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Caius Brandão [email protected] As relações entre o esquecimento, a memória e a capacidade de fazer promessas. Nietzsche inicia a Parte 1 da Segunda dissertação da Genealogia da moral com uma indagação que, desde já, gostaríamos de problematizar: “Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem?” (NIETZSCHE, 2009, p. 43) O paradoxo atribuído à tarefa que a natureza se dá reside no fato de que para ser capaz de fazer promessas, o homem terá que obstruir a força do esquecimento, que é inerente à sua constituição natural. Em outras palavras, de acordo com o genealogista, para ser capaz de fazer promessas, o homem teve antes que desenvolver a faculdade de memória. Ao esclarecermos o caráter contraditório entre fazer promessas e esquecimento, nos deparamos com a seguinte questão: Seria mesmo a natureza quem teria forjado no homem a capacidade de fazer promessas, bem como a faculdade de memória ou, ao contrário, tais habilidades teriam sido atributos criados a ferros pelo próprio homem a partir da sua necessidade de viver em sociedade? Se nós aceitarmos a idéia de que a natureza não se impôs a tarefa de criar um animal que pode fazer promessas, deveríamos, então, entender a questão inaugural desta Segunda dissertação como um mero recurso retórico?

Nietzsche - Genealogia Da Moral

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A memória inaugura no homem a habilidade de pensar de forma causal e, assim, prever o futuro. Daí em diante, o bicho homem se torna, enfim, apto a planejar, calcular e discernir os meios para atingir determinado objetivo. Isso, mesmo em relação a si próprio, porque agora, dotado de memória, ele possui a oportunidade de fazer de si um ser previsível e, portanto, confiável. Em suma, o homem apenas se torna hábil a fazer promessas quando coloca em suspense a sua capacidade de esquecimento e passa a ser, ele mesmo, digno de confiança. Para Nietzsche, esse foi o passo primordial para a domesticação do bicho homem.

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Page 1: Nietzsche - Genealogia Da Moral

Caius Brandã[email protected]

As relações entre o esquecimento, a memória e a capacidade de fazer promessas.

Nietzsche inicia a Parte 1 da Segunda dissertação da Genealogia da moral com

uma indagação que, desde já, gostaríamos de problematizar: “Criar um animal que pode

fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao

homem?” (NIETZSCHE, 2009, p. 43) O paradoxo atribuído à tarefa que a natureza se

dá reside no fato de que para ser capaz de fazer promessas, o homem terá que obstruir a

força do esquecimento, que é inerente à sua constituição natural. Em outras palavras, de

acordo com o genealogista, para ser capaz de fazer promessas, o homem teve antes que

desenvolver a faculdade de memória. Ao esclarecermos o caráter contraditório entre

fazer promessas e esquecimento, nos deparamos com a seguinte questão: Seria mesmo a

natureza quem teria forjado no homem a capacidade de fazer promessas, bem como a

faculdade de memória ou, ao contrário, tais habilidades teriam sido atributos criados a

ferros pelo próprio homem a partir da sua necessidade de viver em sociedade? Se nós

aceitarmos a idéia de que a natureza não se impôs a tarefa de criar um animal que pode

fazer promessas, deveríamos, então, entender a questão inaugural desta Segunda

dissertação como um mero recurso retórico?

Para explicar as funções do esquecimento no psiquismo humano, Nietzsche faz

uma associação com um fator fisiológico, a dispepsia (má digestão). Aqui, vale lembrar

que no último parágrafo da dissertação anterior, o filósofo postula ser necessário que os

fisiólogos e médicos se interessem pelo problema do valor dos valores, pois com o

auxílio da interpretação científica, o filósofo poderia, então, melhor estabelecer a

hierarquia dos valores, no que concerne a formação de um tipo de homem mais forte e

saudável.

Na metáfora nietzschiana, o esquecimento é o guardião da consciência sã. O

esquecimento age em nós como força inibidora ativa, evitando assim que nossas

experiências passadas impregnem a consciência. Uma mente incessantemente ocupada

com aquilo que se vivencia no passado seria acometida por uma ‘indigestão’ psíquica,

incapaz de absorver novos alimentos, ou seja, não haveria desejo nem disposição para

se experimentar o novo, se desprezaria o presente e o futuro em função de um passado

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ainda não digerido. Destarte, o esquecimento é vital para que haja “felicidade,

jovialidade, esperança, orgulho, presente (...)” (NIETZSCHE, 2009, p. 43).

Como vimos anteriormente, é quando se deve prometer que a memória se faz

necessária, já que a promessa passa pela triagem da lembrança. Aquele que promete não

seria confiável, e o seu compromisso cairia no vazio, se soubessem que ele próprio fosse

incapaz de se recordar do que havia um dia prometido. A “memória da vontade”, ou

seja, continuar querendo o que outrora fora quisto, possibilitou ao homem estabelecer

uma relação entre a decisão da vontade e a sua concretização através da ação. Desta

forma, a memória inaugura no homem a habilidade de pensar de forma causal e, assim,

prever o futuro. Daí em diante, o bicho homem se torna, enfim, apto a planejar, calcular

e discernir os meios para atingir determinado objetivo. Isso, mesmo em relação a si

próprio, porque agora, dotado de memória, ele possui a oportunidade de fazer de si um

ser previsível e, portanto, confiável. Em suma, o homem apenas se torna hábil a fazer

promessas quando coloca em suspense a sua capacidade de esquecimento e passa a ser,

ele mesmo, digno de confiança. Para Nietzsche, esse foi o passo primordial para a

domesticação do bicho homem.

Referência Bibliográfica:

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009.