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1563 NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: CRÍTICA À MÁ FILOLOGIA E À MÁ INTERPRETAÇÃO LINGUÍSTICA Mizael José de Oliveira Filho Prof. Eder Soares Santos (Orientador) 1 INTRODUÇÃO Wittgenstein e Nietzsche não foram contemporâneos. Em verdade, o primeiro nasceu próximo à época do mesmo ano de 1889 em que o segundo veio a ter o colapso que o deixaria em estado de completa prostração intelectual até sua morte em 1900. Parte da obra de Nietzsche foi publicada pelo próprio autor e algumas anotações reunidas e organizadas sob o formato de livros à publicação, os quais foram posteriormente levados a prelo por seus amigos Peter Gast e Overbeck. No entanto, grandioso também é o material conhecido como Fragmentos Póstumos, anotações, sentenças e aforismos compilados definitivamente em edição completa por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, após a deturpação promovida pela própria irmã, Elisabeth Nietzsche, que atribuiu a estes póstumos o título de Vontade de poder, falsificando documentos e direcionando-o à causa nazista. Wittgenstein, por outro lado, publicou em vida somente o Tractatus Logico-Philosophicus, em 1921, nos Anais de Filosofia Natural, dirigido por Wilhelm Ostwald. Outras obras suas que se tornaram muito conhecidas foram publicadas após sua morte; dentre elas o Caderno Azul, o Caderno Marrom e as Investigações Filosóficas 621 . Muitos intérpretes 621 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. Daqui por diante as menções a esta obra no corpo do texto estarão sempre sob o formato de Investigações. Quando se tratar de citação, IF seguido de respectivo parágrafo e número de página.

NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: CRÍTICA À MÁ · PDF fileNIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,

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1563

NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: CRÍTICA À MÁ FILOLOGIA E À MÁ INTERPRETAÇÃO LINGUÍSTICA

Mizael José de Oliveira Filho

Prof. Eder Soares Santos (Orientador)

1 INTRODUÇÃO

Wittgenstein e Nietzsche não foram contemporâneos. Em

verdade, o primeiro nasceu próximo à época do mesmo ano de 1889 em

que o segundo veio a ter o colapso que o deixaria em estado de completa

prostração intelectual até sua morte em 1900. Parte da obra de Nietzsche

foi publicada pelo próprio autor e algumas anotações reunidas e

organizadas sob o formato de livros à publicação, os quais foram

posteriormente levados a prelo por seus amigos Peter Gast e Overbeck.

No entanto, grandioso também é o material conhecido como Fragmentos

Póstumos, anotações, sentenças e aforismos compilados definitivamente

em edição completa por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, após a

deturpação promovida pela própria irmã, Elisabeth Nietzsche, que atribuiu

a estes póstumos o título de Vontade de poder, falsificando documentos e

direcionando-o à causa nazista.

Wittgenstein, por outro lado, publicou em vida somente o

Tractatus Logico-Philosophicus, em 1921, nos Anais de Filosofia Natural,

dirigido por Wilhelm Ostwald. Outras obras suas que se tornaram muito

conhecidas foram publicadas após sua morte; dentre elas o Caderno Azul,

o Caderno Marrom e as Investigações Filosóficas621. Muitos intérpretes

621

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova

Cultural, 1999. Daqui por diante as menções a esta obra no corpo do texto estarão sempre sob o formato de

Investigações. Quando se tratar de citação, IF seguido de respectivo parágrafo e número de página.

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sustentam que Wittgenstein alterou essencialmente sua orientação do

Tractatus para estas “obras póstumas”, principalmente em relação às

Investigações. Como se verá, tal asserção é ainda mais relevante quando

se tem em vista a análise da linguagem em seu uso cotidiano

completamente afastada da falta de “atrito” ilusória garantida pelo

idealismo lógico que leva à metafísica.

O que poderia aproximar um filósofo analítico como Wittgenstein

de Nietzsche? Ambos são autores controversos. Entraram na filosofia por

vias indiretas mas constituíram marcos de viragem dentro desta disciplina

do conhecimento. Como pondera Condé622, primeiramente de forma

externa às suas obras, as leituras em comum que os orientaram, de

maneira mais ou menos significativa: a primeira delas Kant, depois, e

principalmente, Schopenhauer. Ainda externamente à obra, parafraseando

e acrescentando Condé no que concerne à formação primariamente não

filosófica de ambos. Nietzsche figurou de 1869 a 1879 como jovem e

genial professor de Filologia Clássica assumindo esta cátedra na

Universidade da Basiléia, na Suíça, promovendo a hermenêutica das obras

filosóficas da Antiguidade grega. Por muito tempo, mesmo após a

publicação de O nascimento da tragédia e de várias outras obras,

Nietzsche não era considerado filósofo, exceto por poucos amigos

confidentes ou de trabalho. Somente em 1888, ano anterior ao de seu

colapso mental, começa seu trabalho a repercutir, a surgir conferências,

artigos, resenhas e ensaios sobre ele. Zaratustra é traduzido para o

francês. Mas já no Ecce homo, Nietzsche salienta a superficialidade, para

dizer o mínimo, de alguns destes textos:

Um artigo do dr. V. Widmann no Bund, sobre Além do bem e do mal, sob o título “O

perigoso livro de Nietzsche”, e uma resenha geral sobre meus livros pelo Sr. Karl Spitteler,

622

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. “Nietzsche e Wittgenstein: semelhanças de família”. In: NETO, Olimpio José

Pimenta; BARRENECHEA, Miguel Angel de. (Org.). Assim falou Nietzsche I. Rio de Janeiro: Editora 7Letras,

1999, pp. 38-54.

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igualmente no Bund, são um ponto alto em minha vida – eu me guardarei de dizer do

que... O último, por exemplo, tratou o meu Zaratustra como superior exercício de estilo,

com os votos de que eu viesse a cuidar também do conteúdo; já o dr. Widmann

expressou-me seu respeito pela coragem com que me esforço pela abolição de todo

sentimento decente.623

Nota-se peremptoriamente a falta de senso crítico, o desconforto

ante a revolução do trato filológico do texto filosófico de Nietzsche. No

período de 1869 até 1873-76, ultimado pela constituição do Humano,

demasiado humano, Nietzsche conviveu e vivenciou um tempo de intensa

amizade com o compositor Richard Wagner. Foi por ele deveras

influenciado no mencionado prazo. Dele se distanciou. Mas até o final de

seus dias de lucidez continuou reverenciando escritos ao mentor

intelectual-musical, mesmo que de aguda maneira depreciativa. Já

Wittgenstein viveu uma infância em um meio musical assaz fervilhante.

Nomes como Johannes Brahms e Gustav Mahler visitavam assiduamente

sua casa e a música permeou sempre sua vida. No entanto, seu

aprendizado voltou-se primeiramente para disciplinas técnicas indo

estudar engenharia mecânica em Berlim. Iniciou seu doutoramento em

Engenharia em Manchester, interessando-se pelos estudos em

fundamentação da matemática após entrar em contato com a obra Os

princípios da matemática, de Bertrand Russell, e os Fundamentos da

aritmética, de Gottlob Frege. Afastou-se, então, da Engenharia após

conversar com Frege que o indicou estudar com Russell. Russell ficou

admirado com o ensaio escrito por aquele que seria seu discípulo a partir

de então.

623

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio

Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 51.

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2 NIETZSCHE E A MÁ FILOLOGIA

As palavras que Nietzsche, ao início do Segundo dos Cinco

prefácios624, profere clamando pelo tipo de leitor de sua obra que é por ele

esperado, devem ser estendidas do bom trato da linguagem ou apuro

filológico para uma boa leitura do mundo: “O leitor do qual espero alguma

coisa deve ter três qualidades. Deve ser calmo e ler sem pressa. Não deve

intrometer-se, nem trazer para a leitura a sua „formação‟. Por fim, não

pode esperar na conclusão, como um tipo de resultado, novos

tabelamentos.” (NIETZSCHE, 2007, p. 33). Ao generalizar-se o dito

nietzscheano para a leitura moralizante que dominou a civilização

ocidental após o platonismo e o cristianismo, a pressa na leitura do

mundo, a leitura “infectada” pela orientação moral e a necessidade de se

estabelecer uma “conclusão”, ou seja, um fundamento verídico625 e

inquestionável, permeiam todas as análises.

Desde seus primeiros escritos Nietzsche põe em dúvida a

avaliação do mundo promovida pela moral cristã ao lê-lo pela ótica do

platonismo. Textos como o citado acima, de 1872, e o tão conhecido início

de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, de 1873, sobre a

fábula do intelecto humano, mostram que Nietzsche não só exigia para

sua obra um diverso tipo de leitor como também um homem dotado de

um olhar reto em relação ao mundo, sem passar sua leitura por distorções

idealistas e metafísicas. Mas a paixão pelo ilusório faz com que a mente

humana dote este provável mundo metafísico de uma sobrelevada valia,

ofuscando o conhecimento do mundo real: “Ainda que a existência de tal

mundo estivesse bem provada, o conhecimento dele seria o mais

insignificante dos conhecimentos: mais ainda do que deve ser, para o 624

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Pensamentos sobre o futuro de nossos institutos de formação”. In: Cinco

prefácios para cinco livros não escritos. Tradução e prefácio de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007,

p. 33. 625

“Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade

entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em

consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço.” NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência.

Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 256.

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navegante em meio a um perigoso temporal, o conhecimento da análise

química da água”626.

A má leitura de um texto acaba por ser equiparada à má leitura

que se pode fazer da natureza, como Nietzsche o faz no Humano,

demasiado humano:

Explicação pneumática da natureza. – A metafísica dá para o livro da natureza uma

explicação, digamos, pneumática, como a Igreja e seus eruditos faziam outrora com a

Bíblia. É preciso grande inteligência para

aplicar à natureza o mesmo tipo de rigorosa arte interpretativa que os filólogos de hoje

criaram para todos os livros: com a intenção de meramente compreender o que quer dizer

o texto, e não de farejar, ou mesmo pressupor, um duplo sentido. Mas como,

mesmo em relação aos livros, a má exegese não está de modo algum superada, e como na

melhor sociedade culta ainda encontramos frequentemente resíduos de interpretação

alegórica e mística, assim também ocorre no tocante à natureza – e mesmo pior ainda.

(NIETZSCHE, 2000, pp. 19-20).

Toda crítica nietzscheana à filosofia platônica, e à moralidade

cristã instaurada a partir dela, não vem colocar outra verdade definitiva

no lugar do mundo das Ideias, ou do paraíso, mas sim mostrar que esta é

uma leitura, e de maus filólogos. A “explicação pneumática” promove um

deslocamento da leitura da natureza sobre uma orientação metafísica tal

qual é feito com a exegese dos textos bíblicos. Nietzsche aponta que esta

má exegese não está superada entre os seus contemporâneos, não só

com relação à avaliação das obras mas também da leitura dos fenômenos

do mundo. Ainda mais, esta leitura não é mais tomada como uma

626

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução,

notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 20.

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interpretação que se obtém de uma leitura, mas aparece como essência

do mundo:

A crítica de Nietzsche procura demonstrar, assim, a ideia de uma essência da linguagem

e, como consequência, a ideia de uma essência dos valores. A linguagem não é a

representação da coisa ou da essência da coisa, mas uma metáfora que nos possibilita

uma relação com a coisa, uma interpretação. Contudo, o esforço da metafísica foi no sentido

de negar a arbitrariedade dessa interpretação e pretendê-la como a revelação da essência

oculta. (CONDÉ, 1999, p. 43).

O que é uma coisa relevante somente à linguagem, a primeira

vista, revela-se como avaliação dos valores morais que configuram o

pensamento de toda uma civilização, segundo Nietzsche. Por isso ele irá

apontar a maneira distorcida como foi encarada até a sua

contemporaneidade os valores “bom” e “mau” como em “A fábula da

liberdade inteligível” (NIETZSCHE, 2000. p. 47) do Humano, demasiado

humano, na Primeira Dissertação da Genealogia da moral627, e em “Como

o „mundo verdadeiro‟ se tornou finalmente fábula”628. Todas essas

menções mostram um Nietzsche extremamente rigoroso quanto à

consideração da historicidade dos fenômenos morais como somente um

olhar de filólogo e psicólogo poderia conceber.

3 WITTGENSTEIN E O QUE É PROPRIAMENTE DEVIDO À FILOSOFIA

A “pressa” no trato filológico e a má interpretação de formas

linguísticas conduzem a deturpações hermenêuticas e de leitura do mundo

bem como a tratamentos essencialistas, idealistas e dogmáticos da

linguagem. Para combater isso Wittgenstein estabelece a “terapia

627

“„Bom e mau‟, „bom e ruim‟”. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica.

Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 15-42. 628

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Tradução,

notas e posfácio de Paulo César de Souza

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gramatical”, a qual levará o filósofo a ver-se livre de pseudo-problemas

que o adoecem, passando a considerar somente o que é próprio da

filosofia e devido à filosofia na análise da linguagem, aos seus usos e

contextos de empregabilidade, ou seja, ao papel da filosofia: “Toda

elucidação deve desaparecer e ser substituída apenas por descrição” (IF,

§109, p. 65). O que Wittgenstein quer, então, com sua filosofia nas

Investigações? Uma coisa que parece simples mas em verdade é

importantíssima e grandiosa: “Queremos compreender algo que já esteja

diante de nossos olhos. Pois parecemos, em algum sentido, não

compreender isto.” (IF, § 89, p. 61). Este isto expresso por Wittgenstein

não é nada menos do que a linguagem ordinária que está presente em

todos nossos falares e que permeia todas nossas ações sociais em

quaisquer contextos práticos de nossas vidas.

A tarefa da filosofia wittgensteiniana é, portanto, refletir sobre as

possibilidades dos fenômenos a partir daquela terapia gramatical já

referida anteriormente: “É como se devêssemos desvendar os fenômenos:

nossa investigação, no entanto, dirige-se não aos fenômenos, mas, como

poderíamos dizer, às ‘possibilidades’ dos fenômenos. (...). Nossa

consideração é, por isso, gramatical.” (IF, § 90, p. 61). Quer Wittgenstein

afastar os “mal-entendidos” (IF, § 91, p. 62) para revelar a exatidão da

linguagem não no sentido da essência referente a esta exatidão, e sim da

clareza do que está na superfície do trato linguístico: “‘A essência nos é

oculta’: esta é a forma que toma agora nosso problema” (IF, § 92, p. 62).

Evidencia-se a má interpretação da linguagem pela filosofia,

mote deste texto, ou indevida importância dada à proposição, como

promovida pelo próprio Wittgenstein do Tractatus, quando se lhe tentava

atribuir algo para além de sua devida função: “Porque dizemos que a

proposição é algo estranho? Por um lado, devido à imensa importância

que lhe é atribuída. (E isto é certo). Por outro lado, esta importância e

uma má compreensão da lógica da linguagem levam-nos a crer que a

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proposição deva produzir algo de extraordinário e mesmo único. Por um

mal-entendido parece-nos que a proposição faz algo estranho.” Está

estabelecido o trabalho que enseja as Investigações:

“(...) Wittgenstein volta a análise da linguagem para os contextos de uso das

palavras, deixando de lado a busca pela

essência da linguagem e do significado. Para o segundo Wittgenstein não existem critérios

absolutos de significado e carência de significado, não existe o limite da linguagem,

mas limites, diferentes usos da linguagem ou diferentes “jogos de linguagem”. Aquele ideal

de determinação absoluta aparece agora como uma das imagens mais fortes a manter preso

o filósofo. Nas Investigações a filosofia passa a ser

compreendida como uma forma de terapia que não tem a pretensão de revelar a natureza

última da linguagem.629

O que aqui se pretenderá por interpretação adequada do mundo

baseia-se neste caráter de abertura dos limites da linguagem,

estabelecido pelos usos ou diferentes jogos de linguagem, pela terapia

gramatical que afasta o filósofo do “enfeitiçamento de nosso entendimento

por nossa linguagem” (DONAT, 2008, p. 61) e pelo fato de não pretender

a filosofia revelar a essência ou a natureza última da linguagem. Tem-se,

pois, o afastamento daquela ordenação a priori do mundo, como o queria

o Tractatus, onde tudo está estabelecido anteriormente à experiência;

onde não há perturbação ou incerteza empírica alguma; ordenação

concreta e dura como o mais puro cristal (IF, § 97, p. 63). O idealismo

que garantia a determinados conceitos um estatuto essencialista foi

decomposto nas Investigações e colocado ao mesmo nível das ditas

“simples” palavras “superficiais” de nosso uso cotidiano: “„linguagem‟,

629

DONAT, Mirian. Linguagem e significado nas investigações filosóficas de Wittgenstein: uma análise do

argumento da linguagem privada. Tese (Doutorado). UFSCar. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos:

UFSCar, 2008, p. 57.

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„experiência‟, „mundo‟, se têm um emprego, devem ter um tão humilde

quanto as palavras „mesa‟, „lâmpada‟, „porta‟”. (IF, § 97, p. 63).

3.1 Wittgenstein e a busca por evitar a má interpretação da linguagem

A clareza no âmbito dos estudos da linguagem se instaura com o

trabalho de Wittgenstein nas Investigações. Por quê? Por que não procura

promover qualquer fundamentação, não se dá a dogmatismos, deixando

tudo como está em sua análise: “A filosofia não deve, de modo algum,

tocar no uso efetivo da linguagem; em último caso, pode apenas

descrevê-lo.” (IF, § 124, p. 67). O mister filosófico instaura-se a partir de

uma visão globalizante do mundo e dos costumes humanos, os quais são

permeados, ou melhor, instaurados a partir de jogos de linguagem

assentados sobre formas de vida. A forma de vida é o esteio básico de

instauração de todos os diversos usos e jogos nos quais estão inseridos

cada um dos seres humanos e suas práticas ou ações.

Quando surgem problemas filosóficos? Evidentemente quando

uma metáfora apresenta-se sob o formato de um dogma, de uma

“certeza” que se reluta ou não se consegue observar sob outro prisma:

111. Os problemas que nascem de uma má

interpretação de nossas formas linguísticas têm o caráter da profundidade. São

inquietações profundas; estão enraizadas tão profundamente em nós quanto as formas de

nossa linguagem, e sua importância é tão grande como a de nossa linguagem. –

Perguntemos: por que sentimos uma brincadeira gramatical como profunda? (E isto,

com efeito, é a profundidade filosófica.) 112. Uma metáfora que é incorporada às

formas de nossa linguagem causa uma falsa

aparência; esta nos inquieta: “Não é assim!” – dizemos. “Mas é preciso que seja assim!”

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113. “É assim” – não paro de repetir. É como se eu devesse apreender a essência da coisa,

como se eu pudesse fixar agudamente esse fato e situá-lo no foco de meu olhar. (IF, §§

111, 112 e 113, p. 65).

Por restringir o olhar, o filósofo procede de maneira a procurar

justificativas específicas concernentes à linguagem, coisa que não é

incumbência da filosofia:

“Se tirarmos os óculos, veremos que a filosofia nada explica, apenas descreve. Mas se a sua

investigação dirige-se aos problemas

filosóficos, visando a origem linguística destes problemas, é preciso compreender que não há

nada novo a ser descoberto, tudo já está desde sempre à vista. É na vida cotidiana que

devemos buscar os usos dos termos frase, palavra, signo, reconhecendo que eles não

têm uma ordem ideal que pudesse ser dada pela análise lógica. Essa busca por uma ordem

ideal não leva a nada e deve ser abandonada (...). (DONAT, 2008, p. 59).

A ordem ideal deve ser abandonada. Necessita-se o atrito (IF,

§107, p. 64) da investigação da linguagem da vida cotidiana, da vida

ordinária permeada por todos os meandros das ações humanas deixando-

se de lado a lisa planície “imaculada” da lógica. “Retornemos ao solo

áspero!” (IF, § 107, p. 64).

Tal atrito e tal aspereza têm conexão com o conceito de clareza,

expresso como “visão panorâmica” (IF, § 122, p. 67) e são a garantia de

que o filósofo se desvencilhe daquela má interpretação da linguagem que

pode conduzir à profundidade “encobridora”, ou seja, garantem que não

se recaia na metafísica:

Quando os filósofos usam uma palavra – “saber”, “ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”,

“nome” – e procuram apreender a essência da

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coisa, deve-se sempre perguntar: essa palavra é usada de fato desse modo na língua em que

ela existe? – Nós reconduzimos as palavras do seu emprego

metafísico para seu emprego cotidiano. (IF. § 116, p. 66).

Veja-se a importância desta tarefa da “terapia gramatical”,

promovida por Wittgenstein, para o desenvolvimento dos estudos da

linguagem e da consecução da superação da metafísica no século XX. A

terapia gramatical destinada ao filósofo implica numa mudança completa

do modo como ele vê as coisas, o mundo: “Por isso, a filosofia é a terapia

do filósofo, terapia que se faz enquanto análise da gramática dos

conceitos, na tentativa de solucionar os problemas que surgem

justamente no uso filosófico de palavras que, no uso cotidiano ou por

parte do „homem ordinário‟, não apresentam problema algum” (DONAT,

2008, p. 60)

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Nietzsche e Wittgenstein são algozes dos maus tratos promovidos

pelos maus filólogos e maus interpretes do mundo, comungando no fato

de que a linguagem não poderia ser apreendida em “gaiolas” de exegeses

divinas e logicistas. Para o primeiro, a linguagem dentro da cultura

estabeleceu um mundo a parte do mundo real, estabeleceu uma má

leitura deste mundo, constituiu meandros deturpadores da metáfora

interpretativa que deveria conciliar o trabalho filosófico de análise dos

valores sustentados somente pelas probidade e retidão do homem

superior na reorientação estabelecida pelo procedimento genealógico; no

segundo, a linguagem das Investigações mostrou-se destituída do aparato

da lisa superfície inquestionável e imperturbável do que fora formulado

pelo Tractatus, reconduzindo-a ao uso banal, ao cotidiano uso corriqueiro

do prá quê se estabelece e torna necessária a linguagem: os variegados

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usos dos jogos de linguagem nos quais se assentam as ações e

interligações humanas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. “Nietzsche e Wittgenstein: semelhanças de

família”. In: NETO, Olimpio José Pimenta; BARRENECHEA, Miguel Angel de. (Org.). Assim falou Nietzsche I. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1999,

pp. 38-54.

DONAT, Mirian. Linguagem e significado nas investigações filosóficas de Wittgenstein: uma análise do argumento da linguagem privada. Tese

(Doutorado). UFSCar. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Tradução e prefácio de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras,

2007.

________. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres.

Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

________. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.

Tradução e notas Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

________. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e

posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.