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1 TERRITORIALIDADES SERTANEJAS EM COMUNIDADES RURAIS: NARRATIVA DE SUAS GENTES Ana Flávia Rocha de Araújo Integrante do Grupo de Pesquisa OPARÁ Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES [email protected] Andrea Maria Narciso Rocha de Paula Líder do Grupo de Pesquisa OPARÁ Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES [email protected] Resumo O presente artigo tem por finalidade apresentar o sertão norte mineiro sob suas diversificadas faces através do “olhar sertanejo”, de quem nele vive e habita; envolvendo em seu arcabouço teórico fragmentos e depoimentos de sertanejos, que com uma visão de mundo específica nos apresenta um novo sertão. A partir desse “olhar” apreende-se a construção de uma identidade, de uma cultura, uma territorialidade. O trabalho fundamenta-se numa revisão bibliográfica do livro Opará: “Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades Tradicionais nos sertões roseanos”. Palavras-chave: Sertão, Sertanejo, Identidade, Cultura, Territorialidade. Introdução Senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja:Que situado sertão é por campos-gerais o fora (...) Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer. Aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães. O sertão está em toda à parte... (ROSA, 2006) O Sertão norte mineiro é repleto de sentidos, impressões, cor, sabor, cheiro, que intensificados com o desejo da descoberta, apresentam características próprias. Durante muitos anos, este mesmo sertão que é capaz de transformar saberes e aprimorar convicções, foi e continua sendo cenário de grandes conflitos, mas também de grandes descobertas. Quando adentramos o sertão, todas as impressões são mais reais, mais intensificadas, mais vividas. A vegetação que por si só já demonstra uma realidade, aos olhos de quem

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TERRITORIALIDADES SERTANEJAS EM COMUNIDADES RURAIS: NARRATIVA DE SUAS GENTES

Ana Flávia Rocha de Araújo Integrante do Grupo de Pesquisa OPARÁ

Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES

[email protected]

Andrea Maria Narciso Rocha de Paula Líder do Grupo de Pesquisa OPARÁ

Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES

[email protected]

Resumo O presente artigo tem por finalidade apresentar o sertão norte mineiro sob suas diversificadas faces através do “olhar sertanejo”, de quem nele vive e habita; envolvendo em seu arcabouço teórico fragmentos e depoimentos de sertanejos, que com uma visão de mundo específica nos apresenta um novo sertão. A partir desse “olhar” apreende-se a construção de uma identidade, de uma cultura, uma territorialidade. O trabalho fundamenta-se numa revisão bibliográfica do livro Opará: “Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades Tradicionais nos sertões roseanos”. Palavras-chave: Sertão, Sertanejo, Identidade, Cultura, Territorialidade. Introdução

Senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja:Que situado sertão é por campos-gerais o fora (...) Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer. Aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães. O sertão está em toda à parte... (ROSA, 2006)

O Sertão norte mineiro é repleto de sentidos, impressões, cor, sabor, cheiro, que

intensificados com o desejo da descoberta, apresentam características próprias.

Durante muitos anos, este mesmo sertão que é capaz de transformar saberes e aprimorar

convicções, foi e continua sendo cenário de grandes conflitos, mas também de grandes

descobertas.

Quando adentramos o sertão, todas as impressões são mais reais, mais intensificadas,

mais vividas. A vegetação que por si só já demonstra uma realidade, aos olhos de quem

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vê se torna exuberante; o sol, o calor, as águas límpidas e torrenciais do Velho Chico

expressam o quão guerreiro se faz o sertanejo.

Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo relatar que sertão é este através de

depoimentos das suas gentes; apreendendo assim, o cotidiano vivido, os saberes

adquiridos, as práticas e técnicas desenvolvidas, o saber cuidar e o saber fazer que são

peculiares, bem como, dar voz aos sujeitos deste sertão, que é tão cheio de simbologias.

Faz-se importante ressaltar, que este artigo é de fundamentação teórica, mais

especificamente uma revisão bibliográfica do livro: Cerrado, Gerais, Sertão:

Comunidades Tradicionais nos sertões roseanos; que é uma obra realizada pelo grupo

de pesquisas OPARÁ e que se encontra em processo de edição. Sendo assim, todos os

depoimentos, citações expressas neste artigo são de fonte deste livro, que foi lido na

disciplina de Comunidades Tradicionais, ofertada ao 6º período de Ciências Sociais da

Universidade Estadual de Montes Claros, que foi ministrada pela professora Drª Andréa

Maria Narciso Rocha de Paula.

Eu praticamente me criei nesse rio sabe...i A maior parte deste Sertão vivido e sentido, narrado por Guimarães Rosa em seus

inúmeros livros, sendo o principal Grande Sertão: Veredas envolvem uma intensa

ligação com o Rio São Francisco, onde seus protagonistas vivem no ou do rio.

Desde a sua descoberta em 1501 pelo navegador espanhol Américo Vespúcio, o rio São

Francisco se tornou cenário de luta, sobrevivência e lazer ao longo de todo o seu trajeto.

No decorrer deste artigo, será possível identificar através de relatos dos moradores de

Barra do Guaicuí, Barra do Pacuí, Pirapora, Buritizeiro, comunidades de Bom Jardim da

Prata, Gigante e Fonseca, Cabeceira de Forquilha, dentre outras, que o rio São Francisco

está presente em seus cotidianos de maneiras diversificadas. Eu praticamente me criei nesse rio sabe... O meu pai era remeiro, trabalhou muitos anos nessas barcas, ficava até seis meses fora de casa. A minha mãe que cuidava da casa e dos cinco filhos. Lembro que ela levava a gente pra beira do rio, tudo pequeno, lá ela lavava as roupas e a gente brincava na água. Mais ela colocava a gente pra ajudar a lavar também, enquanto ela ia ensaboando a roupa a gente tirava o sabão. Ainda menino, eu e os meus irmãos quem cuidávamos da roça, enquanto o pai ficava fora. A gente plantava pra comer e fazia farinha também... A gente sentia muita falta do pai. Minha mãe chorava por causa dele, sentia falta do nosso pai junto dela e dos filhos. Ela sofreu muito por causa dessa vida de remeiro dele [...] Depoimento do senhor João de Félix.

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Através do depoimento do Senhor João de Félix, é possível perceber que o rio São

Francisco se fazia em seu cotidiano sobre três aspectos: o do trabalho, que envolvia o

fato de ajudar sua mãe a lavar as roupas; o da diversão, que eram os vários momentos de

brincadeiras dentro do rio; e a espera, que talvez seja um dos mais importantes e

marcantes momentos na vida do senhor João de Félix. A longa espera da volta do pai,

de suas idas e vindas como remeiro, e a angustia de sua mãe, fez do rio também, um

lugar de tristeza.

Em meio a grande imensidão do seu trajeto, o rio São Francisco se tornou cenário de

uma das artes artesanais mais antigas: a pesca. Esta por sua vez, tem e sempre teve seus

altos e baixos. As comunidades que vivem do rio São Francisco, e que são relatadas

neste livro, expressam em seus depoimentos, a dureza dos dias e as alegrias do tempo de

antigamente, que segundo eles eram um tempo de fartura e de coisas boas (fartura não

somente no sentido de comida, mas de expressão e de liberdade).

Em 1971, a revista “Realidade” de cobertura nacional designou uma comitiva de

jornalistas para fazerem uma viagem pelo Rio São Francisco, no município de Ibiaí os

jornalistas reproduziram o seguinte fato: Aureliano, metido em botas de borracha, sobe aos escorregões pelo barranco. Os pescadores que saíram pela manhã com suas canoas já estão voltando, encostando-se ao pequeno porto o próprio barranco - de Ibiaí. Minas Gerais. Aureliano sobe depressa, vai abrir a sua casa de negócios na rua principal da cidade. A casa de negócios: um salão de chão batido, balcão, um tanto solene, e fica a espera. Na pobreza do negócio, um homem importante, um dos poucos compradores de peixe em 100 km de rio, daqui até a boca do Urucuia. Intermediário de um frigorífico de Pirapora, única cidade de todo o São Francisco onde exploração da pesca é mais ou menos organizada [...] No mundo pobre que faz negócio, um homem importante. [...]Antonio Sovela, pai de quatro filhos, é um pescador ‘aviados’ por Aureliano. Tem débito de- ‘25 contos’ - mas hoje não vai abater. Nem vai a Aureliano, manda o filho maior, Fernando (cartoze anos), levar o peixe, o único que conseguiu pescar com sua tarrafa. Na balança, 2 quilos e meio; a cotação do frigorífico é 80 centavos o quilo, o Curimatá vale 2 cruzeiros. O garoto, olhos brilhando, espera com ansiedade logo entendida pelo negociante, que abre a gaveta e apanha duas células amarrotadas de 1 cruzeiro. O menino sai quase correndo, volta para atender ao nosso chamado e para dizer o que vai fazer com os 2 cruzeiros: -Pai mandou comprar farinha. -Para comer peixe? -Não, senhor, nós só peguemos esse. Então a farinha é para comer com quê? - Com nada. O dia não foi bom para ninguém, dinheiro quase não entrou para a gaveta de Aureliano. Quase anoitecendo, ele fecha a porta de sua casa de negócio. Vai

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para casa, levando uma Curimatá até de 2 quilos e meio. Lá estão esperando para o jantar a mulher e nove filhos. (Fonte: Revista Realidade, 1971, p.23).

Neste sentido, através do relato acima divulgado pela Revista “Realidade”, pode-se

comprovar as dificuldades que as comunidades tradicionais já vinham sofrendo e

continuam a sofrer nos dias atuais, principalmente quando se trata de pescadores.

Realidades como estas, intensificaram os processos de migração oriundos do sertão para

os grandes centros metropolitanos. A busca pela sobrevivência, trabalho, estudos, o fato

de sair para conhecer coisas novas, foram e são alguns dos principais motivos que

levam os sertanejos a migrarem para outros espaços que não os seus de origem.

Com estes processos, e o desejo de vencer, de conquistar seus objetivos, muitas dessas

pessoas se submeteram a trabalhos escravos e a péssimas condições de vida. Mas o

interessante, digamos, nesta realidade é que estas migrações são temporárias. Acredito

que pelo fato de terem um lugar seguro e certo no sertão, estas pessoas sempre retornam

para o seu lugar de origem; e na maioria das vezes fazem questão de demonstrar através

de gírias, formas de vestir, de andar, de se portar, que adquiriram alguma coisa durante

o tempo em que estiveram fora. Fatos que se podem comprovar através do relato abaixo. A gente vai para São Paulo, fica lá um tempo e volta com algum dinheiro no bolso. Ficar aqui dia e noite morrendo de fome é que não dá. Eu já tenho 65 anos e digo que já perdi as contas de quantas vezes já fui para São Paulo e quantas já voltei. Primeiro lá nos anos 70 vinha gente buscar a gente aqui em Ibiaí ou em Montes Claros ou em Pirapora. Ou então a gente já ia sabendo de alguém que tava precisando de homem forte para trabalhar na construção. Depois começou a ficar mais difícil, mas quando é gente como que eu que topa qualquer serviço, você vai e arruma trabalho. Já trabalhei mais de 12 horas em um dia só e só com um pão e um leite ralo. São Paulo não é terra para morar não, mas é lugar pra gente ir, ganhar algum e voltar para terra da gente. Já pensei em nunca mais ir lá, agora acho que velho como eu tô, tem quatro anos que não vou, mas sei não, tá tão difícil. Olhando para trás não falo que a vida mudou com as idas para São Paulo, mas não morri de fome e se não tivesse ido quem sabe? (Relato do Sr. Adão Noé, 65 anos, na beira do Rio São Francisco, morador de Ibiaí, em entrevista em Junho de 2008).

Mas o sertão, também é um território de novidades, de ensinamentos e de vivências

ímpar. É um lugar onde as pessoas são mais felizes com o pouco que possuem, e são

mais hospitaleiras com quem vem de fora.

O próprio pescador está acabando com ele mesmo...ii

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Um dos grandes entraves vivenciados atualmente pelos sertanejos, mais especificamente

pescadores do rio São Francisco, são as mudanças e os impactos ambientais ocorridos

na região; fato que vêm prejudicando a sobrevivência de muitos destes pescadores.

Neste sentido, e segundo percepções de pescadores de Três Marias, Pirapora, Buritizeiro

e Januária, dentre outras localidades, o que vem prejudicando ainda mais a pesca como

uma atividade artesanal, são os impactos ambientais, que em certos casos são cometidos

pelos próprios pescadores. Sendo assim, podemos comprovar estes impactos através dos

depoimentos citados abaixo: Quando dá a chuva, a represa fecha para recuperar a água que vazou. Então, o São Francisco fica sempre sem água. Quando a represa vai abrir porque superou a questão da água, já não tem mais chuva e o peixe vai sumindo. (pescador de Pirapora, 2008) O rio sofre por causa da barragem e do desmatamento para carvão, para plantar eucalipto... (pescador de Buritizeiro, 2000)

O rio está muito raso, ficou muito raso...e ainda a enchente diminuiu... (pescador de Januária, 2001)

...poluição, o rio das Velhas está muito poluído, muita porcaria, esgoto, muito lodo, perto de Três Marias, tem as fábricas que despejam no rio...(pescador de Três Marias, 1999).

...até que hoje já não mata tanto, mas aqui antigamente já morreu muito peixe por causa dessa CMMiii(pescador de Três Marias, 1999).

Tem havido agressões por desmatamentos, as lagoas marginais, que são o berçário do rio, não recebem água porque as barragens impedem. As lagoas acabam criando peixe adulto que deixam de sair para o rio e repovoar o rio. Por isso, o peixe vem diminuindo no rio. Os fazendeiros drenam as lagoas para o plantio de arroz e acaba também com elas. As cidades ribeirinhas tão crescendo, os esgotos domésticos descem para o rio. As indústrias também estão jogando a poluição para dentro da água (pescador de Januária, 2001).

Os pescadores de arrastão estão tirando os paus e as pedras dos rios...o lugar onde o peixe se acomoda...se você tira uma cadeira, o senhor não tem lugar pra acomodar, o senhor vai sentar no chão...o peixe é a mesma coisa, se tirar o pau, a pedra, que é o alojamento do peixe...se tira ele, ele (o peixe) não tem agasalho nenhum, ele vai ficar perambulando...cada vez, o peixe vai ficando mais difícil. O próprio pescador está acabando com ele mesmo, além de não ter enchente...(pescador de Januária, 2000).

Neste sentido, pode-se apreender que vários são os motivos que acarretam nas

dificuldades e escassez da pesca, mas dentre estes se destaca a contaminação dos rios e

os inúmeros desvios realizados ao longo do seu trajeto para o cultivo do eucalipto, que

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como se sabe é uma árvore que possui a capacidade de sugar muita água, uma vez que

suas raízes crescem para o subterrâneo.

Faz-se interessante ressaltar, que as pessoas que vivem no sertão possuem uma intensa

ligação com as cidades, seja como uma forma de economia, trocas, ou lazer. Mas de

maneira geral, é a vida no sertão que estas pessoas identificam como comum, como “ser

feliz”. Durante a leitura deste livro: Cerrados, Gerais, Sertão, é possível de identificar

nas falas dos moradores, que apesar de todas as dificuldades encontradas em seus

cotidianos, é neste sertão que eles desejam ficar e permanecer. As intensas migrações

para as grandes metrópoles surgem como algo passageiro, apenas para algumas

conquistas, mas de retorno certo para o sertão.

Era um farturão danado e hoje não tem mais nada...iv Hoje é possível de identificar o grande paralelo vivenciado no sertão; que dentre vários

que existem, há a dicotomia dos tempos de hoje e dos tempos de antigamente. Onde é

explicito nas falas, nas vivências dessas gentes que o tempo de antigamente era mais

difícil de viver, porém, mais farto, mais alegre, mais vivido. A fartura era sempre vista

como fartura de comida, de alimentos. No passado tinha muita fartura de alimento. Trabalhei na CAUÊv e na AGRIVALEvi. Na colheita de feijão e milho a gente aproveita e depois que tirava a colheita com a máquina a gente entrava colhendo. Teve vez de um senhor colher quinze sacos de milho. Só eu colhi três sacos. Comi e deu para os meus. Depois passaram a dar a terra na meia para a gente plantar, mas depois mudaram os plantios e parou. Hoje na CAUÊ é banana e na AGRIVALE estão desmatando para plantar mais cana (Angélica, comunidade de Várzea da Manga, julho de 2008). No passado casava na época das festas em Itacarambí e Matias. Fazia festa. Antes matava boi e porco, mas hoje só mata peru e galinha. Aqui tem doze anos que não faz um casamento, porque as moças saíram tudo e os rapazes também (Iaiá Lio, Vargem da Manga, julho de 2008).

Assim, concretiza-se uma relação dos alimentos juntamente com os momentos em que

estes devem ser servidos. As festas religiosas e os casamentos são os mais tradicionais e

possuem uma estrutura e dinâmica própria de realização.

Quando se trata de casamentos, por exemplo, por ser uma festa razoavelmente grande,

envolve em sua estrutura a participação de todos os familiares. No preparo para a

comida, têm-se a família da noiva e os amigos mais íntimos para a colaboração.

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Antigamente o cardápio era bem diversificado, hoje é basicamente farofa e arroz, o que

não tira o mérito de seu preparo.

Dessa forma, cada momento ganhou uma simbologia e um prato específico, bem como,

uma maneira peculiar de se preparar.

A comida de nascimento é basicamente um pirão de frango caipira, que é considerado

uma comida leve, que atua como suplemento para a mãe; e uma forma de fortalecer e

gerar mais leite. O frango é dividido porque não pode cozinhar tudo de uma vez, faz mal comida requentada. Cozinha parte do frango com tempero de coentro, alho, pimenta do reino, recheia os pedaços na gordura de toucinho mal frito, só a gordura sem os torresmos. Acrescenta água e deixa cozinhar bem cozido em fogo baixo. Depois o caldo é retirado, a cebola branca é cortada, misturada com pimenta do reino e farinha, mexe bem e joga os pedaços de frango por cima. Depois de oito dias a mulher pode começar a comer alimentos mais fortes: arroz, feijão, verdura, carne, canjica, pra da bastante leite ( Maria Alves, Comunidade de Baixa Grande, 2009).

As comidas de folias de Reis, em algumas das comunidades apresentadas neste livro,

eram verdadeiros banquetes; fato que inovou de acordo com as novas realidades. Aqui tinha a tradição de sair com a Folia de Reis todo mês de janeiro. Fazia um giro, saía dia vinte e cinco de dezembro até dia primeiro de janeiro. Eram seis noites, cantando à noite e dormindo de dia, até chegar à casa do festeiro que saia com a folia pagando alguma promessa. Os foliões marcavam os pontos certinhos de almoço e janta. O meu tio chamado João Neto, um dos mais velhos dos foliões, era quem comandava a folia e tinha saído com ela, no primeiro ponto de almoço ele disse: ”Nós vamos mudar essas coisas agora. Ninguém vai fazer mesada mais. Todo mundo é igual, folião não é melhor que os outros”. Então, a partir desse dia, mudou o costume de fazer mesadas e esse tanto de variedade de comida. Faz a farofa com arroz, forma a fila e todos comem a mesma comida juntos.(Ana dos Reis, Comunidade de Baixa Grande, 2008).

Já para as romarias, por serem viagens mais longas eram feitas paçocas de carne, que

eram consideradas um alimento forte e de longa durabilidade. A paçoca é feita de carne de boi, temperos, óleo, farinha de mandioca e cebola. Depois é colocada no sol durante uma tarde toda para escorrer ate que fique moqueada. É cortada em pedaços bem pequenos, e fritada em ao óleo com alho ate que fique bem sequinha. Finalmente é pilada com farinha ate formar uma paçoca. (Ana dos Reis, Comunidade de Baixa Grande, 2008)

Sendo assim, é possivél identificarmos que o alimento cria relações, e explicita modos

de vida, identidades, processos históricos, bem como, tradições culinárias que na

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maioria das vezes estão alicerçadas nos processos de territorialização, expropriação e

reapropriação de um determinado território. Enfim, o alimento cria e recria identidades,

se torna um meio de auto-afirmação.

Terra de solta é onde se soltava o gado, ninguém cercava...vii Constantemente os geraizeiros, barranqueiros, chapadeiros, e demais identidades que

são formadas no processo de construção e vivências no território, sofrem com as

intensas lutas por terras. Fato, que na maioria das vezes se torna desigual. De um lado

grandes empresas ou grandes empresários; de outro lado, pequenos moradores que

vivem num terreno bom para cultivo, ou para atender necessidades medíocres de

grandes construções.

É neste contexto, que surgem os grandes conflitos e os grandes processos de

demarcação de terras. Muitas vezes, essas demarcações são impróprias e acarretam em

intimações policiais; como é o caso dos geraizeiros. Fizemos cerca e barraco na área, levantamos a bandeira, a terra era nossa, a polícia veio e fez boletim de ocorrência, fomos chamados à delegacia onde o delegado humilhou e ameaçou a gente, chamou de vagabundo e formador de quadrilha, mas isso não fica assim não...eu nunca nem tinha ido a uma delegacia, agora eu já sei como é que é, as firmas que dominam. Se um de nós chamar a polícia porque as firmas tão derrubando os pequizeiros, que não pode, né? Nunca que eles vem, mas a firma, se chamar, é na hora, são eles que pagam a gasolina da polícia....

Apesar destes conflitos, das ameaças e tensões, as comunidades continuam agindo

conjuntamente na defesa de seus territórios, principalmente quando se trata da expansão

do eucalipto, que além de desapropriá-los acabam por destruir as nascentes e os leitos

dos rios.

O agir coletivamente desencadeia na memória dos que vivem hoje, os que seus

antepassados passaram antes. Dessa forma, essa reconexão com o passado acaba por

liberar impulsos que servem como percussores para a luta de seus territórios e pela

construção de uma identidade.

Conclusões Sendo o sertão em seus variados aspectos, uma localidade, um espaço, uma identidade,

uma afirmação, pode-se compreender que o SERTÃO, como já dizia Guimarães Rosa

está em toda a parte.

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A visão posta sob o sertão, tanto na literatura como nas grandes obras científicas,

expressam de maneira sintetizada uma realidade que não é vivenciada; uma leitura da

verdade que é “deixada” ser descoberta; pois na veracidade dos fatos, só quem nele

habita sabe o que é “viver no sertão”.

Durante a leitura do livro: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos

sertões roseanos, foi possivél identificar que a palavra sertão expressa peculiaridades

que só são percebidas quando nele se adentra, bem como, “saberes” que só ele

proporciona.

Neste sentido, é que este artigo propôs compreender e apreender este sertão, através das

“vozes”, de depoimentos de quem nele vive. Assim, é possivél constatar que em meio às

grandes barreiras vivenciadas diariamente, estas pessoas encontram sentido e forma de

nele e por ele lutar.

É um espaço cultural capaz de fomentar lutas, aprendizados, culturas, tradições,

identidades, afirmações, vivências, crenças, assim como, a construção de grandes

histórias. Histórias de vida, que ganham sentido no vencer de cada cotidiano.

Desta forma, durante os vários processos de auto-afirmação e identificação, os

sertanejos criaram um elo de sobrevivência e lazer com o rio São Francisco; bem como,

hábitos culinários, estratégias de defesa de seus territórios, peculiaridades na formação

de suas famílias, de suas casas e principalmente de seu trabalho; onde as técnicas

desenvolvidas e aprimoradas gerenciam um saber dotado de simbologias.

“Sertanejos, mire e veja; o sertão é uma espera enorme” (JGROSA, 1996, p.

509).

Notas i Frase do Senhor João de Félix, retirada do seu depoimento no livro: Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades Tradicionais nos sertões roseanos. ii Frase de um pescador de Januária (2000), retirada do livro: Cerrado, gerais, sertão: comunidades tradicionais nos sertões roseanos. iii CMM: Companhia Mineira de Metais (Grupo Votorantin), hoje Votorantim - Metais. Quando citada pelos pescadores, esses se referem à indústria localizada na beira do São Francisco, no município de Três Marias, extratora de zinco subterrâneo. iv Frase do senhor Domingos, retirada do livro Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos.

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v Empresa agropecuária situada na margem esquerda do São Francisco, município de Itacarambi. Surgue como uma filial do grupo CAUÊ e posteriormente foi redefinida como ICIL - Industria e Comércio Itacarambi. vi Um dos principais grupos Agroindustriais dentro do Projeto Jaíba, hoje recebe o nome de SADA, ocupa aproximada de cinco mil hectares o que corresponde à totalidade em área irrigada do Perímetro Irrigado do Gorutuba. vii Frase de geraizeiros, retirada do livro Cerrado, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Sem identificação de autor. Referências ARAÚJO, Elisa Cotta. Quilombo da Lapinha: Clivagem social, sociabilidade, tempo de expropriação e articulação política. In: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Editora Cidade, 2010. ANJOS, Marinelha Alves dos. Na sua casa tem disso? Hábitos e costumes alimentares na comunidade geraizeira de Baixa Grande. In: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Editora Cidade, 2010. BRITO, Isabel Cristina Alves. Geraizeiros em Movimento. In: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Editora Cidade, 2010. OLIVEIRA, Joycelaine Aparecida. Margens escritas: per-cursos de águas e vidas. In: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Editora Cidade, 2010. PAULA, Andréa Maria Narciso Rocha de. O sertão é uma espera enorme: A comunidade de Barra do Pacuí. In: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Editora Cidade, 2010. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 33 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. THÉ, Ana Paula Glinfskoi. “Saudades da Vazante geral: um estudo etnoecológico sobre as mudanças socioambientais na pesca artesanal no alto-médio São Francisco, Minas Gerais”. In: Cerrados, Gerais, Sertão: Comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Editora Cidade, 2010.