11
NIETZSCHE A ESPIRITUALIDA DE DE NIETZSCHE

Nietzsche - A Espiritualidade

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Nietzsche - A Espiritualidade

Citation preview

Page 1: Nietzsche - A Espiritualidade

NIETZSCHE

A

ESPIRITUALIDA

DE DE

NIETZSCHE

Page 2: Nietzsche - A Espiritualidade

A ESPIRITUALIDADE DE NIETZSCHE

O sentimento do sagrado descrito por Nietzsche, levando para algo

que é nem o espírito nem a matéria, fundamenta suas especulações sobre a

natureza profunda do mundo, o que distingue ele tanto do idealismo quanto do

materialismo1. Para Nietzsche, a primeira aceitação do mundo pertencia ao

domínio da experiência intima, e que a afirmação que ele defendia não

consistia somente nem principalmente na invenção de metáforas ou outras

criações de linguagem, ou seja que o conhecimento do mundo em si tinha

prioridade sobre a construção de leituras ou de discursos sobre o mundo.

Existe, portanto, na sua filosofia um lugar para uma concepção positiva da vida

espiritual, que não seria contradita pelas suas críticas virulentas?

Existe uma crítica de Nietzsche sobre o ascetismo bem conhecida

na terceira dissertação da Genealogia da moral. A crítica que Nietzsche faz do

representante mais cruel e mais típico do ascetismo, o sacerdote ascético, está

dirigida ao sistema de valores do sacerdote e do modo de vida ditado por esses

valores. De um modo geral, para ele, um valor ou uma prática são ditas sadias

se elas revelam ou refletem uma certa aceitação do mundo, e não sadias se

elas conduzem ou decorrem de sua negação. Nietzsche vê no sacerdote

ascético o ser menos sadío por excelência porque ele concede um valor à vida

humana na medida em que ela está totalmente tensa para a negação do

mundo; ele representa o tornar-se da vida contra si mesmo. O sistema de

valores do sacerdote apóia se em duas grandes noções: o falso e o verdadeiro.

Nietzsche descreve o estratagema pelo qual esse sistema é elaborado como

uma verdadeira perversão do instinto e da razão. O sacerdote qualifica como

falso tudo o que é real e constitui o mundo – o devir, a multiplicidade, o corpo, o

sensível – e de verdadeiro um mundo imaginário ao qual ele atribui todas as

propriedades que são contrárias às do mundo. Portanto o sacerdote ascético

não cura o mal do qual sofrem seus fiéis. Ele o propaga e o mantém embora

adocicando-o.

O lema do jovem Nietzsche tinha um lema que ele conservou

durante toda sua vida: “Torne-se o que você é.” Ela indica o quanto Nietzsche

1 Acompanho a análise de BROISSON, Ivan, Nietzsche et la vie spirituelle, Paris, L‟Harmattan,

2003

Page 3: Nietzsche - A Espiritualidade

estava apegado à idéia da realização individual e deixa adivinhar que ele

criticará tudo que poderia impedir o indivíduo de atingir seu pleno desabrochar.

Para Nietzsche, tornar-se si mesmo e viver em contemplativo significavam a

mesma coisa. Ele quer criar uma ciência ancorada na vida, que não poderia ser

desunida da existência individual. Se o saber for dissociado da vida, ele perde

todo significado. Nas Considerações intempestivas, ele insiste que a exigência

de objetividade prejudica a vida e que toda atitude que faz dela um imperativo

absoluto pode ser considerado como doença. Nesse sentido, pode se falar de

uma oposição entre a verdade e a vida, onde “verdade” visaria o fim suposto de

uma exigência de objetividade impessoal e a “vida” o desenvolvimento do

individuo, o desabrochar da existência singular. No escrito Verdade e mentira

no sentido extra-moral, Nietzsche questiona o que ele nomeia o “instinto de

verdade”, essa vontade teimosa de atingir um “mundo verdadeiro”, um conjunto

de “certezas” que parecem estabelecidas, embora tenham sua origem na força

criadora do homem. Ele contesta a idéia de um conhecimento que seja puro de

qualquer intervenção do indivíduo.

Todavia, ele considera que existe uma busca pelo conhecimento que

se ancora na vida porque parte da própria vida, porque seus conhecimentos

são vitais (esse “conhecimento” exige em primeiro lugar que as questões sejam

enfrentadas), e ela volta ao assunto porque inspira toda a conduta de que

conhece desse modo e porque a vida, quando se faz um passo a mais, torna-

se uma vida de pensamento. Assim, Nietzsche, ao mesmo tempo que ele

conduz suas meditações sobre a oposição do conhecimento e da vida,

prescreve uma espécie de vida contemplativa, principalmente para aqueles que

se interessam para os grandes problemas.

Esse ensinamento exige um certo tipo de vida porque é preciso ver

as coisas no seu conjunto e não como as vê o “homem ordinário”. Ele

considera a “inquietude moderna” como uma doença2. Segundo ele, a época

contemporânea caracteriza-se por uma desvalorização do ócio, que ele

considera como algo de bom, em proveito de um trabalho extenuante. Esse

fenômeno atinge a ciência “os cientistas têm vergonha do otium”, abandonam-

se à escravidão dos pequenos fatos em vez de viver como pensadores

2 NIETZSCHE, Friederich, Humano, demasiado Humano, São Paulo, Companhia de Bolso,

2007, par. 282 – 286

Page 4: Nietzsche - A Espiritualidade

aristocráticos. Essa escravidão e essa agitação provocam o declínio da cultura

porque torna-se vergonhoso de pensar por si mesmo e de medir livremente o

peso de cada idéia. A independência de espírito é considerada como um crime

contra o interesse geral.

O século de Nietzsche seria então doente por causa de sua agitação

e de sua falta de ócio. Os homens desse tempo sofreriam de um excesso de

energia? Justamente, não, porque o que se esconde por baixo dessa

preocupação febril, sua causa profunda, na realidade é uma insidiosa preguiça!

“Acho que cada pessoa deve ter uma opinião própria sobre cada coisa a respeito da qual é possível ter opinião, porque ela mesma é uma coisa particular e única, que ocupa em relação a todas as outras uma posição nova, sem precedentes. Mas a indolência que há no fundo da alma do homem ativo impede o ser humano de tirar água de sua própria fonte.”3

O preguiçoso não é aquele que parece. Não é o ocioso que, para

enfrentar os problemas da existência, se retira dos problemas dos trabalhos

cotidianos; é o “homem de ação” que abandona-se aos trabalhos para escapar

dos problemas.

O remédio proposto por Nietzsche consiste em devolver à

“ociosidade” seu papel e forçar os indivíduos, pelo menos o que são feitos para

isto, a buscar um lazer corajoso. Nietzsche chama isso de “vida contemplativa”.

“Por falta de tranqüilidade, nossa civilização se transforma numa nova barbárie. Em nenhum outro tempo os ativos, isto é, os intranqüilos, valeram tanto. Logo, entre as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está fortalecer em grande medida o elemento contemplativo.”4

Nas suas obras de maturidade, Nietzsche precisa seu ideal

contemplativo. Ele não aceita um ideal contemplativo que faça da vida do

espírito uma vida separada da vida do corpo. Ele recrimina aos “espirituais” de

ter contaminado os homens da vida ativa, que Nietzsche prefere porque ele os

acha mais vigorosos. O homem de vida ativa está cheio de forças vitais, mas

não é ainda o indivíduo delicadamente formado no qual elas se organizam. É

preciso, para isso, que o indivíduo assume plenamente a própria existência,

que ele busque descobrir o que ele é para poder tornar-se tal. Isso exige

algumas condições de vida, e mesmo uma nova vida contemplativa onde

seriam cultivadas e não contrariadas todas as forças do indivíduo. O pensador

3 Ibid. par. 286

4 Ibid. par. 285

Page 5: Nietzsche - A Espiritualidade

deve, portanto, possuir capacidades de abstração e de raciocínio. Devem

porém superar a tentação dos antigos contemplativos que faziam da abstração

um fim em si. Os conceitos são instrumentos por meio dos quais o homem

simplifica as coisas; o erro dos antigos contemplativos foi ter visto neles um

elemento subsistente pertencendo a um mundo separado, e de ter feito da vida

um caminho em direção a esse mundo. Esse mundo tornava-se o escopo da

vida, e portanto o fim da vida em todos os sentidos da palavra.

“O pensador necessita de fantasia, vôo, abstração, dessensualização, invenção, intuição, indução, dialética, dedução, crítica, coleta de material, pensamento impessoal, contemplação, visão do conjunto e, igualmente, justiça e amor em relação a tudo que existe – mas todos esses meios já contaram isoladamente como fins e fins últimos, na história da vita contemplativa e deram a seus inventores a beatitude que penetra a alma humana quando refulge um fim último.”5

Fazer de tudo isso um escopo final significa corrompe-las, porque

significa colocá-las contra a vida e contra o mundo. A nova vida contemplativa

será do pensador que não renuncia ao mundo, que não quer abstrair-se do

mundo e, portanto, desaparecer como indivíduo; será, pelo contrário, do

pensador que busca a si mesmo, que enfrenta os problemas colocados pela

própria existência com todos os meios próprios da própria individualidade.

“Renunciar ao mundo sem conhecê-lo, como uma freira – isso resulta numa estéril e talvez triste solidão. Isso nada tem em comum com a solidão da vita contemplativa do pensador: quando ele a escolhe, não está abdicando de nada; talvez significasse renúncia, tristeza, ruína de si mesmo, para ele, ter de perseverar na vita practica: a esta ele renuncia, não por conhecê-la, por conhecer-se. Assim pula ele nas suas águas, assim adquire ele a sua serenidade.”6

O que Nietzsche ataca na religião não é o modo de vida religioso

mas a preocupação em cultivar a dogmática. Ele denuncia as falsas

interpretações do texto da experiência que consistem em referir todo fenômeno

sensível ao mundo do ideal. Se ele procede assim é para trazer de volta o

interesse do homem perdido nos mundos ideais para a dura realidade,

exatamente para o cotidiano e a disciplina que deve ordená-lo. Ora essa

disciplina é precisamente aparentada à vida contemplativa a mais tradicional.

No parágrafo 9 de Ecce Homo, ele mostra como desejar honras, mulheres ou

dinheiro para eles mesmos contradiz o coração do seu temperamento como de

5 NIETZSCHE, Friederich, Aurora, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, par. 43

6 Ibid., par. 440

Page 6: Nietzsche - A Espiritualidade

sua filosofia. O filósofo deve permanecer inatual, indiferente como Heráclito

para o louvor ou a reprovação dos homens. É portanto o contrário do

comediante que vive unicamente para o próprio público, que não procura

tornar-se o que ele é mas o que o público espera dele. A mulher (assunto de

que ele trata na sétima seção de Humano, demasiado humano e no início do

segundo livro de Gaia Ciência), a mulher pode ser um obstáculo para o filósofo

de dois modos: cria um vínculo o que torna a pessoa menos livre para pensar.

A mulher parece amolecer e enganar o homem, o que é o contrário da dureza

necessária para o filósofo, como veremos mais adiante. O terceiro obstáculo, o

dinheiro parece, em comparação, quase inofensivo. O perigo não é, contudo,

pouco. Quem serve o dinheiro não pode ser dono de si, e se cair nessa

impotência, é por livre e espontânea vontade.

Na Genealogia da Moral, quem lê com paciência a terceira

dissertação percebe que Nietzsche expressa os três tradicionais votos

religiosos e os considera úteis. Para ele, o “espírito vigoroso e independente”

deve retirar-se ao deserto, viver no mais extremo desapego. Esse deserto seria

um escuridão voluntária, uma fuga diante de si mesmo. Essa escuridão é

acompanhada pela humildade, que significa uma certa dependência e um certo

desaparecer. O filósofo deve ser livre do dever de pensar a si mesmo.

Portanto, se ele depender dos outros, deve ficar livre de qualquer desejo de

acumulação econômica. Finalmente, o filósofo deve apresentar um certo

ojeriza ao casamento. Embora, o que ele chama de escuridão se parece com

humildade, o que ele chama de humildade se parece mais com pobreza, o

filósofo vivendo longe dos discursos, dos negócios, das mulheres, o filósofo

vive ume despojamento quase religioso.

Esse pequeno “quase” faz porém uma grande diferença. Qual é a

relação exata do filósofo com o sacerdote? No discurso do sacerdote, a ascese

é um fim em si. O que expressa o ascetismo do filósofo, o que o ascetismo

sinaliza é o “instinto” do filósofo, é ele mesmo, seu querer, sua “fatalidade”. A

disciplina ascética será apreciada como condição de realização. Ela significa “

Page 7: Nietzsche - A Espiritualidade

“um optimum das condições da espiritualidade a mais alta e a mais ousada. Por aí, ele não nega a existência; pelo contrário, ele afirma a própria existência, ele afirma somente sua existência.”7

O que ele entende por “espiritualidade a mais alta e a mais ousada”?

Pelo ideal ascético, os filósofos entendem

“o ascetismo sereno de um animal que se tornou divino e que se move acima da vida ao invés de repousar sobre ela”.8

Isso dá idéia do tipo de realização proporcionada por esse ideal:

uma calma e uma leveza divinas, que faz com que o filósofo está em paz com

o mundo, consigo mesmo, com seu próprio corpo e com suas próprias paixões.

Obtém a liberdade que lhe permite filosofar, o que não significa simplesmente

uma atividade teórica com seus conceitos, mas muito mais uma vida intelectual

feita de experiências e de meditações.

Nietzsche compara frequentemente esse estado de espírito ideal

com a música ideal que ele deseja. Assim ele diz:

“Nossa música, que em tudo pode se transformar e tem de se transformar porque como o demônio do mar, não tem caráter em si: outrora essa música seguiu os passos do erudito cristão que foi capaz de traduzir em sons o ideal deste: por que não acharia ela enfim aquele som mais claro, mais alegre e universal que corresponde ao pensador ideal? – uma música que apenas nos amplos acordos suspensos da alma dele possa embalar-se, estando em casa? – Nossa música foi até agora tão grande, tão boa: nada foi impossível nela! Que mostre, então, que é possível sentir ao mesmo tempo essas três coisas: elevação, luz profunda e quente, e a volúpia da suprema coerência lógica.”9

Essa “volúpia da suprema coerência lógica” deve ser entendida à luz

do tema mais vasto da “grande lógica” que simboliza adequadamente a

concepção nietzscheana da espiritualidade. O que é a grande lógica? Por

oposição ao que se pode chamar a pequena lógica, uma lógica demasiado

humana, que busca caricaturar o mundo por falta de força, a grande lógica é

uma ordem dada a uma matéria caótica pela virtude de uma força extrema.

Essa ordem produz um tipo de brilho, de luz, reflexo da força que o gerou. A

grande lógica caracteriza o grande estilo, o de todo artista rico de forças e ele

mesmo formado harmoniosamente. A grande arte como a alta espiritualidade

reflete parecidamente a harmonia do indivíduo. Essa harmonia não cai do céu

7 NIETZSCHE, Friederich, Genealogia da moral, III, 7

8 Ibid.

9 Aurora, 461

Page 8: Nietzsche - A Espiritualidade

e Nietzsche chama de espiritualização o processo que a gera. Assim, “toda

animalidade é espiritualizada”10.

Depois de discutir as condições do conhecimento e da vida

filosófica, é preciso perguntar-se o que precisa conhecer e experimentar. Por

isso, é preciso entender um pouco a doutrina da Vontade de Potência. Essa

expressão designa a propensão de todo ser em realizar-se, em crescer, ou, por

assim dizer, sua disposição a desabrochar. Um dos traços da vontade de

potência forte é que ela contém sempre algum desejo de opor-se obstáculos.

Esse critério, a vontade de enfrentar penas, permite distinguir dois tipos de

felicidade. O ser medíocre não procura crescer, foge dos rigores da vida e só

busca o descanso. O ser forte, que conquistou uma nova grandeza pela

superação de alguns obstáculos, recebe, em acréscimo, um outro tipo de

felicidade, precisamente a de ter vencido. Tal felicidade representa a graça

mesma da vida enquanto o outro representa o caminho para a extinção. Assim

os papéis respectivos do prazer e do desprazer variam dependendo se tratar

de uma vontade forte ou de uma vontade fraca. Isso permite entender o que é

uma “vontade ativa” (a que define o super-homem, o que sempre se supera): o

homem ativo, o forte, em primeiro lugar, é capaz de forçar-se ao desprazer; em

segundo lugar, usa isso para realizar-se.

Renunciar às provações, é recusar enobrecer, quer dizer crescer e

viver. A figura do “último homem”, em Zaratustra, representa bem essa atitude.

“Ai, aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz estrelas; aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, do que já se não pode desprezar as si mesmo.

Olhai! Eu vos mostro o último homem.

„que vem a ser isso de amor, de criação, de ardente desejo, de estrela?‟ – pergunta o último homem, revirando os olhos.

A terra tornar-se-á então menor, e sobre ela andará aos pulos o último homem que tudo apouca. A sua raça é indestrutível como a da pulga; o último homem é o que vive mais tempo.

„Descobrimos o que é a felicidade‟ – dizem os últimos homens, e piscam os olhos.

(...) Não falta um pouco de prazer para o dia e um pouco de prazer para a noite; mas respeita-se a saúde.”11

10

Genealogia da Moral III, 8

Page 9: Nietzsche - A Espiritualidade

Segundo Deleuze, o último homem representa o estágio final do

niilismo. Esse autor distingue três etapas do niilismo. O niilismo negativo que

consiste em inventar um além-mundo para negar o aqui em baixo: é o niilismo

dos pastores. O niilismo reativo consiste em levantar-se contra a autoridade do

pastor e em negar seu além-mundo porque pesa demais. O niilismo passivo

consiste em desistir da luta e em embrutecer na inércia12. Assim, o que ameaça

o último homem, não é a extinção, mas sim a estagnação no gozo.

A qualidade que se opõe a essa fuga do desprazer é a dureza. Ser

“duro”, na linguagem de Nietzsche, quem persegue suas menores covardias

para para enfrentar por inteiro as próprias provações13.

É principalmente na sua reflexão sobre o conhecimento que se

encontra em Nietzsche uma crítica ao hedonismo e um convite para ser duro.

Nietzsche não que fazer da beatitude um critério de verdade: daí sua crítica

aos sacerdotes. Para ele, beatitude ou felicidade são nomes cristãos do

prazer14. A esse tipo de hedonismo, ele objeta que toda verdade é dolorosa,

que não existe pensamento profundo que não doa, pelo menos num primeiro

momento. Que as propostas de fé, longe de ser confirmadas pelo bem estar

que o crente sinta ou espere, podem ser objeto de dúvida e podem ser

refutadas.

“Cada palmo de verdade deve ser obtido com luta, por ela foi preciso abandonar quase tudo a que se apega o coração, o amor, a confiança na vida. Isso requer grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro serviço. – Que significa, afinal, ter retidão em coisas do espírito? Ser rigoroso com seu coração, desprezar os “belos sentimentos”, fazer de cada Sim e Não uma questão de confiança! - - - A fé torna bem-aventurado: portanto, mente...”15

Essa dureza do homem do conhecimento tem um nome conhecido:

é o “trágico”. Nietzsche é um “pensador trágico”, o que o distingue dos

construtores de sistemas de qualquer espécie. No O nascimento da Tragédia,

ele queria descrever o lado esquecido da alma grega, o “dionisíaco”, e mostrar

que esse lado é muito mais gerador da grandeza da Grécia do que a

11

NIETZSCHE, Friederich, Assim Falou Zaratustra, São Paulo, Martin Claret, 2007, primeira parte, Preâmbulo, 5 12

DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, citado em BROISSON, Ivan, Nietzsche et la vie spirituelle, Paris, L‟Harmattan, 2003 13

Ver Assim Falou Zaratustra, segunda parte, Dos Compassivos 14

NIETZSCHE, Friederich, O Anticristo, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, par.50. 15

Ibid.

Page 10: Nietzsche - A Espiritualidade

“serenidade” tão louvada pelos clássicos alemães. Para Nietzsche, essa

serenidade apareceu com a decadência da Grécia e é um sintoma dessa

decadência16. Ele visa um alvo escolhido, Sócrates, para ele o grande corruptor

da Grécia. Mas, através dele, ele visa o “homem teórico” em geral, que vê na

lógica muito mais do que um instrumento, que vê nela a própria realidade e que

busca nessa realidade um abrigo tranqüilizador. Assim, Nietzsche não ataca

simplesmente a decadência grega, mas também a do homem moderno. Ele vê

no homem ocidental do século dele o resultado de um tipo de proliferação

doentia do tipo teórico: os indivíduos são ávidos de ciência, mas de uma

ciência que tranqüiliza. A ciência moderna, para Nietzsche, respira a fraqueza;

o otimismo moderno, os valores modernos, tudo isso cheira mal. Assim, na

releitura de O nascimento da tragédia que ele mesmo faz, ele vai definir o que

é o “pessimismo trágico”17. Não designa mais a doutrina que considera o

mundo como mau em si; designa uma capacidade do querer, a dureza no

conhecimento que leva a ver o que o otimismo esconde. Em breve: o forte quer

o conhecimento. Porque o homem teórico é decadente? Porque ele acredita

nos conceitos de sua ciência, que ele não os considera como instrumentos ou

caricaturas das coisas mas como sua substância, tornando-se assim cego para

a verdade. Assim, ele opõe ao socratismo o dionisíaco que ele descreve assim:

“...uma fórmula de afirmação suprema nascida da abundância, da superabundância, um dizer Sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo, a tudo que é estranho e questionável na existência mesmo... Esse último, mais radiante, mais exalto - exuberante Sim à vida é não apenas a mais elevada percepção, é também a mais profunda, a mais rigorosamente firmada e confirmada por ciência e verdade.”18

Assim, uma alma será dita forte na medida em que ela se arrisca a

conhecer e que ela suporta o conhecimento. Sustentar a verdade era, para

Nietzsche, o critério por excelência que devia distinguir os verdadeiros

filósofos.

“Qual dose de verdade um espírito é capaz de suportar qual dose de verdade ele pode arriscar? Eis o que se tornou para mim o verdadeiro critério de valores. O erro é uma covardia...Toda aquisição do

16

Ver NIETZSCHE, Friederich, Essai d’autocritique et autres préfaces, Paris, Seuil, 1999 17

No Essai d’autocritique e em NIETZSCHE, Friederich, Ecce Homo, São Paulo, Companhia das Letras, 1999 18

NIETZSCHE, Friederich, Ecce Homo, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, o nascimento da tragédia, par. 2, p. 63

Page 11: Nietzsche - A Espiritualidade

conhecimento é a conseqüência da coragem, da dureza e da probidade em relação a si mesmo.”19

19

NIETZSCHE, Friederich, Fragments posthumes citado em BROISSON, Ivan, Nietzsche et la vie spirituelle, Paris, L‟Harmattan, 2003, p. 80. A tradução é minha.