Farfán da Federação Democrática Internacional de
Mulheres (Fedim): “Se respiram novos ares na América Latina, fruto da luta dos
povos em cada país. O principal inimigo é o sistema neoliberal, no qual vivemos, que
nos oprime dia-a-dia, que não nos deixa avançar, que não deixa que nosso povo
acesse tudo que necessita” (FARFAN apud Mello, 2021).
Nesse processo de resistência em meio ao contexto pandêmico um cartaz
repercutiu em vários países trazendo de modo resumido a constatação da gravidade
21 O presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei orçamentária de 2021 com veto a R$ 19,767 bilhões, cancelados definitivamente, e bloqueio adicional de R$ 9,3 bilhões em despesas discricionárias, que podem ser liberados no decorrer deste ano. Os maiores bloqueios foram nos ministérios da Educação (2,7 bilhões), Economia (R$ 1,4 bilhão) e Defesa (R$ 1,3 bilhão). (BRASIL, 2020).
54
da realidade dos países que vivenciam as medidas de austeridade fiscal e
necessitam sair às ruas porque os seus governos são mais letais que o vírus,
conforme elucida o cartaz colombiano a seguir que ganhou manchetes:
Figura 3 - Cartaz de protesto na Colômbia: Se um povo protesta e marcha em meio a uma pandemia, é porque seu governo é mais perigoso que o vírus.
Fonte: (ASSUFRGS, 2021).
Esse caldo de indignação popular que tem se alastrado pelas ruas latino-
americanas demonstra a força da pressão popular da classe trabalhadora mesmo
com tantos ataques da ofensiva neoliberal. Como diz Drummond (2012) no sue
poema A flor e a Naúsea “o tempo não é de completa justiça”, insiste ainda em ser
de “fezes e maus poemas”, mas mesmo em meio ao tempo de injustiça o poeta diz
que nasce uma flor que “ilude a polícia e rompe o asfalto”. E assim a resistência da
classe trabalhadora latino-americana vai rompendo o asfalto da ofensiva neoliberal
como uma flor que também faz brotar a esperança em tempos novos que não que
haja austeridade fiscal, mas sim a austeridade e a dignidade com a garantia de
direitos humanos.
Mesmo com a pressão popular e a esperança da resistência brotando diante
da realidade caótica, é inegável que a pobreza e desigualdade nesse cenário
pandêmico tiveram a tendência de ser agravadas, sobretudo em relação ao cenário
anterior à pandemia em que já se vivenciava o ajuste fiscal, conforme veremos no
capítulo seguinte.
55
4. AJUSTE FISCAL E A PANDEMIA DA DESIGUALDADE NO BRASIL
Estou bem próximo, numa rua erma, onde dois homens velhos conversam certamente sobre as dificuldades da arte de sobreviver. São dois homens de cabelos brancos, vestidos de maneira simples, defronte a uma casa pequena e antiga. É um bairro de pessoas pobres, onde fruir o escasso vento da manhã – do verão cada vez mais quente – é um privilégio. Um deles, que está sentado com a cabeça erguida, responde algo ao que está em pé. Ao passar por eles escuto aquele que está em pé dizer ao que está sentado – atento e reverente – como um velho conhecido: “… é que temos que escolher entre morrer de fome ou morrer do vírus”. A sentença revela reverência e fatalidade, não prazer ou adesão. Nem admiração ou respeito. Mas acolhimento de uma ordem mítica, sobre a qual não pende nenhuma possibilidade de resistência ou alternativa.
Tarso Genro (2021)
Como discutido nos capítulos anteriores, a austeridade fiscal é uma realidade
que vem permeando o cenário brasileiro desde os anos 1980, mas ao longo desse
período adquire especificidades de acordo com cada momento histórico e
conjuntural do país. A realidade pandêmica desabrochada no país a partir de 2020
esgarça ainda mais os impactos da austeridade fiscal nesse cenário de crise.
Destaca-se, sobretudo em relação à baixa capacidade de resposta do Estado na
proteção emergencial da população, de modo que a desigualdade nas condições de
vida vem se tornando o caminho para a morte.
A pandemia escancara as desigualdades já existentes no país aprofundadas
pelo receituário neoliberal e pelas medidas de ajuste fiscal implantadas ao longo das
últimas décadas no país e que adquirem maior radicalidade a partir de 2016. O
avanço da austeridade e da desigualdade revela então o profundo significado do
diálogo dos dois senhores (na epigrafe deste capítulo) em que Tarso Genro
evidencia o quanto a pobreza que já era uma realidade dura e presente nos lares
brasileiros, adquire contornos ainda mais impactantes durante a pandemia,
colocando milhões de brasileiros diante do trágico dilema de “escolher entre morrer
de fome ou morrer do vírus”.
A realidade pandêmica brasileira marcada pelo aumento das desigualdades
demonstra o quanto é necessária a atuação do Estado para garantir condições
mínimas de sobrevivência da população, garantindo seus direitos fundamentais à
vida. Essa garantia, no entanto, está comprometida devido aos impactos das
56
medidas de ajuste que foram adotadas no cenário anterior a pandemia, de modo
que causando a retração na capacidade de atuação do Estado.
Por isso, neste capítulo será realizada uma análise de dois eixos basilares
para compreensão de como o ajuste fiscal implicou no agravamento da pobreza e
desigualdade do país. O primeiro trata de explicitar um conjunto de indicadores que
expressem as condições de pobreza e desigualdade no país antes e durante a
realidade pandêmica, tais como: o não acesso a moradia digna, o avanço do
desemprego e a insegurança alimentar. Na sequência, será demonstrado como o
ajuste fiscal implicou na baixa capacidade de atuação do Estado no período
pandêmico, tendo por base a análise do INESC (2020 e 2021) sobre o planejamento
e o desempenho do orçamento público federal para o ano de 2020 e no primeiro
semestre de 2021.
4.1 Agravamento da pobreza e das desigualdades no Brasil: é tudo culpa da
pandemia?
O estudo panorâmico da pobreza e da desigualdade no país será feito a partir
de indicadores que retratam as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora
brasileira. Esses elementos serão trabalhados a partir de indicadores de restrição a
condições de moradia, de saneamento básico, taxas de ocupação e desocupação e
as condições de segurança alimentar, como formas de expressar as condições de
pobreza e desigualdade na realidade brasileira antes do cenário pandêmico, bem
como durante a pandemia, tendo em vista que para ter condições objetivas de
proteger-se do vírus é necessário ter acesso à moradia, ao emprego, renda e
consequentemente à alimentação.
Todos esses elementos implicam, portanto, em condições básicas para
conseguir cumprir o distanciamento social e não ser tão exposto à contaminação, de
modo que a falta dessas condições básicas implica em aumentos nas taxas de
adoecimento e de letalidade, sobretudo para as pessoas mais pobres.
4.1.1 Sem condição digna de moradia
O Brasil é um país que ainda lida com uma série de problemas sociais na
realidade, sendo um dos principais relativo à falta e precariedade de moradia,
57
encontrando-se entre os países com maior déficit habitacional do mundo, ao lado de
países como Índia e África do Sul, conforme aponta Boulos (2012). Esse déficit
habitacional significa, conforme o autor, a quantidade de casas que faltam para
atender todos aqueles que necessitam, possuindo dois modos de definição: 1.
Déficit quantitativo referente às famílias que não possuem casa; e 2. Déficit
qualitativo relativo ao número de famílias que moram em situação extremamente
inadequada. Estes dois dados formam conjuntamente o problema habitacional
brasileiro (Boulos, 2012).
Neste item, a discussão sobre não acesso a moradia digna será articulada
com o déficit habitacional qualitativo, buscando descrever e apreender como se
encontra a situação de moradia de milhões de brasileiros. E para isso terá como
suporte os estudos desenvolvidos desde 2016 pelo IBGE com a Pesquisa Nacional
por Amostragem Domiciliar (PNAD Contínua), ao coletar informações relativas às
características dos domicílios brasileiros, abarcando sua estrutura física, o acesso a
serviços domiciliares e a existência de bens no domicílio.
A síntese de indicadores sociais do IBGE (2020), que traz um panorama das
condições de vida da população brasileira anualmente, trabalha com a definição de
inadequações ou restrição a condições de moradia a partir da PNAD Contínua,
auxiliando nessa compreensão de quantas pessoas no país sofrem com a ausência
de moradia digna, compondo esse déficit qualitativo. Essas
inadequações/restrições 22 definidas e trabalhadas pelo IBGE (2020) podem ser
listadas em ausência no domicílio de banheiro de uso exclusivo dos moradores,
22 Segundo definição e critérios de estudo do IBGE (2020) as restrições de moradia podem ser definidas como:
1. Ausência no domicílio de banheiro de uso exclusivo dos moradores – ou seja, um cômodo com instalações sanitárias e para banho cujo uso no cotidiano não é compartilhado com moradores de outros domicílios.
2. Utilização de materiais não duráveis nas paredes externas do domicílio. São considerados adequados os domicílios cujas paredes externas foram construídas predominantemente de alvenaria (com ou sem revestimento), de taipa revestida ou de madeira apropriada para construção. Por sua vez, são classificados como inadequados os domicílios com paredes de taipa não revestida, de madeira aproveitada (como tapumes ou madeira retirada de pallets) e de outros materiais.
3. O adensamento domiciliar excessivo, definido como uma situação em que o domicílio tem mais de três moradores para cada cômodo utilizado como dormitório.
4. O ônus excessivo com aluguel, situação em que o valor do aluguel iguala ou supera 30% do rendimento domiciliar. Entende-se que essa situação constitui uma inadequação na medida em que o elevado comprometimento da renda com o aluguel pode impedir o acesso dos moradores a outras necessidades básicas.
58
utilização de materiais não duráveis nas paredes externas do domicílio, o elevado
adensamento domiciliar e o ônus excessivo com aluguel.
Nas tabelas detalhadas a seguir, fornecidas pelo banco de dados do estudo
do IBGE (2020), podem ser encontrados dados relativos a como essas restrições na
moradia acometem os brasileiros, seja de uma forma geral na população brasileira,
seja de acordo com as particularidades regionais, conforme demonstra a tabela
seguinte:
Tabela 1 – Domicílios com restrição a condições de moradia (2017-2019)
Brasil e Regiões
PERÍODO
2017 2018 2019
Brasil 13,1 12,8 12,4
Norte 24,3 24,0 24,0
Nordeste 15,0 15,0 14,2
Sudeste 11,9 11,4 11,1
Sul 7,9 7,3 7,1
Centro-Oeste 10,1 10,0 9,6
Fonte: IBGE, PNAD Contínua, 2019, consolidado de primeiras entrevistas. Tabelas detalhadas da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE. Elaboração própria Nota: Foram consideradas com restrição as pessoas residindo em domicílios sem banheiro de uso exclusivo do domicílio, com paredes externas construídas predominantemente com materiais não duráveis, com adensamento excessivo ou com ônus excessivo com aluguel.
Constata-se o quanto a problemática de restrição no acesso à moradia perfaz
a realidade brasileira ao verificarmos que 13,1% da população convive com alguma
inadequação na moradia em 2017, e ao passar dos anos essa situação não se
altera de modo substantivo continuando nos anos posteriores em patamar muito
próximo. Também é salutar apreender as desigualdades regionais que se
expressam nesse indicador, tendo em vista que enquanto as regiões Sudeste, Sul e
Centro-oeste (apesar de apresentarem significativo percentual de pessoas com
restrição na moradia) apresentam percentual menor se comparado com a realidade
nacional, as regiões Norte e Nordeste que possuem índices superiores à média
nacional. Ressaltando-se, ainda, o quanto é expressiva a presença de inadequação
na condição de moradia na Região Norte, acometendo quase o dobro da média
nacional, e que nos anos seguintes não tem mudança significativa.
A presença de inadequações na moradia é um dos indicativos de precária
condição de vida, mas é importante salientar que uma habitação adequada e salubre
59
envolve também a garantia do saneamento básico. Neste estudo o saneamento
básico é compreendido de acordo com a definição do IBGE (2020) envolvendo o
acesso simultâneo aos serviços de coleta direta ou indireta de lixo, abastecimento
de água por rede geral e esgotamento sanitário por rede coletora, pluvial ou fossa
ligada à rede.
Analisando o acesso da população brasileira aos serviços de saneamento, o
IBGE (2020) caracteriza como domicílios com restrição aqueles que não tinham
acesso simultâneo aos três serviços de saneamento básico supracitados. A partir de
uma análise dos domicílios brasileiros que não possuíam esse acesso, bem como
de uma visão por regiões é possível apreender as disparidades ainda existentes em
um serviço básico que deveria ser ofertado e garantido a todos os brasileiros e
brasileiras.
A partir dos dados expressos no Gráfico 1 é possível desvelar o quanto a
ausência de acesso a saneamento básico ainda acomete milhões de domicílios
brasileiros e que, mesmo sendo presente em todas as regiões brasileiras com
percentual significativa de não acesso ao saneamento, em algumas regiões essa
realidade de restrição torna-se mais latente
Gráfico 1- PERCENTUAL DE DOMICÍLIOS COM RESTRIÇÃO A SERVIÇOS DE
SANEAMENTO NO BRASIL E POR REGIÕES (2017 -2019)
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019. Elaboração própria
Brasil
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
37.5
82.3
58.9
13.0
35.9
49.6
37.2
81.4
59.0
13.2
35.2
46.3
36.9
78.4
58.9
14.1
34.5
42.3
Domicilios com restrição a serviços de saneamento PERÍODO 2019
Domicilios com restrição a serviços de saneamento PERÍODO 2018
Domicilios com restrição a serviços de saneamento PERÍODO 2017
60
Enquanto a Região Sudeste apresenta um patamar de 14,1% dos domicílios
com restrição no acesso ao saneamento em 2019 - menos da metade da média
nacional (36,9%) –, o Norte possuía quase 80% da população nessa situação e o
Nordeste com quase 60% da população. Assim, enquanto as regiões do Centro-Sul
do Brasil apresentam médias menores, as regiões Norte e Nordeste apresentam
percentual significativo de mais da metade da sua população com restrição no
acesso ao saneamento básico. Além das disparidades regionais expressa no gráfico
é perceptível que entre 2017 e 2019 o percentual de restrição no acesso ao
saneamento não apresentou variação e diminuição significativa, mesmo no centro-
oeste, região com queda de 7% mas que ainda possui 43,3% da sua população com
restrição em 2019.
Percebe-se que as restrições no acesso a moradia e saneamento básico têm
pouca alteração ao passar dos anos, possuindo grande percentual de brasileiros
lidando com a precariedade nas condições de moradia. Essa precariedade acomete
os brasileiros de forma diferente de acordo com cada região brasileira, mas além
das disparidades regionais o não acesso a moradia e saneamento também impacta
de forma diferente as pessoas de acordo coma as desigualdades de raça e gênero,
como demonstrado na tabela 2.
Nos dados sistematizados é possível perceber o quanto a restrição às
condições de moradia e acesso a saneamento também se diferenciam de acordo
com raça e sexo, isto porque mesmo tendo percentual parecido entre homens e
mulheres com restrição pode-se apreender a disparidade existente por cor/raça.
Enquanto 15% dos homens negros são acometidos por restrição na moradia menos
de 10% dos homens brancos e mulheres brancas encontram-se nessa situação.
Ressalta-se ainda o quanto as mulheres negras ou pardas encontram-se em
situação pior que os homens e mulheres brancas e que os homens negros. Nas
condições de acesso aos serviços de saneamento essa realidade dispare de sexo e
raça se apresenta novamente, tendo em vista que homens pretos ou pardos e
mulheres negras ou pardas apresentam quase 50% de não acesso a esses serviços
em 2019, enquanto homens e mulheres brancas apresentam percentual em torno de
20%.
61
Tabela 2 - Proporção de pessoas residentes em domicílios com restrição, por
sexo e raça (%)
Responsáveis por domicílios
Proporção de pessoas residentes em domicílios com restrição
Restrição a condições de moradia %
Restrição a serviços de saneamento básico %
Ano Ano
2017 2018 2019 2017 2018 2019
Sexo
Homens 13,1 12,8 12,4 38,7 38,5 38,0 Mulheres 13,1 12,8 12,4 36,4 36,1 35,9
Sexo e cor ou raça1
Homens brancos 9,4 9,0 8,7 28,9 29,0 28,8 Homens pretos ou pardos
15,9 15,6 15,0 46,3 45,6 44,8
Mulheres brancas 9,4 9,4 8,7 26,9 26,9 26,9 Mulheres pretas ou pardas
16,1 15,4 15,2 44,3 43,5 43,1
Fonte: IBGE, PNAD Contínua 2019, consolidado de primeiras entrevistas. Elaboração própria 1Não são apresentados resultados para amarelos, indígenas e pessoas sem declaração de cor ou raça.
Nota-se, dessa forma, como as desigualdades regionais cruzam-se com
condições outras reiteradas da desigualdade como sexo e gênero, como aponta
Yazbek (2001, p.34) ao enfatizar que a pobreza e a subalternidade configuram-se
como “indicadores de uma forma de inserção na vida social, de uma condição de
classe e de outras reiteradoras da desigualdade (como gênero, raça, etnia,
procedência etc)” expressando as relações vigentes na sociedade.
Assim, é perceptível o quanto o não acesso a moradia digna acomete a vida
de percentual significativo de pessoas, sendo ainda mais latente nas regiões Norte e
Nordeste e entre as pessoas negras, sobretudo as mulheres negras. Esse cenário
encontra-se num contexto pré-pandêmico e indica o quanto a população nessa
condição tendia a sofrer mais os impactos da pandemia, tendo em vista a
necessidade de distanciamento social com cada família em seu local de moradia e
tendo que fazer uso de medidas de higiene pessoal como lavagem das mãos e
higienização dos alimentos.
Mas como conseguir um distanciamento social adequado em moradias cujas
famílias sofrem com o adensamento excessivo em que se um morador tiver
contaminado não consegue manter distância ou isolar-se dos demais, com a
ausência de banheiro com mínimas condições de estruturação e, ainda, com boa
62
parte da renda comprometida em custear o aluguel, comprometendo a renda no
custeio de outras necessidades. Apesar de não se encontrar até o momento dados
sistematizados e mais detalhados de agravamento dessa situação em 2020 e 2021,
pode-se apontar que houve um aumento de 79% no número de ações com pedido
de despejo na cidade de São Paulo conforme destaca Bechara (2021) e a nível
nacional o número de famílias despejadas cresceu 340% durante a pandemia,
conforme indicativo do G1 (2021).
Também revela o quanto é difícil garantir a proteção das famílias contra o
vírus com uma devida higiene das mãos e dos alimentos, sendo que um percentual
significativo não possui acesso a abastecimento de água por rede geral tendo o
adicional de que também não possuem acesso a esgotamento sanitário e estão
mais sujeitas a contrair outras doenças.
Essas dificuldades relacionadas com a habitação somam-se com a
precarização do acesso ao trabalho e consequentemente acesso a renda na
realidade brasileira na qual o desemprego e as formas precarizadas de trabalho
tornam-se cada vez mais presentes. Em cenário pandêmico essa tendência do
aviltamento do trabalho e das condições de vida da classe trabalhadora torna-se
ainda mais prevalente, como será discutido no item seguinte.
4.1.2 Sem trabalho
Só os acidentes de trabalho, quando trabalhavam para empresas que tinham seguro contra esse tipo de risco, davam-lhes o lazer [...]. O desemprego, que não era segurado, era o mais temido dos males. [...] O trabalho [...] não era uma virtude, mas uma necessidade que, para permitir viver, levava à morte. [...] Era [...] o privilégio da servidão.
Albert Camus (2015).
O trabalho é uma dimensão essencial e central na vida humana, para
suprimento das necessidades, mas na reflexão de Camus pode-se perceber que o
trabalho deixa de ser uma virtude, elemento básico para suprimento das
necessidades e passa a se tornar um suplício, um privilégio da servidão. Mas o
trabalho possui um sentido ontológico que diante de uma necessidade, o homem
transforma a natureza e a si mesmo para o atendimento desta necessidade criando
nesse processo um ser diferente dos orgânicos e inorgânicos já existentes, o ser
social. Assim, conforme aponta Marx (2012), o trabalho:
63
[...] é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. (MARX, 2012, p.297)
O trabalho a partir da dimensão ontológica é entendido então, como a
atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à reprodução
social, sendo ele a categoria fundante dos homens. Portanto, a evolução da
humanidade é vinculada a realização do trabalho, como também a existência social.
Dentro da vida cotidiana permeada pela sociabilidade do capital tem-se o
trabalho abstrato, distinto do trabalho ontológico, sendo ele caracterizado como uma
atividade social assalariada e alienada pelo capital, em que ocorre a submissão do
homem ao mercado capitalista que reduz a força de trabalho humano a mercadoria.
A redução do trabalho feito pelo capitalismo opera no sentido de determinar que os
trabalhadores vendam sua força de trabalho como mercadoria mas também que
exista um exército industrial de reserva (conforme discutido no capítulo 3), de modo
que muitos encontram-se até sem essa possibilidade de vender sua força de
trabalho e garantir sua sobrevivência.
Essas condições de não acesso ao trabalho ou até de acesso precário com
empregos com rendimento insuficiente e horas insuficientes de trabalho devem ser
considerados na dura realidade vivida por milhares de pessoas antes da chegada da
pandemia, bem como o seu agravamento com a realidade pandêmica, a partir do
acelerado crescimento de taxas de desocupação, desalento e subocupação.
O popularmente conhecido desemprego geralmente é medido por taxas e
chamado pelo IBGE de desocupação, conforme o próprio instituto explica:
O desemprego, de forma simplificada, se refere às pessoas com idade para trabalhar (acima de 14 anos) que não estão trabalhando, mas estão disponíveis e tentam encontrar trabalho. Provavelmente, você já ouviu falar que “segundo o IBGE” a taxa de desemprego no Brasil é “tal”. Esta taxa, que divulgamos com base na PNAD Contínua como taxa de desocupação, é a porcentagem de pessoas na força de trabalho que estão desempregadas. (IBGE, 2021)
O desemprego tem sido acentuado nos últimos anos e possui correlação com
o as medidas de austeridade fiscal acentuadas desde 2016 afetando sobremaneira a
realidade dos trabalhadores e o acesso a um trabalho formal, digno e regulado. Essa
realidade de não asseguração do acesso ao trabalho e a prevalência do
64
desemprego pode ser demonstrada no Gráfico 2 referente à taxa de desocupação.
Taxa de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais
de idade (%) - Brasil (2014-2021).
Nota-se que desde 2014 há um avanço substantivo da taxa de desocupação,
sendo estabilizada entre 2017 e 2019, mas ainda em um patamar elevado,
constituindo quase o dobro do número de desempregados de 2014. Essa realidade
do desemprego na vida da classe trabalhadora brasileira se agrava com a chegada
da pandemia em 2020, sobretudo com o fechamento do comércio, como medida de
restrição à circulação do vírus, como também devido ao impacto que o ajuste fiscal
ocasiona no não investimento do Estado em políticas que minorem esses impactos
na vida da população.
Gráfico 2 - Taxa de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14
anos ou mais de idade (%) - Brasil (2014-2021)
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral. Elaboração própria
No próprio cenário pandêmico há um agravamento da situação tendo em vista
que subiu no primeiro trimestre de 2021 para 14,7%, um aumento de 0,8 ponto
percentual na comparação com o último semestre do ano (13,9%). Segundo o IBGE
(2021a) este aumento corresponde a mais 880 mil pessoas desocupados,
perfazendo um total de 14,8 milhões de brasileiros na fila em busca de um trabalho.
A situação é tão grave que o instituto destaca se tratar da maior taxa e o maior
6.5
8.9
12 11.8 11.611
13.914.7
0
2
4
6
8
10
12
14
16
4º
trimestre
2014
4º
trimestre
2015
4º
trimestre
2016
4º
trimestre
2017
4º
trimestre
2018
4º
trimestre
2019
4º
trimestre
2020
1º
trimestre
2021
Trimestre
Brasil
65
contingente de desocupados de todos os trimestres da série histórica, iniciada em
2012.
Apesar do desemprego se constituir como uma realidade nacional, é
necessário analisar que adquire contornos de particularidades de maior
agravamento de acordo com a região que se insere e também nas regiões com
maior adensamento populacional. No gráfico 3 é possível apreender, além dos altos
índices da desocupação em todas as regiões, o quanto essa situação adquire
contornos mais graves e acentuados em algumas regiões.
Gráfico 2 - Taxa de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade (%) - Regiões brasileiras (2014-2021)
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral. Elaboração própria
Ao realizar uma análise da desocupação a nível regional pode-se perceber o
agravamento dessa situação em todas as regiões desde 2014, bem como uma
estabilidade com taxas elevadas entre 2017-2019. Esse patamar já elevado até
2019 se agrava ainda mais no cenário pandêmico de 2020-2021, destacando-se que
a Região Nordeste chegou a uma taxa de desocupação de 18,6% em 2021,
representando 3,9% pontos percentuais maiores que a média nacional. A região
sudeste com 15,2% da população nessa situação pode ser analisada e
compreendida também a partir da sua característica populacional, por se tratar de
uma região que conta com grandes centros urbanos com significativo adensamento
6.8 8.612.7 11.3 11.7 10.6 12.4 14.88.2
10.4
14.3 13.8 14.3 13.617.2
18.6
6.6
9.6
12.3 12.6 12.1 11.4
14.815.2
3.8
5.7
7.7 7.7 7.36.8
8.28.5
5.3
7.4
10.99.3 8.5 9.3
11.812.5
4º trimestre2014
4º trimestre2015
4º trimestre2016
4º trimestre2017
4º trimestre2018
4º trimestre2019
4º trimestre2020
1º trimestre2021
Trimestre
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste
66
populacional. O Norte com uma taxa de desocupação também maior que a média
nacional e tendo o agravante de que essa região, conforme discutido no tópico
anterior, lida com maiores dificuldades no acesso a moradia e no acesso a serviços
de saneamento. Somando-se a essa realidade uma elevada taxa de desemprego na
sua população ativa, tem-se uma realidade preocupante e complexa.
Enquanto a taxa de desocupação capta a realidade do percentual de
brasileiros que, apesar de não encontrarem emprego, seguem em sua busca, a taxa
de desalento reflete a população que gostaria de trabalhar e estaria disponível,
porém não procuraram trabalho por acharem que não encontrariam. Vários são os
motivos que levam as pessoas de desistirem de procurar trabalho, conforme elenca
o IBGE (2021) entre eles: não encontrar trabalho na localidade, não conseguir
trabalho adequado, não conseguir trabalho por ser considerado muito jovem ou
idoso ou não ter experiência profissional ou qualificação.
Conforme aponta os dados sistematizados no Gráfico 4, pode-se perceber o
aumento na taxa de desalentadas no país, de modo que de 2014 para 2015 a taxa
apresenta um aumento de quase o dobro, sendo esse aumento contínuo ao passar
dos anos, como expressa na taxa de 6% em 2016, chegando em 2019 com
expressivos 7,1% da população brasileira desalentada.
Gráfico 3 - Percentual de pessoas desalentadas na população de 14 anos ou mais de idade fora da força de trabalho (%) - (2014-2021)
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral. Elaboração própria Nota: Os percentuais por ano referem-se ao 4º trimestre de cada ano, salvo em 2021 que devido ao ano ainda estar em andamento só há dados do 1º trimestre.
2.5
4.2
66.7
7.2 7.17.6 7.8
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
Brasil
67
Esse percentual alto é agravado com a chegada da pandemia saltando de
7,1% em 2019 para 7,6% em 2020 e 7,8% no início de 2021. A taxa de desalento no
país também ganha destaque por constituir nesse ano no maior patamar da série
histórica desde 2012, como aponta o IBGE (2021a) ao discorrer que os
desalentados somaram 6 milhões de pessoas em 2021, ficando estáveis em relação
ao último trimestre de 2020, mas permanecem como maior patamar da série.
Além da realidade do desemprego e do desalento como indicadores que
expressam a falta de acesso ao trabalho enquanto meio necessário de
sobrevivência, a subocupação também permeia a realidade do país, ao expressar
uma forma de inserção no trabalho que é insuficiente diante das necessidades das
pessoas. O IBGE (2021) caracteriza a subocupação por insuficiência de horas
trabalhadas como os trabalhadores que tem jornada de trabalho inferior a 40 horas
semanais, mas gostariam de trabalhar mais horas e estar disponíveis para trabalhar.
Gráfico 4 Distribuição percentual das pessoas de 14 anos ou mais
desocupadas ou subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas - (%) Brasil 2014-2021
Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua Trimestral Elaboração própria
O quantitativo de pessoas subocupadas por insuficiência de horas
trabalhadas também apresenta aumento nos últimos anos, sobretudo a partir de
2014, alcançando uma estabilidade em um patamar elevado entre 2017-2019, sendo
agravada na pandemia. Conforme aponta o Gráfico 5, o aumento da subocupação
6.88
10.5 11.1 11.2 10.711.7 12.3
4º trimestre2014
4º trimestre2015
4º trimestre2016
4º trimestre2017
4º trimestre2018
4º trimestre2019
4º trimestre2020
1º trimestre2021
Trimestre
Brasil
68
ao longo dos anos expressa também a necessidade imediata das pessoas por
trabalho como garantia de uma renda que possa viabilizar o atendimento das
necessidades básicas.
A subocupação aumenta diante das formas precárias de inserção que são
impostas diante da necessidade de sobrevivência de milhares de trabalhadores/as,
enquanto para outras milhares de pessoas permanecem no desemprego ou ficaram
desalentadas diante de uma realidade ainda mais perversa, sem a garantia de
renda. Os subocupados somando-se com os desempregados e desalentados sendo
vivenciando mais dificuldades de possui renda, garantia de sobrevivência e
consequentemente alimentação insuficiente durante a pandemia. Nesse contexto
que o debate sobre segurança alimentar figura-se também como central para
mensurar a pobreza e desigualdade no país, sendo trabalhado no próximo item.
4.1.3 Sem comida
Lindo e Triste Brasil! País do futuro. Futuro que insiste em não vir por aqui.
Toquinho
De 2003 a 2014 o Brasil conseguiu caminhar para ser um País que dava
perspectivas de futuro à sua população, se aproximando de uma realidade que
insistia em não vir, como na canção de Toquinho. Políticas de proteção social e de
acesso ao trabalho com aumentos reais no salário mínimo aumentaram o poder de
compra da classe trabalhadora, contribuíram para redução da extrema pobreza e
ampliaram o acesso à políticas sociais como habitação, educação, saúde, benefícios
assistenciais e segurança alimentar. Esse conjunto de medidas adotadas pelos
governos petistas à frente do Executivo nesse marco temporal contribuiu para
reduzir os níveis da pobreza extrema no Brasil, resultando na saída do país do mapa
da fome elaborado pela FAO/ONU23. Assim, reconhecendo os limites da política
econômica e da política social neste período, bem como os limites das políticas
sociais na redução da injustiça social e das desigualdades estruturais, constata-se
que ocorreram mudanças relevantes.
23 Em 2014, o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome. Os dados foram revelados pelo relatório o Estado da Insegurança Alimentar no Mundo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, FIDA, PMA, 2014). Neste relatório o Indicador de Prevalência de Subalimentação, medida empregada pela FAO há 50 anos para dimensionar e acompanhar a fome em nível internacional chegou a nível menor que 5% no Brasil (FAO ONU, 2021).
69
Ressalta-se ainda nesse marco temporal o estabelecimento de um marco
legal assegurando a alimentação como um direto humano básico inscrito entre os
direitos sociais, marco esse sinalizado em 2010 na regulamentação da Lei Orgânica
de Segurança Alimentar e Nutricional - Losan e na instituição da Política Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional - PNSAN, por meio do Decreto nº 7.272, de
25.08.2010, bem como na incorporação da alimentação aos direitos sociais previstos
na Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 64, de 04.02.2010.
No entanto, de 2014 a 2018, aproximadamente 6,3 milhões de brasileiros
voltaram a viver abaixo da linha da pobreza e o número absoluto de pobres chegou
a 23,3 milhões, como salienta Jorge Abrahão (2020) a partir de dados
sistematizados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O agravamento da pobreza na
realidade brasileira coincidente com o avanço das medidas de ajuste fiscal no país
vem impactando as condições de vida dos brasileiros, sobretudo em relação ao
acesso a renda e consequentemente a alimentação saudável e garantia da
segurança alimentar.
Nesse sentido, o avanço da pobreza no país, somado com demais
indicadores como desemprego e desocupação (sinalizados nos itens anteriores), a
partir de 2014, contribuem para degradação das condições de vida e trabalho da
população brasileira, sendo uma das facetas dessa piora de vida a presença da
insegurança alimentar, que em seu grau mais elevado significa a fome. Em um
estudo recente da Rede Brasileira de Pesquisa 24 em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (PENSSAN, 2021) pode-notar conforme a figura seguinte
como à segurança alimentar 25 de 2004-2013 apresentava um crescimento
24 A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), criada em 2012, congrega pesquisadoras/es, estudantes e profissionais de todo o país na forma de uma rede de pesquisa e intercâmbio independente e autônoma em relação a governos, partidos políticos, organismos nacionais e internacionais e interesses privados. Entre os objetivos previstos em seu estatuto, destacam-se o exercício de uma pesquisa cidadã comprometida com a superação da fome e a promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN), e também a contribuição para o debate público de ações e políticas públicas que tenham interação com a SSA (PENSSAN, 2020).
25 Os níveis de Segurança Alimentar (AS)/ Insegurança Alimentar (IA) foram obtidos pela aplicação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) a partir de oito pontos estabelecidos. Desta forma, para a estratificação dos níveis de SA/IA, cada resposta afirmativa do questionário representou 1 ponto, sendo a pontuação do domicílio estimada pelo total de respostas afirmativas. A pontuação variou de 0 a 8 pontos; sendo a SA = 0; IA leve = 1-3 pontos; IA moderada = 4-5; e IA grave = 6-8. Para aqueles domicílios que não responderam algum item da escala, não foi estimado o nível de SA/IA. Para identificar a prevalência de segurança ou insegurança alimentar no domicílio, considerou-se um conjunto de oito questões utilizadas na EBIA (perguntas com respostas diretas: ‘SIM/ NÃO’).
70
significativo ao passo que os graus de insegurança alimentar (leve, moderado ou
grave) apresentavam redução ao longo dos anos.
Figura 4 - Comparação das estimativas de Segurança Alimentar do Inquérito VigiSan e os inquéritos nacionais reanalisados conforme escala de oito itens
Fonte: VIGISAN Inquérito AS/IA – COVID-19, Brasil, 2020.
Depois de uma década com redução dos patamares de insegurança
alimentar, vivencia-se uma realidade diferente no qual a desigualdade, pobreza,
desemprego passam a ser elevados a partir de 2014, corroborando para a redução
de 13,8% na segurança alimentar se comparada a realidade de 2013 com 2018.
Assim, eleva-se a insegurança alimentar leve de 2013 para 2018.
No caso de resposta afirmativa para cada uma das oito perguntas, verificou-se ainda, se a situação descrita ocorreu por conta da pandemia do corona vírus. As questões que determinaram os níveis de SA/ IA (IA Leve, Moderada ou Grave) no contexto da Covid-19, tiveram sempre como referência os últimos três meses. Assim, perguntou-se: “Nos últimos três meses...” e os seguintes 8 itens que correspondem as questões utilizadas na EBIA: 1. Os(as) moradores(as) deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?; 2. Os alimentos acabaram antes que tivessem dinheiro para comprar mais comida?; 3. Os(as) moradores(as) deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?; 4. Os(as) moradores(as) deste domicílio comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham, porque o dinheiro acabou?; 5. Algum(a) morador(a) de 18 anos ou mais de idade deixou de fazer alguma refeição, porque não havia dinheiro para comprar comida?; 6. Algum(a) morador(a) de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, comeu menos do que achou que devia, porque não havia dinheiro para comprar comida?; 7. Algum(a) morador(a) de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar comida?; 8. Algum morador de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida? (PENSSAN, 2021).
71
Esses indicadores já expressavam de antemão as condições de vida
deletérias da classe trabalhadora brasileira, de modo que o direito humano a
alimentação adequada, e, portanto a segurança alimentar, estava sendo negado a
um percentual significativo de brasileiros. Mas essa realidade se agrava ainda mais
com a chegada da pandemia, quando as condições de acesso a trabalho e renda
deterioram ainda mais, com impactos negativos no suprimento das necessidades
alimentares. Conforme discutido no item anterior, a desocupação e o desalento
chegaram a patamares recordes no Brasil, colocando ainda mais em evidência o
quanto os trabalhadores, sobretudo os mais pauperizados, desempregados e sem
acesso a renda, sofrem de modo mais latente os impactos da pandemia e o avanço
da insegurança alimentar.
Ainda na figura 4 pode-se perceber o quanto a segurança alimentar que já
estava em uma tendência de redução significativa em 2018 comparado aos anos
anteriores, apresenta uma queda expressiva de 18,5% em 2020 (de 63,3% em 2018
para 44,8% em 2020) ao passo que a insegurança alimentar leve, moderada e grave
continuam crescendo em ritmo mais acelerado.
Nesse processo de elevação da insegurança alimentar, destacam-se dois
elementos importantes: a) Estando apenas 44,8% brasileiros em segurança
alimentar significa que mais da metade da população brasileira, encontra-se em
situação de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave; e b) O aumento
expressivo da insegurança alimentar grave que significa em termos gerais a volta da
fome no Brasil, fazendo o país retroceder a uma realidade que havia sido já
superada, de modo que o índice de 9% da população em insegurança alimentar
grave está no mesmo patamar de 2004, mais de 17 anos atrás, exatamente quando
o país tinha iniciado um conjunto de medidas para o combate da fome e redução da
pobreza extrema.
Tudo isso significa que, de acordo a Rede Penssan (2021), do total de 211,7
milhões de brasileiros/as, 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança
Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e
19 milhões enfrentavam a fome cotidiana. Essa realidade já bastante impactante a
nível nacional e possui especificidades e contornos mais graves a partir das
desigualdades regionais, conforme demonstra a distribuição proporcional dos
domicílios por nível de Segurança/Insegurança Alimentar nas regiões brasileiras na
Figura 5.
72
Nos dados é possível perceber que a região Centro-Oeste encontra-se no
mesmo patamar que a realidade nacional bem como as regiões Sul e Sudeste que
apresentam inclusive um percentual de segurança alimentar superior a média
nacional. Destaca-se o agravamento dessa situação nas regiões Norte e Nordeste
visto que o Nordeste possui 71,9% da sua população em insegurança alimentar
(somando a leve, moderada e grave) e o Norte possui 63,1%.
Figura 5 - Distribuição proporcional dos domicílios por nível de Segurança/Insegurança Alimentar no Brasil e macrorregiões
Fonte: VigiSAN Inquérito SA/IA – Covid-19, Brasil, 2020.
O próprio estudo da Rede Penssan (2021) chama atenção para essas
disparidades regionais ao destacar que:
O Norte e o Nordeste concentram domicílios com menor proporção de SA e a maior de IA moderada e grave. A SA foi inferior a 40% no Norte e a 30% no Nordeste; em contrapartida, a IA grave foi de 18,1% na região Norte, e 13,8% no Nordeste. Ou seja, comparando às proporções de IA grave das regiões Sul/ Sudeste, as regiões Norte e Nordeste tiveram três e duas vezes mais domicílios expostos à forma mais grave da IA, respectivamente. (PENSSAN, 2021, p.37; grifos próprios)
As desigualdades regionais são determinantes nesse processo de
agravamento da insegurança alimentar e podem somar-se com outros fatores desse
processo como o desemprego. A Rede Penssan (2021) destaca que, considerando
o perfil da pessoa referência da família, a IA grave foi seis vezes maior quando esta
pessoa estava desempregada, e quatro vezes maior entre aquelas com trabalho
73
informal, quando comparadas com as que contavam com algum tipo de trabalho
formal. Avaliando o sexo, a raça/cor da pele e a escolaridade da referência do
domicílio, a IA grave das famílias foi maior quando esta pessoa era do sexo
feminino, ou de raça/cor da pele autodeclarada preta/parda ou com menor
escolaridade.
Nesse sentido, destaca-se a determinação direta que envolve o acesso ao
trabalho, a garantia de renda e consequentemente de alimentação, tendo assim o
aumento do desemprego no Brasil um impacto profundo na elevação dos índices de
insegurança alimentar. A pesquisa (PENSSAN, 2021) revelou que a perda de
emprego de algum (a) morador (a) e o endividamento da família são as duas
condições que mais impactaram o acesso aos alimentos no período pesquisado.
Nas duas situações, a IA grave atingiu seu patamar mais alto de 19,8%, dados que
constam na figura 6 sobre a distribuição da Segurança/Insegurança Alimentar de
acordo com a situação de desemprego e perda de renda nas famílias:
Figura 6 - Distribuição percentual dos níveis de Segurança/Insegurança Alimentar de acordo com a situação de desemprego e perda de renda nas
famílias
Fonte: VigiSAN Inquérito SA/IA – Covid-19, Brasil, 2020.
Nessa situação de perda de emprego, diminuição do rendimento, aumento do
endividamento das famílias e aumento da insegurança alimentar, torna-se central a
discussão sobre a necessidade (via atuação do Estado) de um auxílio emergencial
capaz de suprir as necessidades básicas da população, sobretudo a mais
empobrecida. A Figura 7 demonstra essa importante relação entre o auxílio
emergencial (fornecido pelo Governo Federal para trabalhadores/as
74
desempregados, trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa Família) e os
níveis de insegurança alimentar vivenciados pela população.
Percebe-se uma elevada proporção de IA moderada/grave nos domicílios que
as pessoas solicitaram e receberam parcelas do auxílio emergencial. Essa
proporção foi três vezes superior à proporção média nacional e 2,8 vezes à da IA
moderada/grave daqueles que não solicitaram o auxílio. Essa tendência se repetiu
entre moradores de área urbana e em menor grau em domicílios rurais. Cabe
salientar ainda que no período em que a pesquisa foi realizada, o auxílio
emergencial estava em seu quarto mês de redução à metade do valor inicial, sendo
de R$ 300,00 para a maioria e R$ 600,00 para as mães solo.
Figura 7 - Relação da presença do auxílio emergencial e os níveis de
Segurança/Insegurança Alimentar no Brasil (%)
Fonte: VigiSAN Inquérito SA/IA – Covid-19, Brasil, 2020.
Nesse contexto de avanço da insegurança alimentar, da pobreza,
desigualdade e do desemprego ressalta-se a necessária atuação do estado para
enfrentamento da desigualdade e a garantia de proteção sanitária e social. No
75
entanto, em virtude da ofensiva neoliberal e do avanço das medidas de austeridade
como o Estado pode garantir o aumento no financiamento das políticas sociais
(sobretudo o fortalecimento da assistência social e o auxílio emergencial para a
população mais empobrecida), o aumento nos investimentos da saúde com compra
de vacinas bem como garantia dos direitos e proteção social necessária? Como se
configura a prioridade dos investimentos públicos nesse momento? Perguntas que
se interligam com a busca do estudo em desvelar os limites impostos pelo ajuste
fiscal para a intervenção do Estado nas ações emergenciais sanitárias e de auxílio
financeiro à população mais empobrecida durante a pandemia, elementos que serão
abordados no tópico seguinte.
4.2 O ajuste fiscal puxando as “calças curtas” do Estado: implicações no
enfrentamento à pandemia de COVID-19 no Brasil (2020-2021)
A análise dos indicadores de pobreza de desigualdade realizada relativos à
realidade brasileira antes da chegada da pandemia e durante o seu decorrer no país
mostra que ocorreu avanço da insegurança alimentar, da pobreza e do desemprego,
ressaltando-se a necessária atuação do Estado para proteção sanitária e social. Mas
o Estado encontrava-se de calças curtas diante das medidas neoliberais de
austeridade fiscal.
Tal situação explicitou-se com a análise o orçamento da União a partir do ano
de 2019 que já indicava um país com baixa imunidade e humanidade orçamentárias,
considerando a diminuição dos investimentos sociais nos últimos anos em
decorrência da crise econômica e das políticas de austeridade. E se antes da
pandemia a realidade dos investimentos públicos já se encontrava defasada, é
preciso analisar também o orçamento durante a crise sanitária tendo em vista que
“Se a profunda perda de direitos e o aumento das desigualdades já eram uma
realidade, os dados aqui analisados demonstram como esta situação alcançou outro
patamar em 2020” (INESC, 2020, p.10).
Neste item será realizada uma análise do Orçamento Geral da União a partir
dos documentos produzidos pelo INESC, referentes aos exercícios de 2020 e 2021,
com o objetivo de analisar as ações realizadas, as prioridades no gasto público e
como o ajuste fiscal limitou essa atuação estatal.
76
Ao introduzir a discussão sobre o balanço do orçamento de 2020, o INESC
(2021a) destaca que os gastos públicos têm sido limitados por três regras fiscais: a)
O Teto de Gastos (EC 95/2016) que limita as despesas da União à reposição da
inflação por duas décadas, começando em 2016, tendo poucas exceções ao teto
como o pagamento de juros da dívida pública e o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb); b) A Meta de Resultado Primário
que é definida nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fixa anualmente limites
para o déficit primário da União (relação entre as receitas e as despesas
governamentais, que desde 2014 está deficitária) e a cada dois meses o governo
precisa readequar seus gastos à arrecadação de impostos, taxas e contribuições; e
c) A Regra de Ouro, em que a União só pode se endividar para pagar despesas de
capital, não despesas de consumo e de custeio. Esta última tem o objetivo de evitar
que governos se endividem para financiar despesas correntes (salários de
servidores públicos, benefícios previdenciários e assistenciais, funcionamento e
manutenção da administração pública).
Essas regras fiscais expressam o quanto o ajuste impacta na própria
estruturação do orçamento público, que no contexto pandêmico torna-se ainda mais
complexo e impactante, tendo em vista que diante da crise sanitária, econômica e
social, torna-se ainda mais necessário o aumento nos investimentos sociais do
Estado. O ajuste então segue de modo estrutural no orçamento público enquanto
uma amarra que teve necessitou ser revista parcialmente para dar mais margem de
atuação ao Estado:
Em decorrência dos expressivos impactos sanitários, econômicos e sociais da pandemia do novo coronavírus, essas regras foram suspensas para liberar o orçamento de suas amarras. Isso foi possível, principalmente, pelo Decreto de Calamidade Pública, aprovado em março, que permitiu ao governo não cumprir a meta de resultado primário, entre outras liberdades, como a facilitação da ação do Banco Central. A regra de ouro, por sua vez, foi contornada por intermédio da Emenda Constitucional nº 106, mais conhecida por “orçamento de guerra”, aprovada em maio. A emenda dispensou o Poder Executivo de pedir ao Congresso Nacional autorização para realizar gastos correntes. Por fim, o teto de gastos não precisou ser suspenso, pois a medida não se aplica aos créditos extraordinários, autorizações de gasto que podem ser acionadas em momentos de crise. (INESC, 2021a, p. 20. Grifos nossos)
Esses importantes mecanismos que neutralizaram ou diminuíram os impactos
do ajuste fiscal sob o orçamento público, possibilitaram ampliar o investimento
orçamentário e conforme aponta o INESC (2021a) foi possível, a partir de 25
77
Medidas Provisórias (MPs), autorizar R$ 604,7 bilhões de reais de gastos diretos
para o enfrentamento da pandemia. Desse montante, R$ 524 bilhões foram de fato
pagos, ficando a execução orçamentária em 86,7%, o que significa em termos gerais
que ficou um saldo de R$ 80,7 bilhões não executados, um valor considerável e
surpreendente, considerando-se as necessidades emergenciais para enfrentar as
repercussões e consequências da pandemia.
Essa parcela restante a ser executada possui conexão com a própria postura
do governo federal em relação à pandemia, atuando de modo moroso na execução
dos gastos em medidas que de fato enfrentem a pandemia. O próprio INESC
(2021a) realizou um levantamento apontando que após quatro meses de declaração
de emergência no país, apenas 40,1% do valor planejado no orçamento federal tinha
sido usado no enfrentamento à pandemia26, conforme a Figura 8. .
Figura 8 - Principais gastos diretos do Governo Federal para o enfrentamento da Covid-19 (valores em bilhões de reais constantes corrigidos pelo IPCA de
dezembro de 2020)
Fonte: Tesouro nacional, dados extraídos em fevereiro de 2021. Elaboração: INESC (2021a).
26 Essas ações constituem apenas os gastos diretos (ou orçamentários) do governo, não apresentando os gastos indiretos (ou benefícios tributários), a suspensão do pagamento de dívidas por estados e municípios ou ainda o orçamento das empresas públicas, como o BNDES (INESC, 2020).
78
Além de ter conhecimento do percentual executado, é necessário analisar
como se deu essa execução, ou seja, em que foi gasto o orçamento para enfrentar a
pandemia? O INESC apresenta a partir de um compilado os principais gastos diretos
do Governo Federal para o enfrentamento da COVID-19Esses investimentos podem
ser organizados em eixos principais a partir da sistematização do INESC (2021a),
sendo listados e analisados a seguir.
a) Auxílio a trabalhadores formais e informais
Pode-se começar pelos informais através do auxílio emergencial (programa
de transferência de renda para trabalhadores informais, autônomos,
microempreendedores individuais e desempregados) foi destinado mais da metade
dos recursos para o enfrentamento da pandemia (53,2%). Diante do avanço do
desemprego e insegurança alimentar no país o auxílio permitiu a cerca de 66
milhões de brasileiros a garantia de uma renda mesmo que limitada. Apesar dos
critérios e redução no valor das parcelas, conforme já explicado, o programa
apresentou sobras significativas e elevadas de recursos em 2020: 28,9 bilhões
autorizados não gastos. Assim, em um país com mais da metade da população em
insegurança alimentar (conforme análise no item anterior) 28,9 bilhões não foram
utilizados para as pessoas que necessitavam, sendo inclusive esse percentual a
representação de 35% dos R$ 80,7 bilhões que não foram executados.
A importância do auxílio emergencial é expressa na dimensão econômica e
social, visto que como aponta o INESC (2021a) a queda do PIB brasileiro seria da
ordem de 8,4% a 14,8% se o Auxílio Emergencial não tivesse sido adotado
(segundo estimativas da FEA-USP), ou seja, pelo menos o dobro da queda
observada. Somado a isso, os repasses retiraram temporariamente 72% da extrema
pobreza no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Economia – ainda que,
pelos estudos da ONU, o número seria de 32%.
Em relação aos trabalhadores formais, a principal ação consistiu na
realização do Programa de Manutenção do Emprego e da Renda. O governo
Bolsonaro publicou, em abril, uma Medida Provisória que permitiu reduzir a jornada
de trabalho e os salários para empregados com carteira assinada no setor privado.
Com o propósito de aliviar a situação das empresas e incentivá-las a não demitir
seus funcionários o programa possuía uma finalidade coerente, no entanto apenas
79
65% dos seus recursos autorizados foram pagos. Em um país marcado pelo avanço
do desemprego e com queda na população ocupada entre fevereiro e julho de 2020
- passando de 93 milhões para pouco mais de 80 milhões de acordo com estudo da
FGV citada pelo INESC (2021a)-, ter um programa com propósito com manutenção
de empregos é central, mas com execução de apenas 65% deixa de atingir seus
objetivos.
b) Apoio a empresas
Para as empresas, de acordo com a Consultoria da Câmara dos Deputados,
as ações indiretas do Estado na pandemia em 2020, somam R$ 140 bilhões, com
medidas adotadas de aumento do capital de giro, a manutenção de empregos,
auxílios do BNDES dentre outras. Em relação aos gastos orçamentários diretos,
duas ações são centrais: o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e
Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) e o Programa Emergencial de Acesso a
Crédito (Peac). No total, essas duas ações (unidas na política C da figura 8)
forneceram R$ 58,1 bilhões para a iniciativa privada – R$ 38,1 bilhões e R$ 20
bilhões, respectivamente.
O Pronampe teve financiamento com recursos do Fundo de Garantia de
Operações (FGO) - um fundo privado administrado pelo Banco do Brasil que garante
operações de crédito a micro, pequenas e médias empresas. A União, a partir do
Projeto de Lei nº 5029/2020 aumentou a sua participação no Fundo e os créditos
foram utilizados livremente pelas empresas e não possuíam condicionalidades,
como a manutenção de funcionários, o que limita seus impactos sociais positivos.
No final do ano, o Pronampe foi transformado em um programa permanente. Já o
PEAC funcionou de maneira similar ao Pronampe, porém o foco era em pequenas e
médias empresas. O programa teve uma segunda versão, o Peac Maquininhas
(ação F da tabela 2), em que as empresas puderam contratar financiamentos que
tinham como garantia de receitas futuras das vendas realizadas com máquinas de
cartão de crédito. Esse programa começou a ser implementado de fato só em
outubro e logo teve baixa execução em 2020, com apenas metade dos recursos
autorizados gastos.
É possível perceber a partir das medidas adotadas para apoio às empresas
que os dois programas segundo o INESC (2021a) em pouco ou nada contribuíram
para minimizar a queda do PIB e o aumento do desemprego no primeiro semestre.
80
No entanto, esses programas obtiveram mais sucesso no segundo semestre e
chegaram a 100% de execução orçamentária no final do ano. Além de não
contribuírem para diminuição do desemprego e contarem com execução
orçamentária próxima de 100%, é notável e expressivo o contraste existente entre
as políticas para empregadores e para empregados: analisando-se apenas os
gastos diretos listados aqui, enquanto as empresas receberam aproximadamente R$
63 bilhões, os trabalhadores formais receberam, através do Benefício Emergencial
de Manutenção do Emprego e da Renda, valores próximos à metade dessa quantia,
R$ 33 bilhões.
c) Apoio a Estados e Municípios
O apoio repassado pela União aos entes municipal e estadual ocorreu
principalmente por meio de duas ações: a compensação pela queda na
arrecadação, com a manutenção dos valores repassados pelo Fundo de
Participação dos Estados (FPE) e pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM),
e os recursos advindos do Programa Federativo de Enfrentamento a Covid-19.
Todas essas ações totalizaram R$ 79,19 bilhões. O Programa Enfrentamento a
Covid-19 consistiu no repasse de R$ 60 bilhões para estados e municípios, sendo
desse total R$ 10 bilhões exclusivamente para ações de saúde e assistência social e
R$ 50 bilhões para uso livre. Além desse repasse, outros R$ 60 bilhões foram
concedidos por meio da suspensão do pagamento de dívidas dos estados e
municípios, segundo informações do relatório do Senado Federal citado pelo INESC
(2021a).
d) Investimentos em Saúde
Os investimentos totalizaram R$ 42,7 bilhões (ação E da tabela 2), para além
dos R$ 10 bilhões distribuídos no âmbito do Programa Federativo de Enfrentamento
ao Covid-19. Apesar das destinações orçamentárias, destacam-se atrasos muito
grandes na execução dos recursos aprovados, que, associados a uma gestão
ministerial precária, levaram a situações de colapso do Sistema Único de Saúde em
alguns estados do país. O atraso na liberação de recursos foi observado em julho de
2020 por relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), ao apontar que o
Ministério da Saúde havia gasto apenas 29% da verba prevista para combater a
pandemia desde março. Em um Ministério com seguidas trocas de comando,
81
instabilidade e com políticas inconsistentes de enfrentamento da crise, esse
resultado era esperado, mas não menos preocupante. Apesar da instabilidade a
nível federal, a pressão do TCU contribuiu para agilizar a execução dos gastos. Por
fim, o presidente Bolsonaro assinou, em dezembro, uma medida provisória que
liberou R$ 20 bilhões para a compra de vacinas, porém, o gasto só será executado
em 2021.
Dessa forma, o orçamento de 2020 apesar de sair parcialmente das amarras
do ajuste fiscal e conseguir avançar no provimento de auxílios e programas para
enfrentamento da pandemia e tentativa de garantia de renda aos trabalhadores
informais e manutenção dos empregos formais, foi ainda insuficiente tendo em vista
que 28,9 bilhões do auxílio emergencial não foram utilizados e a execução de
apenas 65% do Programa de Manutenção do Emprego e da Renda. Em
contrapartida, os programas voltados para apoio às empresas tiveram execução de
quase 100% e não tiveram impacto real na redução do desemprego e manutenção
dos empregos formais.
O suporte aos estados e municípios consistiu em importante medida tendo em
vista que em nível federal ocorria instabilidade nas trocas sucessivas de ministros e
ausência de condução coordenada e guiada para enfrentar a disseminação da
COVID e muitos/as governadores/as e prefeitos/as tiveram que tomar à frente da
condução do combate a pandemia. Nessa condução, ao terem recursos financeiros
transferidos da União, conseguiam seguir com as medidas eficazes de combate a
pandemia, apesar das reiteradas tentativas presidenciais de contestar as medidas
dos gestores locais. Porém, em relação aos investimentos na saúde, destaca-se o
atraso na liberação de recursos em um contexto pandêmico, que demonstra a
gravidade da situação vivenciada no país.
Assim, apesar das amarras da austeridade fiscal estarem contidas
parcialmente, elas continuam “puxando as calças curtas do Estado”, de modo que o
ajuste é parcialmente amenizado mas os investimentos sociais do Estado ainda
continuam limitados, com execução parcial ou com atrasos na liberação e não fazem
jus a necessidade de proteção da população.
E mesmo com essa atuação limitada, o que entrou em voga para 2021 foi o
retorno do discurso da austeridade fiscal “como se precisássemos “pagar a conta da
pandemia” com um corte de gastos ainda mais profundo. Beiramos, assim, o
82
enfrentamento de reformas econômicas que só garantem a destruição de direitos,
mesmo que a crise sanitária esteja longe de se esgotar” (INESC, 2021a, p.11).
Essa projeção tornou-se realidade visto que os arranjos fiscais realizados em
2020 para facilitar a liberação de recursos e amenizar os impactos da austeridade no
orçamento, como a declaração de Estado de Calamidade e a criação do Orçamento
de Guerra, tinham prazo final em 2020 e não foram postergados. Soma-se a não
prorrogação dos arranjos, a aprovação tardia da LOA, que ao invés de ser discutida
e votada até dezembro de 2020 só foi sancionada em abril de 2021, represando boa
parte do orçamento por quatro meses, afetando o funcionamento das instituições
públicas e a execução das políticas sociais.
Na LOA, expressam-se também os cortes e bloqueios que somam, segundo
análise do INESC, quase R$30 bilhões. Nesse corte, o Ministério da Saúde perdeu
R$ 2,2 bilhões e o orçamento do Ministério da Educação diminuiu em R$ 3,9 bilhões
(INESC, 2021). Dessa forma, pode-se perceber tanto no planejamento do orçamento
quanto na sua estruturação, o quanto as medidas de ajuste fiscal impactam e
limitam a atuação estatal de modo que além da meta de “resultado primário” e da
“regra de ouro” que seguem em vigor, o “teto de gastos” também incide de forma
central no orçamento, de modo que:
[...] a LOA aprovada não previu recursos para o enfrentamento das crises – econômica, social e sanitária – devido essencialmente, ao Teto de Gastos, que limita as despesas orçamentárias aos valores estabelecidos em 2016 corrigidos apenas pela inflação. A incapacidade das nossas regras fiscais em se adaptar a contextos emergenciais não foi questionada pelo Congresso Nacional, mesmo em um cenário de crise aguda (INESC, 2021, p.9, 2021).
Com essas limitações orçamentárias os recursos para o enfrentamento da
pandemia ficaram dependendo do Executivo que pode executar gastos
extraorçamentários através de medidas provisórias, o que também ocorreu em 2020,
reduzindo a transparência do orçamento público. Um exemplo da falta de
transparência é a liberação de emendas parlamentares mantidas em 2021 no valor
de R$35,6 bilhões (destas R$18,5 bilhões foram direcionadas a emendas de
Relator-Geral), apesar dos cortes, bloqueios e da não previsão de recursos
suficientes para o enfrentamento das crises, na LOA. A execução dessas emendas
em 2020 foi questionada no que ficou conhecido como Orçamento Secreto, visto que
apenas a equipe do Presidente Bolsonaro e os parlamentares envolvidos sabem
83
quanto cada deputado ou senador está recebendo, pois é o Planalto quem libera o
orçamento e a execução financeira das emendas.
Ao mesmo tempo em que o orçamento de 2021 prioriza emendas
parlamentares e diminui o investimento nas políticas sociais, o INESC (2021)
destaca que o Banco Central eleva a taxa básica de juros, Selic, em 0,75%
passando de 3,5% para 4,25% ao ano. Essa elevação pode significar um aumento
de R$100 bilhões de reais da dívida pública brasileira em 2021, tendo em vista que
os títulos do Tesouro estão atrelados à Selic.
Assim, o discurso da responsabilidade fiscal e da necessidade de austeridade
utilizado para justificar a falta de recursos para o enfrentamento da pandemia em
2021 e para investimentos com políticas sociais como um todo, não se aplica
quando as verbas públicas se destinam ao pagamento de juros da dívida pública ou
para a liberação de emendas parlamentares acordadas entre o Planalto e o
Congresso Nacional. Essa configuração do orçamento público resulta em 2021 num
orçamento menor comparado ao ano anterior, mesmo com o país vivendo a pior
fase da pandemia e o número de mortes crescendo expressivamente:
Figura 9 - Recursos para a pandemia não acompanham óbitos em 2021
Fonte: Siga Brasil e Ministério da Saúde. Elaboração: Equipe INESC (2021).
84
Os dados contidos no gráfico sinalizam que enquanto o número de óbitos por
Covid-19 aumentou expressivamente de um ano para o outro (tendo no primeiro
semestre de 2020 um total de 60 mil óbitos e no mesmo período de 2021 o montante
de 306 mil vítimas da Covid-19) os recursos executados para enfrentamento da
pandemia caíram drasticamente. Essa queda de recursos torna-se melhor
compreendida a partir da Tabela sobre os gastos federais para o enfrentamento a
pandemia organizada pelo INESC (2021) ao comparar o orçamento do 1º semestre
de 2020 com o do 1º semestre de 2021.
Na comparação entre os orçamentos pode-se destacar que para o primeiro
semestre de 2020, a União destinou quase R$ 400 bilhões de reais para enfrentar os
efeitos da crise sanitária e social através da iniciativa de auxílios e programas
(constantes na tabela e analisadas no orçamento de 2020) enquanto em 2021 esse
valor para enfrentamento da pandemia no primeiro semestre do ano é da ordem de
R$ 98 bilhões.
Figura 10 - Gastos federais para o enfrentamento da pandemia 1º semestre de 2020 x 1º semestre de 2021 (valores em bilhões de reais constantes corrigidos
pelo IPCA de maio de 2021)
Fonte: Siga Brasil e Ministério da Saúde. Elaboração: Equipe INESC (2021)
85
Verifica-se, então, que o orçamento do primeiro semestre de 2021 é quatro
vezes menor que o de 2020, mesmo sendo um ano com agravamento da pandemia
e aprofundamento das desigualdades no país, conforme sinalizado na análise dos
indicadores do item anterior com aumento do desemprego e da insegurança
alimentar. Essa redução drástico no orçamento se refletiu na queda de recursos dos
programas que vinham sendo implementados em 2020, como o Programa de
Manutenção do Emprego e Renda e o Pronampe, ambos que tiveram mais da
metade dos seus recursos diminuídos em comparação com o ano anterior. Destaca-
se também a redução nos recursos destinados à saúde, menores do que o do ano
passado, fazendo-se a ressalva de que a compra de vacinas foi o maior gasto de
2021, o que significou menos recursos destinados para outras ações da saúde,
como os leitos hospitalares e o atendimento na atenção básica. E o importante apoio
aos estados e municípios realizado, principalmente a partir do Programa Federativo
de Enfrentamento ao Covid-19, em 2020 não foi retomado, de forma que muitos
estados e municípios estão solicitando recursos federais para o enfrentamento à
crise. Essa realidade demonstra uma situação complexa e preocupante na qual
segundo estimativas do Senado Federal citadas pelo INESC (2021), a União reduziu
90,5% do valor médio das transferências aos entes subnacionais para o combate a
pandemia em 2021.
Por último, destaca-se a situação do orçamento de 2021 para o auxílio
emergencial, tendo em vista que dos cerca de R$100 bilhões liberados para o
enfrentamento da Covid-19 neste ano, 44% destinam-se à execução do Auxílio.
Figura 11 - Auxílio emergencial: valor da parcela e número de beneficiários por etapa
Fonte: Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação – SAGI VIS DATA. Elaboração: Equipe
INESC (2021).
86
A Figura 11 mostra que o valor destinado ao auxílio emergencial é três vezes
menor do que foi gasto com o programa no primeiro semestre ano passado.
Lembrando que o auxílio tinha sido executado até dezembro de 2020 e desde
setembro destinava apenas n metade do valor do início do programa, tendo sido
retomado em abril de 2021, com parcelas ainda menores, no valor de R$150,00 e
abarcando menos beneficiários, conforme consta na figura seguinte:
A partir dos dados é possível evidenciar a queda do número de beneficiários,
bem como a redução do valor do auxílio, sendo que entre março e julho de 2020,
havia quase 70 bilhões de beneficiários recebendo R$600,00 e de abril a julho de
2021, com redução significativa da quantidade de pessoas beneficiárias que
receberam uma parcela quatro vezes menor.
Dessa forma, concorda-se com a análise do INESC (2021) de que o cenário
no primeiro semestre de 2021 apresenta uma combinação do aumento da crise
sanitária com a insuficiência de ações e investimentos federais para enfrentar a crise
sanitária e social do país, desembocando no agravamento da pobreza, do
desemprego e das desigualdades sociais.
Diante desse cenário de cortes de investimentos sociais e desestruturação
das ações iniciadas em 2020 ficam explícitos os impactos reais do ajuste fiscal e da
austeridade nas ações desenvolvidas pelo país contra a pandemia de Covid-19 e
contra o vírus da desigualdade que se exacerbou no país, reduzindo
significativamente a capacidade do Estado de garantia dos direitos humanos da
população brasileira.
87
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com a discussão desenvolvida ao longo do presente estudo, é
perceptível o quanto o aprofundamento das medidas de ajuste fiscal estava
ocorrendo na realidade pré-pandêmica e como essas medidas incidiram fortemente
no corte dos investimentos públicos, afetando o financiamento daquelas políticas
sociais que a população tanto necessita para acessar seus direitos básicos de
cidadania. As medidas de ajuste fiscal seguiam penalizando fortemente a área
social, resultando na violação de direitos de grande parte da população brasileira,
marcando os últimos anos (dada a radicalidade neoliberal) com sucessivos e
significativos cortes orçamentários, principalmente quando se analisa os
investimentos que não são obrigatórios ao governo, e que são os mais afetados
pelas metas fiscais, as chamadas despesas discricionárias.
Verificou-se, inclusive, com base nos dados sintetizados, que as áreas de
educação, trabalho e cultura perderam cerca de 50% de seus recursos
discricionários (INESC, 2020) quando comparamos 2019 com 2014, o ano anterior
ao início da austeridade mais incisiva. Além dessas áreas, no mesmo período,
políticas sociais essenciais sofreram cortes significativos, tais como a Assistência
Social com redução orçamentária de 45,39%, habitação com 69,33% a menos de
recursos, Previdência Social com 26,16% e saneamento com redução de 49,65%
(INESC, 2020).
Percebe-se assim que após mais um ano de aprofundamento de ajuste fiscal
estrutural, o Brasil encontrava-se no início de 2020 com imunidade e humanidade
orçamentárias baixas. Tal realidade é mais grave por se tratar de um contexto pré-
pandêmico, tendo a austeridade fiscal e a manutenção do teto de gastos como
instrumentos que potencializavam a penalização dos mais pobres da sociedade. A
realidade já evidenciava as limitações impostas à atuação do Estado no
financiamento das políticas sociais e, por conseguinte, no não enfrentamento à
pobreza e a desigualdade.
Justamente nesse contexto que se inseriu a pergunta central da pesquisa
buscando apreender as implicações do ajuste fiscal para o agravamento das
condições de pobreza e desigualdade social na pandemia da COVID-19 no Brasil
(2020-2021). Os indicadores escolhidos para expressar as condições de pobreza e
desigualdade no país antes e durante a realidade pandêmica foram os de não
88
acesso a moradia adequada, os relativos ao desemprego da força de trabalho e de
insegurança alimentar.
Em relação à problemática de restrição do acesso à moradia, constatou-se
que 13,1% da população brasileira convivia com alguma inadequação na moradia
em 2017, e ao passar dos anos essa situação não se alterou de modo substantivo,
continuando nos anos posteriores em patamar muito próximo, o que denota o
arrefecimento nos investimentos em infraestrutrura para corrigir esse déficit social
histórico. Da mesma forma, a ausência de acesso a saneamento básico acomete
também milhões de domicílios brasileiros, embora no Norte e Nordeste do Brasil, os
percentuais de não acesso aos serviços de saneamento básico expressam a
reprodução das desigualdades regionais e de concentração relativa da extrema
pobreza naquelas regiões.
Essa situação adquire maior importância diante do cenário pandêmico e a
necessidade de acesso à água tratada para higienização pessoal e acesso a
condições básicas para conseguir cumprir o distanciamento social e não ser tão
exposto à contaminação, de modo que a falta dessas condições básicas implica em
aumentos nas taxas de adoecimento e de letalidade, sobretudo para as pessoas
mais pobres. Apesar de não se encontrar até o momento dados sistematizados e
mais detalhados de agravamento dessa situação em 2020 e 2021, pode-se apontar
que houve um aumento de 79% no número de ações com pedido de despejo na
cidade de São Paulo conforme destaca Bechara (2021) e a nível nacional o número
de famílias despejadas cresceu 340% durante a pandemia, conforme indicativo do
G1 (2021).
Quanto ao trabalho, nota-se que desde 2014 há um avanço substantivo da
taxa de desocupação, sendo estabilizada entre 2017 e 2019, em um patamar
bastante elevado, constituindo quase o dobro do número de desempregados de
2014. Essa realidade do desemprego na vida da classe trabalhadora brasileira se
agravou com a chegada da pandemia em 2020, sobretudo com o fechamento do
comércio e de serviços, como medida de restrição à circulação do vírus, bem como
devido ao impacto que o ajuste fiscal e a continuidade das políticas neoliberais
ocasionam na redução de capacidades de investimento do Estado em políticas que
minorem esses impactos na vida da população.
No próprio cenário pandêmico ocorreu agravamento da situação tendo em
vista que a taxa de desocupação subiu no primeiro trimestre de 2021 para 14,7%,
89
um aumento de 0,8 ponto percentual na comparação com o último semestre do ano
de 2020 (13,9%). Segundo o IBGE (2021a) este aumento corresponde a mais 880
mil pessoas desocupados, perfazendo um total de 14,8 milhões de brasileiros na fila
em busca de um trabalho. A situação é tão grave que o Instituto destaca se tratar da
maior taxa e do maior contingente de desocupados de todos os trimestres da série
histórica, iniciada em 2012. A taxa de desalento no país também ganhou destaque
por constituir nesse ano no maior patamar da série histórica desde 2012, como
aponta o IBGE (2021a) ao discorrer que os desalentados somaram 6 milhões de
pessoas em 2021.
Também ocorreu elevação da insegurança alimentar, destacando-se dois
elementos importantes. No ano de 2021, 44,8% dos brasileiros encontram-se em
segurança alimentar significando que mais da metade da população brasileira,
encontra-se em situação de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave.
Da mesma forma, verifica-se o aumento expressivo da insegurança alimentar grave
que significa em termos gerais a volta da fome no Brasil, fazendo o país retroceder a
uma realidade que havia sido já superada, de modo que o índice de 9% da
população em insegurança alimentar grave.
Ou seja, este é o mesmo patamar de 2004, mais de 17 anos atrás,
exatamente quando o país tinha iniciado um conjunto de medidas para o combate da
fome e redução da pobreza extrema. Destaca-se o agravamento dessa situação nas
regiões Norte e Nordeste visto que o Nordeste possui 71,9% da sua população em
insegurança alimentar (somando a leve, moderada e grave) e o Norte 63,1%. Esses
índices demonstram como a classe trabalhadora mais empobrecida diante do
desespero da realidade da fome dirigia-se as longas filas da Caixa Econômica
Federal para recebimento das parcelas do auxílio emergencial e com isso
encontrava-se mais exposta ainda a contaminação e adoecimento.
A análise dos indicadores de pobreza e de desigualdade aqui realizada antes
da chegada da pandemia e durante o seu decorrer no país, mostra que ocorreram
agravamentos nos indicadores da insegurança alimentar, da pobreza e do
desemprego, ressaltando-se a necessária atuação do Estado para proteção sanitária
e social. Mas, conforme analisado, o Estado encontrava-se de “calças curtas” diante
das medidas neoliberais de austeridade fiscal.
Mesmo com a flexibilização de algumas medidas estruturais do ajuste fiscal
que vinham sendo adotadas nos últimos anos, no primeiro semestre de 2020 a
90
União conseguiu destinar quase R$ 400 bilhões de reais para enfrentar os efeitos da
crise sanitária e social através da iniciativa de auxílios e programas (constantes na
tabela e analisadas no orçamento de 2020), enquanto que, em 2021, esse valor para
enfrentamento da pandemia no primeiro semestre do ano é de apenas R$ 98
bilhões. Ou seja, o orçamento do primeiro semestre de 2021 é pelo menos a metade
do que o que foi destinado por semestre em 2020, mesmo sendo um ano com
agravamento da pandemia e aprofundamento das desigualdades no país, conforme
sinalizado na análise dos indicadores com aumento do desemprego e da
insegurança alimentar.
Isso ocorre ao mesmo tempo em que o orçamento de 2021 tem priorizado
emendas parlamentares e diminuído o investimento direto nos sistemas únicos das
políticas sociais. Da mesma forma, o setor financeiro que especula com os títulos da
dívida pública também foi beneficiado, pois o Banco Central elevou a taxa básica de
juros, Selic, em 0,75% passando de 3,5% para 4,25% ao ano (INESC, 2021), o que
pode significar um aumento de R$ 100 bilhões de reais da dívida pública brasileira
em 2021. Assim, o discurso da responsabilidade fiscal e da necessidade de
austeridade utilizado para justificar a falta de recursos para o enfrentamento da
pandemia em 2021 e para garantir o financiamento adequado das políticas sociais,
não se aplica quando as verbas públicas se destinam ao pagamento de juros da
dívida pública ou para a liberação de emendas parlamentares acordadas entre o
Planalto e a base de apoio parlamentar ao Governo no Congresso Nacional.
Nesse cenário, o vírus da desigualdade se exacerbou no país, aproveitando a
baixa capacidade do Estado em garantir os direitos humanos da população
brasileira. Evidenciou-se, ao mesmo tempo, que as desigualdades no país apesar de
atingirem toda a população recaíram com maior impacto nas regiões Norte e
Nordeste, reiterando as desigualdades regionais e indicando uma questão de
pesquisa a ser aprofundada em estudos posteriores sobre como as desigualdades
entre as regiões se exacerbaram na pandemia.
Apesar das limitações do ajuste fiscal para atuação do Estado, do
agravamento da pobreza e da desigualdade na realidade brasileira e do aviltamento
das condições de vida da classe trabalhadora, a resistência popular que insurgiu nas
ruas em plena pandemia demonstra que, apesar das determinações do capital, não
estamos diante de um fatalismo histórico, tendo em vista que a história é um
processo aberto. Sendo assim, tanto a atuação do Estado quanto os rumos da
91
sociedade no futuro, encontram-se em disputa, de modo que, apesar desse país
desigual e injusto ainda não estar efetivamente a serviço do seu povo, ainda há
resistência na realidade com os movimento sociais lutando para que este país possa
ser, um dia, para “além do capital”. Um país de todo homem e de toda mulher, como
diz os versos do poeta socialista Drummond (2012), anunciando a “Cidade prevista”,
em que haverá “uma cidade sem portas, de casa sem armadilha, um país de riso e
glória como nunca houve nenhum. Este país não é meu nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia o país de todo homem”.
92
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