NIETZSCHE, F. Da Utilidade e Desvantagem Da História Para A

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    CtrP-Brasil. Catalogao-na-PublicaoCmara Brasileira do Livro, SP

    FRIEDRICI{ N IETZSCI.Iffi

    tsRASINCON4PLETAS

    ...ir;;:..,,

    Seleo de textos de Grard I-ebrunTraduo e notas de Rubens Rodrigues Torres Fitrho

    Posfcio de nmio Cndido

    ndices para catlogo sistemtico:l Alemanha; Filosofia 1932. Filosofia alem 1933. Filsofos alemes 1934. F'ilsofos modernos : Biografia e obra 190.925. Nietzsche : Obras filosficas 193

    ffi1983

    EDITOR.: VICTCIR. CWTIAr

    I

    N5Blo3.ed.

    Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900.Obras incompletas ,/ Friedrich Nietzsche ; seleo de tex-

    tos de Grard Lebrun ; traduo e notas de Rubens RodriguesTorres Filho ; posfcio de Antnio Cndido.

    -

    3. ed. -

    SoPaulo : dbril Cultural, 1983.

    Os pensadores

    Inclui vida e obra de Nietzsche.Bibliografia.

    tr. Filosofia alem2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm,1844-1900 I. Lebrun, Grard, 1930 - II. Cndido, Antnio,l91B - XIL Ttulo. IV. Srie.

    cDD-193-190.9283-0257

  • . T'tulos originais:Die Geburt der Tragoedie aus dem Geist der MusikDie Philosophie im ragischen Zeitalter der Griechen

    Ueber Vlahrheit und Luege in aussermoralischen SinneUnze i t gemaesse B e t rac h tu n g en

    Menschliches Allzumenschliches (19 e 29 vot.)Morgenroete

    Die froehliche Wssenschoft (La Gayq Scienza). Also sprach Zarathustra

    Jenseits von Gut und Boese' Zur Genealogie der Moral

    Goetzen-Daemmerung, Der Antichrist

    Ecce Homo' Die ewige Wederkunft"Dichters Berufung"

    -

    "Im Sueden""Der Wanderer der Armut des Reichsten"

    O Copyright Abril S.A. Cultural e trndustrial, So Paulo, 1974.23 edio, 1978.

    -

    3l edio, 1983.

    Artigo publicado sob licena de dntnio Cndido deMello e Suza, So Paulo ("O Portador").

    Direitos exclusivos sobre "Nietzsche -

    Vida e Obra",Abril S.A. Cultura e Industrial, So Paulo.

    Direitos exclusivos sobre as tradues deste volume,Abril S.A, Cultural e Industrial, So Faulo.

    NmffiTZSffiffiffi

    VilDA F OtsRA

    Pesquisa: @lgria Ctrnairn FerezConsultoria: Marilena de Souza Chau

  • C ONSIDERAES EXTEMPORNEASrem confiantes: "Mas os prximos vinte sero os melhores"; so aqueles de quemDavid Hume zombeteiramente diz:

    Andfrom the dregs of life hope to receve,What thefirst sprightly runnng could not gve.2

    Vamos denomin-los homens histricos; o olhar ao passado os impele aofuturo, inflama seu nimo a ainda por mais tempo concorrer com a vida, acendea esperana de que a justia ainda vem, de que a felicidade est atrs da montanhaem cuja direo eles caminham. Esses homens histricovacreditam que o sentidoda existncia, no decorrer de seu processo, vir cadavez mais luz; ees s olhampara trs paa, na considerao do process at agora, entenderem o presente eaprenderem a desejar com mais veemncia o futuro. No sabem quoa-historicamente, a despeito de toda a sua histria, eles pensam e agem, e comoat mesmo sua ocupao com a histria no est a servio do conhecimento puro,mas da vida.

    Mas aquela pergunta, cuja primeira resposta ouvimos, pode tambm ser respondida de outro modo. Decerto mais uma ve4 cor'n um No !

    -

    mas com umNo fundamentado de outro modo. Com o N do homem supra'histrico, queno v a salvao no processo, para quem o mundo em cada instante singular estpronto e acanou seu termo. O que poderiam ensinar dez novos anos, que os dezanos passados no loram c^pazes de ensinar !

    Agora, se o sentido da doutrina felicidade ou resignao, virtude ou expia-o, quanto a isto os homens supra-histricos nunca estiveram de acordo entre si;mas, em contraposio a todos os modos histricos de considerar o que passou,chegam total unanimidade da proposio: o passado.e o presente so um e onJesmo, ou seja, em toda diversidade so tipicamente iguais e, como onipresenade tipos imperecveis, uma formao estvel de valor inalterado e significaoeternamente igual. Assim como as centenas .de lnguas diferentes correspondems nesmas necessidades tipicamente estveis dos homens, de tal modo que um queentendesse essas necessidades no poderia aprender, em todas as lnguas, nada denovo: assim o pensador supra-histrico ilumina toda a histria dos povos e dosindivduos de dentro para fora, adivinhando com clarividncia o sentido primor-dial dos diferentes hierglifos e pouco a pouco afastando-se, cansado, at mesmoda escrita de signos que continua a jorrar sempre nova: pois como, na infinita pro-fuso do acontecimento, no chegaria ele saciedade, saturao, e mesmo aonojo ! De tal modo que o mais temerrio aabar, talvez, a ponto de dizer, comGiacomo Leopardi, a seu corao:

    "Nada vive, que fosse dignoDe tuas emoes, e a Terra no merece um s suspiro.Dor e tdio nosso ser e o mundo lodo

    -

    nada mais.Aquiela-te".

    t "E dos detritos da vida esperam arrecadar/O que o primeiro vivo jorro no pode dar." (N. do T.)

    59

    Itr -

    DA UTILIDADE E DESVANTAGEMDA HISTR.IA PAR.A A VIDA

    ( r 874)

    $r()Se uma feicidade, se uma ambio por uma nova felicidade-em um senti-

    do qualquer, aquilo que rma o vivente na vida e o fora a viver, ento talvez ne-nhum lrlsofo tenha mais razo do que o cnico: pois a felicidade do animal, que o cnico perfeito, a prova viva da razo do cinismo. A menor das felicidades,se simplesmente ininterrupta e faz fehz ininterruptamente, sem comparaomais felicidade do que a maior delas, que venha somente como um episdio, porassim dizer como humor, como incidente extravagante, entre o purc desprazer, aavidez e a privao. Mas nas menores como nas maiores felicidades sempre omesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder esquecer ou, dito maiseruditamente, a faculdade de, enquanto dura a feiicidade, sentr a-hstoricamente.Quem no se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quemno capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitria, sem verti-gem e medo, nunca saber o que felicidade e, pior ainda, nunca far algo quetorne outros felizes. Fnsem o exemplo extremo, um homem que no possusse afora de esquecer, que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: talhomem no acredita mais em seu prprio ser, no acredita inais em si, v tudodesmanchar-se em pontos mves e se perde nesse rio do vir-a-ser: finaimente,como o bom ciscpulo de Herclito, mal ousar levantar o dedo. Todo agir requeresquecimento: assim como a vida de tudo o que orgnico requer no somenteluz, mas tambm escuro. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historica-mente seria semelhante quele que se forasse a abster-se de dormir, ou ao animalque tivesse de sobreviver apenas da ruminao e ruminao sempre repetida. Por-tanto: possvel viver quase sem lembrana, e mesmo viver feliz, como mostra oanima; mas inteiramente impossvei, sem esquecimento, simplesmenl-e viver.Ou, para explicar-me anda mais simplesmente sobre meu tema: h um grau deinsna, de ruminao, de sentido histrico, no qual o viv'ente chega a sofrer dano porfim se at'runa, seja ele um homem ou ttm povo ou uma civilzao.

    (. . . ) Quem pergunta a seus conhecidos se desejariam viver mais uma vez osltimos dez ou vinte anos perceber facilmente quem dentre eles est preparadopara aquele ponto de vista supra-histrico: decrto todos respondero: No !, masesse No!, cada um deles fundamentar diferentemente. Uns, talvez, por espera-

  • ro 'NInrzscHr:

    vlas deixemos o homem supra-histrico com seu nojo e sua sabedoria: hojepreferimos, por uma vez, alegrai-nos de corao com nossa falta de sabedoria efazer para ns um bom dia, como se ssemos os ativos e em progresso' como oSadoraores do processo. Que nossa apreciao do histrico seja apenas umpreconceito oidental; contantoique, no interior desses preconceitos' pelo menosfaamos progresso e no nos detenhamos ! Contanto que aprendamos cada vez,ntno,. pieciiamente isso, a cultivar histria em funo dos hns da vida / Entoconcederemos de bom grado aos supra-histricos que eles possuem mais sabedo-ria do que ns; caso pudermos,'simplesmente, estar seguros de possuir mais vidado que les: pois assim, em todo caso, nossa falta de sabedoria ter mais fruto doque a sabedria deles. E para que no subsista nenhuma dvida sobre o sentidoessa oposio entre vida sabdoria, recorrerei a um procedimento que se con-servou intacto atravs das idades; e estabelecerei diretamente algumas teses'

    Um fenmeno histrico, conhecido pura e completamente e resolvido em umfenmeno de conhecimento, , para aquele que o conhece, morto: pois ele conhe-ce:u nele a iluso, a injustia, a paixo cega, e em geral todo o horizonte sombrioe terrestre desse lenmeno e aO mcsmo tempo conheceu' preCisamente nisSo, suapotncia histrica. Agora, essa potncia tofnou-se para ele, o que sabe, impotente:talvez ainda no para ele, o que vive.

    A histria pensada como cincia pura e tornada soberana seria uma espciede encerramento e balano da vida para a humanidade. A cultura histrica, pelocontrrio, s algo salutar e que promete luturo em decorrncia de um poderosoe nuo fluxo de vida, por exemplo, de uma civilizao vindo a ser, portantosomente quando domnada e'onduzida por uma fora superior e no elamesma que domina e conduz. l

    A istria, na medida em que est a servio da vida, est a servio de umapotncia a-histrica e por isso nun.u, nessa subordinao, poder e dever tor-nar-se cincia pura, como; digamos, a matemtica. Mas a questo: at que graua vida precisa em geral do servio da histria, uma das questes e cuidadosmais alios no tocante sade cJe um homem, de um povo, de uma civilizao.Pois, no caso de uma certa desmedida de histria, a vida desmorona e degenera,e por fm, com essa degenerao, degenera tambm a prpria histria'

    . $2( ..).n qu", ento, til ao homem do presente a considerao monumental do

    passado, o ocupar-se com os lssicos e oS aros de tempos antigos? Ele aprendeiom isso que a grandeza, que existiu uma vez' foi, em todo caso,possvelumavezei-por isso, pode ser que ja possvel mais uma vez; segue com nimo sua mar-cha, pois ag-ora a dvida, que o assalta em loras mais fracas, de pensar que talvezqueira o impossvel eliminada. Admitamos que algum acredite que no seriapreciso mais do que cem homens produtivos, educados e atuantes em urn novosprito, para dar cabo do eruditismo que precisamente agoa se tornou moda na

    . CONSIDERAES EXTEMPORNEAS 6I 'Alemanha; como ele haveria de se sentir fortalecido, ao perceber que a civilizaodo Renascimento ergueu-se Sobre os ombros de um tal grupo de cem homens.

    E, no entanto -

    para, nesse mesmo exemplo, aprender ainda ago de novo-,

    quo fluida e oscilante, quo inexata, seria essa comparao ! Quantas dife-renas preciso negligenciar, para que elafaa aquele efeito fortifiante, com queviolncia preciso meter a individualidade do passado dentro de uma forma uni-versal e quebra em todos os ngulos agudos e linhas' em beneficio da concor-dncia ! No fundo, alis, aquilo que loi possvel uma vez s poderia comparecerpela segunda vez como possvel se os pitagricos tivessem azo en acreditarque, quando ocorre a mesma constelao dos corpos celestes. tambm sobre aTerra tem de se repetir o msmo, e isso at os mnimos pormenores: de tal modoque sempre, se os outros tm uma certa disposio entre si, um estico pode aliar-Se Outra Vez COm um epicurista e assassinar Csar, e sempre' em uma outra Con-juntura, Colombo descobrir outra vez a Amrica. Somente se a Terra iniciassesempre de novo Sua pea de teatro depois do quinto ato, se estivesse frmementeestabelecido que o mesmo n de motivos, o mesmo deus ex machna, mesmacatstrofe, etornassem a inti'valos determinados, poderia o forte desejar a histriamonumental em toda a sua veraciddde icnica, isto , cada fato precisamente des-crito em sua especificidade e singularidade: provavelmente, portanto' no antesque os astrnomos se tenham tornado outra vez astrlogos. At ento, a histria

    -'monumental no poder usar daquela veracidade total: sempre aproximar, uni-versalizar e por fim igualar o desigual; sempre depreciar a dilerena dos moti-vos e das ocasies, para, custa das causas, monumentalizar oS effectus, ou Seja'apresent-los como modelares e dignos de imitao: de tal modo que' porque elaprescinde o mais possvel das causas, poderamos denomin-la, com pouco exage-ro, uma coletnea de "efeitos em Si", de acontecimentos que em todos os temposlaro efeito. Aquilo que celebrado nas festas populares, nos dias comemorativosreligiosos ou guerreiros, propriamente um tal l'efeito em si": ele que no deixadormir os ambiciosos, que est guardado como um amuleto no corao dos em-preendedores, e no a conexo verdadeiramente histrica de causas e efeitos que,completamente conhecida, s provaria que nunca sair de novo um resultado exa-tamente igual no jogo de dados do futuro e do acaso.(-)

    $4

    (. . . ) certamente um tal astro, um astro luminoso e soberbo, se interps, aconstelao efetivamente se alterou

    -

    pela cinca, pela exigncia de que a hist-ria seja'cincta. Agora no mais Somente a vida que rege e refreia o sabr emtorno do passado: todas as estacas de limite foram arrancadas e tudo o que erauma vez precipita,se sobre o homem. At onde houve um vir-a-ser, at l se deslo-caram, para tis, ao infinito, todas as perspectivas. Nenhuma gerao viu aindaum espetculo to inabarcvel como o que a cincia do vir-a-ser universal, a his-

  • ),L NIETZSCHE

    tria, mostra agora: certo, porm, que ela o mostra com a perigosa audcia dolema que escolheu:y'at verits, pereat vta.3

    F'ormemos agora uma imagem do evento espiritual que se produziu, comisso, na alma do homem moderno. O saber histrico jorra de fontes inexaurveis,sempre de novo e cada vez mais; o que estrangeiro e desconexo entre si se ago-mra; a memria abre todas as suas portas e no entanto ainda no est suficiente-mente aberta; a atufeza se esfora ao extremo para acolher esses hspedesestrangeiros, orden-los e honr-los, mas estes mesmos esto em conrbate entre si,e parece neCessrio dominar e vencer todos eles, para no perecer' ela mesma'nesse combate entre eles. O hbito a uma tal vida domstica desordenada, tempes-tuosa e combatente, torna-Se pouco a pouco uma Segunda natureza, embora estejafora de questo que eSSa Segunda anreza muito mais fraca, muito mais intran-qila e em tudo menos sadia do que a primeira. O homem moderno acaba porarrastar consigo, por toda parte, uma quantidade descomunal de indigestas pedrasde saber, que ainda, ocasionalmente, roncam na barriga, como se diz no,conto.Com esses ioncos denuncia-se a propriedade mais prpria desse homem moderno:a notvel oposio entre um interior, a que no corresponde nenhum exterior, eum exterior, a que no corresponde nenhum interior, oposio que os povos anti-gos no conhecem. o saber, que absorvido em desmedida sem fome, e mesmocontra a necessidade, j no atua mais como motivo transformador, que impelepara fora, e permanece escondido em um certo mundo interior catico, que essehomem moderno, com curioso orgulho, designa como a "interioridade" que lhe prpria. certo que se diz, ento, que se tem o contedo e que falta somente aforma; mas, em todo vivente, esta uma oposio completamente indevida. Nossacultura moderna, por.isso mesmo, no nada de vivo, porque, sem aquela oposi-o, absolutamente no pode ser concebida, isto : no de modo algum uma cul-tura efetiva, rnas apenas uma espcie de saber em torn6 da cultura; fica nopensamento-de-cultuia, no Sentimento-de-cultura, dela no resulta nenhumadeciso-de-cuitura. Em contrapartida, aquilo que efetivamente motivo e que'como ato, se torna visvel na exterioridade, muitas Vezes no significa, ento,muito mais do que uma conveno indiferente, uma deplorvel imitao oumesmo um grotesco esgar. na interioridade que repousa ento a sensao' igual cobra que engoliu coelhos inteiros e em seguida, quieta e serena, se deita ao sole evita todos os movimentos, alm dos mais necessrios. O processo interno: tal, agora a coisa mesma, tal propriamente a "cultura". Todo aquele que passa porali tem um nico desejo

    -

    que uma tal cultura no morra de indigesto. Que sepense, por exemplo, um grego passando diante de uma tal cultura: ele perceberia

    .que paA os homens modernos Se "culto" e ter uma "Cultura hiStrica" parecemto soliclrios como se fossem um s e Somente se distinguissem pelo nmero das'paiavas. Se ento ele pronunciasse sua frase: algum pode Se muito culto e noentanto no ter nenhuma cultur histrica, acreditafiam no ter ouvido bem escudirim a cabea. Aquele pequeno povo bem conhecido, de um passado no

    3 Ha.la a verdade. perea a vida. (N. do E.)

    C ONSIDERAES EXTEMPORNEASdemasiado distante

    -

    refiro-me justamente aos gregos -,

    havia preservado emsi, no perodo de sua mxima fora, um sentido a-histrico; se um homemcontemporneo tivesse de retornar, por magia,, quele mundo, provavelmenteacharia os gregos muito "incultos", com o que ento o segredo to meticulosa-mente oculto da cultura moderna seria descoberto, para a zambaria pblica: pois,de ns mesmos, ns modernos no temos nada; somente por nos enchermos eabarrotarmos com tempos, costumes, artes, filosofias e reiigies alheios que nostornamos algo digno de ateno, ou seja, enciclopdias ambulantes, e como tais,talvez, um heleno antigo extraviado em nosso tempo nos dirigisse a palavra.()

    $5

    ()Em que situaes desnaturadas, artificiais e, em todo caso, indignas h de

    cair, em um tempo que sofre de cultura gerl, a mais verdadeira de todas as cin-cias, a honrada deusa nua, a filosoha. Em um tal mundo da uniformidade exteriorforada, ela permanece monlogo erudito do passeador solitrio, fortuita presa decaa do indivduo, oculto segredo de gabinete ou inofensiva tagarelice entreancios acadmicos e crianas. Ningum pode ousar cumprir a lei da losofia emsi mesmo, ningum vive filosoicamente, com aquela lealdade simples, que obri-gava um antigo, onde quer que estivesse, o que quer que fizesse, a portar-se comoestico, caso tivesse uma vez jurado fidelidade ao Prtico. Todo hlosofar moder-no est poltica e policialmente limitado aparncia erudit,a, por governos, igre-jas, academias, costumes e covardias dos homens; ele permanece no suspiro:o'mas se. ..", o no reconhecimento: "era uma vez". A flosofia, no interior dacultura histrica, no tem direitos, caso queira ser mais do que u saber interior-mente recolhido, sem efeito; se, pelo menos, o homem moderno fosse corajoso edecidido, ele no seria, tambm em suas inimizades, apenas um,ser interior: ele abaniria; agora, contenta-se em revestir envergonhadamente sua nudez. Sim, pen-sa-se, escreve-se, impime-se, fala-se, ensina-se hiosoamente

    -

    at a tudo permitido; somente no agir, na assim chamada vida, diferente: ali o permitido sempre um s, e todo o resto simplesmente impossvel: assim o quer,a culturahistrica. So homens ainda

    -

    pergunta-se ento -,

    ou talvez apenas mquinasde pensar, de escrever e de falar?

    Goethe diz uma vez de Shakespeare: "Ningum mais que ee desprezou otraje material; ele conhece muito bem o traje humano interior, e a todos soiguais. Diz-se que ele mostrou com perfeio os romanos; no acho, so purosingleses encarnados, mas, sem dvida, homens so homens desde o fundo, e aosquais se adapta perfeitamente tambm a toga romana". Agora pergunto eu seseria sequer possvel apresentar nossos literatos, homens do povo, funcionrios,polticos de hoje, coiho romanos; isso no pode ser, porque estes no so homens,mas apenas compndios encarnados e, por assim dizer, abstraes concretas. Se que tm carter e modoprprio, isso to est to profundamente oculto que no

    J

  • 6,1 . NtrETZSCHEpode desentranhar-se luz do dia: se que so homens, s o so, no entanto, paraaquete "que examina as entranhas". Para todos os OUITOS So algO OutrO, nohmens, no animais, mas formaes culturais hitricas, unicamente cultura, for-mao, imagem, forma sem contedo demonstrvel, infelizmente apenas m,forma e, alm disso, uniforme. 1 E possa ser assim entendida e ponderada minhaproposio: a histria s pode ser suportada por personalidades fortes, asracasLh-e*ttgu, totalmente.Isso vem de que ela confunde o sentimento e asensao,quando estes no so suhcientemente fortes para servirem de medida ao passado'

    Quem no ousa mais confiar e111 Si, mas involuntar:iamente, para sentir, pede con-selho junto histria: "Como devo sentir aqui?, este se torna pouco a pouco' porpusilanimidade, espectador, e desempenha um papel, no mais das vezes at muitospapis, e justamente por isso desempenha cada um deles to mal e superficial-mente. Pouco a pouco falta toda congruncia entre o homem e seu domnio hist-rico; so pequenos rapazoias petulantes que vemos tratar com oS romanoS' comose estes fossem seus iguais: e nos restos mortais de poetas gregos eles revolvem ecavam, como se tambm estes corpora estivessem jazendo prontos para sua dis-seco e fossem vilia, como seus prprios corpora literrios poderiam ser. Admi-tino que um deles se ocupe com Demcrito, est sempre em meus lbios a per-gunta: mas por que justo Demcrito? For que no Herclito? Ou Filon? Ouacon? Ou Descartes?

    -

    e assim por diante, vontade. E, em seguida: mas porque justo um hlsofo? Por que no um poeta, um orador? E: por que em geral umg..gt, po. que no um ingls, um turco? O passado no suficientemente grandepur q.t. n.l. ,. encontre algo junto ao qual vs mesmos no ficsseis to ridicu-lamente gratuitos? Mas, como'foi dito, uma gerao de eunucos;para o eunucoutu n-uih.l. como a outra, precisamente apenas uma mulher, a mulher emsi, o eternamente inacessvel e assim indiferente o que fazeis,contanto que a prpria histria fque guardada, lindamente "objetiva", justamentepor aqueis que nunca podem, ele mesmos, fazer histria. E como o eterno femi-nino nunau vos atrair para Si, vs o rebaixais at vs e, sendo neutros' tomaistambm a histria como algo neutro. Mas, para que no se crela que comparo asrio a histria com o eterno,feminino' quero antes enunciar claramente que aconsidero, pelo contrrio, como eterno masculino: s que para aqueles que cmtudo e por iudo tm "cultura histrica"' h de ser devidamente indiferente que eiaSeja um ou outro: eles msmos, de fato, no so homem nem mulher, nem sequercomuns-de-dois, mas Sempre apenaS neutros ou, numa expresso mais culta, ape-nas os eternamente-objetivos.

    {.Jma vez esvaziadas as subjetividades da maneira descrita, at chegarem eterna despersonalizao ou, como se diz, objetividade' nada mais capaz de

    .:9 No texto: (...) sond.ern historischetFildungsgebilde' ganz und gar Btldung' Bild' Form ohne nachweis-'baren Inhalt,eder nur schlechte Form,,und berdies Unform. A dificuldade consiste em ressaltar a presena

    do radical bitd -

    do verbo bild.en (formr, moldar e, em sentido figurado, educar) e do substantivo Sild(ima'gem, cpia)

    -

    nos rermos: Btdun'g (eiltura), Gebitde (rotmao, estrutura) e Bild' Impossivel reconstituir o"iogo'r.nnti.o do texto (por exemplo, ro parentesco entre cultura e imagem). Em todo caso, a traduo deGbilde por,,formao" antecipa .1ogo-qu" o texto laz em seguida com a palavra Form (propriamente''[orma"). (N. do T.)

    CONSIDERAES EXTEMPORNEAS 65agir sobre elas; pode acontecer seja o que for de bom ejusto, como ato' como poe-sia, como msica: logo o oco homem-de-cultura olha para alm da obra e per-gunta pela histria do autor.(...)

    $7O sentido histrico, quando rena irrefreado e traz todas as suas conseqn-

    cias, erradica o futuro, porque destri as iluses e retira s coisas sua atmosfera,somente na qual elas podem viver. d justia histrica, mesmo quando exercidaefetivamente e em inteno pura, uma virtude pavorosa' porque sempre solapao que vivo e o faz cair.. seu julgamento sempre uma ondenao morte.Qundo por trs do impulso histrico no atua nenhum impulso construtivo,qanao no t. est destruindo e limpando tcrreno para que um futuro j vivo naesperana construa sua casa Sobre o cho desimpedido, quando a justia reinarorinhu. ento o instinto criador despojado de sua lora e de seu nimo. Jmareligio, .por exemplo, que seja transposta em saber histrico, sob a regnciada pura justia, uma religio que em todo e por tudo seja conhecida cientilca-mente, u fint desse caminho estar aniquilada. O lundamento disso est em que,no cmputo histrio, sempre vem luz tanto de falso, grosseiro, desumano,absurdo, violento, que a piedosa disposio iluso, somente na qual pode vivertudo o que quer viver, necessariamente desbaratada: Somente no amor, porm,Somente envolto em sombras pela iluso do amor, o homem cria, ou Seja, somentena crena incondicional na perfeio e na justia. A todo aquele que obrigaram ano mais amar incondicionalmente, cortaram aS razes de sua fora: ele tem de setornar rido, ou seja, desonesto. Nesses efeitos, a histria o oposto da arte: esomente quando a histria suporta ser transformada em.obra de arte e; portanto'tornar-se pura forma artstica, ela pode. talvez. onservar instintos ou mesmodespertii los. Uma tal historiografia, porm, estaria em total contradio com otrao analtico e inartstico de nosso tempo , e at mesmo ser sentida por elecomo falsificao. Histria, porm, que apenas destri, sem que a conduza umimpulso construtivo interior, torna, com o tempo, sofisticados e desnaturados seusinsrumentos: pois tais homens destroem iluses e "quem destri a iluso em simesmo e nos outros, a n+tureza, como o mais rigoroso tirano-, o-castiga". Por umbom tempo possvel ocupa-se com a histria em toda inocncia e despreocupa-o, como ," iorr" uma ocupao to boa como qualquer outra; em particular' anova teologia parece ter-se deixado envolver com a histria por pura inocncia, eainda agora mal quer notar que cm isso, provavelmente muito contra a vontade,est a srvio do crasez voltairiano. Que ningum suponha' por trs disso, novose vigorosos instintos construtivos; nesse caso seria preciso tomar a assim chama-da asociao protestante por matriz de uma nova religio e talvez o jurista Flolt-zendorf (o editor e prelaciador da ainda mais assim chamada Bblia protestante)por Joo no rio Joro. Poi algum tempo, talvez a ilosoha hegeliana' ainda fume-iunt, .111 cabeas mais idosas, ajude a propagao daquela inocncia, por exem-

  • I NIETZSCTIE'rrlo, quando distinguem a "Idia do cristiansmo" de suas "formas de manifesta-o" diversamente imperfeitas e quando se dizem que o "diletantiso da ldia"revelar-se em formas cada vez mais puras, e por fim, ou seja, na forma certamentemais pura de todas, mais transparente e mesmo quase invisvel, no crebro doarual theologus lberalis vulgaris. Mas, ao ouvir esses cristianismos mais puros detodos se pronunciarem sobre os anteriores cristianismos impuros, o ouvinteimparcial tem freqentemente a impresso de que no se trata absolutamente docristianismo, mas sim de... mas em que devemos pensar?

    -

    se encontramos ocristianismo designado pelo "maior teogo do sculo" como a religio que permi-te "sentir-se integrado em todas as religies efetivas e ainda em algumas outrasmeramente possveis", e se a "verdadeira igreja" deve ser aquela que ..se tornamassa fluida, onde no h contornos, onde cada parte se encontra ora aqui, oraali, e tudo se mistura pacificamente entre si".

    -

    Mais uma vez, em que devemospensar?

    Aquilo que se pode aprender com o cristianismo, isto , que ele, sob o efeitode um tratamento historicizante, se tornou sof,rsticado e desnaturado, at quefinalmente um tratamento completamente histrico, isto , justo, o dissolve empuro saber em torno do cristianismo, e com isso o aniquila, isso se pode estudarem tudo o que tem vida: que cessa de viver quando dissecado t o fim e vivedolorosa e doentiamente quando se comeam a praticar sobre ele exerccios dedissecao histrica.(.)

    $8(. .) A cultura histrica tambm , efetivamente, uma espcie de encaneci-

    mento inato, e aqueles que trazem em si seus sinais desde a infncia tm de cfregar crena instintiva na velhice da humanidade: velhce. porm, convm agorauma ocupao senil, ou seja, olhar para trs, fazer as contas, concluir, proburarconsolo no que foi por meio de recordaes, em suma, cultura histrica. A espciehumana, porm, uma coisa lenaz e persistente, e no quer aps milnios, nemmesmo aps centenas de milhares de anos, ser observada em seus passos

    -

    paradiante e para trs

    -, isto , no quer, de modo nenhum, ser observada como um

    todo por esse pontinho de tomo infinitamente pequeno, o indiduo humano. Oque querem dizer alguns milnios (ou expresso de outro modo: o espao de tempode trinta e quatro vidas humanas consecutivas, calcqladas em sessenta anos), paraque no incio de um tal tempo se possa ainda falar em'Juventude" e na conclusoj em "velhice da humanidade" ! No se aloja, em vez disso, nessa crena parali-Q.ante em uma humanidade j em fenecimento, o mal-entendido de uma represen-tao cristiano-teoigica herdada da ldade Mdia, o pensamento da proximidadedo fim do mundo, do julgamento esperado com temor? Transveste-se

    ssa repre-sentao na crescente necessidade histrica de juiz, como se nosso tempo, o lti-mo. dos possveis, estivesse ele mesmo autorizado a promover esse Juizo universal,

    . CONSIDERAES EXTEMPORNEAS 67que a crena crist de modo nenhum esprava do homem, mas do ..hlho dohomem"? Outrora esse memenlo mori,5 clamado humanidade assim como aoindivduo, er um aguilho sempre torturante e como que o pice do saber e daconscincia medievais. A palavra do tempo moderno, clamada em oposio a ele:memento vvere, soa, para falar abertamente, ainda bastante intimidada, no vema plenos pulmes e tem, quase, algo de desonesto. Pois a humanidade ainda estf,rrmemente assentada sobre o memento mori e denuncia isso pela sua universalnecessidade histricar o saber, a despeito de seu mais poderoso bater de asas,ainda no pde arrancar para o ar livre, restou um profundo sentimento de deses-per.ana, que assumiu aquela colorao histrica de que agora esto soturnamenteenvoltas toda educao e cultura superiores. uma religio que, de todas as horasde uma vida humana, considera a ltima como a mais importante,. que piediz umaconcluso da vida terrestre em geral e condena tudo o que vive a viver no quintoato da tragdia excita, com certeza, as foras mais profundas e mais nobres, mas hostil a toda nova implantao, tentativa audaciosa, desejo livre; resise contratodo vo ao desconhecido, porque ali no ama, no espera: somente contra a von-tade deixa impor-se a ela o que vem a ser, paia, no devido tempo, repudi-lo ousacrific-lo como um aliciador existncia, como um mentiroso sobre o valor daexistncia. Aquilo que fizeram os florentinos quando, sob o impacto das prdicasde penitncia de Savonarola, promoveram aquela clebre queima sacrificial dequadros, manuscritos, espelhos, mscaras, o cristianismo gostaria de fazer comtoda cultura que estimule continuao do esforo e traga aquele memento vverecomo lema, e se no possvel faz-lo em linha reta, ou seja, por prepotncia, elealcana igualmente seu alvo quando se alia com a cultura histrica, omais das vezes at mesmo sua revelia, e ento, falando a partir dela, recusa,dando de ombros, tudo o que vem a ser, e esprai4. sobre ele o sentimento do tardioe do epigonal, em suma, o encanecimento inato. A considerao amarga e profun-damente sria sobre o desvalor de todo o acontecido, sobre o estar-maduro-para-o-julgamento do mundo, liquefez-se na conscincia ctica de que, em todo caso, bom saber todo o acontecido, poque tarde demais para fazer algo de melhor.Assim, o sentido histrico torna seus servidores passivos e retrospectivos;equaseque somente por esquecirnento momentneo, precisamente na intermitncia dessesentido, o doente de febre histrica se torna atio','para, to logo a ao tenha pas-sado, dissecar seu ato, impedir por meio da considerao analtica a continuaode seu efeito e, finalmente, ressequi-lo em "histri". Nesse sentido vivemos ainda ina ldade Mdia, a histria sempre ainda uma teologia embuada: como, domesmo modo, o terror sagrado com que o leigo no-cienfico trata a casta cient-fca um terror s.agrado herdado do clerg. Aquilo que se dava outrora igrejad-se agora, embora com mais parcimnia, cincia: mas, se se d, isso foi obrada igreja em outros tempos e no, somente agora, obra do esprito moderno, que,s Lembra te que hs de morrer. (N. do E.)

  • 6i] NtrETZSCHEpelo contrrio, ao lado de suas,outras boas quaidades, tem sabidamente algo deayateza e desconhece a nobre arte da generosidade.()

    Essa histria entendida hegelianamente foi chamada com escrnio a peram-bulao de Deus sobre a Terra, Deus este que entretanto, por seu lado, s feitopela histria. Esse Deus porm tornou-se, no interior da caixa craniana de Hegel,transparente e inteligvel para si mesmo e j galgou os degraus dialticos possveisde seu vir-a-ser, at chegar a essa auto-revelao: de tal modo que para Hegel oponto culminante e o ponto nal do processo universal coincidiam em sua prpriaexistncia berlinense. Alis, eli teria mesmo de dizer que todas as coisas que vi-riam depois dela s devem ser avaliadas, propriamente e, como a coda musical deum rond da histria universal ou, ainda mais propriamente, como suprfluas.Isso ele no disse: em compensao, implantou nas geraes fermentadas por eleaquela admirao diante da ipotncia da histria" que praticamente convertetodos os instantes em admirao do sucedido e conduz idolatria do fatual: cultoste para o qual, agora, aprendeu-se universalmente a usar a lormulao muitomitolgica e alm disso bern alem: "levar em conta os fatos". Mas quem apren-deu antes a curvar as costas e inclinar a cabea diante da "potncia da histria"acaba por acenar mecanicame.te, chinesa, seu "sim" a toda potncia, seja estaum governo ou uma opinio pblica ou uma maioria numrica, e movimenta seusmembros precisamente no ritmo em que alguma "potncia" puxa os fios. Se todosucedido contm em si urna necessidade racional, se todo acontecimento o triun-fo do lgico ou da "Idia"

    -., sn[[s, depressa, todos de joelhos, e percorrei ajoe-

    lhados toda a esada dos "sucedidos" ! Como, no haveria mais mitologias rei-nantes? Como, as religies etariam morte? Vede simplesmente a religio dapotncia histrica, prestai. ateno nos padres da mitologia das ldias e em seusjoelhos esfolados I No esto at mesmo todas as virtudes no squito dessa novacrena? Ou no abnegao quando o homem histrico se deixa reduzir a umespelho objetivo? No granQeza renunciar a toda potncia no cu ou sobre aTerra, adorando em cada potncia a potncia em si? No justia ter sempre nasmos os pratos de balana das potncias e observar com finura qual delas, sendomais forte e mais pesada, se inlina? E que escola de bom-tom uma tal conside-rao da histria ! Tomar tudo objetivamente, no se zangat com nada, no amarnada, compreender tudo, como isso torna brando e malevel; e mesmo quando umeducado nessa escola alguma u3z sezanga publicamente e se irrita, isso causa ale-gria, pois bem se sabe que a inteno apenas artstica, ra e studium e, noentanto, inteiramente sine ira et studo.6, Que pensamentos antiquados contra um tal complexo de mitologia e virtudetenho no corao! Mas algumaveztere de po-los para fora, por mais que riam.

    t.,u diria, ento: a histria sempre carimba: "era uma vez", a moral: 'ono deveis"ou "no deveis". Assim a histria se torna um compndio de amoralidade fatual.Quo gravemente erraria aqufle que visse a histria, ao mesmo tempo, como jul-u Sem ira e dedicao.'(N. do E.) i:,

    C ONSIDERAES EXTEMPORNEASgadora dessa amoraidade fatual ! Ofende a moral, por exemplo, que um Rafaeltenha tido de morrer com trinta e seis anos de idade: um tal ser no deveria mor-rer. Se agora quereis vir em auxlio da histria, como apologista do fatual, direis:ele enunciou tudo o que estava nee, se vivesse mais s teria podido criar belezacomo beleza igual, no como beleza nova, e coisas semelhantes. Assim sois osadvogados do diabo, ejustamente por fazerdes do sucedido, do fato, vosso dolo:enquanto o fato sempre estpido e em todos os tempos sempre teve aspecto maissemelhante a um bezerro do que a um deus. Como apologistas da histria insufla-vos, alm disto, a ignorncia, pois somente por no saberdes o que uma naturanaturans 7 tal como Rafael no ficais acalorados ao perceber que ele foi e no sermais. Sobre Goethe, algum quis recentemente ensinar-nos que ele, com seusoitenta e dois anos, havia sobrevivido a si mesmo;e no entanto, por alguns anosdo Goethe "sobrevivido", eu daria de bom grado vages inteiros cheios de frescasvidas ultramodernas, para ainda tomar parte em conversaes tais comoGoethe as teve com Eckermann, e para, dessa maneira, Icar protegido de todos osensinamentos contemporneos dos legionrios do instante. Quo poucos vivostm, em geral, contrapostos a tais mortos, o direito de viver ! Se muitos vivem eaqueles poucos no vivem mais, isso no passa de uma verdade brutal, isto , deuma estupidez incorrigvel, de um rude 'oassim " contraposto moral "no deve-ria ser assim". Sim, contraposto moral ! Fois que se fale de qual virtude se quei-ra, da justia, grandeza, bravura, da sabedoria e da paixo do homem

    -

    por todaparte ele 'rirtuoso por levantar-se contra aquela cega potncia dos fatos, contraa tirania do efetivo, e por submeter-se a ieis que no so as leis daquelas flutua-es histricas. Ele sempre nada contra a correnteza da histria, seja quandocombate suas paixes como a mais prxima fatuaidade estpida de sua existniaou quando assume o dever da honestidade, enquanto a mentira urde ao seu redorsua rede cintilante. Se, de modo geral, a histria no fosse nada mais do que o"sistema universal da paixo e do erro", o homem teria de ler nela assim comoGoethe aconselha que se leia o Werthef.' como se ela clamasse, "s um homem eno me sigas l" Por felicidade, porm, ela guarda tambm a memria dos grandesque combateam contra a histra, isto , contra a potncia cega do efetivo, e colo-ca a si mesma no cadafalso, ao destacar precisamente aqueles como as naturezaspropriamente histricas, que pouco se afligem com o "assim ", para, em vezdisso, com sereno orgulho, seguirem seu "assim deve ser". No levar sua geraoao mulo, mas fundar dma nova gerao

    -

    isto que os impele incaniavelmentepara diante: e se eles mesmos nasceram como retardatrios

    -

    h um modo deviver que faz esquecer isto

    -, as geraes vindouras s os conhecero como

    primcias.

    $e(. . .) De fato, est mais que no tempo de avanar contra os descaminhos do

    sentido histrico, contra o desmedido gosto pelo processo, em detrimento do sert Natureza naturante (Deus como causa). (N. do E.)

  • NIETZSCHE

    e da vida, contra o insensato desocamento de todas as perspectivas, com todo obatalho de maldades satricas; e deve ser sempre dito em louvor do autor d,a Fito'safia do Inconscientes que ele foi o primeiro a conseguir sentir agudamente o rid-culo da representao'do "processo universal" e, pela curiosa seriedade da suaexposio, fazer com que ele fosse sentido ainda mais agudamente. Para que esta o "mundo", pra que est a a ''humanidade"

    -

    isso por enquanto no'devenos afligir, a no ser que queiramos fazer uma piada: pois o atrevimento dopequeno verme humano o que h de mais jocoso e de mais hilariante sobre opalco terrestre; mas para que tu, indivduo, ests a?

    -

    isso te pergunto, e, se nin-gum te pode diz-lo, tenta apenas uma vez legitimar o sentido de tua existnciacomo que a posteror, propondo tu a ti mesmo um m, um alvo, um "para qu",um alto e nobre "para qu". Morre por ele

    -

    no conheo nenhuma nalidademelhor para a vida do que morrer pelo grandioso e pelo impossvel, animae tnag-nae prodigus.t Se, em contrapartida, as doutrinas do vir-a-ser soberano, da fluidezde todos os conceitos, tipos e espcies, da falta de toda diferena cardeal entrehomem e animal

    -

    doutrinas que considero como verdadeiras, ms como mor-tais

    -, no furor de instruo agora costumeiro, forem lanados ao povo inda

    durante uma gerao, ningum deve admirar-se se o povo naufragar iro egoistica-mente pequeno e msero, na ossificao e no amor-prprio, ou seja, se se desagre-gar e deixar de ser povo: em lugar disso, ento, talvez sistemas de egosmos indivi-duais, irmandades para f,rns de pilhagem contra os no-irmos, e semelhantescriaes de vulgaridade utilitria entraro em cena no palco do futuro. Para pie-parar o caminho a essas criaes, basta que se continue a escrever a histria doponto de vista das massas e a procurar nela aquelas leis que podem ser derivadasdas necessidades das massas, portanto as leis de movimento das mais baixascamadas de lama e de argila da sociedade. Somente sob trs perspectivas as mas-sas me parecem merecer um olhar: uma vez, como cpias esmaecidas dos grandeshomens, impressas em mau papel e'com chapas gastas, em seguida como obst-culo contra os grandes e, enhm, como instrumentos dos grandes; de resto,. leve-ao'diabo e a estatstica! Como, a estatstca prova que h leis na histria? Leis?Sim, ela prova como comum e repugnantemente uniforme a massa: devemoschamar de leis o efeilo dessas foras de gravidade que so a estupidez, o arreme-do, o amor e a fome? Ora, vamos admitio, mas com isso tambm se estabelecea proposio: enquanto h leis na histria, as leis no valem nada e a histria novale nada. Mas precisamente aquela espcie de histria que est agora universal-rnente em apreo, aquela que toma os grandes impulsos de massas como o maisimportante e o principal na histria e considera todos os grandes homens apenascomo a expresso mais ntida, por assim dizer como as bolhas que se tornam vis-vis sobre a torrente das guas., (...)

    a Edward von Harmann,proslito de Hegel, que Nietzsche apresenta aqui, ironicamente, como um genilpaodista

    -

    que, nos crictos enunciados de sua "Spass-Philosophie", nunca perde a cornpostura de umaverdadeira "Ernst-Philosophie". (N. do T.)!

    'Que sacrifica a sua vida. (N. do E.)

    trXT -.:- SCFIOPENFIAUER COMO EDUCADOR.

    ( r 874)

    :

    $3 :()Esse foi o primeiro perigo sombra do qual Schopenhauer cresceu: isola-

    mento. O segundo : desespero da verdade. Este perigo acompanh todo pensadorque ioma seu caminho a partir da filosofia kantiana, pressuposto que seja umhomem vigoroso e inteiro no sofrer e desejar, eano apenas uma sacolejante m-quina de pensar e de calcular. Mas sabemos tods muito bem que vergonhosa asituao, precisamente quanto a esse pressuposto; e at mesmo me paece, demodo geral, que somente em pouqussimos homens Kant atuou vivamente e trans-formou sangue e seivas. Alis, como se pode ler por toda parte, desde o feito dessetranqilo erudito deveria ter irrompido uma revolqo em todos os domnios doesprito; mas no posso acreditar nisso, Pois no o vejo claramente em homensque antes de tudo teriam de ser eles mesmos revolucionados, antes que quaisquerdomnios inteiros pudssem s-lo..Mas, to logo Kant comece a exercer um efeitopopular, ns o perceberemos na forma de um corrosivo e demolidor ceticismo erelativismo; e somente nos espritos mais ativos e mais nobres, que nunca agen-taram permanecer na dvida, apareceria, no lugar dela, aquele abalo e desesperode toda verdade, que foi vivido, por exemplo, por Heinrich von Kleist, como ef,eitoda filosofia kantiana. "H pouco", escreve ele, certa vez, a seu modo cativante,"travei conhecimento com a filosofia kantiana, e a1ora tenho de comunicar-te umpensamento tirado dela, pois no posso temer que ele te abalar to profunda, todolorosamente quanto a mim.

    -

    No podemos decidir se aquilo que denomi-namos verdade verdadeiramente verdade ou se':apenas nos parece assim. Se este ltimo, ento a verdade que juntamos aqui no mais nada depois da mortee todo esforo para adquirir um bem que nos siga at mesmo no mulo vo.

    -Se a ponta desse pensamento no atinge teu corao, no sorrias de um outro quese sente profundamente ferido por ele, em seu ratimo mais sagrado. Meu nico,meu supremo alvo foi a pique, e no tenho mais nenhum." Sim, quando voltaroos homens a sentir dessa forma kleistiana, natural, quando reaprendero a mediro sentido de uma filosoia em seu "ntimo mas sagrado"? E no entanto isso necessrio antes que se possa avaliar o que pode ser, para ns, depois de Kant,precisamente Schopenhauer

    -" ou seja, o guia que conduz, da caverna do des-

    nimo ctico ou da abstinncia crtica altur'da considerao tigica, o cu