Upload
hadiep
View
221
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1563
NIETZSCHE E WITTGENSTEIN: CRÍTICA À MÁ FILOLOGIA E À MÁ INTERPRETAÇÃO LINGUÍSTICA
Mizael José de Oliveira Filho
Prof. Eder Soares Santos (Orientador)
1 INTRODUÇÃO
Wittgenstein e Nietzsche não foram contemporâneos. Em
verdade, o primeiro nasceu próximo à época do mesmo ano de 1889 em
que o segundo veio a ter o colapso que o deixaria em estado de completa
prostração intelectual até sua morte em 1900. Parte da obra de Nietzsche
foi publicada pelo próprio autor e algumas anotações reunidas e
organizadas sob o formato de livros à publicação, os quais foram
posteriormente levados a prelo por seus amigos Peter Gast e Overbeck.
No entanto, grandioso também é o material conhecido como Fragmentos
Póstumos, anotações, sentenças e aforismos compilados definitivamente
em edição completa por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, após a
deturpação promovida pela própria irmã, Elisabeth Nietzsche, que atribuiu
a estes póstumos o título de Vontade de poder, falsificando documentos e
direcionando-o à causa nazista.
Wittgenstein, por outro lado, publicou em vida somente o
Tractatus Logico-Philosophicus, em 1921, nos Anais de Filosofia Natural,
dirigido por Wilhelm Ostwald. Outras obras suas que se tornaram muito
conhecidas foram publicadas após sua morte; dentre elas o Caderno Azul,
o Caderno Marrom e as Investigações Filosóficas621. Muitos intérpretes
621
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1999. Daqui por diante as menções a esta obra no corpo do texto estarão sempre sob o formato de
Investigações. Quando se tratar de citação, IF seguido de respectivo parágrafo e número de página.
1564
sustentam que Wittgenstein alterou essencialmente sua orientação do
Tractatus para estas “obras póstumas”, principalmente em relação às
Investigações. Como se verá, tal asserção é ainda mais relevante quando
se tem em vista a análise da linguagem em seu uso cotidiano
completamente afastada da falta de “atrito” ilusória garantida pelo
idealismo lógico que leva à metafísica.
O que poderia aproximar um filósofo analítico como Wittgenstein
de Nietzsche? Ambos são autores controversos. Entraram na filosofia por
vias indiretas mas constituíram marcos de viragem dentro desta disciplina
do conhecimento. Como pondera Condé622, primeiramente de forma
externa às suas obras, as leituras em comum que os orientaram, de
maneira mais ou menos significativa: a primeira delas Kant, depois, e
principalmente, Schopenhauer. Ainda externamente à obra, parafraseando
e acrescentando Condé no que concerne à formação primariamente não
filosófica de ambos. Nietzsche figurou de 1869 a 1879 como jovem e
genial professor de Filologia Clássica assumindo esta cátedra na
Universidade da Basiléia, na Suíça, promovendo a hermenêutica das obras
filosóficas da Antiguidade grega. Por muito tempo, mesmo após a
publicação de O nascimento da tragédia e de várias outras obras,
Nietzsche não era considerado filósofo, exceto por poucos amigos
confidentes ou de trabalho. Somente em 1888, ano anterior ao de seu
colapso mental, começa seu trabalho a repercutir, a surgir conferências,
artigos, resenhas e ensaios sobre ele. Zaratustra é traduzido para o
francês. Mas já no Ecce homo, Nietzsche salienta a superficialidade, para
dizer o mínimo, de alguns destes textos:
Um artigo do dr. V. Widmann no Bund, sobre Além do bem e do mal, sob o título “O
perigoso livro de Nietzsche”, e uma resenha geral sobre meus livros pelo Sr. Karl Spitteler,
622
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. “Nietzsche e Wittgenstein: semelhanças de família”. In: NETO, Olimpio José
Pimenta; BARRENECHEA, Miguel Angel de. (Org.). Assim falou Nietzsche I. Rio de Janeiro: Editora 7Letras,
1999, pp. 38-54.
1565
igualmente no Bund, são um ponto alto em minha vida – eu me guardarei de dizer do
que... O último, por exemplo, tratou o meu Zaratustra como superior exercício de estilo,
com os votos de que eu viesse a cuidar também do conteúdo; já o dr. Widmann
expressou-me seu respeito pela coragem com que me esforço pela abolição de todo
sentimento decente.623
Nota-se peremptoriamente a falta de senso crítico, o desconforto
ante a revolução do trato filológico do texto filosófico de Nietzsche. No
período de 1869 até 1873-76, ultimado pela constituição do Humano,
demasiado humano, Nietzsche conviveu e vivenciou um tempo de intensa
amizade com o compositor Richard Wagner. Foi por ele deveras
influenciado no mencionado prazo. Dele se distanciou. Mas até o final de
seus dias de lucidez continuou reverenciando escritos ao mentor
intelectual-musical, mesmo que de aguda maneira depreciativa. Já
Wittgenstein viveu uma infância em um meio musical assaz fervilhante.
Nomes como Johannes Brahms e Gustav Mahler visitavam assiduamente
sua casa e a música permeou sempre sua vida. No entanto, seu
aprendizado voltou-se primeiramente para disciplinas técnicas indo
estudar engenharia mecânica em Berlim. Iniciou seu doutoramento em
Engenharia em Manchester, interessando-se pelos estudos em
fundamentação da matemática após entrar em contato com a obra Os
princípios da matemática, de Bertrand Russell, e os Fundamentos da
aritmética, de Gottlob Frege. Afastou-se, então, da Engenharia após
conversar com Frege que o indicou estudar com Russell. Russell ficou
admirado com o ensaio escrito por aquele que seria seu discípulo a partir
de então.
623
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 51.
1566
2 NIETZSCHE E A MÁ FILOLOGIA
As palavras que Nietzsche, ao início do Segundo dos Cinco
prefácios624, profere clamando pelo tipo de leitor de sua obra que é por ele
esperado, devem ser estendidas do bom trato da linguagem ou apuro
filológico para uma boa leitura do mundo: “O leitor do qual espero alguma
coisa deve ter três qualidades. Deve ser calmo e ler sem pressa. Não deve
intrometer-se, nem trazer para a leitura a sua „formação‟. Por fim, não
pode esperar na conclusão, como um tipo de resultado, novos
tabelamentos.” (NIETZSCHE, 2007, p. 33). Ao generalizar-se o dito
nietzscheano para a leitura moralizante que dominou a civilização
ocidental após o platonismo e o cristianismo, a pressa na leitura do
mundo, a leitura “infectada” pela orientação moral e a necessidade de se
estabelecer uma “conclusão”, ou seja, um fundamento verídico625 e
inquestionável, permeiam todas as análises.
Desde seus primeiros escritos Nietzsche põe em dúvida a
avaliação do mundo promovida pela moral cristã ao lê-lo pela ótica do
platonismo. Textos como o citado acima, de 1872, e o tão conhecido início
de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, de 1873, sobre a
fábula do intelecto humano, mostram que Nietzsche não só exigia para
sua obra um diverso tipo de leitor como também um homem dotado de
um olhar reto em relação ao mundo, sem passar sua leitura por distorções
idealistas e metafísicas. Mas a paixão pelo ilusório faz com que a mente
humana dote este provável mundo metafísico de uma sobrelevada valia,
ofuscando o conhecimento do mundo real: “Ainda que a existência de tal
mundo estivesse bem provada, o conhecimento dele seria o mais
insignificante dos conhecimentos: mais ainda do que deve ser, para o 624
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “Pensamentos sobre o futuro de nossos institutos de formação”. In: Cinco
prefácios para cinco livros não escritos. Tradução e prefácio de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007,
p. 33. 625
“Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade
entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em
consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço.” NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 256.
1567
navegante em meio a um perigoso temporal, o conhecimento da análise
química da água”626.
A má leitura de um texto acaba por ser equiparada à má leitura
que se pode fazer da natureza, como Nietzsche o faz no Humano,
demasiado humano:
Explicação pneumática da natureza. – A metafísica dá para o livro da natureza uma
explicação, digamos, pneumática, como a Igreja e seus eruditos faziam outrora com a
Bíblia. É preciso grande inteligência para
aplicar à natureza o mesmo tipo de rigorosa arte interpretativa que os filólogos de hoje
criaram para todos os livros: com a intenção de meramente compreender o que quer dizer
o texto, e não de farejar, ou mesmo pressupor, um duplo sentido. Mas como,
mesmo em relação aos livros, a má exegese não está de modo algum superada, e como na
melhor sociedade culta ainda encontramos frequentemente resíduos de interpretação
alegórica e mística, assim também ocorre no tocante à natureza – e mesmo pior ainda.
(NIETZSCHE, 2000, pp. 19-20).
Toda crítica nietzscheana à filosofia platônica, e à moralidade
cristã instaurada a partir dela, não vem colocar outra verdade definitiva
no lugar do mundo das Ideias, ou do paraíso, mas sim mostrar que esta é
uma leitura, e de maus filólogos. A “explicação pneumática” promove um
deslocamento da leitura da natureza sobre uma orientação metafísica tal
qual é feito com a exegese dos textos bíblicos. Nietzsche aponta que esta
má exegese não está superada entre os seus contemporâneos, não só
com relação à avaliação das obras mas também da leitura dos fenômenos
do mundo. Ainda mais, esta leitura não é mais tomada como uma
626
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução,
notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 20.
1568
interpretação que se obtém de uma leitura, mas aparece como essência
do mundo:
A crítica de Nietzsche procura demonstrar, assim, a ideia de uma essência da linguagem
e, como consequência, a ideia de uma essência dos valores. A linguagem não é a
representação da coisa ou da essência da coisa, mas uma metáfora que nos possibilita
uma relação com a coisa, uma interpretação. Contudo, o esforço da metafísica foi no sentido
de negar a arbitrariedade dessa interpretação e pretendê-la como a revelação da essência
oculta. (CONDÉ, 1999, p. 43).
O que é uma coisa relevante somente à linguagem, a primeira
vista, revela-se como avaliação dos valores morais que configuram o
pensamento de toda uma civilização, segundo Nietzsche. Por isso ele irá
apontar a maneira distorcida como foi encarada até a sua
contemporaneidade os valores “bom” e “mau” como em “A fábula da
liberdade inteligível” (NIETZSCHE, 2000. p. 47) do Humano, demasiado
humano, na Primeira Dissertação da Genealogia da moral627, e em “Como
o „mundo verdadeiro‟ se tornou finalmente fábula”628. Todas essas
menções mostram um Nietzsche extremamente rigoroso quanto à
consideração da historicidade dos fenômenos morais como somente um
olhar de filólogo e psicólogo poderia conceber.
3 WITTGENSTEIN E O QUE É PROPRIAMENTE DEVIDO À FILOSOFIA
A “pressa” no trato filológico e a má interpretação de formas
linguísticas conduzem a deturpações hermenêuticas e de leitura do mundo
bem como a tratamentos essencialistas, idealistas e dogmáticos da
linguagem. Para combater isso Wittgenstein estabelece a “terapia
627
“„Bom e mau‟, „bom e ruim‟”. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 15-42. 628
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Tradução,
notas e posfácio de Paulo César de Souza
1569
gramatical”, a qual levará o filósofo a ver-se livre de pseudo-problemas
que o adoecem, passando a considerar somente o que é próprio da
filosofia e devido à filosofia na análise da linguagem, aos seus usos e
contextos de empregabilidade, ou seja, ao papel da filosofia: “Toda
elucidação deve desaparecer e ser substituída apenas por descrição” (IF,
§109, p. 65). O que Wittgenstein quer, então, com sua filosofia nas
Investigações? Uma coisa que parece simples mas em verdade é
importantíssima e grandiosa: “Queremos compreender algo que já esteja
diante de nossos olhos. Pois parecemos, em algum sentido, não
compreender isto.” (IF, § 89, p. 61). Este isto expresso por Wittgenstein
não é nada menos do que a linguagem ordinária que está presente em
todos nossos falares e que permeia todas nossas ações sociais em
quaisquer contextos práticos de nossas vidas.
A tarefa da filosofia wittgensteiniana é, portanto, refletir sobre as
possibilidades dos fenômenos a partir daquela terapia gramatical já
referida anteriormente: “É como se devêssemos desvendar os fenômenos:
nossa investigação, no entanto, dirige-se não aos fenômenos, mas, como
poderíamos dizer, às ‘possibilidades’ dos fenômenos. (...). Nossa
consideração é, por isso, gramatical.” (IF, § 90, p. 61). Quer Wittgenstein
afastar os “mal-entendidos” (IF, § 91, p. 62) para revelar a exatidão da
linguagem não no sentido da essência referente a esta exatidão, e sim da
clareza do que está na superfície do trato linguístico: “‘A essência nos é
oculta’: esta é a forma que toma agora nosso problema” (IF, § 92, p. 62).
Evidencia-se a má interpretação da linguagem pela filosofia,
mote deste texto, ou indevida importância dada à proposição, como
promovida pelo próprio Wittgenstein do Tractatus, quando se lhe tentava
atribuir algo para além de sua devida função: “Porque dizemos que a
proposição é algo estranho? Por um lado, devido à imensa importância
que lhe é atribuída. (E isto é certo). Por outro lado, esta importância e
uma má compreensão da lógica da linguagem levam-nos a crer que a
1570
proposição deva produzir algo de extraordinário e mesmo único. Por um
mal-entendido parece-nos que a proposição faz algo estranho.” Está
estabelecido o trabalho que enseja as Investigações:
“(...) Wittgenstein volta a análise da linguagem para os contextos de uso das
palavras, deixando de lado a busca pela
essência da linguagem e do significado. Para o segundo Wittgenstein não existem critérios
absolutos de significado e carência de significado, não existe o limite da linguagem,
mas limites, diferentes usos da linguagem ou diferentes “jogos de linguagem”. Aquele ideal
de determinação absoluta aparece agora como uma das imagens mais fortes a manter preso
o filósofo. Nas Investigações a filosofia passa a ser
compreendida como uma forma de terapia que não tem a pretensão de revelar a natureza
última da linguagem.629
O que aqui se pretenderá por interpretação adequada do mundo
baseia-se neste caráter de abertura dos limites da linguagem,
estabelecido pelos usos ou diferentes jogos de linguagem, pela terapia
gramatical que afasta o filósofo do “enfeitiçamento de nosso entendimento
por nossa linguagem” (DONAT, 2008, p. 61) e pelo fato de não pretender
a filosofia revelar a essência ou a natureza última da linguagem. Tem-se,
pois, o afastamento daquela ordenação a priori do mundo, como o queria
o Tractatus, onde tudo está estabelecido anteriormente à experiência;
onde não há perturbação ou incerteza empírica alguma; ordenação
concreta e dura como o mais puro cristal (IF, § 97, p. 63). O idealismo
que garantia a determinados conceitos um estatuto essencialista foi
decomposto nas Investigações e colocado ao mesmo nível das ditas
“simples” palavras “superficiais” de nosso uso cotidiano: “„linguagem‟,
629
DONAT, Mirian. Linguagem e significado nas investigações filosóficas de Wittgenstein: uma análise do
argumento da linguagem privada. Tese (Doutorado). UFSCar. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos:
UFSCar, 2008, p. 57.
1571
„experiência‟, „mundo‟, se têm um emprego, devem ter um tão humilde
quanto as palavras „mesa‟, „lâmpada‟, „porta‟”. (IF, § 97, p. 63).
3.1 Wittgenstein e a busca por evitar a má interpretação da linguagem
A clareza no âmbito dos estudos da linguagem se instaura com o
trabalho de Wittgenstein nas Investigações. Por quê? Por que não procura
promover qualquer fundamentação, não se dá a dogmatismos, deixando
tudo como está em sua análise: “A filosofia não deve, de modo algum,
tocar no uso efetivo da linguagem; em último caso, pode apenas
descrevê-lo.” (IF, § 124, p. 67). O mister filosófico instaura-se a partir de
uma visão globalizante do mundo e dos costumes humanos, os quais são
permeados, ou melhor, instaurados a partir de jogos de linguagem
assentados sobre formas de vida. A forma de vida é o esteio básico de
instauração de todos os diversos usos e jogos nos quais estão inseridos
cada um dos seres humanos e suas práticas ou ações.
Quando surgem problemas filosóficos? Evidentemente quando
uma metáfora apresenta-se sob o formato de um dogma, de uma
“certeza” que se reluta ou não se consegue observar sob outro prisma:
111. Os problemas que nascem de uma má
interpretação de nossas formas linguísticas têm o caráter da profundidade. São
inquietações profundas; estão enraizadas tão profundamente em nós quanto as formas de
nossa linguagem, e sua importância é tão grande como a de nossa linguagem. –
Perguntemos: por que sentimos uma brincadeira gramatical como profunda? (E isto,
com efeito, é a profundidade filosófica.) 112. Uma metáfora que é incorporada às
formas de nossa linguagem causa uma falsa
aparência; esta nos inquieta: “Não é assim!” – dizemos. “Mas é preciso que seja assim!”
1572
113. “É assim” – não paro de repetir. É como se eu devesse apreender a essência da coisa,
como se eu pudesse fixar agudamente esse fato e situá-lo no foco de meu olhar. (IF, §§
111, 112 e 113, p. 65).
Por restringir o olhar, o filósofo procede de maneira a procurar
justificativas específicas concernentes à linguagem, coisa que não é
incumbência da filosofia:
“Se tirarmos os óculos, veremos que a filosofia nada explica, apenas descreve. Mas se a sua
investigação dirige-se aos problemas
filosóficos, visando a origem linguística destes problemas, é preciso compreender que não há
nada novo a ser descoberto, tudo já está desde sempre à vista. É na vida cotidiana que
devemos buscar os usos dos termos frase, palavra, signo, reconhecendo que eles não
têm uma ordem ideal que pudesse ser dada pela análise lógica. Essa busca por uma ordem
ideal não leva a nada e deve ser abandonada (...). (DONAT, 2008, p. 59).
A ordem ideal deve ser abandonada. Necessita-se o atrito (IF,
§107, p. 64) da investigação da linguagem da vida cotidiana, da vida
ordinária permeada por todos os meandros das ações humanas deixando-
se de lado a lisa planície “imaculada” da lógica. “Retornemos ao solo
áspero!” (IF, § 107, p. 64).
Tal atrito e tal aspereza têm conexão com o conceito de clareza,
expresso como “visão panorâmica” (IF, § 122, p. 67) e são a garantia de
que o filósofo se desvencilhe daquela má interpretação da linguagem que
pode conduzir à profundidade “encobridora”, ou seja, garantem que não
se recaia na metafísica:
Quando os filósofos usam uma palavra – “saber”, “ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”,
“nome” – e procuram apreender a essência da
1573
coisa, deve-se sempre perguntar: essa palavra é usada de fato desse modo na língua em que
ela existe? – Nós reconduzimos as palavras do seu emprego
metafísico para seu emprego cotidiano. (IF. § 116, p. 66).
Veja-se a importância desta tarefa da “terapia gramatical”,
promovida por Wittgenstein, para o desenvolvimento dos estudos da
linguagem e da consecução da superação da metafísica no século XX. A
terapia gramatical destinada ao filósofo implica numa mudança completa
do modo como ele vê as coisas, o mundo: “Por isso, a filosofia é a terapia
do filósofo, terapia que se faz enquanto análise da gramática dos
conceitos, na tentativa de solucionar os problemas que surgem
justamente no uso filosófico de palavras que, no uso cotidiano ou por
parte do „homem ordinário‟, não apresentam problema algum” (DONAT,
2008, p. 60)
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Nietzsche e Wittgenstein são algozes dos maus tratos promovidos
pelos maus filólogos e maus interpretes do mundo, comungando no fato
de que a linguagem não poderia ser apreendida em “gaiolas” de exegeses
divinas e logicistas. Para o primeiro, a linguagem dentro da cultura
estabeleceu um mundo a parte do mundo real, estabeleceu uma má
leitura deste mundo, constituiu meandros deturpadores da metáfora
interpretativa que deveria conciliar o trabalho filosófico de análise dos
valores sustentados somente pelas probidade e retidão do homem
superior na reorientação estabelecida pelo procedimento genealógico; no
segundo, a linguagem das Investigações mostrou-se destituída do aparato
da lisa superfície inquestionável e imperturbável do que fora formulado
pelo Tractatus, reconduzindo-a ao uso banal, ao cotidiano uso corriqueiro
do prá quê se estabelece e torna necessária a linguagem: os variegados
1574
usos dos jogos de linguagem nos quais se assentam as ações e
interligações humanas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. “Nietzsche e Wittgenstein: semelhanças de
família”. In: NETO, Olimpio José Pimenta; BARRENECHEA, Miguel Angel de. (Org.). Assim falou Nietzsche I. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1999,
pp. 38-54.
DONAT, Mirian. Linguagem e significado nas investigações filosóficas de Wittgenstein: uma análise do argumento da linguagem privada. Tese
(Doutorado). UFSCar. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Tradução e prefácio de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras,
2007.
________. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
________. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Tradução e notas Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
________. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e
posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.