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VIDA DE FREDERICO NIETZSCHE Autor: Daniel Halévy Tradutor: Jerônimo Monteiro Extraído da edição da Editora Assunção ltda. Coleção Perfis Literários I – OS ANOS DE INFÂNCIA Karl-Ludwig Nietzsche , jovem ministro da Igreja Luterana. pertencia a uma família de eclesiásticos. Seu pai e seu avô haviam ensinado teologia. Sua esposa era filha e nela de ministros. Nada sabendo das novas tendências do pensamento dos desejos que se agitavam, seguia serenamente a dupla tradição — uma revelada por Deus aos seus discípulos e a outra Indicada aos homens pelos príncipes. Seus superiores estimavam-no muito. Frederico-Guilherme IV, rei da Prússia, dignava-se protegê-lo. Ele podia confiar numa bela carreira, mas sofria dos nervos, estava deprimido e tinha necessidade de. repouso. Pediu que lhe dessem uma paróquia no campo; confiaram-lhe a de Rocken, pobre vila cujos casebres se erguem na vasta planície dos confina da Prússia e de Saxe - um sitio melancólico a que Karl-Ludwig Nietzsche logo se afeiçoou. Aceitou a solidão. Grande músico, improvisava muitas vezes, no órgão rústico, ao entardecer, fechado no templo, e os camponeses, do lado de fora, ficavam a ouvi-lo com admiração, O pastor e sua esposa esperaram quatro anos pelo primeiro filho, que nasceu, afinal, no dia 15 de outubro de 1844, que era o dia do aniversário do rei, Esta coincidência fez aumentar a alegria do pai. "O mês de outubro, mês bendito! — escreveu ele no registro do templo — tu sempre me cumulaste de alegrias. Mas, de todas as que me trouxeste, esta é mais profunda, a mais magnífica: batizo o meu primeiro filho… Meu filho, Frederico-Guilherme, tal será teu nome sobre a terra, para eterna lembrança do real benfeitor cujo dia natal é o teu". O menino teve, logo, um irmão, e depois, uma irmã. Algumas recordações conservadas pelas mulheres descrevem-nos este lar onde a alegria passou rapidamente. O pequeno Frederico foi tardo em falar. Olhava para todas as coisas com olhos graves, e calava-se. Aos dois anos e meio, diz sua primeira palavra. O pastor gosta muito deste companheiro silencioso e leva-o com prazer nos seus passeios. Frederico Nietzsche jamais se esqueceu do som dos sinos longínquos sobre a planície imensa e semeada de lagos, nem da impressão de sua mão apertada na forte mão do seu pai. A infelicidade chegou bem depressa. No mês de agosto de 1848, o pai tombou do alto da escadaria e bateu violentamente com a cabeça nas pedras da calçada. O choque determinou» ou. talvez, não se sabe ao certo, precipitou a eclosão de uma terrível doença. Karl-Ludwig Nietzsche perdeu a razão e morreu depois de um ano de loucura e sofrimento. Frederico tinha, então, quatro anos. Os trágicos dias afetaram o seu espírito: o despertar, os soluços que enchiam a

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VIDA DE FREDERICO NIETZSCHE

Autor: Daniel HalévyTradutor: Jerônimo MonteiroExtraído da edição da Editora Assunção ltda.Coleção Perfis Literários

I – OS ANOS DE INFÂNCIA Karl-Ludwig

Nietzsche, jovem ministro da Igreja Luterana. pertencia a uma família deeclesiásticos. Seu pai e seu avô haviam ensinado teologia. Sua esposa era filhae nela de ministros. Nada sabendo das novas tendências do pensamento dosdesejos que se agitavam, seguia serenamente a dupla tradição — uma revelada porDeus aos seus discípulos e a outra Indicada aos homens pelos príncipes. Seussuperiores estimavam-no muito. Frederico-Guilherme IV, rei da Prússia,dignava-se protegê-lo. Ele podia confiar numa bela carreira, mas sofria dosnervos, estava deprimido e tinha necessidade de. repouso.

Pediu que lhedessem uma paróquia no campo; confiaram-lhe a de Rocken, pobre vilacujos casebres se erguem na vasta planície dos confina da Prússia e de Saxe -um sitio melancólico a que Karl-Ludwig Nietzsche logo se afeiçoou. Aceitou asolidão. Grande músico, improvisava muitas vezes, no órgão rústico, aoentardecer, fechado no templo, e os camponeses, do lado de fora, ficavam aouvi-lo com admiração,

O pastor e suaesposa esperaram quatro anos pelo primeiro filho, que nasceu, afinal, no dia 15de outubro de 1844, que era o dia do aniversário do rei, Esta coincidência fezaumentar a alegria do pai. "O mês de outubro, mês bendito! — escreveu eleno registro do templo — tu sempre me cumulaste de alegrias. Mas, de todas asque me trouxeste, esta é mais profunda, a mais magnífica: batizo o meu primeirofilho… Meu filho, Frederico-Guilherme, tal será teu nome sobre a terra, paraeterna lembrança do real benfeitor cujo dia natal é o teu".

O menino teve,logo, um irmão, e depois, uma irmã. Algumas recordações conservadas pelasmulheres descrevem-nos este lar onde a alegria passou rapidamente. O pequenoFrederico foi tardo em falar. Olhava para todas as coisas com olhos graves, ecalava-se. Aos dois anos e meio, diz sua primeira palavra. O pastor gosta muitodeste companheiro silencioso e leva-o com prazer nos seus passeios. FredericoNietzsche jamais se esqueceu do som dos sinos longínquos sobre aplanície imensa e semeada de lagos, nem da impressão de sua mão apertada naforte mão do seu pai.

A infelicidadechegou bem depressa. No mês de agosto de 1848, o pai tombou do alto daescadaria e bateu violentamente com a cabeça nas pedras dacalçada. O choque determinou» ou. talvez, não se sabe ao certo, precipitou aeclosão de uma terrível doença. Karl-Ludwig Nietzsche perdeu a razão e morreudepois de um ano de loucura e sofrimento. Frederico tinha, então, quatro anos.Os trágicos dias afetaram o seu espírito: o despertar, os soluços que enchiam a

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casa, o pavor do quarto fechado o silêncio e o abandono; os sinos, os cânticos,os discursos funerários, o caixão sepultado sob as lages da igreja… Por muitotempo ficou abalado, por ter tão cedo presenciado estas coisas, visõesatormentavam suas noites, e pressentia uma catástrofe próxima. Sonhou — ouçamosa sua ingênua descrição, feita aos quatorze anos:

Quando agente despoja a árvore de sua copa, ela se desfolha, marcha t os pássarosabandonam seus ramos. Nossa família foi despojada de sua copa, toda a alegriadesapareceu de nossos corações, e profunda tristeza se apossou de nós» Mal sehaviam fechado nossos ferimentos e foram de novo dolorosamente abertos. Naqueletempo, eu sonhei que ouvia na igreja o órgão tocar tristemente, como durante osenterros. E como procurava o causa disso, uma tumba se abriurapidamente e meu pai apareceu andando com sua mortalha. Atravessou a igreja evoltou bem logo, com uma criança nos braços. A tumba abriu-se novamente, meupai desceu e a pedra tornou a fechar-se. No mesmo instante, o órgão deixou dese ouvir, e eu acordei. Contei, pela manhã esse sonho a minha querida mãe.Pouco depois, meu irmãozinho Joseph caiu doente, com ataques de nervos e morreudentro de poucas horas. Nossa dor foi terrível. Meu sonho se havia realizadofielmente, e o pequeno corpo depositado nos braços de seu pai. Após esta duplainfelicidade, o Senhor no céu foi nosso único consolo. Isto foi pelo fim dejaneiro de 1850.

Na primaveradeste ano a viúva do pastor deixou a casa paroquial e foi residir numa cidadevizinha, em Naumburg-sur-Saale. Estava perto dos seus parentes, que moravam nocampo, não longe dali. A mãe e a irmã de seu marido vieram habitar com ela umapequena casa à qual as crianças, sempre desoladas a custo se habituaram.

Naumburg era umacidade real, criada pelos Hohenzollern e dedicada à sua dinastia. Uma burguesiade funcionários e pastores, famílias de oficiais, e alguns fidalgos vivia entreas muralhas cobertas de musgo e cujas cinco portas eram fechadas todas asnoites. A existência era grave e medida. O sino da igreja metropolitanaenvolvia a pequena cidade com seus apelos; despertava-a, fazia-a adormecer,reunia-a para as festas do culto ou do Estado. O próprio Nietzsche era umgaroto grave e comedido. Seus instintos iam bem com os usos de Naumburg e suaalma ativa bem cedo descobriu belezas nessa nova vida. Admirava as paradasmilitares, os serviços , religiosos com órgão e coros, a majestade dosaniversários. A cada ano, comovia-se com a volta do Natal. O dia de teunatalício causava-lhe menor perturbação, mas alegria maior.

Sendo dia demeu aniversário também o do nosso bem-amado rei — escreveuele — nesse dia sou despertado pela música militar. Recebo meuspresentes; a cerimônia termina bem depressa e vamos juntos a igreja. Embora osermão não seja escrito em minha intenção, esforço-me para o ouvir e tomo amelhor parte para mim. Em seguida, reunimo-los na escola para assistir à grandefesta… Antes de nos separar-nos cantamos em coro um hino patriótico eo diretor concilium dimisit. Então é que começa o melhor momento paramim. Chegam meus amigos e passamos juntos uma tarde agradável.

Frederico não seesquecia de seu pai; queria, como ele e como todos os homens de sua família,ser ministro, um dos eleitos que vivem perto de Deus e falam em seu nome. Não

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compreendia uma profissão, mais digna nem mais conforme com seus desejos.Embora fosse muito jovem, tinha a consciência exigente e meticulosa.Ressentia-se dos menores ralhos e desejava governar-se a si próprio. Quando oassaltava um escrúpulo de consciência, retirava-se para um canto isolado,meditava, examinava-se e não voltava a brincar com sua irmã senão depois de seter deliberadamente arrependido e justificado. Um dia em que choviatorrencialmente, sua mãe viu que ele voltava da escola sem guarda-chuva nemcapote, andando com passos iguais e lentos. Chamou-o. Ele entrou sem pressa."Vivem nos recomendando que não corramos na rua", explicou. Seuscolegas chamavam-no "o pequeno pastor" e escutavam em respeitososilêncio quando lia em voz alta um capitulo da Bíblia.

Ele não ignoravaseu prestigio. "Quando a gente é senhor de si próprio — dizia gravemente asua irmã — é senhor do mundo inteiro". Era orgulhoso, acreditava que araça dos Nietzsche era nobre, graças a uma lenda familiar, que a avô gostava decontar. Frederico e sua irmã Lisbeth Viviam sonhando com ela: antepassadoslongínquos haviam habitado a Polônia. Eram condes e chamavam-se Nietzkii. Aotempo da Reforma, desafiando a perseguição, romperam com a Igreja Católica.Tiveram que fugir, levando seu filho nascido na véspera, e durante três anoserraram de cidade em cidade, miseráveis e perseguidos. A mãe não deixou deamamentar seu filho e assim lhe deu, apesar das provações, uma prodigiosasaúde. Ele viveu muitos anos e transmitiu à sua linhagem essa dupla virtude deforça e longevidade. Frederico não se cansava nunca de ouvir tão bela aventura.Pedia muitas vezes, também, que lhe repetissem a historia dos poloneses.. Aeleição do rei, pelos nobres reunidos a cavalo numa grande planície e o direitoque tinha o menor dentre eles de opor sua recusa à vontade geral – enchiam-node admiração; não tinha dúvidas de que esta era a primeira raça domundo. "Um conde Nietzki jamais deve mentir", disse ele um dia a suairmã. As paixões, os fortes desejos que, trinta ou quarenta anos maistarde haviam de inspirar a sua obra, já naquele tempo animavam a criançade larga fronte, grandes olhos e que mulheres infelizes envolviam em carinhos. Aos nove anos, suas inclinações artísticas se estenderam: a musica foi-lhe reveladapor um coro de Haendel que ouviu na igreja. Estudou piano Improvisava,acompanhava-se cantando os hinos, e a sua mãe se emocionava recordando o mandoque, como o menino agora brincava e improvisava no órgão de Rocken.

Apossou-se deleo instinto de criar — instinto já tirânico. Compôs melodias, fantasias,uma suíte de mazurcas dedicadas aos "seus ancestrais poloneses".Escreveu versos e mãe, avó, tias e irmã receberam, em cada aniversário, umpoema com sua respectiva música. Seus próprios divertimentos passaram a serpretexto para trabalho: redigia tratados didáticos contendo regras e conselhosque remetia a seus companheiros. Aprendeu rapidamente arquitetura; depois, em1854, durante o sítio de Sebastopol, cuja captura o fez chorar – porque amavaos eslavos e detestava os revolucionários franceses — estudou balística e adefesa das praças fortes. Ao mesmo tempo fundou, com dois amigos, um Teatro dasArtes, onde se representaram dramas antigos e bárbaros, cujo autor era ele: Os Deuses do Olimpo eum Orkadal.

Deixou a escolapara ingressar no colégio de Naumburg. A sua superioridade demonstrou-se tãoflagrante que os professores aconselharam à senhora Nietzsche mandá-lo para um

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estabelecimento de ensino superior. A pobre mulher hesitou. É que almejava terjunto de si o seu filho.

Isto foi em1858. Entrando em férias, já agora mais graves, foi gozá-las, como de hábito,na vila de Poblés, à sombra dos outeiros cobertos de bosques à margem do frescoe preguiçoso Saale, em cujas águas nadava todas as manhãs. Acompanhado de suairmã Lisbeth, hospedava-se em casa de seus avós maternos. Era feliz, mimadopela vida, mas o futuro incerto preocupava seu pensamento.

Chegava aadolescência. Talvez tivesse que se separar dos seus, trocar de lugar e deamigos. Pressentia, com um pouco de ansiedade, o novo curso quesua vida ia tomar. Rendava o passado pueril, longo passado do qual os homens nãodevem sorrir, treze anos cheios pelos primeiros afetos, as primeiras tristezas,os primeiros orgulhos de uma alma ambiciosa pela esplêndida descoberta damúsica e da poesia. As recordações assaltavam-no, numerosas, vivas e tocantes.Nietzsche, que tinha a alma lírica, surpreende-se como que embriagado de sipróprio. Em doze dias escreveu a história de sua infância, e ao terminar,sentia-se feliz:

Conseguiterminar o primeiro caderno — escreveu — e estoucontente por isso. Escrevi com imenso prazer e sem um momento de fadiga. Como ébom fazer desfilar novamente diante dos olhos os nossos primeiros anos,acompanhando o desenvolvimento do espírito! Contei sinceramente toda a verdade,sem poesia, sem preocupação literária... Possa eu escrever ainda outroscadernos semelhantes a este!

E em seguida vêmquatro pequenos versos:

EinSpiegel ist das Leben. In ihm sich zu erkennen,Mõcht ich das erste nennen, Wonach wir nur anch strebenü

("A vidaé um espelho. — Nele nos reconhecemos,— É, digo, o primeiro alvo — para o qual cada um de nós seesforça.")

A escola dePforta fica a duas léguas de Naumburg à margem do Saale. Desde que existe aAlemanha, existem em Pforta alunos e professores. Alguns monges cistercienses,vindos do ocidente latino no século XII para converter eslavos, conseguiramobter essas terras atravessadas pelo rio. Levantaram grandes muros, dentro dosquais construíram os edifícios e a igreja, e fundaram a tradição que até agorasubsiste. No século XVI foram expulsos pelos príncipes saxões, mas a escola foimantida, e os luteranos, instalados em seu lugar, conservaram seus métodos.

As criançasdevem ser educadas sob princípios religiosos — diz uma ordem de 1540. — Duranteseis anos elas se exercitarão no conhecimento das letras e na disciplina dasvirtudes." E os alunos permaneciam separados de suas famílias,enclausurados com seus mestres. Eram-lhes impostas certas regras de bonscostumes: estavam proibidos de se tratar por "tu" e de mostrarmaneiras livres. Estabelecera-se entre eles uma certa hierarquia: os mais

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velhos tomavam conta dos mais jovens, e cada professor servia de tutor a vintediscípulos. Ensinavam-lhes religião, hebreu. grego e latim. . O espíritohumanista, o moralismo protestante e o rigor alemão formaram, nesta velhomosteiro, uma aliança singular, vivaz, um modo fecundo de viver e de sentir.Muitos homens eminentes ou notáveis receberam sua instrução em Pforta Novalis, os Schlegel, Fichte — Fichte o filósofo, o educador, e patriota,glória da sua estirpe. Frederico Nietzsche sempre havia desejado estudar em Pforta. Concederam-lhe uma bolsa, e ele deixou a família em outubro de 1858.

Ao entrar,desaparece para nós. A única recordação que temos do seu primeiroano escolar é uma anedota heróica e pueril: a história de Mucias Scaevola queparecia inverossímil a muitos de seus colegas, que a negam: "homem algumporia a sua mão no fogo", opinaram os jovens críticos. Nietzsche não lhesrespondeu, mas, tirando do fogão um carvão ardente, colocou-o na palma da mão.E para sempre êle ficou com a marca desta queimadura, Janto mais visível porquetomara o cuidado de prolongar e aumentar a chaga gloriosa derramando sobre elacera derretida.

O mais certo éque tenha suportado com dificuldade a nova vida. Divertia-se pouco, não faziaamizade com desconhecidos, e os ternos hábitos do lar maternal haviam-nopreparado mal para a disciplina de Pforta. Saía apenas uma vez por semana, àstardes de domingo. Sua mãe, sua irmã e dois amigos que tinha em Naumburg vinhambuscá-lo à porta e passavam com ele o dia num albergue da vizinhança.

Em julho de1859, Nietzsche teve um mês de liberdade. Os alunos de Pforta não tinham outrasférias. Foi rever as pessoas e os lugares que amava, fez um rápida viagem aIena e Weimar. Durante o ano ele não redigira senão as suas lições. Masreencontrou o prazer de escrever e compôs, sobre as suas impressões do verão,uma fantasia sentimental a que pão falta algo de patético.

O sol já sehavia posto — escreveu ele — quando deixamos o sombriorecinto; atrás de nós o céu aparece banhado de ouro; sobre nossas cabeçasflutuam nuvens róseas; e lá em frente, a cidade repousando sob a doce brisa datarde… — Guilherme — disse eu ao meu amigo — haveráalegria maior do que errar juntos através do mundo? Oh prazer da amizade, dafiel amizade; oh hálito da noite magnífica de verão, perfume das flores e ruborda tarde! Não sente os seus pensamentos elevar0se, e como as alegresandorinhas, pairar sobre as nuvens coroadas de ouro? Como são maravilhosas aspaisagens da tarde! É como se estivesse descobrindo a minha própria vida. Eiscomo se agrupam os meus dias: uns retidos na penumbra, e outros, cheios deexaltação e liberdade. – Nesse momento, um grito agudo chegou até nós. Vinha domanicômio que se achava próximo. Entreapertamos as mãos mais fortemente, comose um gênio mau nos tivesse tocado com sua asa pavorosa. Desaparecei, ohpotências do mal! — Mesmo neste belo mundo existem infelizes. Mas, queé, então, a infelicidade?

No começo deagosto voltou à Pforta. A volta entristeceu-o tanto como a primeira entradaali. Não pôde aceitar esta busca opressão e não pode deixar de pensar em simesmo. Mantém, durante algumas semanas, um diário íntimo que nos revela seuestado de espírito e o emprego de cada um de seus dias. Ai estão algumas

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máximas corajosas contra o tédio, ditadas pelo professor e que ele transcreveu;depois, a descrição de seus estudos, suas distrações, suas leituras e as crisesque o deprimem. A alma lírica do rapaz, ora resiste e ora se abandona às suasimpressões e dificilmente se dobra sob a disciplina. Sob a pressão da emoção,ele abandona a presa, muito pouco musical para a sua melancolia: aparecem o ritmoe a rima. A inspiração dita-lhe alguns versos,- uma quadra ou uma sextilha. Elenão rebusca, nem procura reter a inspiração; segue-a quando ela surge; e apenasdeclina, a prosa reaparece, como num diálogo shakesperiano.

Às vezes, a vidaem Pforta é embelezada por horas de alegria simples e moça. Os rapazespasseiam, cantando em coro, e vão nadar. Nietzsche toma parte nestesdivertimentos e descreve-os. Quando o calor se faz pesado demais, a água toma olugar do estudo. Os duzentos alunos descem para o rio, cadenciando seus passoscom uma canção. Atiram-se à água e descem a corrente, sem desorganizar a ordemda marcha, realizando uma prova muito longa, que é difícil para os mais jovens,mas deixa-os orgulhosos; quando o chefe apita, sobem para a margem, vestem osuniformes que vinham num bote, atrás deles, e em seguida, sempre cantando emarchando em ordem, voltam ao trabalho e à velha escola. "Ésurpreendente!" diz Nietzsche.

Chega o fim deagosto: oito dias, depois, seis; um longo mês se passa sem que uma só linhaseja acrescentada ao diário. Ele o reabre, afinal, para o concluir:

Meu estado deespírito mudou muito, desde o dia em que comecei a escrever este diário. Noverão passado era verdejante e alegre; agora, oh tristeza, é como o últimooutono. Então, eu era unter-tertianer (aluno do 3.o ano), agora,subi um grau… O meu aniversário passou, fiquei mais velho — o tempopassa como a rosa da primavera, e o prazer, como a espuma do regato.Encontro-me, neste momento, tomado de um extraordinário desejo de saber, deacumular cultura geral. Li Humboldt e foi ele quem me deu o impulso, Possa estanova inclinação durar como aquela que me prende à poesia?

Em seguida,Nietzsche estabeleceu um vasto programa de estudos onde a geologia, a botânica,a astronomia se aliavam à estilística latina, ao hebreu, às ciências militares,a todas as técnicas. "E sobre todas as coisas — diz ele — a religião,fundamento de todo o saber! Grande é o domínio do saber, infinita abusca da verdade!"

Um inverno e umaprimavera se passam, e o rapaz trabalha. Mas chegam as segundas férias e aterceira volta à escola. O outono despe os grandes carvalhos sobre as terras dePforta. Frederico Nietzsche tem dezessete anos e entristece

Havia muitotempo que ele se impusera uma penosa disciplina: Lera Schiller, Hölderlin,Byron; pensa nos deuses da Grécia e no sombrio Manfredo, mágico poderosoque, cansado de seu poder, procura em vão o repouso da morte que sua arte haviavencido. Que importam a Nietzsche as lições de seus professores. Ele medita osversos do poeta romântico:

Sorowis knowledge: They’who know the most

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Must mourn the deespest over the fatal truth, The tree of knowledge is not that of life.

(O saber é amargo. Aqueles que mais sabemMais profundamente choram a fatal verdade:A árvore do saber não será, jamais, a árvore da vida(*)

Ele se cansa,enfim. Quer escapar à engrenagem das aulas, dos deveres que prendem toda suavida, e, atento apenas a si mesmo, conhecer os sonhos de que seu espírito estátransbordante.

Faz confidenciasa sua mãe e a sua irmã; declara que seus projetos para o futuro mudaram. AUniversidade o aborrece. Ele não quer ser professor, mas músico. Sua mãefaz-lhe ver a razão e consegue acalmá-lo. Mas conforma-se por pouco tempo. Amorte de um professor ao qual ele estava ligado, acabou de o confundir.Negligenciou o trabalho, isolou-se e recolheu-se.

Escreve. Tivera,desde a primeira infância, o instinto da frase e da palavra, do pensamentovisível. Não cessou de escrever, e nem uma nuance de sua inquietação nos ficouescondida. Compreendeu o vasto universo do romantismo e da ciência, sombrio,agitado, sem amor. Esta temível visão fascina-o e o aterroriza. Sua antigapiedade ainda o impressiona: exprobara-se por sua veleidade e audácia de negar,como de outros tantos pecados. Procura conservar a fé religiosa, cada diamenor. Não rompe à maneira francesa e católica; desliga-se com lentidão e medo:com lentidão, porque venera estes dogmas ou símbolos que povoam todo o seupassado, a recordação de sua casa e de seu pai; com medo, porque sabe que,renunciando à antiga segurança, não encontrará uma segurança nova, mas osproblemas surgirão aos punhados. Medindo a gravidade suprema da escolha, elemedita.

Uma taltentativa — escreveu ele — não é trabalho para algumassemanas, mas para uma vida. É possível que, armada com os resultados de umareflexão pueril, a gente pretenda negar a autoridade de dois mil anos garantidapelos mais profundos pensadores de todos os tempos? Será possível que, comfantasias e rudimentos de idéias a gente pretenda afastar de si estas angústias,estas bênçãos religiosas de que toda a História está penetrada?

Desdenhar dosproblemas filosóficos sobre os quais o pensamento humano está em lutahá milhares de anos; revolucionar crenças que, recebidas pelos homens maisautorizados, elevaram-nos à verdadeira humanidade; ligar a filosofia ásciências naturais, sem mesmo conhececer os generosos resultados de uma e dasoutras; e, finalmente, tirar das ciências naturais um sistema do real quando o espíritonão percebeu ainda nem a unidade da história universal, nem os mais essenciaisprincípios — i uma perfeita temeridade.

…Que é,então, a humanidade? Mal o sabemos: um ponto num conjunto, um período numinfinito, uma produção arbitrária de Deus? Será o homem outra coisa mais queuma pedra evoluída através dos mundos intermediários das flores e dos faunos?Será ele, no presente um ser completo, ou que lhe reservará a história? Ê$teeterno faturo não terá fim? Quais serão as molas deste grande relógio? Estão ocultas,

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mas, por mais longa que seja a grande hora que chamamos história, a todos osInstantes elas, são as mesmas. As peripécias são inscritas sobre o quadrante; oponteiro progride, e, quando passar a décima-segunda hora, a série recomeça: éo inicio de um período na história da humanidade. Aventurar-se, sem guia nembússola, no oceano da dúvida, é perda e loucura para um cérebro jovem; em suamaioria, são destroçados pela tempestade, e pequeno é o número daqueles quedescobrem novas regiões… Muitas vezes toda a nossa filosofia me pareceu umatorre de Babel… Uma infinita confusão no pensamento popular é o desoladorresultado; devemos esperar grandes desordens, no dia em que as multidõescompreenderem que todo o cristianismo está baseado emafirmartivas gratuitas. A existência de Deus, a imortalidade, a autoridade daBíblia, a revelação — serão para sempre problemas. Esforcei-me paranegar tudo. Ah/ Destruir, é fácil. Mas, construir…

Que maravilhoso instinto transparecenesta página! Frederico Nietzsche apresento questões precisas que em seguidairão prender-se ao seu pensamento, e deixa pressentir as enérgicas respostasque confundirão os homens: a humanidade é um vácua, um produtoarbitrário de Deus; um destino absurdo leva-a a reiniciar-se continuamente;volta sempre ao princípio. Toda a soberania brota da força, e a força é cega; guia-sepelo acaso.FredericoNietzsche não afirma coisa alguma; desaprova as proposições precipitadassobre assuntos graves. Quer abster-se, hesita; e, afinal, quando seentrega, quer dar-se todo, inteiro. Suspende seu pensamento. Mas ele étransbordante, e, malgrado ele próprio, assim se exprime, às vezes:

Bem logo, asubmissão á vontade de Deus e à humanidade não, serão senão um véu atiradosobre a pusilaminidade que experimentamos no momento em que devemos afrontarbravamente o destino.

Toda a moral,todo o heroísmo nietzschianos estão condensados nestas poucas palavras.

Já citamos osautores de que Nietzsche mais gostava então: Schiller, Byron, Hölderlin. Este,então pouco conhecido, era o seu preferido. Descobrira-o como a gente, com umolhar, descobre um amigo entre a multidão. Foi um encontro singular. A vida dopoeta, que acabava de morrer, parecia-se com a vida do menino, apenascomeçada. Hölderlin, filho de pastor protestante, quis seguir a vocaçãopaterna. Em 1780 estudou teologia na Universidade de Tubíngue, com colegas quese chamavam Hegel, Schelling. Deixou de crer. Conhecia Rousseau, Goethe,Schiller e o romantismo embriagava-o. Gostava da natureza misteriosa, da lúcidaGrécia. Ama-as simultaneamente e sonha em unir suas belezas numa obra alemã.Era pobre e tinha que levar a dura vida do poeta necessitado. Professor,suportou o aborrecimento das casas ricas, em quase todas desprezado e em uma,muito querido: satisfação logo seguida pela desilusão. Volta à vila natal, ondeas pessoas e o ar são doces. Trabalha, escreve todo o tempo de que dispõe, mas pesa-lhe viver à custa dos seus, e afasta-se. Manda imprimir algunsversos, e o público não gosta desses belos poemas, onde o gênio de umdesconhecido faz os deuses do Olimpo passar pelas sombras das florestasrenanas. O infeliz Hölderlin sonha criações mais vastas, mas retém o sonho : aAlemanha é um mundo, e a Grécia um outro mundo. É preciso a força de um Goethe

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para as unir e fixar as palavras eternas de Fausto, raptor de Helena.Hölderlin escreveu fragmentos de um poema em prosa. Seu herói é um jovem grego que se lamenta da ruína de sua raça, e, frágil precursor deZaratustra, clama pela renascença de uma valorosa humanidade. Compôs três cenasde uma tragédia cujo herói é Empédocles, tirano de Agrigente, poeta, filósofo,grande inspirador das multidões, grego isolado, por sua própria grandeza, entreos gregos, mágico que, possuindo toda a natureza, cansa-se das satisfações quea vida pode oferecer e se retira para o cimo do Etna, deixando a família, seus amigos,seu povo que o quer, e, um dia, ao nascer da noite, atira-se nacratera. E obra de fôlego: Hölderlin abandona-a. A tristeza o enfraquece eexalta. Quer deixar a Alemanha, onde tanto tem sofrido, e libertar os seus desua vida incômoda. Propõem-lhe um emprego em Bordéus, na França, e eledesaparece. Seis meses mais tarde, volta ao lar, vestido de farrapos, queimadopelo sol. Interrogam-no, mas ele nada diz. Procuram informar-se, e, apósgrande trabalho, vêm a saber que ele atravessou a França a pé, sob o sol deagosto. Sua inteligência este perdida.

Ele acaba-se,abisma-se num torpor que dura quarenta anos. Morre em 1843, alguns meses antesdo nascimento de Nietzsche. Um platoniano podia deleitar-se pensando que umúnico gênio migrara de um corpo para o outro. A mesma alma alemã romântica pornatureza e clássica por aspiração, despedaçada, enfim, pelos desejos, animaestes dois homens e predestina-os a um fim igual. A gente parece surpreender,através de suas vidas, o trabalho cego da raça, a qual, perseverando namonótona imagem, envia ao mundo, de século em século, filhos iguais para provasiguais.

Naquele ano, ao aproximar-seo verão, Nietzsche sentiu, nos olhos e na cabeça, fortes dores de naturezaincerta, talvez nervosa. Suas férias estragaram-se. Mas conseguiu licença paraficar em Naumburg até o fim de agosto, e sentiu-se bem pago de suas tristezaspelas alegrias de um prolongado lazer.

Nietzsche estáem ótima disposição quando volta a Pforta. Não resolveu, mas explorou suasdúvidas e pôde, sem se violentar tornar a ser um aluno trabalhador. Não pensaem interromper suas leituras, que são imensas. Não deixa de enviarpontualmente, todos os meses, a seus dois amigos de Naumburg, poemas, trechosde música para dança, ou lírica, ensaios de crítica ou filosofia, e estasocupações não prejudicam seu trabalho escolar. Dirigido por excelentes mestres,estuda as línguas e literaturas da antigüidade. Seria feliz, se os insistentesproblemas de futuro e de profissão não começassem a atormentá-lo.

Meu futuro mepreocupa — escrevia ele a sua mãe em 1863: — Várias razões,exteriores e interiores, fazem com que ele me pareça confuso e incerto. Semdúvida, sinto que serei capaz de vencer, na atividade que escolhem. Masfalta-me força para afastar de mim uma série de coisas que meinteressam. Que hei de estudar? Não chego a decisão alguma e, no entanto, só euposso refletir e escolher. O que é certo é que aquilo que estudar, queroestudá-lo a fundo. Mas a escolha é dificílima, pois quc se trata de encontrar odomínio preciso onde a gente possa estar certo de se aplicar inteiramente. Equantas vezes estas esperanças enganam! Como a gente se sente rapidamentedesviado por uma predileção momentânea, uma tradição de, família, ou simplesdesejos! Escolher o futuro é jogar uma partida de loto onde há muitas pedraspretas e poucas brancas. Atualmente, minha situação é incômoda. Dispersei ointeresse por uma multidão de domínios, de modo que, se satisfizer todos osdesejos, serei um homem muito instruído, mas dificilmente um animal profissional,É claro que devo destruir muitos dos style='font-size:10.0pt'> style='font-size:10.0pt;font-

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family:Arial'>desejos, e, ao mesmo tempo, adquirirnovos. Mas quais serão os infelizes que devo atirar pela borda? Talvez sejam,justamente, os meus mais queridos filhos…

Depois, as últimasférias, e o começo do último ano, Nietzsche volta sem tristeza para avelha escola que deverá deixar bem depressa. Vai encontrar deveres menosrigorosos, um quarto particular e certas liberdades. Janta com um outroprofessor que o convida, e assim, no próprio mosteiro conhece os primeirosprazeres do mundo. Na casa de um dos professores, encontra uma jovem amávelDepois de vê-la por várias vezes, sente o amor, pela primeira vez em sua vida.Durante alguns dias pensa unicamente nos livros que lhe vai emprestar, namúsica que vai tocar com ela. Sua emoção é deliciosa, Mas a moça deixa Pforta,e Nietzsche volta ao trabalho. O "Banquete" de Platão, as tragédiasde Ésquilo lhe dão seus últimos prazeres. Depois, ele se entrega aos devemquotidianos. Às vezes senta-se ao piano, antes do jantar. Dois colegas queficaram seus amigos, Gersdorff e Paul Deussen, ouvem-no. Ele toca Beethoven ouSchumann, ou improvisa.

A poesia estásempre com ele. Basta um rápido descanso, uma folga de algumas horas: o líricoreaparece. Na manhã de Páscoa, deixa a escola, vai à sua casa, diretamente aoseu quarto, onde se encontra só. Sonha por um instante. Assalta-o uma multidãode impressões, e ele escreve. É um intenso prazer, após a longa privação, e nãoserá digna de Zan-thustra esta página que transcrevemos?:

Aqui estou,no limiar do primeiro dia da Páscoa, envolto em minha "robe dechambre", sentado à minha lareira. Lá fora cai uma chuva fina. Perto demim, a solidão. Uma folha de papel branco está sobre a mesa.

Olho-a e entretenho-me, ratando a caneta entre meusdedos, esmagado pela multitude inextrincável de idéias, sentimentos,pensamentos que se comprimem e desejam ser descritos. Uns reclamam e fazemgrande tumulto: são os jovens, têm pressa de viver. Lá estão outros sedebatendo: são os velhos pensamentos, bem maduros, bem esclarecidos; comovelhos, eles olham despeitados a confusão que fazem os mais moços. É estecombate entre moços e velhos que determina nosso humor; e ao estadodo combate,à vitória de uns e à fraqueza dos outros, é que chamamos, a cada minuto, onosso estado da alma - style='font-size:10.0pt;font-family:Arial'>nosso stímmung. … style='font-size:10.0pt;font-family:Arial'>Às vezes, quando espio meus pensamentose sentimentos e os observo em religioso silêncio, tenho a impressão de quefacções bárbaras bramem e se agitam que o ar estremece e se dilacera, como seum pensamento ou uma águia se tivesse atirado para o sol.

style='font-size:10.0pt;font-family:Arial'> O combate é o alimento que dá forçaà alma. Ela sabe escolher os seus frutos doces e esplêndidos Sob a pressão dodesejo de um novo alimento, ela destrói; luta com energia — mas comosabe ser suave quando atrai seu adversário, aperta-o e se une a eleinteiramente. Essa impressão que num minuto faz toda a nossa felicidade ou todaa nossa tristeza, talvez deslize num instante, como os cortinados dumaimpressão ainda mais profunda, para desaparecer diante desta que ê maisimportante. Assim se vão aprofundando as impressões de nossa alma, sempreúnicas, incomparáveis, extraordinariamente jovens e rápidas como o próprioinstante que as traz.

Nesse minuto,penso em certas pessoas que amei; certos nomes, certas fisionomias passam pelomeu espírito —não quero dizer que suas naturezas se tornem realmentemais profundas e mais belas; mas é verdade que cada uma destas reminiscências,quando as encontro, levam-me para impressões mais agudas — porque o espírito

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não se conforma em voltar a um nível que já ultrapassou — ele temnecessidade de se tornar maior, sempre maior. Eu vos saúdo, caras impressões,ondulações maravilhosas de uma alma agitada. Sois numerosas como a natureza,mas mais grandiosas; por isso que vós cresceis e vos esforçais sem cessar — e a flor, ao contrário, perfuma hoje como perfumava no dia de sua criação.Eu não amo agora como amava há uma semana atrás; e não estou tãodisposto neste momento como estava quando tomei esta caneta para escrever.

FredericoNietzsche voltou a Pforta para preparar os últimos exames. Pouco faltou paraser reprovado, pois em matemáticas não conseguiu média. Mas os professores,desprezando esta insuficiência, conferiram-lhe o diploma. E ele deixou a velhaescola. Deixou-a com pena. Sua alma depressa se agarrava aos lugares ondevivia. Agarrava-se com igual insistência às recordações felizes como àsmelancólicas.

A despedida dosalunos é uma cerimônia regulamentada. Eles se reúnem para orar em comum umaúltima vez. Depois, aqueles que vão partir entregam aos professores umtestemunhou escrito de sua gratidão. A carta de Frederico Nietzsche foiemocionante pelo acento patético e solene que tinha. Foi a Deus que ele sedirigiu: "A Ele, que me deu tudo. os meus primeiros agradecimentos. Queoferta lhe poderei fazer, senão o cálido reconhecimento de meu coração, segurodo seu amor! Ele me permitiu viver esta bela hora! — Que ele continue a velarsobre mim, o bondoso Deus." Depois, agradece ao rei "por cuja bondademe foi possível entrar nesta escola…; a ele e à pátria, espero poder honrar,um dia. É essa a minha vontade." Fala. em seguida, aos seus veneradosmestres, e aos seus colegas "e particularmente a vocês, meus caros amigos,que lhes poderei dizer no momento de partir".

Compreendoporque a planta, tirada do solo que a alimentou só pode, num solo estranho,enraizar com dificuldade e lentidão. Poderei me afastar de vocês? Poderei mehabituar a outro meio? Adeus!” style='font-size:10.0pt'>

Não satisfeitocom estas expansões, escreveu para si mesmo estes versos que as reproduzem:

Que sejaassim — a marcha do mundo é tal;Que me aconteça como a tantos outros.Eles partem, seu bote se despedaça,E ninguém pode mostrar o ponto do sumiço.Adeus, adeus! O sino do barco chama,E como demoro, o barqueiro me apressa.E agora, ousado, parto através de vagas, tempestades e recifes!Adeus! Adeus!…