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Capítulo III ... Ao transconstitucionalismo entre ordens jurídicas ;' 1. O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas como modelo referente ao tratamento de problemas constitucionais O conceito de Constituições transversais refere-se ao entrelaçamento entre o direito e a política ou, no caso das "Constituições civis" da sociedade mundial, um outro siste- ma social. A questão reside na relação entre sistemas fun- cionais, concentrando-se nos limites e possibilidades de construção de uma racionalidade transversal mediante o aprendizado recíproco e intercâmbio criativo. Isso implica externalização e internalização de informações entre esfe- ras sociais que desempenham funções diversas e se repro- duzem primariamente com base em códigos binários de comunicação diferentes. A questão é outra quando se trata de transconstitucio- nálismo. Nesse caso, o problema consiste em delinear as for- mas de relação entre ordens jurídicas diversas. Ou seja, den- tro de um mesmo sistema funcional da sociedade mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurídicas diferencia- das, subordinadas ao mesmo código binário, isto é, "líci- to/ilícito", mas com diversos programas e critérios'. Verifi- 1. Sobre a diferença entre código (forma-diferença binária) e critérios (de solução de problemas) ou programas (de decisão), cf. Luhmann, 1986c,

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  • Captulo III ... Ao transconstitucionalismo entre ordens jurdicas

    ;'

    1. O transconstitucionalismo entre ordens jurdicas como modelo referente ao tratamento de problemas constitucionais

    O conceito de Constituies transversais refere-se ao entrelaamento entre o direito e a poltica ou, no caso das "Constituies civis" da sociedade mundial, um outro siste-ma social. A questo reside na relao entre sistemas fun-cionais, concentrando-se nos limites e possibilidades de construo de uma racionalidade transversal mediante o aprendizado recproco e intercmbio criativo. Isso implica externalizao e internalizao de informaes entre esfe-ras sociais que desempenham funes diversas e se repro-duzem primariamente com base em cdigos binrios de comunicao diferentes.

    A questo outra quando se trata de transconstitucio-nlismo. Nesse caso, o problema consiste em delinear as for-mas de relao entre ordens jurdicas diversas. Ou seja, den-tro de um mesmo sistema funcional da sociedade mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurdicas diferencia-das, subordinadas ao mesmo cdigo binrio, isto , "lci-to/ilcito", mas com diversos programas e critrios'. Verifi-

    1. Sobre a diferena entre cdigo (forma-diferena binria) e critrios (de soluo de problemas) ou programas (de deciso), cf. Luhmann, 1986c,

  • 116 TRANSCONSTITUCIONALISMO ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 117

    ca-se, dessa maneira, uma pluralidade de ordens jurdicas, cada uma das quais com seus prprios elementos ou ope-raes (atos jurdicos), estruturas (normas jurdicas), pro-cessos (procedimentos jurdicos) e reflexo da identidade (dogmtica jurdica) 2. Disso resulta uma diferenciao no interior do sistema jurdico. Essa diferenciao entre ordens no se limita, porm, diferenciao segmentria entre or-dens jurdicas estatais com mbitos territoriais de validade delimitados. Alm disso, h no s uma diferenciao de "nveis" entre ordem jurdica estatal, supranacional e inter-nacional, mas tambm a diferenciao funcional de ordens jurdicas transnacionais, desvinculadas, por sua transterri-torialidade, do direito estatal.

    Essa multiplicidade de ordens diferenciadas no interior do sistema jurdico no implica isolamento recproco. As relaes de input/output e de interpenetrao entre elas no so algo novo. No que concerne conexo entre direito inter-nacional clssico e direito estatal, nos termos do Tratado de Westflia (1648), a incorporao de normas internacionais no direito interno realiza-se mediante o instituto da ratifi-cao, assim como a reproduo da ordem jurdica interna-cional depende da presena de representantes estatais legi-timados por essa prpria ordem. Tambm na relao entre ordens jurdicas estatais, complexos mecanismos de re-en-try foram desenvolvidos nos termos clssicos do direito in-ternacional privado. O novo, nos entrelaamentos entre uma pluralidade de ordens jurdicas na sociedade mundial do presente, a sua relativa independncia das formas de inter-mediao poltica mediante tratados jurdico-internacionais e legislao estatal. As formas em que ocorrem relaciona-

    pp. 82 s. e 89 ss., considerando que a reproduo autnoma de um sistema pressupe a combinao de "codificao" e "programao", pois os cdigos se tornariam formas vazias se no estivessem combinados com os programas e critrios. Em relao especificamente ao sistema jurdico, 1986a, pp. 194 ss.; 1993a, pp. 165 ss.

    2. Cf. Teubner, 1989, pp. 49 ss. [trad. port. 1993, pp. 77 ss.]; 1987a, pp. 106 ss.; 1987b, pp. 432 ss.

    mentos formais e informais entre atores governamentais e no governamentais multiplicam-se no mbito do direito. Essa situao ganha relevncia quando se considera que, em grande parte, as "pontes de transio" entre ordens jurdi-caydesenvolvem-se diretamente a partir dos seus respecti-vos centros, ou seja, os seus juzes e tribunais 3.

    Isso significa dizer que no soa sociedade mundial, mas tambm o'seu sistema jurdico multicntrico, de tal ma-neira que, na perspectiVa do centro (juzes e tribunais) de uma ordem jurdica, o centro de uma outra ordem jurdica constitui uma periferia. Nesse sentido, por exemplo, para o judicirio brasileiro, tanto os juzes de outros Estados quanto os tribunais de ordens jurdicas internacionais, supranacio-nais e transnacionais, quando suas decises so por ele le :

    vadas em conta, apresentam-se como periferia e vice-versa. E, a esse respeito, podemos partir de qualquer tipo de or-dem jurdica com pretenso de autonomia. Essa situao importa relaes de observao mtua, no contexto da qual se desenvolvem formas de aprendizado e intercmbio, sem que se possa definir o primado definitivo de uma das or-dens, uma ultima ratio jurdica.

    Nesse sentido, fala-se de "conversao"ou "dilogo"en-tre cortes, que podem se desenvolver em vrios nveis: por exemplo, entre o Tribunal de Justia das Comunidades Euro-peias (supranacional) e os tribunais dos Estados-membros, entre o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (internacio-nal) e as cortes nacionais ou o TJCE, entre cortes nacionais etc. 4 Essa "conversao" (que constitui, a rigor, comunica-es transversais perpassando fronteiras entre ordens jur-dicas) no deve levar a uma ideia de cooperao permanen-te entre ordens jurdicas, pois so frequentes os conflitos entre perspectivas judiciais diversass. No limiar, toda "con-versao" entre cortes carrega em si o potencial de disputa.

    3. Cf. Luhmann, 1993a, pp. 321 ss.; 1990f, pp. 466 ss. 4. Baudenbacher, 2003, pp. 507 ss. "O resultado , paradoxalmente,

    mais dilogo e menos deferncia" (Slaughter, 2003, p. 194). 5. Cf. Slaughter, 2003, pp. 204 ss; 2004, pp. 85 ss.

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    O problema como solucionar essas disputas sem a impo-sio top down na relao entre ordens.

    Entretanto, nem todo entrelaamento de ordens jurdi-cas ocorre entre tribunais. Muitas vezes, h a incorporao de normas de outra ordem, sem intermediao de dilogos entre tribunais. Uma reinterpretao da prpria ordem a que est vinculado um tribunal pode ocorrer em face da in-corporao de sentidos normativos extrados de outras or-dens jurdicas. Alm disso, em outros nveis do sistema ju-rdico, h aprendizados e intercmbios permanentes, como ocorre na relao informal entre legislativo, governos e admi-nistraes de diversos pases6. Sem dvida, porm, a forma mais relevante de transversalidade entre ordens jurdicas a que perpassa os juzes e tribunais, seja interjudicialmente ou no.

    Mas o peculiar ao transconstitucionalismo no a exis-tncia desses entrelaamentos entre ordens jurdicas, o chamado "transnacionalismo jurdico". No caso do trans-constitucionalismo, as ordens se inter-relacionam no plano reflexivo de suas estruturas normativas que so autovin-culantes e dispem de primazia. Trata-se de uma "conver-sao constitucional", que incompatvel com um "consti-tutional diktat"de uma ordem em relao a outra'. Ou seja, no cabe falar de uma estrutura hierrquica entre ordens: a incorporao recproca de contedos implica uma releitura de sentido luz da ordem receptora 8. H reconstruo de sentido, que envolve uma certa desconstruo do outro e uma autodesconstruo: tanto contedos de sentido do "ou-tro" so desarticulados (falsificados!) e rearticulados inter-namente, quanto contedos de sentido originrios da pr-pria ordem so desarticulados (falsificados!) e rearticulados em face da introduo do "outro".

    6. Cf. Slaughter, 2004, pp. 104 ss.; Mllers, 2005b. 7. Weiler, 1999, p. 322. 8. Nesse sentido, Berman, P. (2005, pp. 551 ss.) refere-se a uma "intera-

    o multidirecional entre normas locais, nacionais e internacionais.

    ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 119

    O transconstitucionalismo faz emergir, por um lado, uma "fertilizao constitucional cruzada" 9. As cortes cons-titucionais "citam-se reciprocamente no como precedente, mas como autoridade persuasiva" 10. Em termos de raciona-

    )idade transversal, as cortes dispem-se a um aprendizado construtivo com outras cortes e vinculam-se s decises dessas11 . Por outro lado, h "uma combinao de coopera-o ativa e conflito vigoroso entre cortes nacionais envolvi-das em litgios transnacionais entre partes privadas alm das fronteiras" 12 . Os "litgios globais"levam, ento, ao sur-gimento da "comitas judicial", que "fornece a estrutura e as regras bsicas para um dilogo global entre juzes no con-texto de casos especfficos" 13, ao "julgamento"de juzes por juzes e "negociao judiciar". A respeito desses novos fenmenos, a dimenso constitucional manifesta-se mais claramente quando esto envolvidos tribunais constitucio-nais no sentido amplo da expresso, ou seja, tribunais en-carregados exclusiva ou principalmente de julgar questes jurdico-constitucionais.

    Mas como definir as questes constitucionais que en-sejam o transconstitucionalismo? Aqui cumpre desvincular a noo de direito constitucional do constitucionalismo ds-

    9. Slaughter, 2000, pp. 1116 ss.; 2003, pp. 194 ss.; 2004, pp. 69 ss. 10. Slaughter, 2003, p. 193. 11. Slaughter, 2003, pp. 199 ss.; 2004, pp. 75 ss. 12. Slaughter, 2003, p. 193. 13. Slaughter, 2004, p. 87; 2003, p. 206. Slaughter refere-se "comitas de

    naes" como "um conceito poltico e jurdico venervel", afirmando que "sig-nifica o respeito devido s leis e atos de outras naes em virtude da pertinncia comum [common membership] ao sistema internacional, presumindo "reconhe-cimento, que algo mais do que cortesia, mas menos do que obrigao" (2004, p. 86; 2003, p. 205); ela invoca nesse trecho uma definio contida no caso Hil-ton v. Guyot, 159 U.S. 113 (1895), pp. 163 s. Cabe, porm, ampliar o conceito de "comitas judicial" para incluir os diversos juzes e tribunais, no apenas os na-cionais, mas tambm internacionais, supranacionais, transnacionais e locais ex-traestatais, desvinculando-o da ideia de membership. No sentido de abarcar os tribunais arbitrais da lex mercatoria, ver Mendes, R., 2008, p. 94.

    14. Slaughter, 2003, pp. 204 ss.; 2004, pp. 85 ss.; cf. tambm 2000, pp. 1112 ss.

  • ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 121 120 TRANSCONSTITUCIONALISMO

    sico, ou seja, de um conceito de Constituio associada ex-clusivamente a um determinado Estado, sem que da seja necessrio recorrer a outras "Constituies". O constitucio-nalismo, vinculado originariamente ao Estado como orga-nizao territorial, surgiu para responder a duas questes: 1) como determinar coercitivamente os direitos e garantias fundamentais dos indivduos? 2) como limitar e controlar o poder estatal expansivo e, ao mesmo tempo, garantir a sua eficincia organizacionalM A resposta veio com as consti-tuies estatais, pois esses problemas normativos ainda ti-nham uma dimenso territorialmente delimitada. Com o tempo, o incremento das relaes transterritoriais com im-plicaes normativas fundamentais levou necessidade de abertura do constitucionalismo para alm do Estado. Os problemas dos direitos fundamentais ou dos direitos huma-nos ultrapassaram fronteiras, de tal maneira que o direito constitucional estatal passou a ser uma instituio limitada para enfrentar esses problemas. O mesmo ocorreu com a or-ganizao do poder, com a questo de como combinar a li-mitao e o controle do poder com sua eficincia organiza-cional. O tratamento desses problemas deixou de ser um privilgio do direito constitucional do Estado, passando a ser enfrentado legitimamente por outras ordens jurdicas, pois eles passaram a apresentar-se como relevantes para essas".

    15.Evidentemente, a ideia de limitao e controle jurdico-constitucio-nal do poder importa a noo de "participao" dos destinatrios nos proce-dimentos de produo normativa ("funo legitimadora"). Mas no me pare-ce oportuno, especialmente no contexto atual, ampliar os problemas e as res-pectivas funes constitucionais para incluir, alm das funes de "organiza-o e legitimao" e de "limitao (proteo dos direitos fundamentais)", a "funo de integrao", como prope Walter (2000, pp. 5 e 7-11), com base em Smend (1968 119281). Isso porque a concepo holstica da Constituio (em sentido moderno) como "ordem fundamental da coletividade" (cf., p. ex., Hesse, 1980, p. 11; Hollerbach, 1969, p. 46; Bckenfrde, 1983, pp. 16 ss.) afastada na perspectiva terica em que se desenvolve o presente trabalho (cf. Luhmann, 1973a, p. 2; Neves, 2007a, pp. 67 s.; 1992, p. 50).

    16.Nesse sentido, Cassese, S. (2007), refere-se "funo constitucional dos juzes no estatais". Por sua vez, Delmas-Marty (2007, pp. 42 ss.) aponta para a "internacionalizao dos juzes nacionais".

    A questo do transconstitucionalismo no se refere, por-tanto, referncia inflacionria existncia de uma Consti-tuio em praticamente toda nova ordem jurdica que emerge com pretenso de autonomia. No interessa primariamen-teia conceito de transconstitucionalidade saber em que ordem se encontra uma Constituio, nem mesmo defini-la como um privilgio do Estado. O findamental precisar que os problerhas constitucionais surgem em diversas ordens jurdicas, exigindo solues fundadas no entrelaamento entre elas.

    Assim, um mesmo problema de direitos fundamentais pode apresentar-se perante uma ordem estatal, local, inter-nacional, supranacional e transnacional (no sentido estrito) ou, com frequncia, perante mais de uma dessas ordens, o que implica cooperaes e conflitos, exigindo aprendizado recproco. No que diz respeito s ordens jurdicas transna-cionais em sentido estrito, que envolvem sobretudo atores privados e quase pblicos, indiscutvel que questes de direitos fundamentais ou de direitos humanos surgem pe-rante elas. Menos clara a afirmao de que elas esto rela-cionadas com os problemas de limitao e controle do po-der. Caso se trate de poder poltico no sentido sistmico, que se orienta primariamente tomada de decises coleti-vamente vinculantes, inegvel que essas ordens estariam distantes desse problema. No entanto, a influncia que ato-res privados desempenham no mbito dessas ordens, sem o controle direto de uma autoridade poltica - estatal, inter-nacional ou supranacional -, transforma-os em detentores de poder com repercusses polticas relevantes". Dessa ma-neira, tambm nas ordens transnacionais reaparecem os pro-blemas jurdico-constitucionais com uma nova roupagem.

    Afirmada essa emergncia dos problemas constitu-cionais perante ordens jurdicas as mais diversas, reapa-

    17. Sobre a distino entre influncia em geral e poder diferenciado como meio de comunicao, ver Luhmann, 1988b [1975], pp. 74 ss., especial-mente p. 78 [trad. bras. 1985, pp. 61 ss., especialmente p. 64]; 2000a, pp. 39 ss.

  • 122 TRANSCONSTITUCIONALISMO ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 123

    recendo a cada momento em forma de hidra, no h mais uma Constituio-Hrcules que possa solucion-los. A frag-mentao dos problemas constitucionais permaneceria desestruturada se cada ordem jurdica pretendesse enfren-t-los isoladamente a cada caso. Impe-se, pois, um "di-logo" ou uma "conversao" transconstitucional. evidente que o transconstitucionalismo no capaz de levar a uma unidade constitucional do sistema jurdico mundial. Mas ele parece que tem sido a nica forma eficaz de dar e estru-turar respostas adequadas aos problemas constitucionais que emergem fragmentariamente no contexto da socieda-de mundial hodierna.

    O problema da autofundamentao constitucional do sistema jurdico desloca-se nesse contexto. Como unitas mul-tiplex, o sistema jurdico encontra vrios centros de auto-fundamentao, dependendo da ordem jurdica que tome como ponto de partida. No contexto de uma reconstruo da teoria pura do direito luz de uma "teoria do acopla-mento normativo entre sistemas", Jestaedt defende a tese da "concorrncia de interpretaes do direito em vez da coe-xistncia de ordens jurdicas" 18

    e sustenta que a validade de uma norma s pode ser considerada a partir de uma nica ordem jurdica, tendo em vista a respectiva norma funda-mental'''. Desse argumento deriva a concepo segundo a qual "uma ordem jurdica s pode entrar em relao nor-mativa com enunciados de dever-ser, pertencente inicial-mente a outra ordem jurdica, desde que mediante recep-o, delegao, transformao ou outra maneira qualquer eleve-os a enunciados normativos da prpria ordem jurdi-ca" 20. Nesse sentido, sustenta ser inevitvel a interpretao

    18.Jestaedt, 2008, especialmente p. 234. 19."A validade de uma norma s pode ser afirmada relativa ou imanen-

    temente a uma ordem jurdica" gestaedt, 2008, pp. 234-6). 20.Jestaedt, 2008, pp. 234 e 236 s. No me parece que dessa assero

    resulte necessariamente a tese de que h "relaes entre normas apenas na mesma esfera de validade", isto , de urna mesma ordem jurdica flestaedt, 2008, p. 236). Voltaremos a seguir a esse tema.

    monista das relaes entre camadas normativas por uma or-dem jurdica", assim como afirma a inevitabilidade e aber-tura, do ponto de vista da teoria do direito, da "escolha"do monismo, ou seja, da ordem ou norma fundamental de que se/parte: "O fato de que inevitvel uma interpretao mo-nista da ordem jurdica no diz nada a respeito de como h de escolher-se entre as possveis interpretaes monistas." 2" E, seguindo risca o modelo kelseniano, complementa essa assertiva com a afirmao da neutralidade da escolha da construo monista em relao ao contedo do clireito 23, assim como do carter poltico dessa deciso'''. Coerente com esses pressupostos, Jestaedt asseria que o "correlato do monismo da ordem jurdica o pluralismo de interpre-tao jurdica" 25, para salientar que "a hiptese da escolha monista pode ser caracterizada como teoria da relatividade jurdica", considerando que a construo jurdica variar a partir da ordem que se parta 26. Mas, alm dessas teses plau-sveis a partir de uma reconstruo de Kelsen, Jestaedt de-fende as teses de que s h relaes normativas dentro de uma mesma esfera de validade (isto , de uma mesma ordem jurdica), s podem surgir "(solues de) colises imanen-tes ordem jurdica"e, portanto, "comunicao"ocorre "ex-clusivamente" de forma "monolgica"no plano "intra(jur-dico -)sistmico" 27.

    Essa reconstruo do monismo kelseniano levado a um construtivismo extremo parece-me suscetvel de restri-es. A rigor, no monismo metodolgico, a escolha de uma das normas fundamentais uma questo "poltico-ideol-gica". Seja na postura "imperialista" do monismo que parte

    21.Jestaedt, 2008, pp. 234 e 239 s. 22.Jestaedt, 2008, pp. 235 e 240 s. 23."A 'escolha' de um das construes monistas independentemente

    de em qual das construes monistas ela incide - no tem qualquer influncia sobre o contedo do direito considerado" (Jestaedt, 2008, pp. 235 e 241-3).

    24.Jestaedt, 2008, p. 246. 25.Jestaedt, 2008, pp. 235 e 244 s. 26.Jestaedt, 2008, pp. 235 e 245 ss. 27.Jestaedt, 2008, pp. 234 e 237-9.

  • 124 TRANSCONSTITUCIONALISMO

    de uma norma fundamental de uma determinada ordem nacional, seja na postura pacifista de um monismo que par-te da norma fundamental do direito internacional pblico, assim como em um tipo de monismo supranacionalista ou transnacionalista, a escolha "poltico-ideolgica" de uma determinada ordem jurdica apresenta-se irrelevante para a "cincia do direito" ou teoria do direito 28. Assumida a esco-lha por uma das ordens, os contedos normativos diversos das "outras ordens" (noo incompatvel com a concepo monista) so considerados apenas camadas normativas in-feriores da ordem cuja "norma fundamental" o ponto de partida. Nesse sentido, tambm no caberia falar, do ponto de vista da teoria do direito, de uma concorrncia de "inter-pretaes do direito". Isso s teria sentido, a partir do mo-delo monista kelseniano, em uma perspectiva "poltico--ideolgica" do direito. Definida a escolha poltica por uma norma fundamental, a respectiva ordem ficaria "cega" concorrncia de outras ordens, pois essas seriam apenas camadas inferiores de uma nica ordem. Nesse modelo hie-rrquico monista, no h lugar para uma "teoria do acopla-mento entre sistemas normativos", como pretende Jestaedt. Ao partir de uma norma fundamental como ultima ratio do sistema jurdico, s se pode raciocinar com base em uma ordem jurdica, conforme um modelo de norma inferior e norma superior, mas nunca de pluralidade de interpreta-es sistmicas do direito: a ordem nica de que se parte construtivamente no pode sequer observar um enunciado de dever-ser como pertencente a outra ordem, mas sim como dimenso interna da prpria: quem parte da ordem jurdica brasileira h de reconhecer o direito internacional pblico como uma camada inferior Constituio. A reconstruo de Jestaedt no consistente nem com o modelo kelsenia-no nem com o modelo do acoplamento entre sistemas nor-mativos: todo monismo leva a um construtivismo extremo,

    28. Cf. Kelsen, 1960, pp. 333-45 [trad. bras. 2006, pp. 370-86]; 1946, pp. 376-88 [trad. bras. 2005, pp. 535-51];1925, pp. 128-32.

    ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 125

    autista, incapaz de oferecer elementos frutferos para uma teoria do sistema jurdico multicntrico da sociedade mun-dial, no mbito do qual diversas ordens jurdicas relacio-nam-se ortogonal e horizontalmente, em uma pluralidade d9' ncleos de autofundamentao, enfrentando os mes-mos problemas constitucionais.

    A relao transconstitucional;entre ordens jurdicas no resulta apenas das prestaes recprocas (relaes de input e output), interpenetraes e interferncias entre sistemas em gerar'', mas sobretudo de que as diversas ordens jurdi-cas pertencem ao mesmo sistema funcional da sociedade mundial, sistema que pretende reproduzir-se primaria-mente como base em um mesmo cdigo binrio, a diferen-a entre licito e ilicitom. Mas essa unidade de uma diferena, por distinguir-se radicalmente de uma unidade hierrquica fundada em uma nica norma fundamental, possibilita que os cdigos e critrios jurdicos plurais proliferem em uma mulitiplicidade de ordens jurdicas, cada uma delas com a

    29. Luhmann distingue as simples "prestaes" ("relaes de in-put/output" 1987c, pp. 275 ss.) da interpenetrao (1987c, pp. 289 ss.). Esta implica que cada um dos sistemas, reciprocamente, pe sua prpria complexi-dade disposio do processo de autoconstruo do outro sistema (Luh-mann, 1987c, p. 290). Dela se distingue a "interferncia" no sentido de Teub-ner (1989, especialmente p. 110 [trad. port. 1993, pp. 178 s.]; 1988, pp. 55 ss.), pois, enquanto nesse caso (interferncia) cada um dos sistemas pe disposi-o do outro uma complexidade preordenada, na interpenetrao o sistema receptor tem sua disposio uma "complexidade inapreensvel, portanto desordem" (Luhmann, 1987c, p. 291). Cf. supra pp. 37 s.

    , 30. Gnther e Randeria (2001, pp. 94 ss.) referem-se ao "surgimento de um cdigo universal da legalidade", mas, apesar de uma perspectiva terica ecltica, sobrecarregam esse cdigo com contedos programticos de uma determinada tradio liberal: "Alm da contnua referncia diferena-dire-triz na linguagem da teoria dos sistemas: o 'cdigo binrio' entre 'licito e il-cito' , apresentam-se no cdigo universal da legalidade outros conceitos, prin-cpios, regras e institutos jurdicos: o conceito de direitos atribudos individual-mente e exercveis individualmente [...), o[s) conceito[s] de responsabilidade estrita e dependente da atribuio de culpa [...], a presuno de inocncia, a institucionalizao do papel de um terceiro imparcial, inclusive do direito de interposio de recurso, o princpio adiatur et altera pars etc." (p. 94). Cf. tam-bm Gnther, 2001.

  • 126 TRANSCONSTITUCIONALISMO ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 127 pretenso de afirmar sua identidade no manejo interno do cdigo binrio de preferncia do direito. Esse problema no leva apenas possibilidade, j enfatizada por Luhmann, de que o fechamento normativo do sistema jurdico combina-se com sua abertura cognitiva 31 . Como se trata de ordens nor-mativas dentro do mesmo sistema funcional da sociedade mundial, o direito, tambm pode falar-se de um aprendi-zado normativo entre elas, tendo em vista que esto su-bordinadas ao mesmo cdigo binrio. O vazio de conte-do desse cdigo possibilita que o fechamento normativo na determinao das normas conforme critrios imanentes prpria ordem (nacional, local, supranacional, internacio-nal ou transnacional) combine-se com a abertura normati-va no aprendizado recproco que pode ocorrer em face da soluo de casos jurdicos nos quais duas (ou mais) ordens estejam envolvidas. A relevncia do caso-problema para ambas as ordens no implica que os critrios internos de validade normativa de uma ou ambas as ordens sejam ne-gados, mas sim que, luz do problema, os contedos nor-mativos se transformam no processo concretizador, possi-bilitando o convvio construtivo entre ordens. Na constru-o da norma jurdica e da norma de deciso, cada uma das ordens envolvidas pode considerar como dimenso do seu mbito normativo elementos do mbito material rele-vante originariamente para outra ordem, como tambm incorporar como diMenso do seu programa normativo partes do programa normativo de outras ordens 32. Ou seja, partindo simultaneamente dos textos normativos e dos ca-

    31. Luhmann, 1983b, especialmente p. 139; 1984b, pp. 110 ss.; 1993a, pp. 393 ss.

    32.Aqui recorro distino entre norma jurdica (critrio de soluo do caso concreto) e norma de deciso (solucionadora do caso concreto) e dife-rena entre mbito da norma (dados primariamente "reais") e programa da norma (dados primariamente lingusticos), assim como s noes de mbito material e mbito do caso, conforme o modelo conceitual de Mller (1994, pp. 232-4,253-6 e 264 ss.; para uma explanao em lngua portuguesa, ver Cano-tilho, 1991, pp. 208 ss. e 221 ss.), embora reconhea certos limites nesse mo-delo (cf. Neves, 2006a, pp. 200-3).

    sos comuns33, podem ser construdas normas diversas ten-do em vista os possveis processos de concretizao que se desenvolvero na ordem colidente ou parceira. Assim, o fe-chamento da cadeia interna de validao precisa ser com-pa)ibilizado com a capacidade de aprendizado recproco na rede de concretizao jurdica para a construo da norma de cada ()idem jurdica em face dos, diversos casos que emer-gem com relevncia simultnea para as diversas ordens en-trelaadas. Portanto, a abertura normativa no quebra a con-sistncia interna da cadeia de validao, antes serve a uma concretizao jurdica normativamente adequada plurali-dade de ordens envolvidas. O fechamento normativo refe-re-se originariamente atribuio da norma a texto(s) ou enunciado(s) normativo(s) da prpria ordem. A questo da abertura normativa refere-se originariamente comunida-de do caso-problema a resolver em uma sociedade mundial policntrica. No se podem excluir conflitos ou colises in-sanveis entre ordens jurdicas, nem se pode eliminar defi-nitivamente a pretenso "imperial" de uma das ordens en-volvidas em face das outras: nacionalismo, internacionalis-mo, supranacionalismo, transnacionalismo e localismo so avessos ao aprendizado normativo recproco, especialmen-te nos termos reflexivos abrangentes do transconstitucio-nalismo. Isso importa, no contexto de um sistema jurdico construdo heterarquicamente mediante a relao entre uma pluralidade de ordens normativas, uma irracionalidade he-terobloqueadora, mas que tem igualmente implicaes auto-bloqueadoras para a soluo de casos.

    A existncia de problemas comuns a mais de uma or-dem jurdica, exigindo modelos normativos diversos, no algo novo, como demonstra sobretudo a experincia com re

    -entries no mbito do direito internacional privado clssi-co, j acima assinalada. Aquela questo que era pontual, re-

    33.Segundo Mller (1990, p. 20), o texto normativo constitui, "ao lado do caso a decidir juridicamente, o mais importante dado de entrada do processo individual de concretizao".

  • 128 TRANSCONSTITUCIONAUSMO ... AO TRANSCONSTITUCIONAUSMO ENTRE ORDENS JURDICAS 129 solvida conforme normas de direito ordinrio interno e tra-tados ratificados por Estados, inclusive com a previso de homologao de atos jurdicos praticados inicialmente luz de outra ordem, transformou-se profundamente com a proliferao de ordens jurdicas e a emergncia de casos ju-rdicos transterritorializados relevantes para diversas or-dens jurdicas: a ateno que essas do, simultaneamente, a danos ambientais, a violaes dos direitos humanos ou fun-damentais, a efeitos do comrcio e finanas internacionais, criminalidade transnacional, entre outras questes, faz da emergncia de casos comuns um problema cotidiano que atinge o prprio nvel reflexivo e a identidade das ordens envolvidas. O problema reside no fato de que a resposta, no centro das respectivas ordens jurdicas, deve ser dada con-forme o mesmo cdigo binrio (lcito/ilicito), mas de acordo com critrios normativos originariamente diversos. A per-gunta concernente conformidade ou desconformidade ao direito (licitude ou ilicitude), em relao a um mesmo caso, apresenta-se perante uma pluralidade de ordens jurdicas. Essa pergunta vazia pode ser complementada com refern-cia a contedo: quais os critrios ou programas condicio-naisM que podem servir para definir se algo se enquadra na hiptese da licitude ou da ilicitude? As diversas ordens, na-turalmente, vo invocar, primariamente, os seus modelos de construo de critrios e programas para a resoluo de casos. Sem dvida, em princpio, a tendncia o surgimen-to de colises. O problema reside exatamente na incompa-tibilidade das possveis solues apresentadas. Da por que a busca de "pontes de transio" fundamental. Evidente-mente, essas "pontes", como modelos de entrelaamentos que servem a uma racionalidade transversal entre ordens jurdicas, no so construdas de maneira permanente e es-ttica no mbito dinmico do transconstitucionalismo. O pro-

    34. Sobre a programao condicional (se-ento) como particularidade do sistema jurdico, ver Luhmann, 1987a, pp. 227-34; 1981a, pp. 140-3 e 275 ss.; 1973b, pp. 88 ss. (especialmente p. 99).

    cessamento dos casos vai exigir uma postura indutiva de construes e reconstrues de estruturas de acoplamento no plano das novas operaes do sistema. A dinmica rela-cional entre estrutura (critrios normativos) e operaes (ates jurdicos) para aprendizados recprocos intensa-mente circular no contexto do transconstitucionalismo da sociedade mundial do presente. 4 cada novo caso inespe-rado, as estruturas reflexivas das respectivas ordens preci-sam rearticular-se consistentemente para possibilitar uma soluo complexamente adequada sociedade, sem atuar minando, bloqueando ou destruindo a ordem concorrente ou cooperadora, mas antes contribuindo para estimul-la a estar disposta ao intercmbio em futuros "encontros" para enfrentamento de casos comuns.

    O que caracteriza o transconstitucionalismo entre or-dens jurdicas , portanto, ser um constitucionalismo relati-vo a (solues de) problemas jurdico-constitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens. Quan-do questes de direitos fundamentais ou de direitos huma-nos submetem-se ao tratamento jurdico concreto, perpas-sando ordens jurdicas diversas, a "conversao" constitu-cional indispensvel. Da mesma maneira, surgindo ques-tes organizacionais bsicas da limitao e controle de um poder que se entrecruza entre ordens jurdicas, afetando os direitos dos respectivos destinatrios, impe-se a constru-o de "pontes de transio" entre as estruturas reflexivas das respectivas ordens. Portanto, para que o transconstitu-cionalismo se desenvolva plenamente fundamental que, ns respectivas ordens envolvidas, estejam presentes prin-cpios e regras de organizao que levem a srio os proble-mas bsicos do constitucionalismo 35. Sem dvida, h ordens jurdicas, especialmente estatais, que no esto dispostas a colaborar com o transconstitucionalismo, pois desconhecem

    35. Em outra perspectiva, Fischer-Lescano (2003, pp. 720 ss.), a partir de Luhmann e Teubner, refere-se a um "direito transnacional reflexivo", afastando a ideia do carter "primitivo" ou "tribal" do "direito mundial". G. supra p. 98.

  • ... AO 'TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 131 130 TRANSCONSTTTUCIONAUSMO

    os direitos fundamentais e rejeitam a limitao e o controle jurdico-positivo dos detentores de poder. Internamente, elas no admitem Constituio em sentido moderno, a servio de uma racionalidade transversal entre direito e poltica. Em face dessas ordens, o transconstitucionalismo funciona de forma muito limitada: irritaes, influncias e presses trans-constitucionais podem levar a transformaes da ordem anticonstitucional. A alternativa ao transconstitucionalismo , nesse caso, assumir uma postura blica contra a ordem inimiga do transconstitucionalismo, cujos efeitos colate-rais a tornam normativamente no recomendvel. Outra a situao, quando se trata de ordens arcaicas, que no dis-pem de princpios e regras secundrias de organizao e, portanto, no esto em condies de admitir problemas ju-rdicos constitucionais. Ordens desse tipo exigem, cada vez mais, um transconstitucionalismo unilateral de tolerncia e, em certa medida, de aprendizado: embora elas sejam aves-sas ao modelo de direitos humanos e de limitao jurdica do poder nos termos do sistema jurdico da sociedade mun-dial, no se compatibiliza com o transconstitucionalismo a simples imposio unilateral e heternoma de "direitos hu-manos" a membros da respectiva comunidade, pois tal me-dida pode ter efeitos destrutivos em suas mentes e em seus corpos, sendo contrria ao prprio conceito de direitos huma-nos36. Por conseguinte, embora haja ordens jurdicas que es-to margem do transconstitucionalismo, esse no pode ex-cluir o desenvolvimento de institutos que possam levar a uma relao construtiva de aprendizado e intercmbio com essas ordens. Evidentemente, tal situao importa limites do trans-constitucionalismo na sociedade mundial assimtrica (cf. in-fra Cap. V.1), mas no exclui o seu significado para o desen-volvimento da dimenso normativa dessa sociedade.

    A esse respeito, cabe enfatizar que, embora a sociedade mundial, at o momento, seja orientada primariamente por

    36. Compreendidos como "garantias da integridade da psique e do cor-po" (Teubner, 2006, p. 175). Cf. infra p. 254.

    expectativas cognitivas (ver supra pp. 28 s.), o transconsti-tucionalismo parece ser a alternativa mais promissora para a fortificao de sua dimenso normativa. As ordens esta-tais, internacionais, supranacionais, transnacionais e locais, cpnsideradas como tipos especficos, so incapazes de ofe-recer, isoladamente, respostas complexamente adequadas para os problemas normativos sla sociedade mundial. Os modelos 'de constitucionalismo internacional, supranacio-nal ou transnacional, 'como alternativas fragilidade do constitucionalismo estatal para enfrentar os graves proble-mas da sociedade mundial, levam a perspectivas parciais e unilaterais, no oferecendo, quando considerados isolada-mente, solues adequadas para os problemas constitucio-nais do presente. O transconstitucionalismo, como modelo de entrelaamento que serve racionalidade transversal en-tre ordens jurdicas diversas, abre-se a uma pluralidade de perspectivas para a soluo de problemas constitucionais, melhor adequando-se s relaes entre ordens jurdicas do sistema jurdico heterrquico da sociedade mundial.

    Por fim, cabe observar que o transconstitucionalismo tem-se desenvolvido intensa e rapidamente no plano estru-tural do sistema jurdico, mas ele ainda se encontra muito limitado no mbito da semntica constitucional da socie-dade mundial. Isso, em parte, deve-se persistncia do pro-vincianismo constitucional, especialmente no mbito do di-reito estatal. claro que o transconstitucionalismo no pode eliminar a dogmtica constitucional clssica no inte-rior de uma ordem jurdica estatal: essa ainda constitui uma dimenso importante do sistema jurdico da sociedade mun-dial e h problemas constitucionais intraestatais de suma importncia. Mas a abertura do direito constitucional para alm do Estado, tendo em vista a transterritorializao dos problemas jurdico-constitucionais e as diversas ordens para as quais eles so relevantes, toma necessrio o incremento de uma teoria e uma dogmtica do direito transconstitucio-nal. Para isso, evidentemente, sero precisos novos aportes metodolgicos, a serem desenvolvidos em face de uma ca-

  • 132 TRANSCONST1TUCIONALISMO

    sustica complexa. Esse o grande desafio do transconsti-tucionalismo para os juristas, especialmente os constitucio-nalistas. As anlises dogmticas e as investidas tericas permanecem ainda muito fragmentadas e eventuais. No pla-no metodolgico, a situao continua embrionria 37. Faltam ainda os elementos de uma teoria abrangente do trans-constitucionalismo e uma dogmtica compreensiva que sir-va estabilizao do direito transconstitucional, ambas pres-supondo reciprocamente aportes metodolgicos. A seguir, pretendo apresentar elementos que possam constituir um esboo para desenvolvimentos nessa direo.

    2. Transconstitucionalismo entre direito internacional pblico e direito estatal

    Na relao entre ordens jurdicas internacionais e or-dens jurdicas estatais, surgem cada vez mais frequentemen-te casos-problemas jurdico-constitucionais cuja soluo interessa, simultaneamente, s diversas ordens envolvidas. So situaes em que invocado mais de um tribunal para a soluo do caso, sem que, necessariamente, existam nor-mas de soluo de conflitos de competncia ou, em haven-do essas, sem que haja convergncia em torno delas por parte dos respectivos tribunais. No cabe, a rigor, falar de redes verticais38, o que implicaria admitir uma relao hie-rrquica entre ordens. Antes, trata-se de entrelaamento entre ordens de tipo diferente. Nesse sentido, a partir das perspectivas diversas de observao, a direo para a solu-o do problema pode apontar para caminhos bem diver-sos. Do ponto de vista da ordem estatal, o crescente envol-

    37.Cf., p. ex., Baudenbacher, 2003, p. 523, referindo-se aos "problemas metodolgicos e prticos" da "globalizao judicial"; Uerpmann, 2001, p. 572, aludindo aos "mtodos do direito constitucional internacional". Cf. infra Cap. IV.3.

    38. Em sentido diverso, Slaughter (2004, pp. 19 ss.) distingue entre re-des verticais e horizontais.

    ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 133

    vimento dos tribunais constitucionais nessas questes, nas quais o modelo clssico de ratificao vem paulatinamente perdendo significado, fortifica-lhes o carter de problemas constitucionais referentes a direitos humanos ou fundamen-tais, ou concernentes questo de limitao e controle do pc?cler, envolvendo pretenses que ultrapassam o mbito de validade especfico da ordem interna. Do ponto de vista da ordem internacional, isso sigflifica a incorporao das questes constitucionais.no mbito de competncia de seus tribunais, que passam a levantar a pretenso de decidir com carter vinculatrio imediato para agentes e cidados dos Estados.

    Essa situao exige o desenvolvimento de formas de re-entry nas perspectivas de observao recproca. Na me-dida em que as cortes internacionais partem primariamente da ordem interestatal, confrontam-se com as compreen-ses particulares das instituies e dos problemas por parte da correspondente ordem estatal. Por um lado, uma impo-sio intemacionalista unilateral apresenta-se como pro-blemtica, no porque se possa recorrer aos princpios tra-dicionais de autodeterminao ou da igualdade soberana 39, mas sim porque, sem autoinstitucionalizao do constitu-cionalismo no plano estatal, falta uma das racionalidades jurdicas especficas necessrias afirmao do transconsti-tucionalismo. O modelo de interveno tem mostrado a sua precariedade ou insignificncia na construo de or-dens constitucionais internas 40. Por outro lado, quando os tribunais nacionais pretendem partir exclusivamente da or-dem jurdico-constitucional, confrontam-se sobretudo quando se trata do caso extremo de jus cogens com a cres-cente dificuldade de deixar de lado as instituies e normas do direito internacional pblico em nome da soberania, pois essa no pode ser mais legitimada simplesmente como um conceito de autonomia territorial, mas sim cada vez mais

    39.Carta das Naes Unidas, art. 1, 2?, e art. 78, respectivamente. 40.Cf. Koskenniemi, 2002, pp. 514 s.; 2004, pp. 202 ss.

  • 134 TRANSCONSTITUCIONALISMO ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 135

    como uma noo relativa a "uma responsabilidade poltica regional nas condies estruturais da sociedade mundial"". Considerando-se a "soberania interna" como responsabili-dade do Estado perante o seu contexto social e a "soberania externa" como sua responsabilidade perante o contexto in-terestatal, e assumindo-se que a "sociedade de Estados" constitui um "sistema de perspectivas divergentes do mun-do" e a "igualdade soberana"representa uma "estrutura de orientao recproca do comportamento" 42, parece irracio-nal um modelo que parte de uma nica perspectiva, seja essa a estatal ou a internacional abrangente. A "abertura da estatalidade", ao contrrio, trouxe consigo uma "interpene-trao entre ordem estatal e internacional" 43, que exige pro-gressivamente um aprendizado e um intercmbio entre as experincias com racionalidades especficas nas duas pers-pectivas, a estatal e a internacional.

    Quando se pretende falar de "direito constitucional in-ternacional", o nico sentido possvel vincul-lo zona de tenso entre o direito estatal e o internacional, na con-frontao e resposta a problemas constitucionais bsicos da sociedade mundial. A esse respeito, manifestou-se um re-presentante destacado do direito internacional pblico: "A Constituio a manifestao da soberania estatal e o DIP [direito internacional pblico] a sua negao ou, pelo me-nos, sua crescente limitao. A nosso ver no existe um D. Constitucional Internacional por falta de um objeto defini-do e mtodo prprio. O que existe so normas constitucio-nais de alcance internacional que devem ser analisadas em cada caso procurando compatibilizar os dois ramos da Cin-cia Jurdica."" Sendo mais preciso a esse respeito, pode-se acrescentar que, assim como h um alcance internacional das normas constitucionais do Estado, h um alcance cons-

    41. Luhmann, 1995a, p. 118. 42. Langer, 1995, pp. 18-34. 43. Langer, 1995, pp. 18 e 35 ss. 44. Mello, 2000, p. 36.

    titucional das normas intemacionais 45. Da por que no se trata de duas formas de lidar com a "soberania", no pro-priamente de afirmao de um lado e negao do outro. E no s problemas de limitao e afirmao do poder "sobe-rapto", mas tambm questes de direitos bsicos (funda-mentais ou humanos) so considerados simultaneamente em perspectivas diversas. Nesse sentido, o transconstitucio-nalismo especfico entre ordem internacional e ordem estatal apresenta-se na forma de uma "Constituio" em que se "engatam" a responsabilidade do Estado perante o seu con-texto social interno e a sua "responsabilidade interestatal" 46, mas tambm abrange o entrelaamento dessas responsabili-dades estatais com a "responsabilidade interestatal" da orga-nizao internacional, que, por sua vez, serve "intermedia o entre ordens sociais estatais" 47. Ou seja, tanto em uma perspectiva quanto em outra, os problemas constitucionais passam a ter uma relevncia simultnea, exigindo novos modelos de anlise: no s o provincianismo estatalista deve ser aqui rejeitado; igualmente prejudicial a um modelo ra-cionalmente adequado de soluo de conflitos o pseudouni-versalismo internacionalista, que, antes, constitui uma outra forma de viso provinciana dos problemas constitucionais.

    O transconstitucionalismo entre ordem estatal e ordem internacional desenvolve-se a partir do seguinte paradoxo: "Os Estados constituem o direito internacional pblico. O direito internacional pblico constitui os Estados." 48

    Esse

    = 45. Esse outro lado relaciona-se com um aspecto enfatizado por Casse-se, A. (1985, p. 341), de uma forma um tanto peremptria: " um conheci-mento comum que o direito internacional s pode ser implementado pelos. rgos estatais. Para ser mais especfico: a maioria das regras internacionais dirigida aos protagonistas da comunidade internacional, isto , aos Estados, e s pode ser posta em operao se os sistemas jurdicos domsticos dos Esta-dos estiverem prontos para implement-las." Por sua vez, Slaughter e Burke-White, tomando como parmetro a experincia europeia, prognosticam (2007) que "o futuro do direito internacional domstico".

    46. Cf. Langer, 1995, pp. 35 ss. 47. Langer, 1995, pp. 43 ss. 48. Fischer-Lescano, 2003, p. 722.

  • 136 TRANSCONSTITUCIONALISMO

    paradoxo significa que, embora a soberania do Estado de-corra da sua qualidade de sujeito de direito internacional pblico (e no o contrrio) 49, este s instaurado mediante os Estados como sujeitos de direito internacionais. Com a transterritorializao dos problemas constitucionais no m-bito de um crescente "'entranamento' das relaes inter-nacionais", essa situao implica reaes em ambas as di-rees. Por um lado, o Estado constitucional reage para que anseios referentes aos direitos fundamentais, democracia e justia social no sejam descartados na vala da globali-zao, dando maior ateno dimenso internacional em suas constituies"; por outro, a resposta crescente inter-nacionalizao da poltica e do direito reside na "ascenso da Constituio nas esferas supraestatais", de tal maneira que o "direito internacional torna-se frutfero para fins cons-titucionais". Em muitos casos, mesmo Estados constitucio-nais reagem a essa tendncia, como se manifestou na posio dos Estados Unidos e da Gr-Bretanha em face do estabe-lecimento do Comit de Direitos Humanos", como tambm na no ratificao da Conveno Americana de Direitos Hu-manos pelos Estados Unidos. Em outros casos, as reservas feitas por certos Estados so declaradas nulas, como ocor-reu por parte da Itlia e da Frana contra a reserva dos Es-tados Unidos a respeito da pena de morte para menores de dezoito anos, na ratificao do Pacto Internacional dos Di-reitos Civis e Polticds (1966) 55. Mas tambm, em nome da comunidade internacional, reage-se ao desenvolvimento de experincias constitucionais que no correspondam ao

    49." [-I um Estado no sujeito do direito internacional porque ele soberano, mas sim soberano porque sujeito do direito internacional p-blico" (Radbruch, 2003 [1932), p. 185).

    50.Fischer-Lescano, 2003, p. 728. 51.Langer, 1995, pp. 26 ss. 52.Biaggini, 2000, p. 454, referindo-se experincia da nova Constitui-

    o sua. 53. Ibidem. 54.Cf. Frohwein, 2000, p. 437. 55. Ibidem.

    ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 137

    modelo estrito do Ocidente desenvolvido 56. Essas situaes apontam para uma ambiguidade no desenvolvimento do transconstitucionalismo. Mas isso no significa que no haja uma proliferao de problemas constitucionais na interface er)tre direito internacional e estatal, que, embora ainda es-barrem frequentemente com unilateralismo e incapacidade para "conversaes constitucionais", tm encontrado, em algumas experincias institucionais, respostas satisfatrias. Alguns exemplos serviro para ilustrar essa nova constela-o jurdico-constitucional.

    Em primeiro lugar, cabe enfatizar a relao entre o Tri-bunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH)" e as culturas jurdicas consolidadas das ordens constitucionais dos res-pectivos Estados europeus a ele vinculados". Embora o art. 46.1 da Conveno Europeia de Direitos Humanos estabe-lea que "as Altas Partes Contratantes obrigam-se a respei-tar as sentenas definitivas do Tribunal nos litgios em que forem partes", no se verifica uma aplicao igual e harm-nica da Conveno, no se apresentando como evidente nem plausvel a pura imposio das decises do TEDH contra as ordens constitucionais dos Estados. As reaes Conveno e s decises do Tribunal variam amplamente en-tre os Estados. Tambm o TEDH precisa ser capaz de apren-dizado e adaptao diante dos desenvolvimentos das com-preenses particulares dos direitos fundamentais nas diver-sas ordens jurdicas nacionais.

    56.A esse respeito, afirma Koskenniemi (2002, p. 515): "Universalidade ainda parece ser uma parte essencial do pensamento progressista mas tam-bm implica uma lgica imperial de identidade: eu te aceitarei, porm somen-te sob a condio de que eu possa pensar de ti o que penso de mim."

    57.Esse Tribunal foi criado pelo Ttulo 11 (arts. 19 a 51) da Conveno Europeia de Direitos Humanos CEDH (Conveno para a Proteo dos Di-reitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), que foi adotada em Roma em 4 de novembro de 1950 e entrou em vigor em 3 de setembro de 1953. A respeito, ver as informaes contidas no stio oficial do Conselho da Europa: http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/QueVoulezVous.asp?NT=0058t

    CL=ENG (ltimo acesso em 15/12/2008). 58.Cf., p. ex., Wildhaber, 2005.

  • 138 'TRANSCONSTITUCIONALISMO ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 139

    Na Alemanha, mesmo que se admita ter ocorrido um desenvolvimento no sentido de atribuir ao tratado uma hie-rarquia superior lei ordinria 59, afirma-se ainda a funda-mentao constitucional da CEDH 60. Isso implica que os direitos humanos da CEDH, ainda quando fundamentados no art. 24.1 da Lei Fundamental, so colocados parte dos direitos fundamentais alemes e, portanto, no podem ser invocados imediatamente em uma reclamao constitucio-nal61 . Alm disso, o Tribunal Constitucional Federal ale-mo, cuja orientao fixada no julgamento do caso Caroline de Mnaco II, de 15 de dezembro de 1999 (na qual se deu maior peso liberdade de imprensa na considerao da di-vulgao de fotos de Caroline de Mnaco, com restries proteo da intimidade de pessoas proeminentes) 62, foi con-trariada pela deciso do TEDH no caso Caroline von Hanno-ver v. Germany, de 24 de junho 2004 (favorvel proteo

    59.Em sentido contrrio, Kempen (2005, p. 1511) afirma que a CEDH teria o mesmo nvel de uma lei ordinria, apontando para a deciso de 26 de maro de 1987, do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfGE 74, 358), na qual se afirma (p. 370): "Na interpretao da Lei Fundamental, o contedo e o desenvolvimento da Conveno Europeia de Direitos Humanos tm que ser tomados tambm em considerao, desde que isso no leve a uma restrio ou diminuio da proteo dos direitos fundamentais conforme a Lei Fundamental E...]. Por essa razo, a jurisprudncia do Tribunal Europeu de Di-reitos Humanos serve tambm, nessa medida, como meio auxiliar de interpre-tao para a determinao do contedo e alcance dos direitos fundamentais e dos princpios do Estado de direito da Lei Fundamental. Tambm as leis E...] devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com as obrigaes jurdico-in-ternacionais da Repblica Federal da Alemanha, mesmo que tenham sido pro-mulgadas posteriormente a um tratado internacional vlido; pois no se pode supor que o legislador, desde que no tenha proclamado claramente, queira afas-tar-se das obrigaes jurdico-internacionais da Repblica Federal da Alema-nha ou possibilitar a violao dessas obrigaes." Desse mesmo trecho, Frowein (2003, pp. 209 ss.) pretende retirar consequncias mais favorveis ao significado da incorporao da CEDH no direito alemo.

    60.Cf. Walter, 1999, p. 971. 61.Walter, 1999, p. 974, propondo um avano no sentido da primazia

    da Conveno. 62.BVerfGE 101, 361 (1999). A respeito dessa deciso, ver criticamente

    Ladeur, 2007a, sustentando a tese de que "o "direito de proeminncia" deve ser considerado fundamentalmente como um direito patrimonial" (p. 146).

    da intimidade da autora em detrimento da liberdade de im-prensa) 63, consolidou, no julgamento do caso Grgl, de 14 de outubro de 200464, sua posio no sentido de estabe-lecer limites para a aplicao interna de decises do TEDH, cc,srtsiderando a hiptese de que sejam consideradas con-trrias aos direitos fundamentais e aos princpios do Estado de direito estabelecidos na Constituio alem: o Tribunal ConstituciOnal Federal alemo deve levar em conta as deci-ses do TEDH, mas no est vinculado a elas 65. No direito constitucional alemo, o texto da CEDH e a jurisprudncia do TEDH servem como meios auxiliares de interpretao para determinar o contedo e a amplitude dos direitos fun-damentais e dos princpios do Estado de direito, desde que no levem reduo ou limitao da proteo dos direitos fundamentais prescritos na Lei Fundamental. No entanto, uma negao narcisista das normas das decises do Tribu-nal Europeu de Direitos Humanos por parte dos tribunais estatais no parece suportvel no grau de integrao euro-peia. Da por que imprescindvel, tambm para os tribunais nacionais envolvidos na soluo de questes concernentes aos direitos humanos, o desenvolvimento de uma naciona-lidade transversal em face da ordem jurdica da CEDH. Qualquer unilateralidade pode ter efeitos destrutivos, irra-cionais, sobre a integrao europeia no mbito dos direitos humanos e fundamentais. Por essa razo, a jurisprudncia constitucional alem procura invocar o art. 53 da Conven-o Europeia de Direitos Humanos: "Nenhuma das dispo-sies da presente Conveno ser interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberda-

    63.Caso Caroline von Hannover v. Germany (Application n? 59320/00). A respeito, ver Rudof, 2006; Hedigan, 2007.

    64.BVerfGE 111, 307 (2004). A questo relaciona-se com a aplicao por tribunal alemo de deciso do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que condenara a Alemanha com base no art. 8? da CEDH: caso Grgl v. Germany (Application n? 74969/01), julg. 26/02/04. Cf. Hartwig, 2005, pp. 870-3.

    65.Cf. Silva, V. A., 2009a; Hoffmeister, 2006; Hartwig, 2005, pp. 874 ss.; Hofmann, 2004, pp. 30 ss.; Wahl, 2007, pp. 880-3.

  • ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 141 140 TRANSCONSTITUCIONALISMO

    311

    des fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qual-quer outra Conveno em que aquela seja parte." Mas esse dispositivo deve ser interpretado em consonncia com a competncia do TEDH para interpretar, em ltima instncia, os dispositivos da prpria CEDH. O problema no consiste simplesmente em definir se uma disposio da Conveno foi interpretada para limitar os direitos fundamentais de um Estado, mas sim em determinar que tribunal tem compe-tncia para decidir se houve ou no essa limitao median-te interpretao. Nesse particular, o Tribunal alemo no se mostra disposto a se submeter, sem nenhuma restrio, s orientaes do TEDH, em toda e qualquer questo que ve-nha a apresentar-se 66.

    Em orientao bem diversa, o Tribunal Constitucional da ustria posicionou-se pela imediata aplicao das nor-mas da CEDH no mbito interno 67, assumindo que a Con-veno parte integrante do direito constitucional austraco, nos termos da reforma constitucional adotada em 1964 68.

    66.Silva, V. A. (2009a), analisando o caso sob a influncia de Alexy, pro-pe um modelo de associao entre "sopesamento, racionalidade e nus ar-gumentativo". A respeito, ver infra Cap. IV.3.

    67.Deciso de 14/10/1987, VJSIg. 52, n? 11500, 347. Em sentido prximo, a orientao do Tribunal uo, fixada em deciso de 15 de novembro de 1991, que qualificou a CEDH como um Tratado especial, cujas normas tm contedo de direito constitucional e so garantidas pelos mesmos procedimentos destina-dos proteo dos direitos fundamentais previstos na Constituio sua (BGE 117 lb 367, pp. 370 s.). Cf., a respeito da posio da Sua, Wahl, 2007, especial-mente pp. 886 ss., enfatizando um desenvolvimento mais favorvel ao direito in-ternacional nesse pas do que na Alemanha (pp. 888 s.). O Tribunal Constitucio-nal de Portugal, em uma posio intermediria, embora sustente que as questes constitucionais resolvem-se luz das normas e princpios constitucionais, esta-beleceu, em deciso de 12/10/1999, que a jurisprudncia do TEDH "contribui di-rectamente para determinar a convico jurdica" dos direitos fundamentais pre-vistos na Constituio portuguesa (Acrdo n? 533/99), e tem feito esforos para adaptar-se a essa jurisprudncia (cf. Barreto, 2007, pp. 83 ss.).

    68.Mediante essa reforma constitucional, atribuiu-se Conveno Eu-ropeia de Direitos Humanos e ao seu 1? Protocolo Adicional hierarquia cons-titucional. Aos seguintes Protocolos Adicionais foi conferido o carter de re-forma ou emenda constitucional (Mayer, 2007, p. 644).

    Essa postura expresso da maior abertura do tribunal austraco em face do direito internacional pblico em geral e remonta Constituio austraca de 1920, fortemente in-fluenciada pelo internacionalismo de Hans Kelsen 69. Dessa maneira, pode-se observar uma autocompreenso consti-tucional que aponta para uma disposio mais acentuada de um dilogo transconstitucional om o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Apesar de tradies culturais prxi-mas no mbito da sociedade em geral, a orientao adotada pelo Tribunal Constitucional austraco em face da validade interna das normas da CEDH afasta-se sensivelmente do modelo seguido pelo Tribunal alemo, apontando para uma marcante diversidade de culturas constitucionais. Cabe adver-tir, porm, que o Tribunal Constitucional austraco apre-senta-se reticente no que concerne obrigatoriedade das decises do TEDH. Em relao aos princpios jurdicos constitucionais da organizao estatal, entende que um jul-gamento do TEDH que interprete uma norma constitucio-nal austraca como contrria Conveno no pode servir de base sua deciso: nesse caso, a violao s pode ser sa-nada pelo "legislador constituinte". E, alm disso, o Tribu-nal Constitucional austraco argumentou que a transfern-cia para um rgo internacional da funo de desenvolvi-mento aberto da interpretao no mbito constitucional implicaria, ao pr de lado o "legislador constituinte", uma "reforma total" da Constituio nos termos do art. 44.3 do diploma constitucional austraco e, portanto, exigiria a rati-ficao do povo austraco". Dessa maneira, observa-se que

    69.Sobre o intemacionalismo de Kelsen, ver Brunkhorst, 2008a; Berns-torff, 2008b; Fassbender, 2008. Sobre a contribuio de Kelsen no surgimento da Constituio austraca e a influncia dele na sua interpretao judicial e na cincia do direito constitucional austraca, ver Ohlinger, 2008, que, porm, re-lativiza a sua influncia perante as recentes transformaes no mtodo dou-trinrio e jurisprudencial (pp. 422 ss.), no por considerar a teoria de Kelsen "falsa", mas sim por avali-la insuficiente para enfrentar os novos desafios do direito constitucional austraco (p. 424).

    70.Deciso de 14/10/1987, VSIg. 52, n? 11500, 347, pp. 365 s.

  • 142 TRANSCONSTITUCIONALISMO ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 143

    tambm o Tribunal austraco determinou condies jurdi-cas internas para a aplicabilidade interna das decises do TEDH, apontando para a existncia de "hierarquias entre-laadas" ("tangled hierachies") no sentido de Hofstadter 71 .

    A posio do Conselho Constitucional francs em re-lao ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos aponta uma certa abertura para uma "conversao" construtiva. No caso da Deciso n? 2004-505 DC, de 19 de novembro de 2004, o Conselho Constitucional recorreu, na funda-mentao de seu Acrdo, deciso do caso Leyla Sahin v. Turquia pelo TEDH, de 29 junho de 2004 72, na qual se interpretou o art. 9? da Conveno Europeia de Direitos Humanos no sentido de que esse dispositivo deixa aos Estados-membros uma margem de discrio ("marge na-tionale d'apprciation"73) para a disciplina da liberdade re-ligiosa. Com base nessa interpretao, o Conselho Cons-titucional definiu sua posio de que os Estados so "livres" tanto para proibir as alunas islmicas de usar o vu quanto para autoriz-las a faz-lo 74 .

    Em relao pluralidade de constitucionalismos euro-peus, impe-se ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos uma posio flexvel ao decidir com pretenso vinculante a respeito de casos que afetam diversos pases, considerando tambm as autocompreenses constitucionais especficas e suas metamorfoses. Nesse sentido, a prpria orientao do TEDH transforma-se, com o tempo, na admisso de aes para a proteo aos direitos humanos, em matria idntica de aes anteriormente rejeitadas, em face de um mesmo

    71.Hofstadter, 1979, pp. 10 e 684 ss. [trad. bras. 2001, pp. 11 e 751 ss.]. 72.Caso Leyla Sahin v. Turkey (Application n? 44774/98). 73.Delmas-Marty (2006, pp. 82 ss.), inclusive referindo-se ao caso Leyla

    Sahin v. Turkey (pp. 87 e 90), alude "necessidade de uma margem nacional" e, ao mesmo tempo, considera as dificuldades de sua implementao ["dzffi-cuits de lnise em ordre" pp. 88 ss.].

    74.Conseil Constitutionnel, Dcision n? 2004-505 DC, de 19/11/2004. Como essa deciso tambm envolve direito supranacional europeu, retomarei a ela no captulo N.

    pas. No julgamento do caso Goodwin v. United Kingdom, em Acrdo de 11 de julho de 2002 por exemplo, observa-se que a evoluo do direito interno dos Estados signatrios da conveno serve de fundamento para uma reviravolta de jurisprudncia do Tribunal Europeu. At ento, o tribunal deixava aos Estados a liberdade de disciplinar livremente o status dos, transexuais, ou seja, de dizer se eles continua-riam a ser classificados como homens ou mulheres e todas as consequncias desse reconhecimento (possibilidade ou no de casar, possibilidade ou no de pedir penso etc.). Nesse caso, o Tribunal entendeu que, por no levar em conta a mudana de sexo, o Reino Unido estaria violando a Con-veno Europeia de Direitos Humanos 75 . Um outro exem-plo reside no julgamento do caso E.B. v. France, em Acrd de 22 de janeiro de 2008, em que tambm a evoluo do di-reito interno dos Estados signatrios serve de fundamento para que o Tribunal Europeu restrinja a discricionariedade dos Estados na regulamentao do direito no discrimi-nao76. Uma observao cuidadosa das diversas autocom-preenses constitucionais fundamental, portanto, para que o TEDH no perca sua capacidade de decidir legitima-mente sobre casos de relevncia para cortes de pases sig-natrios da CEDH.

    Um dos pontos interessantes em relao ao Tribunal Eu-ropeu de Direitos Humanos refere-se influncia de suas decises fora da Europa, entre pases, portanto, que no so signatrios da CEDH. Destaca-se o voto do Juiz Anthony Kennedy, no caso Lawrence v. Texas, julgado em 26 de mar-o de 2003, que sustentou a deciso majoritria com o ar-gumento de que o TEDH, como tambm "outras naes", teve "uma ao consistente na afirmao dos direitos pro-

    75.Caso Christine Goodwin v. United Kingdom (Application n? 28957/95). A respeito desse e de outros casos do TEDH concementes livre orientao sexual e mudana de estado civil em face de operao transexual, cf. Rudolf, 2003; Piovesan, 2008a, pp. 66 ss.

    76.Caso E.B. v. France (Application n? 43546/02).

    ka

  • 144 TRANSCONSTITUCIONALISMO ,.. AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 145 tegidos dos homossexuais adultos de envolver-se em con-duta ntima e consensual" 77. Principalmente com base nes-sa deciso de afirmao dos direitos das minorias homos-sexuais, desenvolveu-se o debate entre os Justices Atonin Scalia e Stephan Breyer sobre o uso da jurisprudncia do TEDH (e de outras naes) para a interpretao do direito constitucional americano, o primeiro em posio antagni-ca e o segundo em posio favorvel 78. Essa discusso um indcio de que, mesmo no mbito de uma tradio consti-tucional de autossuficincia, o recurso ao dilogo constitu-cional com outras cortes internacionais e estrangeiras no mbito de questes constitucionais internas passou a ser um dos temas centrais na nova agenda do constitucionalis-mo americano.

    Um outro caso relevante de transconstitucionalismo entre ordem internacional e ordem estatal vem-se desen-volvendo na relao entre o "Sistema Interamericano de Direitos Humanos", institudo pela Conveno Americana sobre Direitos Humanos (CADH), e as ordens constitucio-nais dos respectivos Estados signatrios que a ratificaram 79. Nesse contexto, no se trata simplesmente da imposio de decises da Corte Interamericana de Direitos Huma-nos (CIDH), criada e estruturada pelo Captulo VIII (arts. 52 a 69) da CADH, aos tribunais nacionais com competncias constitucionais. Esses tambm reveem a sua jurisprudncia luz das decises da Corte. Tanto do lado da CIDH quanto da parte das cortes estatais tem havido uma disposio de

    77.Lawrence et al. v. Texas, 539 U.S. 558 (2003), p. 576. A respeito dessa deciso ver a breve exposio de Eskridge, 2004.

    78. G. a discusso entre Scalia e Breyer, moderada por Dorsen (moder.), 2005. Sobre o contexto dessa discusso, ver Ginsburg, 2005b. Cf. tambm infra pp. 257 ss.

    79.A conveno foi adotada em 22 de novembro de 1969, em So Jos da Costa Rica, tendo entrado em vigor em 18 de julho de 1978, conforme o seu art. 74, n? 2. A respeito, ver Burgorgue-Larsen, 2009; Ortiz, 2009; sobre a dis-cusso no Brasil, ver Oliveira (coord.), 2007, destacando-se o prefcio de Trin-dade, 2007. Para uma anlise da jurisdio da CIDH, cf. Ramrez, 2008.

    dilogo em questes constitucionais comuns referentes proteo dos direitos humanos, de tal maneira que se am-plia a aplicao do direito convencional pelos tribunais domsticos80. / Um caso interessante diz respeito coliso entre o art. 7?, n? 7, da. Conveno Americana de Direitos Humanos, e o art. 5?, inciso LXVII, da Constituio brasileira. Enquanto essa disposio constitucional permite a priso civil do depositrio infiel, o dispositivo da Conveno a probe. No julgamento do RE 466.343/SP, do RE 349.703/RS e do HC 87.585/TO, o Supremo Tribunal Federal decidiu em 3 de dezembro de 2008, por maioria, que os tratados e convenes sobre di-reitos humanos, quando no aprovados nos termos proce-dimentais do art. 5?, 3?, da Constituio Federal (procedi-mento idntico ao de uma Emenda Constitucional), tm uma hierarquia supralegal, mas infraconstitucional. Esse caso ensejou uma ampla discusso a respeito da incorporao dos tratados de direitos humanos na ordem jurdica brasi-leiras'. Uma tendncia na anlise do caso foi a defesa de uma soluo no sentido da validade interna ilimitada do men-cionado preceito da ratificada Conveno Americana de Direitos Humanos, tendo em vista que essa norma levaria a uma ampliao dos direitos constitucionalmente estabele-cidos, de tal sorte que o direito nela contido estaria funda-do no art. 5?, 2?, da Constituio Federals 2. Mas, tambm na interpretao restritiva em relao ao nvel da validade interna do dispositivo da CADH, no se exclui uma soluo positiva para a ampliao prtica dos direitos fundamen-tais: o argumento em favor da validade supralegal e infra-constitucional da Conveno ratificada serve a uma deciso

    80.Cf. Ortiz, 2009, pp. 273 ss.; Burgorgue Larsen, 2009, pp. 309 ss. 81.RE 466.343/SP, RE 349.703/RS, HC 87.585/TO, julg. 03/12/2008, TP,

    DJe 05/06/2009 e 26/06/2009. 82.Posio defendida pelo ministro Celso Melo, em voto condutor da

    divergncia, com apoio nas obras de Trindade, 1997, pp. 407 s.; Piovesan, 2008, pp. 51-77; Mazzuoli, 2001, pp. 147-50; 2007, pp. 682-702. Mello (2001, pp. 25 s.) vai alm e sustenta o carter supraconstitucional dos tratados e convenes so-bre direitos humanos.

  • 146 TRANSCONSTITUCIONALISMO

    no sentido de que a Constituio apenas admitiu a priso do depositrio infiel; ento, o direito infraconstitucional po-deria decidir livremente a respeito da permisso ou proi-bio e, nessa hiptese, o pacto internacional teria prima-zia sobre o Cdigo Civil brasileiros'. S a manuteno da orientao dominante anteriormente na tradio jurdica brasileira, ou seja, a concepo de que os atos internacio-nais ratificados tm o nvel de validade de uma lei ordin-ria, poderia levar a um conflito insupervel entre o STF e a CIDH, pois o Cdigo Civil brasileiro entrou em vigor aps a ratificao do tratado e, nesse caso, prevaleceria o m-xima lex posterior derogat priori84 . Mantida essa posio, o STF estaria rompendo um dilogo constitucional com a CIDH em torno de uma compreenso dos direitos huma-nos e dos direitos fundamentais. No entanto, na discusso que se travou, parece claro ter sido colocado no primeiro plano o esforo com vista formao de uma racionalidade transversal, que se mostre suportvel para ambas as ordens jurdicas envolvidas.

    Do lado da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cabe destacar o importante julgamento do caso Yatama vs. Nicargua, referente participao democrtica de mem-bros da comunidade indgena, filiados ao partido Yatama, que foram proibidos de candidatar-se eleio municipal de 5 de novembro de 2000, por fora de deciso do Conse-

    83.Posio defendida pelo ministro Gilmar Mendes, em voto condutor da maioria. Nesse sentido, ver Mendes, Coelho e Branco, 2007, pp. 665 ss.

    84.Jurisprudncia consolidada pelo STF no julgamento do RE 80.004/SE, julg. 01/06/1977, DJ 29/12/1977. A respeito dessa jurisprudncia, ver Mendes, Coelho e Branco, 2007, pp. 659 ss. Essa ainda a posio de Dimoulis e Mar-tins (2007, p. 50) para os tratados no aprovados nos termos do 3 do art. 5? da Constituio Federal. Pontes de Miranda (1960, p. 225), embora equiparas-se hierarquicamente o tratado lei ordinria, afirmava: "A Constituio no pode atingir tratado anterior sem ser dentro das clusulas que o prprio trata-do, vlido em direito das gentes, contm para a denncia dele, ou a ab-rogao das suas regras. Assim, o primado do direito das gentes, ento, indiscutvel. [...] Os escritores incidiram, a respeito, em graves confuses, oriundas de as-similao inconsiderada entre o tratado anterior Constituio e o tratado posterior Constituio."

    ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 147

    lho Supremo Eleitoral da Nicargua85. A CIDH no s con-denou o Estado da Nicargua a indenizaes por danos materiais e imateriais, como tambm determinou que se procedesse reforma da respectiva lei eleitoral, concluindo: "Q Estado deve reformar a regulao dos requisitos dispos-tos na Lei Eleitoral n 311, de 2000, declarados violatrios da Conveno Americana de Direitos Humanos, e adotar, em prazo razovel, as medidas necessrias para que os mem-bros das comunidades indgenas e tnicas possam partici-par nos processos eleitorais de forma efetiva e tomando em conta suas tradies, usos e costumes, nos termos do par-grafo 249 de presente sentena." 86

    Aqui se apresenta um exemplo claro em que a ampliao de direitos fundamen-tais constitucionais encontrou apoio em norma da ordem internacional invocada para dirimir o conflito: a prpria com-preenso do direito interno de cidadania ativa, matria in-trinsecamente constitucional, ficou vinculada a regulaes internacionais, passando a depender da interpretao de um tribunal tambm internacional.

    Mas h experincias no sentido inverso, nas quais a norma internacional de proteo dos direitos humanos a ser invocada pode apresentar-se como uma restrio a direitos fundamentais da Constituio estatal. Esse o caso da coli-so entre a Constituio brasileira e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que foi adotado em 17 de ju-lho de 1998 e entrou em vigor na ordem internacional em 1 de julho de 2002, tendo sido ratificado pelo Brasil me-diante o Decreto Legislativo n? 112, de 2002. Enquanto o art. 77, n 1, alnea b, do Estatuto de Roma, prev a priso perptua ("se o elevado grau da ilicitude do fato e as condi-es pessoais do condenado a justificarem"), essa pena proi-bida conforme o art. 5?, inciso XLVII, alnea b, da Constituio Federal. Embora o art. 5?, 4?, da Constituio Federal, in-

    85.Caso Yatama vs. Nicargua, Sentena de 23/06/2005. 86. Idem, 275.1 (nesse ponto, com o voto dissidente do juiz ad hoc

    Montiel Argello). A respeito dessa deciso, ver Volio, 2005.

  • ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 149 148 TRANSCONSTITUCIONALISMO

    troduzido pela Emenda Constitucional n? 45, de 2004, te-nha estabelecido que o "Brasil se submete jurisdio de Tribunal Penal Internacional a cuja criao tenha manifes-tado adeso", a questo permanece problemtica, tendo em vista que, de acordo com o art. 60, 4?, inciso IV, do diploma constitucional brasileiro, a vedao de penas de "carter perptuo", includa no catlogo dos direitos e ga-rantias individuais, no pode ser abolida enquanto clusu-la ptrea. Por um lado, a compreenso de direitos humanos pelo direito internacional pblico parte das preocupaes com os crimes escandalosos e chocantes contra a humani-dade. Por outro, o ponto de partida da compreenso consti-tucional brasileira dos direitos fundamentais reside no en-tendimento de que a priso perptua viola os direitos hu-manos. Uma soluo unilateral no adequada nesse caso. De acordo com os casos precedentes, h a tendncia na ju-risdio constitucional brasileira de exigir uma condio es-pecfica para a extradio do suposto criminoso a ser pro-cessado ou do criminoso j condenado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI): ele s ser entregue se a priso perptua for comutada em uma pena de, no mximo, trinta anos". Embora, a rigor, no se trate de extradio na hiptese de um tribunal internacional, pois o conceito de extradio se refere relao entre Estados, essa soluo poder ser ado-tada para os casos de pedido ao Brasil da entrega de crimi-nosos, rus ou indiciados ao Tribunal Penal Internacional". Essa uma soluo intermediria, que, embora no seja in-

    87. Confirmando os precedentes na experincia jurisprudencial mais re-cente, cf. os seguintes casos de extradio, todos decididos por unanimidade pelo Pleno do STF: Ext. 1.104/UK Reino Unido da Gr-Bretanha e da Irlan-da do Norte, julg. 14/11/2008, Dje 25/06/2008); Ext. 1.103 Estados Unidos da Amrica, julg. 13/03/2008, DJe 07/11/2008; Ext. 1.060/PU Peru, julg. 15/10/2007, DJe 31/10/2007; Ext. 1.069/EU Estados Unidos da Amrica, julg. 09/08/2007, DJe 14/09/2007.

    88. Cf. Maliska, 2006, pp. 188 s., que ainda admite a hiptese da entrega ao TPI sem essas condies (p. 189), o que me parece incompatvel com os pre-cedentes jurisprudenciais brasileiros e implicaria a quebra de "clusula ptrea". A respeito, ver Sabadell e Dimoulis, 2009.

    teiramente compatvel com o Estatuto de Roma, pode ser suportada pelo Tribunal Penal Internacional em uma posi-o construtiva e disposta ao aprendizado. A questo pode-r tornar-se mais problemtica se o STF vier a considerar a hiiptese como de "extradio" e afirmar a sua jurisprudn-cia de no extradio de brasileiros, nos termos do art. 5?, inciso LI, da Constituio brasilgira. Nesse caso, no seria to simpls a soluo do conflito normativo. Porm no pa-rece correta, como j foi adiantado, a extenso semntica desse preceito, no sentido de que essa proibio valha tam-bm para a entrega de criminoso, ru ou indiciado ao TPI, pois a extradio refere-se relao entre Estados. Sem d-vida, mesmo admitida essa interpretao do conceito de ex-tradio, ainda surgiro novamente problemas pela invocao do art. 60, 4?, inciso IV, da Constituio, que no permite a abolio de garantias de direitos fundamentais ("clusu-las ptreas"). O rumo dos desenvolvimentos nesse contex-to normativo permanece aberto. No obstante, a disposio para o aprendizado em ambos os lados, mediante a formao de uma rede transversal construtiva, ou seja, o transconsti-tucionalismo, decisivo para o sucesso nessa rea de coli-so. Internacionalismo e nacionalismo, nessa hiptese, po-dero levar a atitudes destrutivas para os direitos humanos ou fundamentais.

    Por fim, no plano do direito constitucional econmico, a atuao da Organizao Mundial do Comrcio 89, na solu-

    89. O Tratado de Instituio da Organizao Mundial do Comrcio foi adotado em 15 de abril de 1994. A respeito, ver Petersmann, 1995. Kosken-niemi (2004, pp. 206 s.), em postura eminentemente crtica, afirma, com base em dados empricos e argumentos que me parecem convincentes: "O estabe-lecimento da OMC em 1995 foi uma vitria significativa para as preferncias pelo livre comrcio sobre os objetivos regulatrios com enfoque nacional. 1...] A polarizao da oposio entre o Norte e o Sul (especialmente eviden-te no campo da propriedade intelectual) pode ter diminudo as possibilida-des de inovao judicial por parte dos grupos especiais [paneis) ou do rgo de Apelao. De fato, h poucos indcios que possam dissolver a impres-so de que o rgo de Soluo de Controvrsias seda um clube de ricos: a ampla maioria dos casos ainda so trazidos a ele pelos Estados Unidos e pela Unio Europeia."

  • ... AO TRANSCONSTITUCIONALISMO ENTRE ORDENS JURDICAS 151

    o de controvrsias referentes legitimidade de normas estatais concernentes ao protecionismo ou limitao da liberdade econmica alm das fronteiras, tem levado a um forte impacto do modelo econmico liberal nas ordens constitucionais dos Estados envolvidos, cuja posio, em grande parte, apenas reativa orientao da OMC 90. O prprio Grimm acentua que "o mecanismo de soluo de controvrsia que existe desde 1995 torna autnomo, em re-lao s partes que celebraram o pacto, o direito fundado pacticiamente, subordinando essas s decises da instn-cia da OMC" 91 . Da se afirmar que, por fora da instituio da OMC, teria se consolidado um processo de passagem "da diplomacia de negociao para a ordem constitucional internacional" no mbito do direito econmico internacio-nal92, ou se falar das "dimenses jurdico-constitucionais da Organizao Mundial do Comrcio" 93 . Parece-me que mais frutfero do que afirmar uma constitucionalizao ou Constituio da OMC indagar sobre os problemas jur-dico-constitucionais, que, tendo sido originariamente en-frentados pelos Estados isoladamente ou em formas de tra-tados bilaterais e diplomacia, passaram a apresentar-se de maneira abrangente e relevante perante a OMC, instituio fundada na multilateralidade. Nesse sentido, sim, poder-se-ia falar de problemas e, portanto, de funes jurdico-consti-tucionais da OMC", uma vez que questes de direito cons-titucional econmico esto no seu mbito de competncia, especialmente na soluo de litgios. Mas essa situao deve ser compreendida no mbito de um transconstitucio-nalismo entre ordens jurdicas, principalmente porque o xito da OMC na prtica de regulao das relaes econ-

    90.Cf. Nettesheim, 2001, pp. 403 s. 91.Grimm, 2004a, p. 161. 92.Nettesheim, 2001. 93.Bogdandy, 2001. 94.J antes da criao da OMC, Petersmann (1991) tratava das "Fun-

    es constitucionais e problemas constitucionais da ordem econmica inter-nacional".

    micas e na soluo de controvrsias depende amplamente da reao dos Estados envolvidos, inclusive das cortes cons-titucionais. Especialmente em "tempos difceis", comum a retomada de formas de protecionismo que contrariam a orientao da OMC95. Mas tambm, fora desses perodos, h desvios das normas e descumprimentos de decises da OMC mesmo por pases pretensgmente mais liberais, como se pode Nlerificar com o no cumprimento pelos Estados Unidos da deciso adotada pela OMC, em 26 de setembro de 2000, conforme a qual se determinou que a lei antidum-ping americana de 1916 (US Anti -Dumping Act of 1916) contrria s normas da OMC e deveria ser modificada no prazo de 10 meses96. E, ainda que se definam formas efetivas de imposio das decises da OMC 97, torna-se inadequado, no mbito de um transconstitucionalismo, um modelo de simples outorga de suas decises aos Estados envolvidos em contendas. O desenvolvimento da OMC, no plano das competncias referentes a temas de direito constitucional econmico, depende da capacidade de que sejam constru-dos modelos flexveis, que estejam em condio de ser o mais abrangentemente incorporados s diversas ordens ju-rdicas estatais, caracterizadas por uma enorme diversidade de concepes da liberdade econmica.

    Esses exemplos em torno do transconstitucionalismo entre ordens internacionais e ordens estatais apontam para a necessidade de superao do tratamento provinciano de problemas constitucionais pelos Estados, sem que isso nos leve crena na ultima ratio do direito internacional pbli-c'o: no s aqueles, mas tambm este pode equivocar-se quando confrontado com questes constitucionais, inclusi-ve com problemas de direitos humanos.

    95.Nettesheim, 2001, pp. 403 s. 96. WT/DS136/AB/R, WT/DS162/AB/R. A respeito, ver Keyser, 2001. 97.Cf. Nettesheim, 2001, pp. 404 s.

    150 TRANSCONSTITUCIONALISMO