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Neste manifesto para uma plateia interdisciplinar, a econo- mista e historiadora Deirdre McCloskey coloca em xeque o modo como a economia vem produzindo dados e gerando conhecimento nas últimas décadas. Com seu tom provoca- dor, perpassado por ironias e alfinetadas, McCloskey parte do princípio de que as pesquisas econômicas recentes fo- ram incapazes de produzir uma “investigação inteligente” porque esquecem de olhar ou esquecem de pensar o mundo. Na confusão entre teoremas qualitativos e significância es- tatística, em meio a um binarismo superficial, o que a eco- nomia teria perdido é justamente o vínculo com a realidade – isto é, o fato de que o mundo dos números, dos conceitos e dos planos econômicos, da taxa de juros, da inflação, do Bolsa Família ou da reforma da Previdência, impacta a vida de cada um de nós. Essa discussão sobre os limites da ciência econômica, no entanto, não se dirige apenas a especialistas ou a escla- recidos. A linguagem de McCloskey é clara, e os exemplos são tomados do cotidiano, de modo que o leitor – qualquer que seja seu universo – poderá se divertir, se irritar e certa- mente refletir com as colocações dessa grande intelectual que se define como “uma mulher do meio-oeste que já foi um homem, pós-moderna, amante da literatura e da esta- tística, defensora do livre mercado, uma progressista epis- copal de Boston”. Com notas do economista Luciano Sobral, que situam o leitor na constelação de economistas e suas teorias, o li- vro condensa alguns argumentos fundamentais para com- preender os limites de um modelo de pensamento que vem sendo difundido há mais de meio século, notadamente pela “Escola de Chicago”, cujos professores e ex-alunos já somam mais de 29 Prêmios Nobel de Economia. Sem negar a im- portância da ciência econômica clássica ou do pensamento liberal dos economistas britânicos, como Adam Smith, Deirdre McCloskey tenta levar a discussão a um outro pa- tamar, para além de posições políticas enrijecidas – afinal, como ela diz, há muito trabalho a ser refeito. tradução Sergio Flaksman

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Neste manifesto para uma plateia interdisciplinar, a econo-mista e historiadora Deirdre McCloskey coloca em xeque o modo como a economia vem produzindo dados e gerando conhecimento nas últimas décadas. Com seu tom provoca-dor, perpassado por ironias e alfinetadas, McCloskey parte do princípio de que as pesquisas econômicas recentes fo-ram incapazes de produzir uma “investigação inteligente” porque esquecem de olhar ou esquecem de pensar o mundo. Na confusão entre teoremas qualitativos e significância es-tatística, em meio a um binarismo superficial, o que a eco-nomia teria perdido é justamente o vínculo com a realidade

– isto é, o fato de que o mundo dos números, dos conceitos e dos planos econômicos, da taxa de juros, da inflação, do Bolsa Família ou da reforma da Previdência, impacta a vida de cada um de nós.

Essa discussão sobre os limites da ciência econômica, no entanto, não se dirige apenas a especialistas ou a escla-recidos. A linguagem de McCloskey é clara, e os exemplos são tomados do cotidiano, de modo que o leitor – qualquer que seja seu universo – poderá se divertir, se irritar e certa-mente refletir com as colocações dessa grande intelectual que se define como “uma mulher do meio-oeste que já foi um homem, pós-moderna, amante da literatura e da esta-tística, defensora do livre mercado, uma progressista epis-copal de Boston”.

Com notas do economista Luciano Sobral, que situam o leitor na constelação de economistas e suas teorias, o li-vro condensa alguns argumentos fundamentais para com-preender os limites de um modelo de pensamento que vem sendo difundido há mais de meio século, notadamente pela

“Escola de Chicago”, cujos professores e ex-alunos já somam mais de 29 Prêmios Nobel de Economia. Sem negar a im-portância da ciência econômica clássica ou do pensamento liberal dos economistas britânicos, como Adam Smith, Deirdre McCloskey tenta levar a discussão a um outro pa-tamar, para além de posições políticas enrijecidas – afinal, como ela diz, há muito trabalho a ser refeito.

tradução Sergio Flaksman

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TRADUÇÃO SERGIO FLAKSMANNOTAS LUCIANO SOBRAL

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Introdução 7

VIRTUDES IDENTIFICADAS COMO PECADOS 11PECADOS NÃO EXCLUSIVOS DA ECONOMIA 39DOIS PECADOS QUASE EXCLUSIVOS DA ECONOMIA 51

Índice onomástico 75Sobre a autora 77

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Os pecados da economia não são os que costumam ser apontados pela média dos antropólogos, historiadores e jornalistas. Vista de fora, essa triste ciência parece obviamente poluída pelo pecado, apesar da irritante in-fluência que conserva. Mas seus pecados mais óbvios

nem são tão terríveis assim; ou, quando terríveis, são de qual-quer forma os que todo mundo comete. Na verdade, são dois os pecados peculiares, nada óbvios nem habituais, os dois pecados secretos, que prejudicam hoje a atividade científica – na econo-mia e em alguns outros campos (como a psicologia, a ciência po-lítica, a medicina e a biologia das populações).

Ainda assim, uma crítica benevolente que diga essas coisas, mas deseje que a economia que tanto ama finalmente cresça e comece a concentrar as energias na produção de uma ciência digna do nome (da maneira como a física, a geologia, a antro-pologia, a história ou certas áreas da crítica literária produzem ciência), acaba por se ver deploravelmente incompreendida. Os pecados veniais, mais corriqueiros, impedem o escrutínio dos pecados mais bizarros e mortais. Ai da pobre crítica benevolen-

te, normalmente incompreendida como auto-ra de alguma Crítica do Idiota: “Ah, entendi. Você é de humanas, essa gente avoada que não suporta números ou matemática”. Ou “Ah, en-tendi. Quando você diz que a economia é ‘re-tórica’, quer dizer que os economistas deviam escrever num tom mais animado”.

E isso, podem acreditar, é enlouquecedor. A crítica benevolente, ela própria economis-ta, inclusive da Escola de Chicago,1 con-seguiu a duras penas – ao cabo de vinte

1 A chamada Es-cola de Chicago representa a vertente mais “pró-mercado” do debate acadê-mico americano, defendendo a supe-rioridade de resulta-dos de alocação de recursos definidos por livres merca-dos, com mínima interferência do governo. A Escola de Chicago também é frequentemente

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anos de procura lenta e exaustiva – reconhecer a ubiquidade dos Dois Pecados Secretos da Economia (que no fim das contas são um só, derivado do orgulho, como todos os pecados). E formu-lou sugestões construtivas no sentido de redimir a economia do pecado. Ainda assim, ninguém – nem um antropólogo, profes-sor de inglês ou militante em qualquer outra área científica, o que seria de esperar, mas menos ainda algum economista ou praticante das ciências médicas – entende o que ela quer dizer, ou age de acordo com suas ideias.

associada, por influ-ência sobretudo de Gary Becker, com o “imperialismo econô-mico” – o uso de ferra-mentas econômicas para o estudo de tópicos que geralmente são do domí-nio de outras ciências sociais. Seus principais intelectuais eram profes-sores do departamento de economia na Uni-versidade de Chicago, como Milton Friedman, Robert Lucas, Richard Posner entre outros ganhadores do Prêmio Nobel de Economia (nenhum outro departa-mento acumulou tantos prêmios, o que atesta sua enorme influência).

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VIRTUDES ERRONEAMENTE IDENTIFICADAS COMO PECADOS

A QUANTIFICAÇÃO

A quantificação, porém, não é um pecado. Desde o berço, a ciên-cia social vem acompanhada pelos números. Os aritméticos polí-ticos ingleses William Petty e Gregory King, e os demais do final do século xvii (prenunciados no início do mesmo século, como em tantas outras coisas que consideramos inglesas, por alguns holandeses), queriam, acima de tudo, saber Quanto, Que total, Qual parte. Era uma obsessão totalmente inédita. Que se pode chamar de burguesa. Quanto custaria drenar os charcos de So-merset? Qual parte do que a Inglaterra auferia com o comércio exterior dependia da existência das suas colônias? Que total disso, e Qual parte daquilo? Cem anos mais tarde, o bem-aventurado Adam Smith ainda se perguntava Quanto os salários pagos em Edimburgo eram diferentes dos de Londres (demais), e Quanto as colônias adquiridas na época graças às guerras incessantes contra a França ao longo do século xviii valiam para a Coroa (não muito). É surpreendente notar que, ao final do século xviii, os diagramas estatísticos já tinham sido inventados; o que não surpreende é que não tenham sido inventados antes – mais um sinal de que o pensamento quantitativo era uma novidade, pelo menos no Ocidente (havia séculos que os chineses já vinham reunindo estatísticas sobre população e preços). Os Estados eu-ropeus, da Suécia a Nápoles, começaram no século xviii a cole-tar estatísticas que pudessem lhes render preocupações: preços, população, balanças comerciais, circulação do ouro. A palavra

“estatística” (derivada de “estado”) foi cunhada por alemães e ita-lianos entusiastas da ação estatal no início do século xviii, apon-tando para uma história do uso dos números pelos Estados. Surgiu então a era da estatística, e tudo, das detenções pelo

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uso de drogas e das mortes devidas ao fumo, ao valor da vida e à classificação de crédito da vizinha ao lado, passou a ser objeto de expressão numérica.

O que se transformou numa espécie de loucura, é claro. Guias de turismo observam que os homens norte-americanos sempre querem saber a altura de cada torre, o número de tijolos que compõem cada muralha notável, quantas mortes ocorreram aqui, quantas pessoas viviam ali. Em 1775, Samuel Johnson re-velou-se típico do seu tempo e do seu gênero ao registrar o tama-nho de tudo que encontrava numa viagem pelo oeste da Escócia (usava sua bengala como instrumento de medida). Na década de 1850, os críticos conservadores do capitalismo, como Charles Dickens, já demonstravam grande irritação com a estatística:

Sr. Thomas Gradgrind – peremptoriamente, Thomas – Thomas Gradgrind. Com uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética.

[…]“Pai”, insistiu ela, “o sr. Bounderby pede que eu o ame?”“[…] A resposta depende tão materialmente do sentido que atri-

buímos a essa expressão. Ora, o sr. Bounderby não lhe faz a injus-tiça, e não faz a si mesmo a injustiça, de pretender que haja algo fantástico, fantasioso ou (uso termos sinônimos) sentimental. […] Portanto, talvez a expressão em si – somente sugiro, minha querida – pode ser um pouco inadequada.”

“O que o senhor aconselha-me a usar no lugar dela, pai?”“Ora, minha querida Louisa”, disse o sr. Gradgrind, já completa-

mente recuperado àquela altura, “aconselho (já que me pede) que

considere a questão, como foi acostumada a considerar qualquer outra, simplesmente como uma questão de Fatos tangíveis. Os ignorantes e os tontos podem dificultar tais assuntos com fantasias irrelevantes, e outros absurdos inexistentes, quando são vistos de maneira adequada – inteiramente inexistentes; porém, não é elo-gio dizer-lhe que você tem compreensão superior a isso. Ora, quais são os Fatos neste caso? Você tem, digamos, em números redondos, vinte anos de idade; o sr. Bounderby tem, digamos, em números redondos, cinquenta […]. Então, surge a pergunta: essa única dis-paridade é suficiente para constituir obstáculo ao casamento? Ao considerarmos essa pergunta, não é desimportante levarmos em conta as estatísticas sobre o casamento, tal como foram obtidas, até o momento, em Gales e na Inglaterra. Observo, em referên-cia aos números, que na maioria das vezes esses casamentos são contratados entre partes de idades muito desiguais, e que a mais velha dessas partes contratantes é, em mais de três quartos desses exemplos, o noivo. É notável, por demonstrar a ampla prevalência dessa lei, que, entre os nativos das colônias britânicas na Índia, e também em parte considerável da China, e entre os calmuques da Tartária, os melhores meios de cômputo, a nós oferecidos por viajantes, rendam resultados semelhantes.”1

É certo que a contagem, o cômputo, pode ser uma ferramenta dos idiotas, ou do Demônio. Entre os vestígios mais perturbado-res do campo de extermínio de Auschwitz estão os livros em que os carrascos voluntários de Hitler mantinham registros sobre

cada indivíduo que exterminavam.A teoria formal e matemática da estatís-

tica foi inventada em grande parte na dé-cada de 1880 por eugenistas (esses racistas

1 Charles Dickens, Tempos difíceis, trad. José Baltazar Pereira Júnior. São Paulo: Boitempo, 2014.

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ilustrados que se encontram na origem de tanta coisa nas ciên-cias sociais) e aperfeiçoada no século xx por agrônomos (isso mesmo, agrônomos – em lugares como a estação experimental agrícola de Rothamsted, na Inglaterra, ou a Universidade do Estado de Iowa). A estatística, recém-matematizada, transfor-mou-se num verdadeiro fetiche entre todas as novas candidatas a ciência. Ao longo da década de 1920, nos primórdios da socio-logia, a quantificação era um meio de reivindicar uma posição mais destacada, como também ocorreu com a economia, que acabara de se livrar do nome antigo de economia política, e a psi-cologia, pouco antes separada da filosofia. Nas décadas de 1920 e 1930, até os antropólogos sociais, esses homens e mulheres dados aos caprichos, à fantasia ou (e emprego aqui termos sinônimos) ao sentimentalismo, eram dados à contagem de cocos.

E os economistas – ah, os economistas –, como computavam, e ainda computam. Basta pegar qualquer número da renomada American Economic Review à mão (vocês hão de ser assinantes) e abri-lo ao acaso. Vão se deparar, talvez, com Joel Waldfogel,

“O peso morto2 no Natal” (sem brincadeira: dezembro de 1993; Waldfogel afirma que, como os presentes não são escolhidos por seus destinatários, nunca valem o que gasta o presentea-dor, o que resulta numa perda se compararmos a compra a uma simples remessa de dinheiro. Quem não se apaixonaria por tal abordagem científica do Princípio da Prudência?). À página 1331, encontramos no artigo a seguinte tabela:

2 “Peso morto” se refere à perda gerada pela alo-cação imperfeita de recursos em um mercado.

PREÇOS PAGOS EM MÉDIA E VALORES DOS PRESENTES

VARIÁVEL PESQUISA 1 PESQUISA 2Preço pago ($) 438,2 508,9Valor ($) 313,4 462,1Percentual do valor médio 71,5 90,8 sobre a média do preço pagoNúmero de presenteados 86 58

É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética.Refutação: Mas, no fim das contas, basta pensar. Quando

vocês querem contar os seus cocos, ou computar o valor em di-nheiro dos seus presentes de Natal, faz sentido dedicar-se à tarefa da melhor maneira possível. Muitas das coisas que queremos sa-ber se apresentam numa forma quantitativa. Importa saber – não em termos absolutos, aos olhos de Deus, mas para determinadas finalidades humanas – quanto irá chover amanhã, ou quanto choveu ontem. Por sólidas razões de ordem prática e espiritual, desejamos às vezes saber Quanto. Quantos escravos foram reti-rados da África? Talvez 29 milhões (a Grã-Bretanha, no auge do tráfico negreiro, tinha cerca de 8 milhões de habitantes), mais da metade dos quais destinada ao Oriente, e não ao Ocidente – tendo atravessado o Saara ou o oceano Índico, e não o Atlântico. Como era a vida em Cuba, submetida ao comunismo e ao bloqueio ame-ricano? A renda per capita em Cuba caiu um terço de 1959 para cá, enquanto na República Dominicana, no Chile, no México, no Brasil, na verdade na América Latina e no Caribe como um todo, mais que duplicou. A quanto monta hoje a imigração para os Es-tados Unidos? É menor, em relação à população total, do que era em 1910. E assim por diante. E mais. E ainda mais.

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(Pode-se ver pelos exemplos que, aqui, não estamos afir-mando que os números, por sua simples natureza, são especial-mente “objetivos”, seja qual for o significado exato desse termo da filosofia popular, ou “não políticos”, ou “científicos”. Os nú-meros são da ordem da retórica, isto é, voltados para a persua-são humana. Numa cultura da persuasão, concordamos em atri-buir um significado a este ou àquele número, que em seguida irá nos persuadir desta ou daquela visão sobre a matéria. Seixos são abundantes, como disse Richard Rorty; a verdade dos fatos, nem tanto. Depende da nossa decisão humana contar, pesar ou misturar os seixos ao compilar os fatos sólidos.)

Os economistas costumam escolher seu ofício graças a um amor pronunciado pelos números. Como diz a piada, “Sou eco-nomista; se tivesse mais personalidade, seria contador”. Um ar-gumento estatístico sempre impõe respeito nos Departamentos de Economia. Muitos não economistas, ao contrário, têm medo dos números, não gostam deles, atribuem-lhes um caráter de-sonroso e ficam confusos e irritados em sua presença. Mas há questões importantes que só podem ser respondidas em forma numérica. E pode-se ajudar a esclarecer muitas outras questões com a ajuda dos números. A idade de vocês, um número, não é o único fato que importa a seu respeito, e certamente está lon-ge de ser tudo que vocês Significam (“Você tem, digamos, em números redondos, vinte anos de idade; o sr. Bounderby tem, digamos, em números redondos, cinquenta”). Mas é um núme-ro útil para muitas finalidades – em conversas do dia a dia, por exemplo; em consultas médicas, também; e, sim, mesmo no que diz respeito ao casamento. É humanamente útil saber que

vocês cresceram nos anos 1950 e chegaram à maioridade em meio à liberação da década de 1960, ou se completaram

sessenta anos no dia 11 de setembro de 2002 (parabéns pelo ani-versário). A temperatura não é a única medida de um dia bom. O vento, a intensidade do brilho do sol, os acontecimentos hu-manos e o significado atribuído a eles pelos seres humanos tam-bém fazem diferença. Que este seja o mês e esta a gloriosa ma-nhã da natividade de Cristo significam mais que a temperatura de -1 oC. Mas vale a pena saber que a temperatura naquele dia abençoado não foi de 273,15 graus negativos nem de 100 graus acima de zero.

De maneira que contar não é um pecado da economia. É uma virtude.

A MATEMÁTICA

Nem a matemática é um pecado. A matemática não é idêntica à mera contagem ou à estatística. Os jornais dão risada quando encontram um matemático que não consegue manter em dia o canhoto de seu talão de cheques, mas isso não passa de um mal-entendido quanto ao que seja a atividade dos matemáticos. Houve entre estes alguns calculistas famosos, como o suíço Leo-nhard Euler, do século xviii (que também sabia de cor toda a Eneida – em latim, naturalmente). Mas, por mais estranho que possa parecer, a maior parte da matemática não tem nada a ver com os números propriamente ditos. Euler usava o cálculo da mesma forma que os matemáticos de hoje usam computadores, para vez ou outra pôr à prova suas ideias quanto ao desenvolvi-mento do que os matemáticos adoram definir como uma prova real de fatos incríveis, como eπi + 1 = 0 (e portanto Deus existe). Vocês podem obter uma prova “real”, o estilo de demons-tração desenvolvido pelos gregos (que você conheceu quan-

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do estudou geometria na escola secundária, amando ou odiando a matéria), sem tomar conhecimento de um número sequer, ou nem mesmo de um exemplo concreto. Assim: o teorema de Pi-tágoras é verdadeiro para qualquer triângulo retângulo, quais-quer que sejam suas dimensões, e é provado não por indução a partir de muitos ou mesmo zilhões de exemplos numéricos de triângulos retângulos, mas de maneira universal e para todo o sempre, Deus seja louvado e Seu nome glorificado, por uma de-dução a partir de premissas. Caso aceitem as premissas, vocês terão aceitado o teorema. Quod erat demonstrandum.

A estatística ou outros métodos quantitativos usados na ciência (como a contagem, a experimentação ou a simulação) respondem, indutivamente, Quanto. A matemática, por con-traste, responde dedutivamente Por quê e, numa versão mais refinada e filosófica muito popular entre os matemáticos desde o início do século xix, Se. “Por que uma pedra jogada do alto de uma torre cai cada vez mais depressa?” Bem, é que F = ma, en-tende? “Eu me pergunto Se a massa m da pedra tem algum efeito no caso.” E a verdade é que sim: perceba que existe ali uma letri-nha m na resposta à pergunta Por quê.

Mas perguntar Por quê / Se não é a mesma coisa que perguntar Quanto. Vocês podem saber que deixar de se lembrar do aniversá-rio de seu par amoroso vai ter algum efeito em sua relação (Se), e até entender que esse ou aquele efeito do esquecimento se deve a certo mecanismo psicológico – “Você não me ama a ponto de sa-ber que eu dou importância ao meu aniversário?” (Por quê). Mas para saber Quanto esse esquecimento irá prejudicar sua relação, vocês precisam de números, dos ms e dos as, por assim dizer, e

de alguma noção da grandeza que representam. Mesmo que saibam Por quê (conhecendo a teoria adequada sobre os

canais por onde opera o esquecimento de um aniversário; nova-mente, por analogia, F = ma), o Quanto irá depender exatamente, numericamente, quantitativamente, do quão sensível é, na ver-dade, este ou aquele componente do Por quê na alma do seu par: do valor que, nesse caso, têm o m e o a. E, num mundo real, essa sensibilidade, como sempre dizem os cientistas, é uma questão empírica, e não teórica. “Está certo, seu babaca, foi a gota d’água: vou sair de casa” ou “Nem se preocupe, amor: eu sei que você me ama” diferem na sensibilidade, no Quanto, no efeito quantitativo, na magnitude, na massa, no impacto.

Desde seus primórdios, a economia tem sido quase sempre “matemática”, na medida em que se interessa por discussões do tipo Por quê / Se sem levar em conta Quanto. Por exemplo: quan-do vocês compram pão de forma no supermercado, tanto vocês quanto o supermercado (e seus acionistas, seus empregados, seus fornecedores de pão) saem ganhando em alguma medida. Como eu sei disso? Porque o supermercado oferece voluntariamente o pão, e vocês aceitam a oferta também voluntariamente. E isso deve ter melhorado alguma coisa para os dois, seja pouco ou mui-to – pois de outro modo vocês não teriam concluído a transação.

Faz muito tempo que os economistas se apaixonaram por esse argumento tão simples. Mas, do século xviii para cá, leva-ram-no um passo à frente, um passo dramático e crucial: isto é, deduziram alguma coisa a partir dele, a saber: O livre comércio é bacana. Se cada transação entre vocês e o supermercado, entre o supermercado e Smith, entre Smith e Jones e assim por dian-te produz algum benefício para ambos (menor ou maior: não estamos falando aqui de quantidades), então (e atenção para o

“então”: isto aqui é uma dedução, afinal de contas) o livre comércio entre a totalidade do povo francês e a totalidade

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do povo inglês também produz benefícios. E, portanto (aten-ção para o “portanto”), o livre comércio entre dois grupos quais-quer também é bacana. E o economista assinala que, se todas as transações são voluntárias, todas representam algum ganho.3 Assim, o livre comércio é bacana em todas as suas formas. Por exemplo, uma lei que estabeleça restrições quanto à permissão para ingressar no negócio farmacêutico é má ideia, porque o livre comércio é bom, e então um comércio não livre é ruim. A proteção aos trabalhadores franceses é ruim, porque o livre comércio é bom. E assim por diante, levando a literalmente milhares de conclusões cruciais para a definição de diretrizes de governo.

Embora esse argumento figure entre os três ou quatro mais importantes da economia, ele não é empírico. Não contém qualquer afirmação em relação a Quanto. Afirma que existe um ganho no comércio – lembrem-se das expres-sões algum benefício, menor ou maior ou não estamos falando aqui de quantidades. “Eu me pergunto Se o livre comércio tem um efeito positivo [na quantidade que for].” Sim, esse efeito existe: examinem esta página de mate-mática; vejam este diagrama; escutem minha parábola irresistível sobre vocês e o super-mercado. Não perguntem Quanto. O raciocí-nio é do tipo Por quê / Se. Da maneira como é formulado, não há como estar errado, tal qual o teorema de Pitágoras. Não é uma ques-tão de aproximação, não é uma questão de

Quanto. É um encadeamento lógico que parte de axiomas implícitos (que podem

3 Essa afirmação deriva do primeiro teorema de bem-es-tar que afirma que o mercado tende a se equilibrar de maneira eficiente (a famosa mão invisível de Adam Smith), portanto as transa-ções sempre são, de alguma maneira, vantajosas para as partes envolvidas. Ou seja, o padeiro não faz pão por benevolência nem o consumidor compra por generosi-dade, mas a transação ocorre porque é van-tajosa para todos.

ser e já foram explicitados, em toda a sua variedade infinita) e chega a uma conclusão qualitativa “rigorosa” (em sua variedade infinita). Basta lembrar as palavras “então”, “portanto” e “assim”. A partir desse ou daquele conjunto de alegações ou axiomas, A, a conclusão, C, só pode ser que as pessoas ganham alguma coisa. A implica C, e assim o livre comércio é benéfico em qualquer lugar. (Por favor, prestem atenção, e parem de perguntar “Quan-to?”: quantas vezes preciso lembrar que esse raciocínio é qualita-tivo, e não quantitativo?)

Os filósofos dizem que esse tipo de coisa é um raciocínio “válido”, o que não quer dizer que seja propriamente “verdadeiro”, mas que “decorre dos axiomas – se vocês acreditam nos axiomas, tais como A, então C também deve ser verdade”. Se vocês acre-ditam que qualquer transação individual concluída voluntaria-mente é boa, então, com mais algumas premissas extras (por exemplo, quanto a qual seja o sentido de “voluntariamente”; ou, por exemplo, sobre como o bem de uma pessoa depende do de outra), podem chegar à conclusão de que o livre comércio inter-nacional entre as nações é bom.

O raciocínio do tipo Por quê / Se, que também é característi-co dos Departamentos de Matemática, pode ser chamado de filo-sófico. O Departamento de Matemática e o Departamento de Fi-losofia demonstram um fascínio semelhante pela dedução, e um tédio equivalente diante da indução. Estão pouco ligando para Quanto. Nada de fatos, por favor: somos filósofos. Nada de nú-meros, por favor: somos matemáticos. No Departamento de Fi-losofia, o relativismo pode estar ou não aberto a uma refutação vinda de uma contradição interna. Nunca é um pouco refutado. Ou é derrubado ou não é. No Departamento de Matemáti-ca, a conjectura de Goldbach, de que todo número par é a

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KKeynes, John Maynard 34, 41

King, Gregory 11

Klamer, Arjo 40

Klein, Lawrence Robert 71

Koopmans, Tjalling 61

Krugman, Paul 46

LLawrence, D. H. 45

Lewis, Sinclair 53

Lucas, Robert 8, 46

MMandeville, Bernard 31–32

Maquiavel, Nicolau 31, 34

Marx, Karl 41, 48

Mas-Colell, Andreu 54

Mill, John Stuart 34

Mills, Charles Wright 70

Milton, John 55, 72

PPalmer, Robert 46

Petty, William 11

Poe, Edgar Allan 45

Posner, Richard 8

RRorty, Richard 16

SSahlins, Marshall 35

Samuelson, Paul Anthony 22–24, 32, 59, 60, 69, 71

Schultz, Theodore 35

Smith, Adam 11, 19–20, 28, 33–34, 41, 43, 47

Soto, Hernando de 30

Stigler, George 45

Summers, Lawrence 23

WWaldfogel, Joel 14

Whinston, Michael 54 Whitman, Walt 45

Wooldridge, Jeffrey M. 54 Wylie, Lawrence 30

ZZola, Émile 53

SOBRE A AUTORA Deirdre Nansen McCloskey nasceu em 1942 em Ann Arbor, Michigan. Com ph.d. em economia pela Uni-versidade Harvard, sua dissertação recebeu o prêmio David A. Wells em 1973. Junto com Milton Friedman, foi professo-ra na Escola de Chicago entre 1968 e 1980, nos departamentos de economia e história. Em 1980, passou a lecionar economia, história, inglês e comunicação na Universidade de Illinois, em Chicago, até sua aposentadoria, em 2015. Paralelamente, foi professora convidada de economia, filosofia, história, inglês e artes e cultura na Universidade Erasmus de Rotterdam, de 2001 a 2006, bem como de história da economia na Universidade de Gothenburg, de 2009 a 2013, recebendo mais de seis títulos de doutora honoris causa.

Em 1995, Deirdre, aos 53 anos, abandonando definitivamen-te seu nome de batismo, Donald, completou sua transição de gê-nero. Desde então tornou-se feminista e defensora dos direitos lgbttt. É autora de mais de dezessete livros, além de numero-sos artigos e ensaios, sobre temas que vão de aspectos técnicos da economia ou da teoria da estatística até a luta pela igualdade e a crítica da ética burguesa. Entre seus livros mais famosos está The Rhetoric of economics (1985), a trilogia sobre a era burguesa e o enriquecimento pós-1800, The Bourgeois Virtues (2006), Bour-geois Dignity (2010) e Bourgeois Equality (2016), e o livro Crossing: a Memoir (1999), em que relata seu processo de transição.

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COLEÇÃO EXIT

COORDENAÇÃOFLORENCIA FERRARIMILTON OHATA

© Ubu Editora, 2017© Prickly Paradigm Press lcc

Coordenação editorial florencia ferrari e gisela gasparianAssistente editorial isabela sanchesPreparação cacilda guerraRevisão daniela uemuraProjeto gráfico da coleção elaine ramos e flávia castanheiraProjeto gráfico deste título livia takemuraProdução gráfica aline valli

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

McCloskey, Deirdre [1942–]Os pecados secretos da economia / Deirdre McCloskey; tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Ubu Editora, 201780 pp.

Título original: The Secret Sins of Economicsisbn 978 85 92886 54 7

1. Economia. 2. Filosofia. i. Flaksman, Sergio. ii. Título. cdu 33.1

Índice para catálogo sistemático:1. Economia 33 2. Filosofia 1

ubu editoraLargo do Arouche 161 sobreloja 201219 011 São Paulo sp(11) 3331 2275 ubueditora.com.br

24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono Jonathan Crary

Reinvenção da intimidade – políticas do sofrimento cotidiano Christian Dunker

Como pensar as questões do século xxi? A coleção Exit é um espaço editorial que bus-ca identificar e analisar criticamente vários temas do mundo contemporâneo. Novas fer-ramentas das ciências humanas, da arte e da tecnologia são convocadas para reflexões de ponta sobre fenômenos ainda pouco nomea-dos, com o objetivo de pensar saídas para a complexidade da vida hoje.

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FONTE Edita e DharmaPAPEL Alta alvura 90 g / m2

IMPRESSÃO Geográfica