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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA TRADUÇÃO DESIDÉRIO MURCHO SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA REVISÃO CIENTÍFICA ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA gradiva Título original: Philosophy: The Basics (Routledge, Londres, 1995) © 1992, 1995, Nigel Warburton Tradução: Desidério Murcho Revisão científica: António Franco Alexandre Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira Capa: Armando Lopes Fotocomposição: Gradiva Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Direitos reservados a: Gradiva — Publicações, L.da Rua de Almeida e Sousa, 21, r / c , esq. — Telefs. 397 40 6 7 / 8 1350 Lisboa 1." edição: Janeiro de 1998 Depósito legal n.° 118 9 6 1 / 9 7 Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO e GUILHERME VALENTE, com o apoio científico da SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA Para minha mãe

Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

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Nigel Warburton, Filosofia

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Page 1: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

TRADUÇÃO DESIDÉRIO MURCHO

SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA REVISÃO CIENTÍFICA

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

gradiva Título original: Philosophy: The Basics (Routledge, Londres, 1995)

© 1992, 1995, Nigel Warburton Tradução: Desidério Murcho

Revisão científica: António Franco Alexandre Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira

Capa: Armando Lopes Fotocomposição: Gradiva

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Direitos reservados a: Gradiva — Publicações, L.da

Rua de Almeida e Sousa, 21, r / c , esq. — Telefs. 397 40 6 7 / 8 1350 Lisboa

1." edição: Janeiro de 1998 Depósito legal n.° 118 9 6 1 / 9 7

Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO e GUILHERME VALENTE, com o apoio científico da SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA

Para minha mãe

Page 2: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

Uma introdução aos argumentos, teorias e problemas principais de algumas das áreas centrais da filosofia: Filosofia da religião: a existência de Deus; o mal e os milagres

Ética: teorias cristãs, kantianas, consequencialistas, utilitaristas e a ética das virtudes; ética aplicada (o problema da eutanásia); metaética

Filosofia política: igualdade e discriminação, democracia e liberdade; a justificação do castigo penal

Epistemologia e metafísica: a existência do mundo exterior; realismo, cepticismo, idealismo e fenomenismo

Filosofia da ciência: método científico, indução e falsificacionismo

Filosofia da mente: o problema da mente/corpo; dualismo, fisicalismo e teorias da identidade; behaviourismo e funcionalismo

Filosofia da arte: a definição da arte; parecença familiar e forma significante; idealismo e teoria institucional; a crítica de arte No final de cada capítulo, uma bibliografia comentada orienta o leitor através das obras mais relevantes sobre cada um dos tópicos discutidos.

Page 3: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

Sumário 1.1 A FILOSOFIA E A SUA HISTÓRIA ..............................................................................................10 1.2 PORQUÊ ESTUDAR FILOSOFIA? ...............................................................................................11

1.2.1 A vida examinada ...........................................................................................................11 1.2.2 Aprender a pensar ...........................................................................................................12 1.2.3 Prazer .............................................................................................................................12

1.3 A FILOSOFIA É DIFÍCIL? ..........................................................................................................12 1.4 OS LIMITES DO QUE A FILOSOFIA PODE FAZER .......................................................................13 1.5 COMO USAR ESTE LIVRO ........................................................................................................13 1.6 LEITURA COMPLEMENTAR ......................................................................................................14

1 DEUS ..............................................................................................................................................15 1.1 O ARGUMENTO DO DESÍGNIO .................................................................................................15 1.2 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DO DESÍGNIO ................................................................................16

1.2.1 Fraca analogia ................................................................................................................16 1.2.2 Evolução .........................................................................................................................16 1.2.3 Limites da conclusão ......................................................................................................17

1.3 O ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA .....................................................................................17 1.4 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA ....................................................................18

1.4.1 Autocontradição .............................................................................................................18 1.4.2 Não é uma demonstração ...............................................................................................18 1.4.3 Limites da conclusão ......................................................................................................18

1.5 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO .................................................................................................19 1.6 CRÍTICAS AO ARGUMENTO ONTOLÓGICO ...............................................................................19

1.6.1 Consequências absurdas .................................................................................................19 1.6.2 A existência não é uma propriedade ...............................................................................20 1.6.3 O mal ..............................................................................................................................20

1.7 CONHECIMENTO, DEMONSTRAÇÃO E EXISTÊNCIA DE DEUS ...................................................20 1.8 O PROBLEMA DO MAL ............................................................................................................21 1.9 TENTATIVAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DO MAL .................................................................21

1.9.1 Santidade ........................................................................................................................21 1.9.2 Analogia artística ............................................................................................................22

1.10 A DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO...............................................................................................22 1.11 CRÍTICAS À DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO ..............................................................................23

1.11.1 Admite dois pressupostos básicos ................................................................................23 1.11.2 Livre arbítrio sem mal ..................................................................................................23 1.11.3 Deus poderia intervir ....................................................................................................23 1.11.4 Não explica o mal natural .............................................................................................23 1.11.5 Leis benéficas da natureza ............................................................................................24

1.12 O ARGUMENTO DOS MILAGRES ............................................................................................24 1.13 HUME E OS MILAGRES ..........................................................................................................25

1.13.1 Os milagres são sempre improváveis ...........................................................................25 1.13.2 Factores psicológicos ...................................................................................................25 1.13.3 As religiões neutralizam-se mutuamente .....................................................................26 1.13.4 O argumento do apostador: a aposta de Pascal ............................................................26

1.14 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DO APOSTADOR ..........................................................................27 1.14.1 Não podemos decidir acreditar .....................................................................................27 1.14.2 Argumento inapropriado ..............................................................................................28

1.15 NÃO REALISMO ACERCA DE DEUS .......................................................................................28 1.16 CRÍTICAS AO NÃO REALISMO ACERCA DE DEUS ..................................................................28

1.16.1 Ateísmo disfarçado........................................................................................................28

Page 4: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

1.16.2 Implicações para a doutrina religiosa ...........................................................................28 1.17 FÉ .........................................................................................................................................29

1.17.1 Os perigos da fé.............................................................................................................29 1.17.2 Conclusão......................................................................................................................30

1.18 LEITURA COMPLEMENTAR.....................................................................................................30 2 BEM E MAL ....................................................................................................................................31

2.1 TEORIAS BASEADAS NO DEVER ..............................................................................................31 2.2 A ÉTICA CRISTÃ ......................................................................................................................31 2.3 CRÍTICAS À ÉTICA CRISTÃ ......................................................................................................32

2.3.1 Qual é a vontade de Deus? .............................................................................................32 2.3.2 O dilema de Êutifron ......................................................................................................32 2.3.3 Pressupõe a existência de Deus ......................................................................................33

2.4 A ÉTICA KANTIANA..................................................................................................................33 2.4.1 Motivação .......................................................................................................................33 2.4.2 Máximas .........................................................................................................................34 2.4.3 O imperativo categórico .................................................................................................34 2.4.4 Universalizabilidade........................................................................................................34 2.4.5 Meios e fins.....................................................................................................................35

2.5 CRÍTICAS À ÉTICA KANTIANA..................................................................................................35 2.5.1 É vazia ............................................................................................................................35 2.5.2 Actos imorais universalizáveis........................................................................................36 2.5.3 Aspectos implausíveis ....................................................................................................36

2.6 CONSEQUENCIALISMO ............................................................................................................36 2.7 UTILITARISMO.........................................................................................................................36 2.8 CRÍTICAS AO UTILITARISMO ...................................................................................................37

2.8.1 Dificuldades de cálculo ..................................................................................................37 2.8.2 Casos problemáticos ......................................................................................................38

2.9 UTILITARISMO NEGATIVO .......................................................................................................39 2.10 CRÍTICA AO UTILITARISMO NEGATIVO ..................................................................................39

2.10.1 Destruição de toda a vida..............................................................................................39 2.11 UTILITARISMO DAS REGRAS .................................................................................................39 2.12 TEORIA DA VIRTUDE .............................................................................................................40

2.12.1 Prosperar.......................................................................................................................40 2.12.2 As virtudes ....................................................................................................................40

2.13 CRÍTICAS À TEORIA DA VIRTUDE...........................................................................................41 2.13.1 Que virtudes devemos adoptar?...................................................................................41 2.13.2 Natureza humana ..........................................................................................................41

2.14 ÉTICA APLICADA...................................................................................................................42 2.15 EUTANÁSIA............................................................................................................................42 2.16 ÉTICA E METAÉTICA .............................................................................................................43 2.17 NATURALISMO ......................................................................................................................43 2.18 CRÍTICAS AO NATURALISMO .................................................................................................44

2.18.1 Distinção facto/valor ....................................................................................................44 2.18.2 O argumento da questão em aberto ..............................................................................44 2.18.3 Não existe natureza humana.........................................................................................44

2.19 RELATIVISMO ........................................................................................................................45 2.20 CRÍTICAS AO RELATIVISMO MORAL ......................................................................................45

2.20.1 Serão os relativistas inconsistentes? .............................................................................45 2.20.2 O que conta como sociedade?......................................................................................46

2.21 EMOTIVISMO.........................................................................................................................46 2.22 CRÍTICAS AO EMOTIVISMO ...................................................................................................46

2.22.1 A discussão moral é impossível..................................................................................46

Page 5: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

2.23 CONCLUSÃO .........................................................................................................................47 2.24 LEITURA COMPLEMENTAR.....................................................................................................47

3 POLÍTICA........................................................................................................................................49 3.1 IGUALDADE ............................................................................................................................49 3.2 DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO.............................................................................50 3.3 CRÍTICAS À DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO...........................................................50

3.3.1 Impraticável e de curta duração .....................................................................................50 3.3.2 Pessoas diferentes merecem quantitativos diferentes ....................................................50 3.3.3 Pessoas diferentes têm diferentes carências....................................................................51 3.3.4 Ninguém tem o direito de redistribuir ............................................................................51

3.4 IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NO EMPREGO .....................................................................51 3.5 DISCRIMINAÇÃO POSITIVA ......................................................................................................52 3.6 CRÍTICAS À DISCRIMINAÇÃO POSITIVA ...................................................................................52

3.6.1 Anti-igualitária ...............................................................................................................52 3.6.2 Pode conduzir ao ressentimento......................................................................................53

3.7 IGUALDADE POLÍTICA: DEMOCRACIA......................................................................................53 3.8 DEMOCRACIA DIRETA..............................................................................................................53 3.9 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA..............................................................................................54 3.10 CRÍTICAS À DEMOCRACIA.....................................................................................................54

3.10.1 Uma ilusão ...................................................................................................................54 3.10.2 Os eleitores não são especialistas..................................................................................54 3.10.3 O paradoxo da democracia............................................................................................55

3.11 LIBERDADE............................................................................................................................55 3.12 LIBERDADE NEGATIVA...........................................................................................................55 3.13 CRÍTICAS À LIBERDADE NEGATIVA .......................................................................................56

3.13.1 O que conta como prejuízo?..........................................................................................56 3.14 LIBERDADE POSITIVA.............................................................................................................56 3.15 SUBTRAIR A LIBERDADE: O CASTIGO ...................................................................................57 3.16 O CASTIGO COMO RETRIBUIÇÃO............................................................................................57 3.17 CRÍTICAS AO RETRIBUTIVISMO..............................................................................................57

3.17.1 Faz apelo a sentimentos baixos ....................................................................................57 3.17.2 Ignora os efeitos ...........................................................................................................58

3.18 DISSUASÃO ...........................................................................................................................58 3.19 CRÍTICAS À DISSUASÃO.........................................................................................................58

3.19.1 O castigo dos inocentes.................................................................................................58 3.19.2 Não funciona ...............................................................................................................58

3.20 PROTECÇÃO DA SOCIEDADE .................................................................................................59 3.21 CRÍTICAS À PROTEÇÃO DA SOCIEDADE ...............................................................................59

3.21.1 Só é relevante para alguns crimes ................................................................................59 3.21.2 Não funciona.................................................................................................................59

3.22 REABILITAÇÃO.......................................................................................................................59 3.23 CRÍTICAS À REABILITAÇÃO....................................................................................................60

3.23.1 Só e relevante para alguns criminosos..........................................................................60 3.24 DESOBEDIÊNCIA CIVIL...........................................................................................................60 3.25 CONCLUSÃO..........................................................................................................................62 3.26 LEITURA COMPLEMENTAR ....................................................................................................62

4 4 O MUNDO EXTERIOR..................................................................................................................63 4.1 REALISMO DE SENSO COMUM .................................................................................................63 4.2 CEPTICISMO ACERCA DOS DADOS DOS SENTIDOS ...................................................................64 4.3 O ARGUMENTO DA ILUSÃO .....................................................................................................64 4.4 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DA ILUSÃO ...................................................................................64

4.4.1 Graus de certeza .............................................................................................................64

Page 6: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

4.5 PODEREI ESTAR A SONHAR? ...................................................................................................65 4.5.1 Não posso estar sempre a sonhar ...................................................................................65 4.5.2 Os sonhos são diferentes ................................................................................................65

4.6 ALUCINAÇÃO ..........................................................................................................................66 4.7 CÉREBRO NUMA CUBA? ..........................................................................................................66 4.8 MEMÓRIA E LÓGICA ...............................................................................................................67 4.9 PENSO, LOGO EXISTO...............................................................................................................67 4.10 CRÍTICA AO COGITO..............................................................................................................67 4.11 REALISMO REPRESENTATIVO.................................................................................................68

4.11.1 Qualidades primárias e secundárias.............................................................................68 4.12 CRÍTICAS AO REALISMO REPRESENTATIVO............................................................................69

4.12.1 Observador na cabeça ..................................................................................................69 4.13 IDEALISMO ............................................................................................................................69 4.14 CRÍTICAS AO IDEALISMO ......................................................................................................70

4.14.1 Alucinações e sonhos ...................................................................................................70 4.14.2 Conduz ao solipsismo ..................................................................................................71 4.14.3 A explicação mais simples ...........................................................................................71

4.15 FENOMENISMO......................................................................................................................72 4.16 CRÍTICAS AO FENOMENISMO.................................................................................................72

4.16.1 Dificuldade em descrever objectos ..............................................................................72 4.16.2 O solipsismo e o argumento da linguagem privada......................................................73

4.17 REALISMO CAUSAL................................................................................................................73 4.18 CRÍTICAS AO REALISMO CAUSAL ..........................................................................................74

4.18.1 A experiência da visão..................................................................................................74 4.18.2 Pressupõe o mundo real ...............................................................................................74

4.19 CONCLUSÃO..........................................................................................................................74 4.20 LEITURA COMPLEMENTAR.....................................................................................................74

5 CIÊNCIA .........................................................................................................................................75 5.1 CRÍTICAS À PERSPECTIVA SIMPLES ........................................................................................76

5.1.1 Observação .....................................................................................................................76 5.1.2 Selecção .........................................................................................................................77

5.2 O PROBLEMA DA INDUÇÃO......................................................................................................77 5.3 TENTATIVAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DA INDUÇÃO .........................................................79

5.3.1 Parece funcionar..............................................................................................................79 5.4 FALSIFICACIONISMO: CONJECTURA E REFUTAÇÃO..................................................................80 5.5 CRÍTICAS AO FALSIFICACIONISMO...........................................................................................81

5.5.1 O papel da confirmação..................................................................................................81 5.5.2 Erro humano....................................................................................................................82 5.5.3 Conclusão........................................................................................................................82

5.6 LEITURA COMPLEMENTAR.......................................................................................................83 6 MENTE............................................................................................................................................83

6.1 FILOSOFIA DA MENTE E PSICOLOGIA.......................................................................................83 6.2 O PROBLEMA DA MENTE /CORPO.............................................................................................84 6.3 DUALISMO...............................................................................................................................84 6.4 CRÍTICAS AO DUALISMO..........................................................................................................85

6.4.1 Não pode ser cientificamente investigado ......................................................................85 6.4.2 Interacção........................................................................................................................85 6.4.3 Contradiz um princípio científico básico .......................................................................86

6.5 DUALISMO SEM INTERACÇÃO..................................................................................................86 6.5.1 Paralelismo mente/corpo ................................................................................................86 6.5.2 Ocasionalismo ................................................................................................................86 6.5.3 Epifenomenismo ............................................................................................................86

Page 7: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

6.6 FISICALISMO............................................................................................................................87 6.7 TEORIA DA IDENTIDADE-TIPO..................................................................................................87 6.8 CRÍTICAS À TEORIA DA IDENTIDADE-TIPO ..............................................................................88

6.8.1 Não há conhecimento dos processos cerebrais ..............................................................88 6.8.2 Qualia..............................................................................................................................89 6.8.3 Diferenças individuais ....................................................................................................89

6.9 TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME ........................................................................................90 6.10 CRÍTICAS À TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME ...................................................................90

6.10.1 Alguns estados do cérebro podem ser pensamentos diferentes ....................................90 6.11 BEHAVIOURISMO....................................................................................................................90 6.12 CRÍTICAS AO BEHAVIOURISMO..............................................................................................91

6.12.1 Fingimento ...................................................................................................................91 6.12.2 Qualia ...........................................................................................................................91 6.12.3 Como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças? ........................................92 6.12.4 A dor dos paralíticos......................................................................................................92 6.12.5 As crenças podem causar o comportamento ..............................................................92 6.12.6 Funcionalismo ..............................................................................................................93

6.13 CRÍTICAS AO FUNCIONALISMO..............................................................................................93 6.13.1 Qualia: computadores e pessoas ...................................................................................93

6.14 MENTES ALHEIAS..................................................................................................................94 6.14.1 Não é um problema para o behaviourismo...................................................................94

6.15 O ARGUMENTO POR ANALOGIA.............................................................................................94 6.16 CRÍTICAS AO ARGUMENTO POR ANALOGIA...........................................................................95

6.16.1 Não é uma demonstração..............................................................................................95 6.16.2 Inverificável..................................................................................................................95

6.17 CONCLUSÃO..........................................................................................................................96 6.17.1 Leitura complementar...................................................................................................96

7 ARTE...............................................................................................................................................96 7.1 PODE A ARTE SER DEFINIDA?..................................................................................................97

7.1.1 O conceito de parecença familiar....................................................................................97 7.2 CRÍTICAS À PERSPECTIVA DA PARECENÇA FAMILIAR...............................................................97 7.3 A TEORIA DA FORMA SIGNIFICANTE........................................................................................97 7.4 CRÍTICAS À TEORIA DA FORMA SIGNIFICANTE .......................................................................98

7.4.1 Circularidade ..................................................................................................................98 7.4.2 Irrefutabilidade................................................................................................................98

7.5 A TEORIA IDEALISTA................................................................................................................99 7.6 CRÍTICAS À TEORIA IDEALISTA DA ARTE ................................................................................99

7.6.1 Estranheza ......................................................................................................................99 7.6.2 Excessivamente restritiva .............................................................................................100

7.7 A TEORIA INSTITUCIONAL......................................................................................................100 7.8 CRÍTICAS À TEORIA INSTITUCIONAL......................................................................................100

7.8.1 Não distingue a boa da má arte ....................................................................................100 7.8.2 Circularidade ................................................................................................................101 7.8.3 Que critérios usa o mundo da arte?...............................................................................101

7.9 CRÍTICA DE ARTE...................................................................................................................102 7.10 ANTI-INTENCIONALISMO.....................................................................................................102 7.11 CRÍTICAS AO ANTI-INTENCIONALISMO ...............................................................................102

7.11.1 Uma ideia errada da intenção .....................................................................................102 7.11.2 Ironia ..........................................................................................................................103 7.11.3 Uma perspectiva muito restritiva da crítica de arte.....................................................103 7.11.4 Apresentação, interpretação, autenticidade ................................................................103

7.12 AUTENTICIDADE HISTÓRICA NA INTERPRETAÇÃO MUSICAL................................................103

Page 8: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

7.13 CRÍTICAS À AUTENTICIDADE HISTÓRICA NA INTERPRETAÇÃO ...........................................104 7.13.1 Viagem fantasiosa no tempo ......................................................................................104 7.13.2 Visão simplista da interpretação musical ...................................................................104 7.13.3 As interpretações históricas podem falsear o espírito ................................................104

7.14 IMITAÇÕES E VALOR ARTÍSTICO...........................................................................................105 7.14.1 Preço, snobismo, relíquias .........................................................................................105 7.14.2 Imitações perfeitas .....................................................................................................106 7.14.3 Obras de arte versus artistas .......................................................................................106 7.14.4 O argumento moral.....................................................................................................107

7.15 CONCLUSÃO........................................................................................................................107 7.16 LEITURA COMPLEMENTAR...................................................................................................107

8 GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS ...............................................................................................108

Page 9: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

Prefácio

Acrescentei pequenas secções em vários capítulos desta segunda edição e corrigi todos os erros óbvios que surgiram na primeira. A adição mais digna de nota é o novo capítulo sobre política. Actualizei também as listas de leituras aconselhadas.

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que fizeram comentários aos rascunhos dos vários capítulos. Estou particularmente grato a Alexandra Alexandri, Gunnar Arnason, Inga Burrows, Eric Butcher, Michael Camille, Simon Christmas, Lesley Cohen, Emma Cotter, Tim Crane, Sue Derry-Penz, Adrian Driscoll, Jonathan Hourigan, Rosalind Hursthouse, Paul Jefferis, John Kimbell, Robin Le Poivedin, Georgia Mason, Hugh Mellor, Alex Miller, Anna Motz, Penny Nettle, Alex Orenstein, Andrew Pile, Abigail Reed, Anita Roy, Ron Santoni, Helen Simms, Jennifer Trusted, Phillip Vasili, Stephanie Warburton, Tessa Watt, Jonathan Wolff, Kira Zurawska e aos consultores anónimos da casa editora.

NIGEL WARBURTON Oxford, 1994

Page 10: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

Introdução

O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses autores. Mas, mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode, ainda assim, ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a filosofia.

A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida ou algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com os Gregos antigos e tem prosperado no século xx, sobretudo na Europa e na América.

Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas — uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.

1.1 A FILOSOFIA E A SUA HISTÓRIA

Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficas particulares, e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume, e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias

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humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses temas.

Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos, uma vez que, se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores, não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos filósofos anteriores. Contudo, num pequeno livro como este, é impossível fazer justiça às complexidades da obra de filósofos individuais. As leituras complementares, sugeridas no fim de cada capítulo, ajudam a colocar num contexto histórico mais vasto os assuntos aqui discutidos.

1.2 PORQUÊ ESTUDAR FILOSOFIA?

Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir conclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é virtualmente nula. Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a atenção dos Gregos. Parece que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.

Qual é, afinal, a importância de estudar filosofia?

Começar a questionar as bases fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes de fazer o que quer que seja, paralisados por pormos demasiadas perguntas. Na verdade, a caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos altamente abstractos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou Cambridge, mas incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais complicadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.

1.2.1 A vida examinada

Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou noutro momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz que certas acções sejam moralmente boas ou más? Poderemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? E a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.

A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar. Persistir numa existência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia pode ser como conduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos justificadamente confiar nos travões, na direcção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficientemente bem até agora; mas esta confiança pode ser completamente injustificada: os travões podem ter uma deficiência e falharem precisamente quando mais precisarmos deles. Analogamente, os princípios nos quais a nossa vida se baseia podem ser inteiramente sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a certeza disso.

Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos a nossa vida, podemos estar a empobrecê-la ao recusarmo-nos a usar a nossa capacidade de pensar.

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Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente inquietante colocar este tipo de questões fundamentais: podem sentir-se satisfeitas e confortáveis com os seus preconceitos. Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de encontrar respostas a questões filosóficas que representem um desafio.

1.2.2 Aprender a pensar

Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de aprender a pensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do pensamento filosófico podem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar os argumentos a favor e contra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser aplicadas noutras áreas da vida. Muitas pessoas que estudam filosofia aplicam depois as suas aptidões em profissões tão diferentes quanto o direito, a informática, a consultoria de gestão, o funcionalismo público e o jornalismo — áreas onde a clareza de pensamento é um grande trunfo1. Os filósofos usam também a perspicácia que adquirem acerca da natureza da existência humana quando se voltam para as artes: alguns filósofos foram também romancistas, críticos, poetas, realizadores de cinema e dramaturgos de sucesso.

1.2.3 Prazer

Outra justificação ainda para o estudo da filosofia é o facto de, para muitas pessoas, esta ser uma actividade que dá imenso prazer. Mas é preciso dizer qualquer coisa acerca desta defesa da filosofia. O seu perigo é ser tomada como uma redução da actividade filosófica a qualquer coisa equivalente à resolução de palavras cruzadas. Por vezes, a atitude que os filósofos têm em relação à filosofia pode parecer-se muito com isso: alguns filósofos profissionais ficam obcecados com a resolução de enigmas lógicos obscuros como um fim em si, publicando os seus resultados em revistas esotéricas. No outro extremo, alguns filósofos que trabalham nas universidades encaram-se como parte de um «negócio», publicando o que muitas vezes são estudos medíocres unicamente porque isso lhes permitirá prosperar e ser promovidos (uma vez que a quantidade de publicações é um factor que determina a promoção)2. Dá-lhes prazer ver o seu nome impresso, ganhar mais e usufruir o prestígio associado à promoção. Felizmente, contudo, muita da filosofia se eleva acima deste nível.

1.3 A FILOSOFIA É DIFÍCIL?

A filosofia é muitas vezes descrita como uma disciplina difícil. Há vários tipos de dificuldades associadas à filosofia, algumas delas evitáveis.

Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos problemas com os quais os filósofos profissionais lidam exigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento abstracto. Contudo, o mesmo se aplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a esse respeito, a filosofia não é diferente da física, da teoria literária, da informática, da geologia, da matemática ou da história. Tal como acontece com estas e outras áreas de estudo, a dificuldade em dar um contributo substancialmente original na área respectiva não deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns o conhecimento dos avanços dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodos básicos.

1 O autor refere-se, claro, à situação britânica, e não à portuguesa. (N. do T.) 2 Este é um problema inexistente em Portugal: ao contrário do resto do mundo civilizado, a publicação em revistas

internacionais é irrelevante em termos de carreira académica ou liceal. (N. do T.)

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Contudo, há um segundo tipo de dificuldade associada à filosofia que pode ser evitada. Os filósofos nem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacidades para comunicar claramente as suas próprias ideias.

Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em atingir uma pequeníssima audiência de leitores especializados; outras vezes, porque usam uma gíria desnecessariamente complicada que se limita a confundir os que com ela não estão familiarizados. Os termos especializados podem ser úteis para evitar explicar certos conceitos sempre que são usados. Contudo, há entre os filósofos profissionais uma tendência infeliz para usar termos especializados como um fim em si; muitos usam expressões latinas apesar de existirem equivalentes portugueses perfeitamente aceitáveis 3 . Um parágrafo cheio de palavras desconhecidas e de palavras conhecidas usadas de forma desconhecida pode intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrever numa linguagem inventada por eles. Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do que na verdade é.

Neste livro tentei evitar a gíria desnecessária e explicar os termos desconhecidos a par e passo. Esta abordagem deve ser suficiente para proporcionar ao leitor um vocabulário filosófico básico, necessário para compreender alguns dos textos mais difíceis que são recomendados no final de cada capítulo.

1.4 OS LIMITES DO QUE A FILOSOFIA PODE FAZER

Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam que a filosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam que a filosofia lhes irá revelar o sentido da vida e explicar todas as facetas das nossas complexas existências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões fundamentais relacionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma imagem acabada, se é que de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alternativa ao estudo da arte, da história, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da política e da ciência.

Estas diferentes disciplinas concentram-se em diferentes aspectos da vida humana e oferecem diferentes tipos de esclarecimentos. Alguns aspectos da vida das pessoas resistem à análise filosófica e até talvez a qualquer outro tipo de análise. É por isso importante não esperar demasiado da filosofia.

1.5 COMO USAR ESTE LIVRO

Já sublinhei o facto de a filosofia ser uma actividade. Por isso, este livro não deve ser lido passivamente. Podemos limitar-nos a aprender de cor os argumentos usados aqui, mas isso, só por si, não seria ainda aprender a filosofar, apesar de proporcionar um conhecimento sólido de muitos dos argumentos básicos usados pelos filósofos. O leitor ideal deste livro será aqueleque o ler criticamente, questionando constantemente os argumentos usados e concebendo contra-argumentos. Este livro pretende estimular o pensamento, e não ser uma alternativa ao pensamento. Se o ler criticamente, o leitor encontrará sem dúvida muitas coisas de que discorda, o que concorrerá para clarificar as suas próprias convicções.

Apesar de ter tentado que todos os capítulos fossem acessíveis a alguém que nunca tenha estudado filosofia, alguns são mais difíceis do que outros. A maior parte das pessoas já pensou na

3 Em Portugal acontece sobretudo o uso desnecessário de neologismos e de expressões alemãs, gregas e inglesas. (N. do T.)

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questão de saber se Deus existe ou não e já pensou nos argumentos a favor de ambos os lados — logo, o capítulo sobre Deus deve ser relativamente fácil de seguir. Por outro lado, poucas pessoas, à excepção dos filósofos, terão pensado detalhadamente sobre os assuntos abordados nos capítulos sobre o mundo exterior e a mente, assim como nos assuntos tratados nas secções mais abstractas do capí- tulo sobre o bem e o mal. Estes capítulos, especialmente o capítulo sobre a mente, podem ser de leitura mais demorada. Recomendo que comece por fazer uma primeira leitura rápida de todos os capítulos, relendo depois aquelas secções que ache mais interessantes, em vez de ler demoradamente secção a secção, arriscando se assim a atolar-se nos detalhes sem ter percebido como os diferentes argumentos se relacionam entre si.

Há um tópico óbvio que este livro podia ter incluído, mas não o fez: a lógica. Deixei-o de fora porque é uma área excessivamente técnica para poder ser tratada satisfatoriamente num livro desta dimensão e com este estilo4.

Este livro deverá ser útil para os estudantes consolidarem o que aprendem nas aulas e proporcionará uma ajuda na redacção de ensaios: o sumário que ofereço das principais abordagens filosóficas de cada tema, juntamente com várias críticas a essas abordagens, pode facilmente ser usado quando se procuram ideias para ensaios.

1.6 LEITURA COMPLEMENTAR

As minhas sugestões de leitura complementar são deliberadamente breves: só incluí sugestões que posso sinceramente recomendar a alguém que começa agora a estudar filosofia.

Os Grandes Filósofos, de Brian Magee (Lisboa, Editorial Presença, 1989), é uma boa introdução à história da filosofia. Consiste num conjunto de conversas com vários filósofos contemporâneos acerca de grandes filósofos do passado e é baseado na série de televisão da BBC com o mesmo nome. The British Empiricists, de Stephen Priest (Londres, Penguin, 1990), é um sumário muito claro das ideias de alguns dos mais importantes filósofos britânicos do século xvii a meados do século xx. A Short History of Modem Philosophy, de Roger Scruton (Londres, Routledge, 1989), é uma breve descrição das ideias dos grandes filósofos, de Descartes a Wittgenstein.

A Dictionary of Philosophy, organizado por Anthony Flew (Londres, Pan, 1979) é útil como referência, tal como A Dictionary of Philosophy, de A. R. Lacey (Londres, Routledge, 1976).

Os interessados nos métodos de argumentação usados pelos filósofos têm vários livros relevantes, incluindo o meu Thinking from A to Z (Londres, Routledge, 1996), A Arte de Argumentar, de Anthony Weston (Lisboa, Gradiva, 1996) e The Logic of Real Arguments (Cambridge, Cambridge University Press, 1988), de Alec Fisher. Há mais dois livros nesta área que estão esgotados, mas que existem nas bibliotecas: Thinking about Thinking, de Anthony Flew (Londres, Fontana, 1975), e Straight and Crooked Thinking, de H. Thouless (Londres, Pan, 1974).

Sobre o tema de como escrever claramente e da importância de o fazer, o ensaio de George Orwell «Politics and the English Language», incluído em The Penguin Essays of George Orwell (Londres, Penguin, 1990), é uma leitura proveitosa. The Complete Plain Words (Londres, Penguin, 1962) e Plain English (Milton Keynes, Open University Press, 2." edição, 1992) são ambos livros excelentes que dão conselhos práticos nesta área.

4 A Gradiva publicará brevemente, nesta colecção, a obra Curso Introdutório de Lógica, de W. H. Newton-Smith. (N. do E.)

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1 DEUS

Será que Deus existe? Esta é uma questão fundamental, uma questão que a maior parte das pessoas já enfrentou num ou noutro período da vida. A resposta dada por cada um de nós não afecta apenas a forma como agimos, mas também a forma como compreendemos e interpretamos o mundo e o que esperamos do futuro. Se Deus existe, a existência humana pode ter sentido e podemos mesmo ter esperança na vida eterna. Se não, temos de criar nós mesmos o sentido das nossas vidas: nenhum sentido será dado a partir do exterior e a morte será provavelmente definitiva.

Quando os filósofos voltam a sua atenção para a religião, costumam examinar os vários argumentos que têm sido oferecidos a favor e contra a existência de Deus. Ponderam as provas e examinam atentamente a estrutura e as implicações dos argumentos. Examinam também conceitos tais como a fé e a crença, para ver se a maneira como as pessoas falam acerca de Deus faz sentido.

O ponto de partida da maior parte da filosofia da religião é uma doutrina muito geral acerca da natureza de Deus, conhecida como teís)iio. Esta doutrina defende a existência de um deus único, a sua omnipotência (capacidade para fazer tudo), omnisciência (capacidade de saber tudo) e suprema benevolência (sumamente bom). Esta perspectiva é partilhada pela maior parte dos cristãos, judeus e muçulmanos. Nestas páginas irei deter-me na ideia cristã de Deus, apesar de a maior parte dos argumentos se aplicarem igualmente a outras religiões teístas e de alguns deles serem relevantes para qualquer religião.

Mas será que o Deus descrito pelos teístas existe de facto? Poderemos demonstrar que esse Deus existe? Há muitos argumentos que têm por objectivo demonstrar a existência de Deus. Neste capítulo irei apresentar os mais importantes.

1.1 O ARGUMENTO DO DESÍGNIO

Um dos argumentos a favor da existência de Deus usado com mais frequência é o argumento do desígnio, por vezes também conhecido como argumento teleológico (da palavra grega telos, que significa finalidade). Este argumento afirma que, se observarmos a natureza, não podemos deixar de notar como tudo é apropriado à função que desempenha: tudo mostra sinais de ter sido concebido. Isto demonstraria a existência de um Criador. Se, por exemplo, examinarmos o olho humano, verificaremos que todas as suas ínfimas partes se adaptam entre si e que cada parte está judiciosamente adaptada àquilo para que aparentemente foi feita: ver.

Os defensores do argumento do desígnio, tais como William Paley (1743-1805), defendem que a complexidade e a eficiência de objectos naturais como o olho são indícios de que tiveram de ser concebidos por Deus. De que outra forma poderiam ter chegado a ser como são? Tal como, ao observar um relógio, podemos ver que foi concebido por um relojoeiro, também ao observar o olho, argumentam eles, podemos ver que foi concebido por uma espécie de Relojoeiro Divino. E como se Deus tivesse deixado uma marca em todos os objectos que fez.

Este é um argumento que parte de um efeito e infere a sua causa: observamos o efeito (o relógio ou o olho) e tentamos descobrir o que o causou (um relojoeiro ou um Relojoeiro Divino) a partir do exame que fizemos. O argumento apoia-se na ideia de que um objecto que tenha sido concebido, como acontece com um relógio, é em certos aspectos muito semelhante a um objecto natural, como um olho. Este tipo de argumento, baseado na semelhança entre duas coisas, é conhecido como argumento por analogia. Os argumentos por analogia baseiam-se no princípio de que, se duas coisas são análogas em alguns aspectos, serão também, muito possivelmente, análogas noutros.

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Aqueles que aceitam o argumento do desígnio afirmam que, para onde quer que olhemos, sobretudo tratando-se da natureza — quer olhemos para árvores, falésias, animais, estrelas, quer seja para o que for —, encontramos cada vez mais indícios que confirmam a existência de Deus. Porque estas coisas são concebidas de formas muito mais engenhosas do que um relógio, o Relojoeiro Divino deve, concomitantemente, ter sido mais inteligente do que o relojoeiro humano. De facto, o Relojoeiro Divino deve ter sido tão poderoso e tão inteligente que faz sentido presumir que terá sido o Deus tradicional dos teístas.

Contudo, há fortes argumentos contra o argumento do desígnio, a maior parte dos quais foram levantados pelo filósofo David Hume (1711-1776) nos seus póstumos Diálogos sobre a Religião Natural, assim como na secção xi da sua Investigação sobre o Entendimento Humano.

1.2 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DO DESÍGNIO

1.2.1 Fraca analogia

Uma objecção ao argumento apresentado defende que este se baseia numa analogia fraca: presume sem discussão a existência de uma semelhança significativa entre os objectos naturais e os que sabemos terem sido concebidos. Mas não é óbvio que, para usar mais uma vez os mesmos exemplos, o olho humano seja realmente como um relógio em todos os aspectos importantes. Os argumentos por analogia baseiam-se no facto de existir uma forte semelhança entre as duas coisas comparadas. Se a semelhança for fraca, as conclusões que podem ser retiradas com base na comparação serão igualmente fracas. Assim, por exemplo, um relógio de pulso e um relógio de bolso são suficientemente semelhantes para que possamos presumir terem ambos sido concebidos por relojoeiros. Mas, apesar de existir alguma semelhança entre um relógio e um olho — ambos são intrincados e cumprem as suas funções específicas —, essa semelhança é apenas vaga e quaisquer conclusões baseadas nessa analogia resultarão igualmente vagas.

1.2.2 Evolução

A existência de um Relojoeiro Divino não é a única explicação possível de como os animais e a s plantas estão tão bem adaptados às suas funções. E m particular, a teoria da evolução pela selecção natural, defendida por Charles Darwin (1809-1882) no seu livro A Origem das Espécies (1859, trad. 1961), oferece-nos uma explicação alternativa, largamente aceite, deste fenómeno. Darwin mostrou como, pelo processo da sobrevivência do mais apto, os animais e as plantas melhor adaptados ao seu meio ambiente sobrevivem e transmitem os seus genes aos seus descendentes. Este processo explica como as maravilhosas adaptações ao meio ambiente que encontramos nos reinos animal e vegetal podem ter ocorrido, sem precisar de introduzir a noção de Deus.

Claro que a teoria da evolução de Darwin não refuta de forma alguma a existência de Deus — na verdade, muitos cristãos aceitam-na como a melhor explicação de como as plantas, os animais e os seres humanos se tornaram no que são hoje: eles acreditam que Deus criou o próprio mecanismo da evolução. Contudo, a teoria de Darwin enfraquece, de facto, a força do argumento do desígnio, uma vez que explica os mesmos efeitos sem mencionar Deus como causa. A existência desta teoria acerca do mecanismo da adaptação biológica impede o argumento do desígnio de constituir uma demonstração conclusiva da existência de Deus.

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1.2.3 Limites da conclusão

Mesmo que, apesar das objecções mencionadas até agora, o leitor ache convincente o

argumento do desígnio, deve reparar que este argumento não demonstra a existência de um deus único, todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Um exame mais minucioso do argumento mostra que este tem várias limitações.

Em primeiro lugar, o argumento não consegue, de forma alguma, sustentar o monoteísmo — a ideia de que só existe um deus. Mesmo que o leitor aceite que o mundo e tudo o que ele contém mostra claramente sinais de ter sido concebido, não há razão para acreditar que foi tudo concebido por um só deus. Porque não poderia ter sido tudo concebido por uma equipe de deuses menores trabalhando em conjunto? Afinal de contas, a maioria das grandes e complexas construções humanas, como os arranha-céus, as pirâmides, os foguetões espaciais, etc., foram construídos por equipas de indivíduos; por isso, se levarmos a analogia a sério, a sua conclusão lógica irá conduzir-nos à convicção de que o mundo foi concebido por um grupo de deuses trabalhando em equipe.

Em segundo lugar, o argumento não apoia necessariamente a perspectiva de que aquele ou aqueles que projectaram o mundo são todo-poderosos. É plausível argumentar que o universo tem vários «defeitos de concepção»: por exemplo, o olho humano tem uma tendência para a miopia e para criar cataratas com a idade — o que dificilmente pode ser considerado a obra de um criador todo-poderoso que desejasse criar o melhor mundo possível. Tais verificações poderiam levar algumas pessoas a pensar que o Arquitecto do universo, longe de ser todo-poderoso, será antes um deus ou deuses comparativamente fracos ou talvez um deus ainda novo a experimentar os seus poderes. Talvez o Arquitecto tivesse morrido pouco tempo depois de ter criado o universo, deixando-o assim a degradar-se sozinho. O argumento do desígnio oferece, pelo menos, tantas razões para estas conclusões como para a existência do deus descrito pelos teístas. Por isso, o argumento do desígnio, por si só, não pode demonstrar que é o deus dos teístas que existe, e não qualquer outro tipo de deus ou deuses.

Por último, sobre o carácter omnisciente e bom do Arquitecto, muitas pessoas acham que o mal existente no mundo contraria esta conclusão. O mal vai desde a crueldade humana, o assassínio e a tortura, ao sofrimento causado pelos desastres naturais e pela doença.

Se, como o argumento do desígnio sugere, devemos olhar à nossa volta para ver os sinais da obra de Deus, muitas pessoas acham difícil aceitar que o que vêem seja o resultado de um criador benevolente. Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo-poderoso poderia impedi-lo de existir; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal continua a existir. Este sério desafio à crença no Deus dos teístas tem sido muito discutido pelos filósofos. E conhecido como o problema do mal. Numa próxima secção examinaremos, algo detalhadamente, este problema e as várias tentativas de o resolver. Mas, para já, este problema deve pelo menos fazer-nos ponderar se é verdadeira a ideia de o argumento do desígnio oferecer razões conclusivas a favor da existência de um Deus sumamente bom.

Como podemos ver nesta discussão, o argumento do desígnio só pode oferecer-nos, na melhor das hipóteses, uma conclusão muito limitada: a de que o mundo e tudo o que nele existe foi concebido por algo ou alguém. Ir para além desta conclusão seria ultrapassar o que logicamente pode concluir-se do argumento.

1.3 O ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA

O argumento do desígnio é baseado na observação directa do mundo. Como tal, trata-se do que os filósofos chamam um argumento empírico. Pelo contrário, o argumento da causa primeira, por vezes conhecido como argumento cosmológico, baseia-se apenas no facto empírico de o universo existir, e não em factos particulares sobre as características do universo.

O argumento da causa primeira afirma que todas as coisas foram causadas por qualquer

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coisa que lhes é anterior: não há nada que tenha pura e simplesmente irrompido e começado a existir sem uma causa. Porque sabemos que o universo existe, podemos seguramente presumir que toda uma série de causas e efeitos produziram o universo tal como é hoje. Se seguirmos esta série retrospectivamente, encontraremos uma causa original, a primeira causa de todas. Esta causa primeira, afirma o argumento da causa primeira, é Deus.

Contudo, tal como acontece com o argumento do desígnio, há várias críticas a este argumento.

1.4 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA

1.4.1 Autocontradição

O argumento da causa primeira começa por admitir que todas as coisas foram causadas por qualquer outra coisa, mas depois acaba por contradizer esta ideia, afirmando que Deus foi a primeira causa de todas. Defende simultaneamente que não pode haver uma causa não causada e que há uma causa não causada: Deus. Convida-nos a perguntar: «E o que causou Deus?»

Uma pessoa que se deixe convencer pelo argumento da causa primeira pode objectar que o argumento não quer dizer que tudo tem uma causa, mas apenas que tudo, excepto Deus, tem uma causa. Mas isto também não serve. Se a série de causas e efeitos vai parar em algum lugar, por que razão tem de parar em Deus? Por que razão não pode parar antes, no aparecimento do próprio universo?

1.4.2 Não é uma demonstração

O argumento da causa primeira pressupõe que os efeitos e as causas não poderiam retroceder para sempre numa espécie de regressão infinita: uma série sem fim a retroceder no tempo. O argumento pressupõe a existência de uma causa primeira que deu origem a todas as outras coisas. Mas será que as coisas terão mesmo de ter sido assim?

Se usássemos um argumento análogo sobre o futuro, teríamos de supor que existiria um efeito final, um efeito que não seria a causa de nada para além dele. Mas, apesar de ser de facto difícil de imaginar, parece plausível pensar que as causas e efeitos se prolongam infinitamente no futuro, tal como não existe um número que seja o maior de todos, uma vez que a qualquer número que, por hipótese, seja o maior podemos sempre adicionar mais um. Se é realmente possível ter uma série infinita, por que razão não podem os efeitos e as causas prolongar-se retrospectivamente no passado, infinitamente?

1.4.3 Limites da conclusão

Mesmo que se possa responder a ambas as críticas ao argumento, este não demonstra que a causa primeira é o deus descrito pelos teístas. Tal como acontece com o argumento do desígnio, há limites sérios ao que pode ser concluído a partir do argumento da primeira causa.

Em primeiro lugar, é verdade que a primeira causa foi, provavelmente, extremamente poderosa, de forma a poder criar e pôr em movimento a série de causas e efeitos que tiveram como resultado todo o universo tal como o conhecemos. Pode, por isso, haver alguma justificação para defender que o argumento mostra que existe um deus muito poderoso, apesar de não ser, talvez,

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todo-poderoso. Mas o argumento não apresenta absolutamente nenhuma razão para aceitar que existe um

deus omnisciente nem sumamente bom. Uma primeira causa não teria de ter nenhum destes atributos. E, tal como com o argumento do desígnio, um defensor do argumento da causa primeira ficaria ainda com o problema de saber como poderia um deus todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom tolerar o mal existente no mundo.

1.5 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO

O argumento ontológico é muito diferente dos dois argumentos anteriores a favor da existência de Deus, uma vez que não depende de quaisquer dados empíricos. O argumento do desígnio, como vimos, depende de dados acerca da natureza do mundo e dos objectos e organismos nele existentes; o argumento da causa primeira precisa de menos dados — baseia-se apenas na verificação de que algo existe, e não o nada. O argumento ontológico, contudo, é uma tentativa de mostrar que a existência de Deus se segue necessariamente da definição de Deus como o ser supremo. Porque esta conclusão pode ser retirada sem recorrer à experiência, diz-se que é um argumento a priori.

De acordo com o argumento ontológico, Deus define-se como o ser mais perfeito que é possível imaginar; ou, na mais famosa formulação do argumento, a de Santo Anselmo (1033-1109), Deus define-se como «aquele ser maior do que o qual nada pode ser concebido». A existência seria um dos aspectos desta perfeição ou grandiosidade. Um ser perfeito não seria perfeito se não existisse. Consequentemente, da definição de Deus seguir-se-ia que Deus existe necessariamente, tal como da definição de um triângulo se segue que a soma dos seus ângulos internos será de 180 graus.

Este argumento, que tem sido usado por vários filósofos, incluindo René Descartes (1596-1650), na quinta das suas Meditações, não convenceu muita gente; mas não é fácil de ver exactamente o que há de errado nele.

1.6 CRÍTICAS AO ARGUMENTO ONTOLÓGICO

1.6.1 Consequências absurdas

Uma crítica comum ao argumento ontológico defende que ele permitiria que, através de definições de todo o género de coisas, pudéssemos demonstrar a sua existência. Por exemplo, podemos muito facilmente imaginar uma ilha perfeita, com uma praia perfeita, vida selvagem perfeita, etc., mas é óbvio que daqui não se segue que essa ilha existe algures. Logo, porque o argumento ontológico parece justificar uma conclusão tão absurda como esta, pode facilmente ver-se que se trata de um mau argumento. Ou a estrutura do argumento não é sólida, ou, pelo menos, um dos seus pressupostos tem de ser falso; de outra maneira, não poderia dar lugar a consequências tão obviamente absurdas.

Um defensor do argumento ontológico pode responder a esta objecção dizendo que, apesar de ser claramente absurdo pensar que podemos demonstrar a existência de uma ilha através da sua definição, não é absurdo pensar que da definição de Deus se segue que Deus existe necessariamente. Isto é assim porque as ilhas perfeitas, tal como carros perfeitos, dias perfeitos, ou seja lá o que for, são apenas exemplos perfeitos de categorias particulares de coisas. Mas Deus é um caso especial: Deus não é apenas um exemplo perfeito de uma categoria, mas a mais perfeita de todas as coisas.

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Contudo, mesmo que aceitemos este argumento implausível, há mais uma crítica ao argumento ontológico que qualquer seu defensor terá de enfrentar. Esta crítica foi originalmente feita por Immanuel Kant (1724-1804).

1.6.2 A existência não é uma propriedade

Um celibatário pode ser definido como um homem solteiro. Ser solteiro é a propriedade essencial definidora de um celibatário. Ora, se eu dissesse «os celibatários existem», não estaria a descrever mais uma propriedade dos celibatários. A existência não é o mesmo tipo de coisa que a propriedade de ser solteiro: para que uma pessoa possa ser solteira tem primeiro de existir, apesar de o conceito de celibatário ser o mesmo, quer existam celibatários quer não.

Se aplicarmos o mesmo raciocínio ao argumento ontológico, veremos que o erro que comete é tratar a existência de Deus como se não passasse de outra propriedade, como a omnisciência ou a omnipotência. Mas Deus não poderia ser omnisciente nem omnipotente sem existir; logo, mesmo numa simples definição de Deus já estamos a pressupor que Deus existe. Acrescentar a existência como mais uma propriedade essencial de um ser perfeito é cometer o erro de tratar a existência como uma propriedade, em vez de a tratarcomo a condição de possibilidade para que qualquer coisa possa realmente ter uma propriedade qualquer.

Mas que dizer, então, dos seres ficcionais, como os unicórnios? Claro que podemos falar acerca das propriedades de um unicórnio, tal como ter um corno e quatro patas, sem que os unicórnios tenham de existir realmente. A resposta é esta: uma frase como «Os unicórnios têm um corno» quer realmente dizer que «Se os unicórnios existissem, teriam de ter um corno». Por outras palavras, a frase «Os unicórnios têm um corno» é de facto uma afirmação hipotética. Logo, a inexistência de unicórnios não é um problema para a perspectiva que defende que a existência não é uma propriedade.

1.6.3 O mal

Mesmo que o argumento ontológico seja aceite, há ainda muitos sinais de que pelo menos um aspecto da sua conclusão é falso. A presença do mal no mundo parece opor-se à ideia de que Deus é sumamente bom.

Apresentarei as possíveis respostas a esta crítica na secção sobre o problema do mal.

1.7 CONHECIMENTO, DEMONSTRAÇÃO E EXISTÊNCIA DE DEUS

Os argumentos a favor da existência de Deus que considerámos até agora foram todos apresentados, por vezes, como demonstrações, argumentos que produziriam conhecimento da existência de Deus.

Neste contexto, o conhecimento pode ser definido como uma espécie de crença justificada verdadeira. Se pudéssemos saber que Deus existe, teria de ser verdade que Deus existe realmente. Mas a nossa crença de que Deus existe teria também de ser justificada: teria de ser baseada no tipo certo de dados. E possível ter crenças que são verdadeiras, mas injustificadas: por exemplo, posso acreditar que é terça-feira porque vi o que estava escrito no que eu acredito ser o jornal de hoje. Mas, na realidade, estava a ver um jornal velho que, por acaso, tinha sido publicado numa terça-feira. Apesar de acreditar que é terça-feira (tal como de facto é), não adquiri esta crença de forma fidedigna, uma vez que podia perfeitamente ter pegado num jornal velho que me convencesse que hoje era quinta-feira. Por isso, eu não tinha realmente conhecimento, apesar de poder erradamente

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ter pensado que tinha. Todos os argumentos a favor da existência de Deus que examinámos até agora estão sujeitos

a várias objecções. Se estas objecções são sólidas ou não, compete ao leitor decidir. As objecções devem, é claro, levantar dúvidas sobre a questão de saber se estes argumentos podem ou não ser considerados demonstrações da existência de Deus. Mas poderemos nós saber — esse tipo de crença justificada verdadeira — que Deus não existe? Por outras palavras, existirão argumentos que possam conclusivamente demonstrar que o deus descrito pelos teístas não existe?

Há, de facto, pelo menos um argumento muito forte contra a existência de um deus benevolente, um argumento que já usei como crítica ao argumento do desígnio, ao argumento da primeira causa e ao argumento ontológico. Trata-se do chamado problema do mal.

1.8 O PROBLEMA DO MAL

Há mal no mundo: isto não pode ser seriamente negado. Basta pensar no Holocausto, nos massacres de Pol Pot no Camboja ou na prática generalizada da tortura. Todos eles são exemplos de mal moral e crueldade: seres humanos que provocam sofrimento a outros seres humanos por uma razão qualquer. A crueldade tem também muitas vezes como objecto os animais. Há também outro tipo de mal, conhecido como mal natural ou metafísico: terramotos, doença e fome são exemplos deste tipo de mal.

O mal natural tem causas naturais, apesar de se poder tornar ainda pior em função da incompetência humana ou falta de cuidado. A palavra «mal» talvez não seja a melhor para designar estes fenómenos naturais, que dão origem ao sofrimento humano, uma vez que é habitualmente usada para referir a crueldade deliberada. Contudo, quer lhe chamemos «mal natural», quer lhe chamemos qualquer outra coisa, a existência de coisas como a doença e as calamidades naturais tem, sem dúvida, de ser tomada em conta se queremos manter a crença num deus benevolente.

Visto existir tanto mal, como pode alguém acreditar seriamente na existência de um deus sumamente bom? Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo-poderoso poderia evitar que o mal ocorresse; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal continua a existir. Este é o problema do mal: o problema de explicar como os alegados atributos de Deus podem ser compatíveis com o facto inegável de o mal existir. Este é o mais sério desafio à crença no deus dos teístas. O problema do mal levou muitas pessoas a rejeitar completamente a crença em Deus, ou, pelo menos, a rever a sua opinião acerca da suposta benevolência, omnipotência ou omnisciência de Deus.

Os teístas têm sugerido várias soluções para o problema do mal, três das quais serão aqui consideradas.

1.9 TENTATIVAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DO MAL

1.9.1 Santidade

Algumas pessoas argumentaram que a presença de mal no mundo se justifica, apesar de não ser claramente uma coisa boa, porque conduz a uma maior virtude moral. Sem a pobreza e a doença, por exemplo, não seria possível a virtude moral que a Madre Teresa demonstrava ao ajudar os necessitados. Sem guerra, tortura e crueldade, os santos e os heróis não poderiam existir. O mal permite a existência do bem, supostamente maior, que este tipo de triunfo sobre o sofrimento humano representa. Contudo, esta solução está sujeita a pelo menos duas objecções. Em primeiro lugar, o grau e a dimensão do sofrimento são muito maiores do que seria necessário para permitir que santos e heróis desempenhassem os seus actos de bem moral. É extremamente difícil justificar com este argumento as mortes horríveis de vários milhões de pessoas nos campos de concentração nazis. Além disso, grande parte deste sofrimento passa despercebido e não é registado, de forma que não pode ser explicado desta maneira: em alguns casos, o indivíduo que sofre é a única pessoa

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capaz de aperfeiçoamento moral em tal situação, mas é altamente improvável que este aperfeiçoamento possa ocorrer em casos de dor extrema.

Em segundo lugar, não é óbvio que um mundo no qual exista muito mal seja preferível a um mundo no qual existisse menos mal e, consequentemente, menos santos e heróis. De facto, há qualquer coisa de ofensivo na tentativa de justificar a agonia de uma criança que morre de uma doença incurável, por exemplo, argumentando que isto permite que os que a presenciam se tornem melhores pessoas do ponto de vista moral. Iria realmente um deus sumamente bom usar tais métodos para nos ajudar a aperfeiçoar-nos moralmente?

1.9.2 Analogia artística

Algumas pessoas defenderam a existência de uma analogia entre o mundo e uma obra de arte. A harmonia geral de uma peça de música inclui geralmente dissonâncias que são subsequentemente convertidas num acorde; uma pintura tem, tipicamente, grandes áreas de pigmento mais escuro e mais claro. De forma análoga, defende este argumento, o mal contribui para a harmonia ou beleza geral do mundo. Esta perspectiva está também sujeita a pelo menos duas objecções.

Em primeiro lugar, é pura e simplesmente difícil de aceitar. Por exemplo, é difícil de perceber como se pode dizer que alguém a morrer em grande sofrimento na cerca de arame farpado da terra-de-ninguém na Batalha de Somme esteve a contribuir para a harmonia geral do mundo. Se a analogia com a obra de arte for realmente a explicação da razão pela qual Deus permite tanto mal, isto é quase uma admissão de que o mal não pode ser satisfatoriamente explicado, uma vez que coloca a compreensão do mal para além da compreensão meramente humana. A harmonia só pode ser observada e apreciada do ponto de vista de Deus. Se é isto que os teístas querem dizer quando afirmam que Deus é sumamente bom, trata-se de um uso muito diferente da palavra «bom», relativamente ao uso habitual.

Em segundo lugar, um deus que permite tal sofrimento por motivos meramente estéticos — de forma a poder apreciá-lo da mesma maneira que se aprecia uma obra de a r t e — parece mais um sádico do que o deus sumamente bom de que falam os teístas. Se o papel do sofrimento é este, Deus está desconfortavelmente próximo do psicopata que põe uma bomba no meio da multidão de forma a poder observar os belos padrões criados pela explosão e pelo sangue. Para muitas pessoas, esta analogia entre uma obra de arte e o mundo teria mais sucesso como um argumento contra a benevolência de Deus do que a seu favor.

1.10 A DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO

A tentativa mais importante de solução do problema do mal é, de longe, a defesa do livre arbítrio. Trata-se da afirmação de que Deus deu o livre arbítrio aos seres humanos: a capacidade para escolhermos o que queremos fazer. Se não tivéssemos livre arbítrio, seríamos como robots, ou autómatos, sem escolhas próprias. Os que aceitam a defesa do livre arbítrio argumentam que uma consequência necessária da posse do livre arbítrio é a possibilidade de praticar o mal; caso contrário, não seria, genuinamente, livre arbítrio. Os seus defensores afirmam que um mundo no qual os seres humanos têm livre arbítrio, conduzindo-nos por vezes ao mal, é preferível a um mundo no qual a acção humana fosse predeterminada, um mundo no qual seríamos como robots, programados para praticar apenas boas acções.

De facto, se fôssemos programados desta forma, não poderíamos sequer dizer que as nossas acções seriam moralmente boas, uma vez que o bem moral depende de poder escolher o que fazemos. Uma vez mais, há várias objecções a esta proposta de solução.

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1.11 CRÍTICAS À DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO

1.11.1 Admite dois pressupostos básicos

O pressuposto básico que a defesa do livre arbítrio admite é o de que um mundo com livre arbítrio e a possibilidade do mal é preferível a um mundo de pessoas-robots que nunca praticam más acções. Mas será isto obviamente verdade? O sofrimento pode ser tão terrível que muitas pessoas, dada a possibilidade de escolha, prefeririam que toda a gente tivesse sido pré-programada para só praticar o bem, em vez de ter de passar por certos sofrimentos. Estes seres pré-programados poderiam mesmo ter sido concebidos de maneira a acreditarem ter livre arbítrio, apesar de o não terem: poderiam ter a ilusão do livre arbítrio com todos os benefícios que a crença de que seriam livres lhes traria, mas sem nenhuma das desvantagens.

Este argumento sugere um segundo pressuposto da defesa do livre arbítrio, nomeadamente o de que temos de facto livre arbítrio, e não apenas a ilusão de que o temos. Alguns psicólogos pensam que podemos explicar todas as decisões ou escolhas que uma pessoa faz através de um condicionamento anterior que a pessoa sofreu, de forma que, apesar de a pessoa se poder sentir livre, a sua acção é na realidade inteiramente determinada pelo que aconteceu no passado. Não podemos ter a certeza de que não é assim que as coisas realmente se passam.

Contudo, deve notar-se, a favor da defesa do livre arbítrio, que a maior parte dos filósofos acredita que os seres humanos têm de facto, genuinamente, num certo sentido, livre arbítrio; e deve também notar-se que o livre arbítrio é geralmente considerado essencial ao ser humano.

1.11.2 Livre arbítrio sem mal

Se Deus é omnipotente, é presumível que esteja dentro dos seus poderes a criação de um mundo no qual existisse livre arbítrio sem que existisse mal. De facto, um tal mundo não é particularmente difícil de imaginar. Apesar de a posse do livre arbítrio nos dar sempre a possibilidade de fazer o mal, não há razão para que esta possibilidade se torne real. É logicamente possível que toda a gente tivesse tido livre arbítrio mas tivesse decidido evitar sempre a má linha de acção.

Aqueles que aceitam a defesa do livre arbítrio responderiam possivelmente a este argumento afirmando que num tal estado de coisas não existiria verdadeiro livre arbítrio. Esta ideia está em discussão.

1.11.3 Deus poderia intervir

Os teístas acreditam, tipicamente, que Deus pode intervir e que intervém de facto no mundo, sobretudo através da execução de milagres. Se Deus intervém por vezes, por que escolhe Deus executar o que podem parecer, a quem não for crente, «truques» menores, como provocar estigmas (marcas nas mãos das pessoas, como os buracos dos pregos das mãos de Cristo), ou transformar a água em vinho? Porque não interveio Deus de forma a prevenir o Holocausto, ou toda a segunda guerra mundial ou a epidemia da SIDA? Uma vez mais, os teístas podem responder que, se Deus tivesse intervindo, não teríamos genuíno livre arbítrio. Mas isto seria abandonar um aspecto da crença em Deus defendido pela maioria dos teístas, nomeadamente que a intervenção divina ocorre por vezes.

1.11.4 Não explica o mal natural

Uma crítica da maior importância à defesa do livre arbítrio afirma que este argumento só poderá, na melhor das hipóteses, justificar a existência do mal moral, o mal que resulta directamente dos seres humanos. Não se concebe qualquer conexão entre a posse de livre arbítrio e a existência

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de males naturais, como terramotos, doenças, erupções vulcânicas, etc., a não ser que se aceite uma espécie qualquer da doutrina do pecado original, segundo a qual a traição da confiança de Deus, perpetrada por Adão e Eva, terá trazido toda a espécie de mal ao mundo. A doutrina do pecado original torna os seres humanos responsáveis por todas as formas de mal existente no mundo. Contudo, tal doutrina só seria aceitável para alguém que já acreditasse na existência do deus judaico-cristão.

Há outras explicações, mais plausíveis, do mal natural, uma das quais afirma que a regularidade das leis da natureza oferece, em geral, um maior benefício, que ultrapassa as calamidades ocasionais a que dá origem.

1.11.5 Leis benéficas da natureza

Sem regularidade na natureza, o nosso mundo seria um mero caos e não teríamos forma de prever os resultados de nenhuma das nossas acções. Se, por exemplo, as bolas de futebol só às vezes deixassem os nossos pés quando as chutamos, limitando-se outras vezes a ficar coladas aos pés, teríamos muita dificuldade em prever o que iria acontecer numa qualquer ocasião específica em que fôssemos chutar uma bola. A falta de regularidade noutros aspectos do mundo poderia fazer que a própria vida fosse impossível. A ciência, tal como a vida quotidiana, apoia-se na existência de muitas regularidades na natureza, na qual causas análogas têm a tendência para produzir efeitos análogos.

Argumenta-se por vezes que, porque esta regularidade é habitualmente benéfica para nós, o mal natural se justifica, uma vez que é um efeito colateral da operação regular e contínua das leis da natureza. Os efeitos benéficos gerais desta regularidade ultrapassariam os prejudiciais. Mas este argumento é vulnerável de duas maneiras, pelo menos.

Primeiro, não explica por que razão não poderia um Deus omnipotente ter criado leis da natureza que nunca pudessem de facto conduzir ao mal natural. Uma resposta possível a isto é afirmar que mesmo Deus está submetido às leis da natureza; mas isto sugere que Deus não é realmente omnipotente.

Segundo, continua a não explicar por que razão Deus não intervém para executar milagres mais vezes. Se argumentarmos que Deus nunca intervém, eliminamos um aspecto central da crença em Deus da maioria dos teístas.

1.12 O ARGUMENTO DOS MILAGRES

Ao discutir o problema do mal e as suas tentativas de solução, afirmei que os teístas acreditam habitualmente que Deus executou certos milagres: na tradição cristã, estes milagres incluem a Ressurreição, a multiplicação dos pães, o ressuscitar de Lázaro, etc. Todos estes milagres teriam sido realizados por Cristo, mas os partidários do cristianismo e de outras religiões defendem muitas vezes que os milagres ocorrem também hoje em dia. Nestas páginas examinaremos a questão de saber se a afirmação de que ocorreram milagres no passado poderá proporcionar uma prova suficiente para acreditarmos na existência de Deus.

Um milagre pode ser definido como um tipo de intervenção divina no curso normal de acontecimentos que compreende o quebrar de uma lei estabelecida da natureza. Uma lei da natureza é uma generalização sobre a maneira como certas coisas se comportam: por exemplo, as coisas pesadas caiem ao chão se não as seguramos, ninguém pode ressuscitar, etc. Estas leis da natureza baseiam-se num vasto número de observações.

Os milagres devem desde logo distinguir-se de ocorrências meramente'extraordinárias. Uma pessoa pode tentar suicidar-se saltando de uma ponte alta. Por uma combinação bizarra de factores, tais como as condições do vento, a capacidade de as suas roupas actuarem como um pára-quedas,

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etc., essa pessoa pode sobreviver à queda — o que de facto já tem acontecido. Apesar de isto ser extremamente raro, podendo mesmo ser descrito como um «milagre» pelos jornais, não é um milagre no sentido em que estou a usar o termo nestas páginas. Poderíamos dar uma explicação científica satisfatória de» como esta pessoa veio a sobreviver: foi apenas um acontecimento extraordinário, e não um acontecimento milagroso, uma vez que não se violou nenhuma lei da natureza e, tanto quanto podemos saber, não esteve envolvida nenhuma intervenção divina. Contudo, se a pessoa que saltou fosse misteriosamente devolvida pelo rio de regresso à ponte, isso teria sido um milagre.

A maioria das religiões defendem que Deus fez milagres e que os relatos destes milagres devem ser tratados como uma confirmação da existência de Deus. Contudo, há fortes argumentos contra a ideia de basear uma crença em Deus em tais relatos da ocorrência de milagres.

1.13 HUME E OS MILAGRES

David Hume, na secção x das suas Investigações sobre o Entendimento Humano, argumentou que uma pessoa racional nunca deve acreditar num relato que afirme a ocorrência efectiva de um milagre, excepto se a possibilidade de a pessoa que faz o relato estar enganada for um milagre ainda maior. Mas isto, defendeu Hume, é altamente improvável que aconteça. Devemos, por princípio, acreditar sempre no que seria o menor milagre. Nesta afirmação, Hume está a jogar deliberadamente com o significado da palavra «milagre». Como já vimos, um milagre em sentido estrito é uma violação de uma lei da natureza que presumivelmente terá sido causada por Deus. Contudo, quando Hume declara que devemos acreditar sempre no que seria o menor milagre, está a usar a palavra «milagre» no sentido quotidiano, que pode incluir aquelas coisas que são apenas pouco comuns.

Apesar de Hume admitir a possibilidade da ocorrência de milagres, pensava que nunca tinha existido nenhum relato suficientemente fidedigno de um milagre no qual se pudesse basear uma crença em Deus. Hume usou vários argumentos convincentes para sustentar esta ideia.

1.13.1 Os milagres são sempre improváveis

Antes de mais, Hume analisou os indícios que temos para sustentar que qualquer lei específica da natureza é verdadeira. Para que algo seja aceite como uma lei da natureza — por exemplo, que ninguém pode ressuscitar — tem de existir o máximo possível de indícios que a confirmem.

Uma pessoa sensata baseia sempre aquilo em que acredita nos indícios disponíveis. Mas no caso dos relatos de milagres haverá sempre mais indícios que sugerem que o milagre não ocorreu do que o contrário. Isto é apenas uma consequência do facto de os milagres envolverem a violação de leis da natureza bem estabelecidas. Assim, com este argumento, uma pessoa sensata deverá encarar sempre com extrema relutância uma crença num relato que afirma a ocorrência de um milagre. E sempre logicamente possível que alguém possa ressuscitar, mas há muitíssimos indícios que sustentam a ideia de que isso nunca aconteceu. Logo, apesar de não podermos afastar absolutamente a possibilidade de a ressurreição ter ocorrido, devemos, defende Hume, encarar com extrema relutância a crença de que ocorreu realmente.

Hume apresentou vários argumentos para tornar a sua conclusão mais convincente.

1.13.2 Factores psicológicos

Os factores psicológicos podem levar as pessoas a enganarem-se a si mesmas ou até mesmo a serem fraudulentas acerca da ocorrência de milagres. Por exemplo, é sabido que o assombro e o

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deslumbramento são emoções agradáveis. Temos uma forte tendência para acreditar em coisas altamente improváveis — tais como a crença de que a existência de OVNIS demonstra que existe vida inteligente em Marte, ou de que as histórias de fantasmas provam a possibilidade da vida depois da morte e outras do mesmo género — por causa do prazer que temos em alimentar essas crenças fantásticas. Analogamente, temos tendência para acreditar nos relatos de milagres, uma vez que quase toda a gente gostaria, secretamente ou não, que esses relatos fossem verdadeiros.

E também extremamente apelativo pensar que se foi escolhido para testemunhar um milagre, que se é uma espécie de profeta. Muitas pessoas gostariam de ser objecto da admiração que os seus semelhantes concedem aos que afirmam terem testemunhado milagres. Isto pode levar as pessoas a interpretar acontecimentos meramente extraordinários como milagres reveladores da existência de Deus. Pode até levá-las a forjar histórias acerca de acontecimentos milagrosos.

1.13.3 As religiões neutralizam-se mutuamente

Os milagres têm sido defendidos por todas as grandes religiões. Os indícios invocados por cada uma dessas religiões para defender que os milagres aconteceram de facto têm força análoga e são do mesmo tipo. Em consequência, o argumento dos milagres, se fosse de confiança, demonstraria a existência dos diferentes deuses que cada religião defende. Mas é claro que todos estes diferentes deuses não podem existir simultaneamente: não pode ser verdade que exista simultaneamente o deus cristão uno e os vários deuses hindus. Logo, os milagres defendidos pelas diferentes religiões neutralizam-se mutuamente enquanto demonstrações da existência de um deus ou deuses particulares.

A combinação destes factores deve fazer que as pessoas racionais tenham relutância em acreditar nos relatos de milagres. A adequação de uma explicação natural, ainda que em si seja improvável, é sempre mais plausível do que uma explicação milagrosa. Está claro que um relato de um milagre nunca pode ser equivalente a uma demonstração da existência de Deus.

Estes argumentos não se restringem aos relatos alheios de milagres. A maior parte destes argumentos aplica-se igualmente se nós mesmos estivermos perante a extraordinária situação de pensar que testemunhámos um milagre. Todos nós já sonhámos, já recordámos mal certas coisas ou já pensámos ter visto coisas que, na realidade, não estavam realmente lá. Em todos os casos em que pensamos termos testemunhado um milagre é muito mais provável que os nossos sentidos nos tenham enganado do que um milagre tenha realmente ocorrido. Ou podemos ter apenas assistido a algo extraordinário e, por causa dos factores psicológicos mencionados acima, pensámos tratar-se de um milagre.

Claro que qualquer pessoa que pensasse ter testemunhado um milagre levaria esta experiência muito a sério, e com razão. Mas, por ser tão fácil estar enganado acerca destas coisas, essa experiência nunca deve contar como uma demonstração conclusiva da existência de Deus.

1.13.4 O argumento do apostador: a aposta de Pascal

Todos os argumentos a favor e contra a existência de Deus que examinámos até agora pretendem demonstrar que Deus existe ou que Deus não existe. Todos eles pretendem dar-nos conhecimento da sua existência ou não existência. O argumento do apostador, derivado da obra do filósofo e matemático Blaise Pascal (1623-1662), habitualmente conhecido como aposta de Pascal, é muito diferente dos outros. O seu objectivo não é proporcionar uma demonstração, mas antes mostrar que um apostador sensato deveria «apostar» na existência de Deus.

O argumento parte da posição de um agnóstico, isto é, alguém que acredita que não existem dados suficientes para decidir se Deus existe ou não. Um agnóstico acredita que é genuinamente

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possível que Deus exista, mas que não há dados suficientes para decidir a questão com toda a certeza. Um ateu, pelo contrário, acredita geralmente que existem dados conclusivos a favor da inexistência de Deus.

O argumento do jogador é o seguinte. Uma vez que não sabemos se Deus existe ou não, estamos numa posição muito semelhante à de um apostador antes de uma corrida de cavalos se ter realizado ou antes de uma carta ter sido voltada. Precisamos por isso de calcular as hipóteses que temos. Mas ao agnóstico pode parecer que tanto a existência como a inexistência de Deus são igualmente prováveis. A atitude do agnóstico consiste em ficar indeciso, sem tomar nenhuma decisão em nenhuma das direcções. O argumento do apostador, contudo, afirma que a coisa mais racional a fazer é procurar que a hipótese de ganhar seja tão grande quanto possível, ao mesmo tempo que a possibilidade de perder seja tão pequena quanto possível: por outras palavras, devemos maximizar os ganhos possíveis e minimizar as perdas possíveis. De acordo com o argumento do apostador, a melhor forma de alcançar este objectivo é acreditar em Deus.

Há quatro resultados possíveis. Se apostarmos na existência de Deus e ganharmos (i. e., se Deus existir), ganhamos a vida eterna — um excelente prémio. O que perdemos se apostarmos nesta opção e verificarmos que Deus não existe não é muito, se compararmos com a possibilidade da vida eterna: podemos perder alguns prazeres mundanos, perder muitas horas a rezar e viver as nossas vidas debaixo de uma ilusão. Contudo, se escolhermos apostar na opção da inexistência de Deus e ganharmos (i. e., se Deus não existir), viveremos uma vida sem ilusão (pelo menos neste aspecto) e teremos a liberdade de gozar os prazeres desta vida sem medo do castigo divino. Mas, se apostarmos nesta opção e perdermos (i. e., se Deus existir), perdemos pelo menos a possibilidade da vida eterna e podemos mesmo correr o risco da condenação eterna.

Pascal defendeu que, enquanto apostadores perante estas opções, o curso de acção mais racional será acreditar que Deus existe. Assim, se tivermos razão, estaremos em posição de obter a vida eterna. Se apostarmos na existência de Deus e não tivermos razão, não estaremos em posição de perder tanto quanto estaríamos se escolhêssemos acreditar na inexistência de Deus e não tivéssemos razão. Logo, se queremos maximizar os nossos ganhos possíveis e minimizar as nossas perdas possíveis, devemos acreditar na existência de Deus.

1.14 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DO APOSTADOR

1.14.1 Não podemos decidir acreditar

Mesmo que aceitemos o argumento do apostador, ficamos ainda com o problema de não nos ser possível acreditar em seja o que for que queiramos. Não podemos, pura e simplesmente, decidir acreditar em algo. Não posso decidir acreditar amanhã que os porcos voam, que Londres é a capital do Egipto, ou que existe um deus todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Preciso de estar convencido de que estas coisas são de facto assim antes de poder acreditar nelas. Mas o argumento do apostador não oferece quaisquer dados para me convencer que Deus existe: diz-me apenas que, como apostador, será uma boa ideia passar a acreditar que isso é verdade. Mas agora sou obrigado a enfrentar o problema seguinte: para poder acreditar em algo, tenho de acreditar que isso é verdade.

Pascal tinha uma solução para o problema de como fazer para acreditar que Deus existe quando isso vai contra os nossos sentimentos: sugeriu que a forma de o fazer era agir como se já acreditássemos que Deus existe — frequentar a igreja, pronunciar as palavras das orações apropriadas, etc. Pascal argumentou que, se dermos sinais exteriores de crer em Deus, acabaremos muito rapidamente por desenvolver a crença propriamente dita. Por outras palavras, há formas indirectas através das quais podemos gerar crenças deliberadamente.

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1.14.2 Argumento inapropriado

Apostar na existência de Deus por ganharmos com isso a hipótese da vida eterna, fingindo seguidamente crer realmente na sua existência por causa do prémio que ganharemos se tivermos razão, parece uma atitude inapropriada para tomarmos em relação à existência de Deus. O filósofo e psicólogo William James (1842-1910) foi ao ponto de afirmar que, se estivesse na posição de Deus, teria grande prazer em impedir a entrada no Céu às pessoas que acreditassem nele com base neste processo. O processo parece, todo ele, ser insincero e inteiramente motivado pelo interesse-próprio.

1.15 NÃO REALISMO ACERCA DE DEUS

O não realismo acerca de Deus proporciona uma alternativa controversa ao teísmo tradicional. Os não realistas argumentam que é um erro conceber Deus como algo que existe independentemente dos seres humanos. O verdadeiro significado da linguagem religiosa não é descrever uma espécie de ser objectivamente existente; é antes uma maneira de apresentarmos a nós mesmos a unidade ideal de todos os nossos valores morais e espirituais e as exigências que esses valores nos colocam. Por outras palavras, quando um não realista deste tipo afirma que acredita em Deus, isto não quer dizer que acredite em Deus enquanto entidade realmente existente numa outra esfera, o tipo de deus descrito pelos teístas tradicionais; ao invés, quer dizer que está comprometido com um conjunto particular de valores morais e espirituais e que a linguagem da religião proporciona uma forma especialmente poderosa de apresentar estes valores. Como afirmou Don Cupitt (1934-), um dos mais bem conhecidos não realistas, «falar de Deus é falar dos objectivos morais e espirituais que devemos ter em vista e acerca daquilo em que nos devemos tornar».

Segundo os não realistas, os que acreditam que Deus existe como algo que será descoberto lá fora, como outro planeta ou como os Yetis, são vítimas do pensamento mitológico. O verdadeiro significado da linguagem religiosa, afirmam eles, é apresentar, a nós mesmos, os mais altos ideais humanos. Isto explica porque surgiram as várias religiões: cresceram como personificações de diferentes valores culturais, mas, num certo sentido, são todas parte do mesmo tipo de actividade.

1.16 CRÍTICAS AO NÃO REALISMO ACERCA DE DEUS

1.16.1 Ateísmo disfarçado

A principal crítica ao não realismo acerca de Deus defende tratar-se esta posição de uma forma de ateísmo mal disfarçado. Dizer que Deus é apenas a soma dos valores humanos é a mesma coisa que dizer que o Deus tal como é tradicionalmente concebido não existe; a linguagem religiosa proporciona apenas uma forma útil de falar de valores num mundo sem Deus. Isto pode parecer hipócrita, uma vez que os não realistas rejeitam a ideia de que Deus tenha uma existência objectiva, ao mesmo tempo que, no entanto, querem apegar-se à linguagem e ao ritual religiosos. Parece mais honesto ser consistente com as consequências de acreditar que Deus não existe de facto e tornar-se ateu.

1.16.2 Implicações para a doutrina religiosa

Uma segunda crítica à abordagem não realista à questão da existência de Deus defende que esta tem implicações muito sérias para a doutrina religiosa. Por exemplo, a maior parte do teístas acredita na existência do Céu; mas, se Deus não existe realmente, é de presumir que o Céu também não (nem o Inferno, a propósito). Analogamente, se Deus não existe em sentido realista, é difícil ver

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como se pode oferecer uma explicação plausível dos milagres. No entanto, a crença na possibilidade dos milagres é central para muitos teístas. Adoptar uma posição não realista quanto à questão da existência de Deus implicaria uma revisão radical de muitas crenças religiosas básicas. Esta consequência não enfraquece, necessariamente e por si mesma, a abordagem não realista: se alguém estiver preparado para aceitar essas revisões radicais, pode fazê-lo de forma consistente. O que está em jogo é o facto de a perspectiva não realista implicar uma revisão substancial da doutrina religiosa básica, revisão que muitas pessoas não estariam preparadas para fazer.

1.17 FÉ

Todos os argumentos a favor da existência de Deus que examinámos até agora estão sujeitos a críticas. Estas críticas não são necessariamente conclusivas. O leitor pode ser capaz de encontrar respostas às críticas apresentadas. Mas, se o leitor não encontrar respostas às críticas, quererá isso dizer que deverá rejeitar completamente a crença em Deus? Os ateus diriam que sim. Os agnósticos produziriam o veredicto «por demonstrar». Os crentes, contudo, poderiam argumentar que a abordagem filosófica, que pondera vários argumentos, é inapropriada. A crença em Deus, poderiam eles dizer, não é uma questão apropriada para a especulação intelectual abstracta, mas antes para o comprometimento pessoal. E uma questão de fé, e não de uso inteligente da razão.

A fé implica a confiança. Se estou a escalar uma montanha e confio no cabo de segurança, isto significa que confio que o cabo irá aguentar o meu peso se eu escorregar e cair, apesar de não poder ter a certeza absoluta de que o cabo irá de facto aguentar comigo antes de o experimentar. Para algumas pessoas, a fé em Deus é como a confiança no cabo: não há nenhuma demonstração reconhecida de que Deus existe e se interessa por todas as pessoas, mas o crente tem confiança na ideia de que Deus existe de facto e vive a sua vida em harmonia com essa confiança.

A atitude de fé religiosa é apelativa para muitas pessoas e faz que o tipo de argumentos que considerámos até agora seja irrelevante. No entanto, nos casos mais extremos, a fé religiosa pode fazer que as pessoas sejam completamente cegas aos dados contra as suas ideias: pode parecer-se mais com teimosia do que com uma atitude racional.

Quais são os perigos de adoptar uma atitude destas em relação à existência de Deus, se tivermos tendência para isso?

1.17.1 Os perigos da fé

A fé, tal como a descrevi, baseia-se em dados insuficientes. Se existissem dados suficientes para declarar que Deus existe, existiria menos necessidade de fé: saberíamos nesse caso que Deus existe. Porque há dados insuficientes para poder ter a certeza de que Deus existe, há sempre a possibilidade de os crentes estarem errados na sua fé. E, tal como acontece com a crença na ocorrência de milagres, há vários factores psicológicos que podem conduzir as pessoas a acreditar em Deus.

Por exemplo, a segurança que advém de acreditar que um ser todo-poderoso toma conta de nós é irrecusavelmente apelativa. A crença na vida depois da morte é um bom antídoto para o medo da morte. Estes factores podem ser incentivos para que algumas pessoas se entreguem à fé em Deus. E claro que isto não faz, necessariamente, que a sua fé seja deslocada; mostra apenas que as causas da sua fé podem ser uma combinação de insegurança e raciocínio caprichoso.

Além disso, como Hume defendeu, os sentimentos de assombro e deslumbramento, associados à crença em ocorrências paranormais, dão muito prazer aos seres humanos. No caso da fé em Deus é importante distinguir a fé genuína do prazer derivado do facto de alimentar a crença na existência de Deus.

Estes factores psicológicos devem fazer-nos ter cuidado antes de nos entregarmos à fé em Deus: é muito fácil, para cada um de nós, estar enganado quanto às suas próprias motivações nesta área. No fim de contas, cada crente deve ajuizar se a sua fé é ou não genuína e apropriada.

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1.17.2 Conclusão

Neste capítulo, considerámos a maior parte dos argumentos a favor e contra a existência de Deus. Vimos que os teístas têm de enfrentar sérias críticas se quiserem manter a crença num Deus omnipotente,omnisciente e sumamente benevolente. Uma forma de responder a muitas destas críticas seria rever as qualidades habitualmente atribuídas a Deus: talvez Deus não seja inteiramente benevolente, ou talvez existam limites ao seu poder ou ao seu conhecimento. Fazer isto seria rejeitar a noção tradicional de Deus. Mas, para muitas pessoas, isto seria uma solução mais aceitável do que rejeitar completamente a crença em Deus.

1.18 LEITURA COMPLEMENTAR

Recomendo vivamente The Miracle of Theism, de J. L. Mackie (Oxford, Clarendon Press, 1992). E claro, inteligente e estimulante. Apresenta de forma mais detalhada todos os temas cobertos por este capítulo.

An Introduction to the Philosophy of Religion, de Brian Davies (Oxford, Oxford University Press, 2.a ed., 1993), é uma introdução abrangente a esta área, escrita por um dominicano.

Diálogos sobre a Religião Natural, a obra póstuma de David Hume, publicada pela primeira vez em 1779, contém um ataque brilhante e constante ao argumento do desígnio a favor da existência de Deus. A prosa do século xvin pode por vezes ser bastante difícil de entender, mas os argumentos principais são fáceis de seguir e são ilustrados com exemplos espirituosos e inesquecíveis. Dialogues and Natural History of Religion (Oxford, Oxford University Press World's Classics, 1993), de David Hume, é a melhor edição.

Don Cupitt esboça a sua alternativa não realista ao teísmo no capítulo final do seu livro The Sea of Faith (Londres, BBC Books, 1984).

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2 BEM E MAL

O que faz que uma acção seja boa ou má? Q u e queremos dizer quando afirmamos que alguém devia ou não fazer qualquer coisa? Como devemos viver? C o m o devemos tratar as outras pessoas? Estas são questões fundamentais que os filósofos têm discutido desde há milhares de anos. Se não pudermos dizer por que razão coisas como a tortura, o assassínio, a crueldade, a escravatura, a violação e o roubo são eticamente erradas, que justificação podemos ter para as impedir? É a moral unicamente uma questão de preconceito, ou poderemos dar boas razões a favor das nossas crenças morais? A área da filosofia que trata destas questões é usualmente conhecida quer como ética quer como filosofia moral — usarei ambos os termos indiferentemente.

Sou céptico quanto à capacidade da filosofia para mudar os preconceitos fundamentais das pessoas acerca do bem e do mal. Como Friedrich Nietzsche (18441900) fez notar em Para além do Bem e do Mal, a maior parte dos filósofos morais acaba por justificar «um desejo íntimo, filtrado e tornado abstracto». Por outras palavras, estes filósofos oferecem análises complicadas que parecem envolver um pensamento lógico e impessoal, mas que acaba sempre por demonstrar a correcção dos seus preconceitos prévios. No entanto, a filosofia moral pode oferecer perspectivas esclarecedoras ao lidar com questões morais genuínas: pode clarificar as implicações de certas crenças muito gerais acerca da moral e mostrar como estas crenças podem ser consistentemente postas em prática. Nestas páginas irei examinar três tipos de teorias morais: as baseadas no dever, as consequencialistas e as baseadas na virtude. Estas teorias são enquadramentos rivais muito gerais para a compreensão das questões morais. Em primeiro lugar esboçarei as características principais destes três tipos de teoria e mostrarei como poderão ser aplicados a um caso real. Prosseguirei seguidamente em direcção às questões filosóficas mais abstractas acerca do significado da linguagem moral, uma área conhecida por metaética.

2.1 TEORIAS BASEADAS NO DEVER

As teorias éticas baseadas no dever sublinham que cada um de nós tem certos deveres —

acções que devemos executar ou não — e que agir moralmente é equivalente a cumprir o nosso dever, sejam quais forem as consequências que daqui se seguirem. É esta ideia — a de que algumas acções são absolutamente boas ou más independentemente dos resultados a que derem orig e m — que distingue as teorias éticas baseadas nos deveres (também conhecidas por deontológicas) das teorias éticas consequencialistas. Nestas páginas examinaremos duas teorias baseadas no dever: a ética cristã e a ética kantiana.

2.2 A ÉTICA CRISTÃ

O ensino moral cristão tem dominado a compreensão ocidental da moral: toda a nossa

concepção da moral tem sido moldada pela doutrina religiosa e até as teorias éticas ateias lhe são imensamente devedoras. Os Dez Mandamentos apresentam uma lista de vários deveres e actividades proibidas. Estes deveres devem ser cumpridos independentemente das suas consequências: são deveres absolutos. Alguém que acredita que a Bíblia é a palavra de Deus não terá dúvidas acerca do significado de «moralmente certo» e «moralmente errado»: «moralmente certo» quer dizer o que estiver de acordo com a vontade de Deus e «moralmente errado» tudo o que for contrário à vontade de Deus. Para um tal crente, a moral é uma questão de seguir mandamentos absolutos dados por uma autoridade externa — Deus. Logo, por exemplo, matar é sempre moralmente errado porque está explicitamente referido na lista dos Dez Mandamentos. Isto é assim mesmo quando matar um certo indivíduo — Hitler, por exemplo — pode salvar a vida de outras

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pessoas. Isto é uma simplificação: na verdade, os teólogos discutem acerca da existência de circunstâncias excepcionais nas quais matar poderá ser moralmente permissível, como, por exemplo, numa guerra justa.

Na prática, a moral cristã é muito mais complicada do que obedecer apenas aos Dez Mandamentos: inclui a aplicação dos ensinamentos de Cristo e, especificamente, do mandamento do Novo Testamento: «Ama o teu próximo». A essência desta moral é, contudo, um sistema de obrigações e proibições. O mesmo se passa com a maior parte das outras teorias morais baseadas numa religião. Muitas pessoas pensam que, se Deus não existir, a moral é algo que não poderá existir: como Dostoievsky, o romancista russo, formulou a questão, «se Deus não existir, tudo será permitido». No entanto, há pelo menos três objecções principais a qualquer teoria ética baseada unicamente na vontade de Deus.

2.3 CRÍTICAS À ÉTICA CRISTÃ

2.3.1 Qual é a vontade de Deus?

Uma dificuldade imediata da ética cristã é descobrir qual é verdadeiramente a vontade de

Deus. Como podemos ter a certeza do que Deus quer que façamos? Os cristãos respondem geralmente a esta pergunta dizendo «leia a Bíblia». Mas a Bíblia está aberta a várias interpretações, muitas vezes conflituosas: basta pensar nas diferenças entre os que tomam o livro do Génesis literalmente e acreditam que o mundo foi criado em sete dias e os que pensam tratar-se de uma metáfora; ou nas diferenças entre os que pensam que na guerra é por vezes aceitável matar e os que pensam que o Mandamento «não matarás» é absoluto e incondicional.

2.3.2 O dilema de Êutifron

Gera-se um dilema quando há apenas duas alternativas possíveis e nenhuma é desejável.

Neste caso trata-se de um dilema originalmente formulado no Euti fron, de Platão. O dilema que se apresenta a q u e m acredita que a moral deriva dos mandamentos divinos é o seguinte: Deus aprova os mandamentos porque são moralmente bons? Ou é o facto de serem mandamentos aprovados por Deus que faz que sejam moralmente bons?

Considere a primeira opção. Se Deus aprovou os mandamentos porque são bons, a moral é, num certo sentido, independente de Deus. Deus limita-se a responder a valores morais já existentes no universo: descobre-os, em vez de os criar. Nesta perspectiva, seria possível descrever completamente a moral sem qualquer menção a Deus, apesar de se poder pensar que Deus nos proporciona uma informação mais fidedigna acerca da moral do que seria possível recolher directamente do mundo com os nossos limitados intelectos. No entanto, nesta perspectiva, Deus não é a fonte da moral.

A segunda opção é provavelmente menos apelativa para os defensores da ética cristã. Se a rectidão é criada por Deus unicamente através dos seus mandamentos e aprovação, isto parece tornar a moral, de alguma forma, arbitrária. Deus podia, em princípio, ter declarado o assassínio moralmente digno de louvor — e, nesse caso, o assassínio seria digno de louvor. Quem defende a moral como um sistema de mandamentos divinos poderia responder que Deus nunca declararia o assassínio digno de louvor porque Deus é bom e nunca nosdesejaria isso. Mas, se por «bom» se quer dizer «moralmente bom», isto tem como consequência que tudo o que a expressão «Deus é bom» pode querer dizer será «Deus aprova-se a si mesmo». Isto dificilmente corresponde ao que os

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crentes querem dizer quando afirmam que Deus é bom.

2.3.3 Pressupõe a existência de Deus

Contudo, uma objecção muito mais séria a esta perspectiva da ética é o facto de pressupor

que Deus realmente existe e é benevolente. Se Deus não fosse benevolente, por que razão seriam as acções conforme à sua vontade consideradas moralmente boas? Como vimos no capítulo 1, nem a existência de Deus nem a sua benevolência podem ser dadas como garantidas.

Nem todas as teorias morais baseadas nos deveres se apoiam na existência de Deus. A mais importante teoria moral baseada no dever, a de Kant, apesar de fortemente influenciada pela tradição cristã protestante e do facto de o próprio Kant ter sido um cristão devoto, descreve a moral de uma forma que, nos seus contornos mais gerais, muitos ateus acham apelativa.

2.4 A ÉTICA KANTIANA

2.4.1 Motivação

Immanuel Kant estava interessado na questão de saber o que é uma acção moral. A resposta

que deu tem sido muito importante para a filosofia. Nesta secção, esboçarei as suas características principais.

Para Kant era óbvio que uma acção moral teria de ser executada por sentido do dever, e não apenas como resultado de uma inclinação, de um sentimento ou da possibilidade de qualquer tipo de benefício para o seu autor. Assim, por exemplo, se eu doar dinheiro para acções de caridade por ter profundos sentimentos de compaixão pelos mais necessitados, a minha acção não será necessariamente moral, segundo Kant: se eu agir apenas em função dos meus sentimentos de compaixão, e não em função de um sentido do dever, não terei agido moralmente. Se eu doar dinheiro para acções de caridade por pensar que isso irá aumentar a minha popularidade entre os meus amigos, não estarei, uma vez mais, a agir moralmente, mas em função do benefício em termos de estatuto social. Assim, para Kant, a motivação de uma acção era muito mais importante do que a própria acção e as suas consequências. Ele pensava que, para saber se alguém está a agir moralmente ou não, temos de saber a intenção dessa pessoa. Não é suficiente saber apenas se o Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de assistência. O Samaritano poderia ter agido em função do seu interesse-próprio, com a expectativa de receber uma recompensa pelo seu incómodo. Ou então poderá tê-lo feito só porque sentiu uma ponta de compaixão: neste caso, a sua acção teria uma motivação emocional, e não uma motivação baseada num sentido do dever.

A maior parte dos filósofos morais concordaria com a ideia de Kant de que o interesse-próprio não é uma motivação própria para a acção moral. Mas muitos discordariam da sua ideia de o facto de alguém sentir ou não uma emoção como a compaixão ser irrelevante para a nossa avaliação das suas acções. Contudo, para Kant, a única motivação aceitável para a acção moral era o sentido do dever.

Uma razão pela qual Kant se concentrou tanto nas motivações das acções, em vez de nas suas consequências, foi o facto de acreditar que todas as pessoas podiam ser morais. Uma vez que só é razoável ser moralmente responsável por coisas sobre as quais se exerce algum controlo — ou, na formulação de Kant, uma vez que «o dever implica o poder» — e porque as consequências das

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acções estão muitas vezes fora do nosso controlo, estas consequências não podem ser cruciais para a moral. Por exemplo, se, ao agir em função do meu sentido do dever, eu tentar salvar uma criança que está a afogar-se, mas acabar por, acidentalmente, a afogar, pode ainda considerar-se que agi moralmente, uma vez que os meus motivos eram do tipo apropriado: as consequências da minha acção teriam sido, neste caso, trágicas, mas irrelevantes no que respeita ao valor moral do que fiz.

Analogamente, como não temos necessariamente um controlo completo sobre as nossas reacções emocionais, estas também não podem ser essenciais para a moral. Se queremos uma moral acessível a todos os seres humanos conscientes, então, pensava Kant, a moral terá de apoiar-se na vontade e, sobretudo, no nosso sentido do dever.

2.4.2 Máximas

Kant descreveu a intenção que subjaz a qualquer acto humano como a máxima. A máxima é

o princípio geral subjacente à acção. Por exemplo, o Bom Samaritano poderia ter agido segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam se esperas ser recompensado pelo teu incómodo», ou então segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam quando tens um sentimento de compaixão». Contudo, se o Bom Samaritano agisse moralmente, tê-lo-ia feito provavelmente segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam porque é esse o teu dever».

2.4.3 O imperativo categórico

Kant acreditava que, como seres humanos racionais, temos certos deveres. Estes deveres são

categóricos: por outras palavras, são absolutos e incondicionais — deveres como «Deves sempre dizer a verdade» ou «Nunca deves matar ninguém». Estes deveres são válidos sejam quais forem as consequências que possam advir de se lhes obedecer. Kant pensava que a moral era um sistema de imperativos categóricos: mandamentos para agir de determinadas maneiras. Este é um dos aspectos mais distintivos da sua ética. Ele contrastou os deveres categóricos com os hipotéticos. Um dever hipotético é um dever como «Se queres ser respeitado, deves dizer a verdade», ou «Se não queres ir para a prisão, não deves matar ninguém». Os deveres hipotéticos dizem-nos o que devemos ou não fazer se quisermos alcançar ou evitar um dado objectivo. Kant pensava que só existia um imperativo categórico básico: «Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer como leis universais.» Por outras palavras, age apenas segundo uma máxima que quererias aplicar a toda a gente. Este princípio é conhecido como princípio da universalizabilidade.

Apesar de Kant ter dado várias versões diferentes do imperativo categórico, esta formulação é a mais importante e tem sido extraordinariamente influente. Iremos examiná-la mais detalhadamente.

2.4.4 Universalizabilidade

Kant pensava que, para que uma acção fosse moral, a máxima subjacente teria de ser

universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria a todas as outras pessoas em circunstâncias análogas. Não devemos erigir-nos numa excepção, mas antes ser imparciais. Assim, por exemplo, se o leitor roubar um livro, agindo segundo a máxima «Rouba sempre que fores demasiado pobre para comprar o que queres», e para que este seja um acto moral, esta máxima teria de aplicar-se a qualquer outra pessoa que estivesse na sua situação. Claro que isto não significa que qualquer máxima que possa ser universalizável seja, por essa razão, uma máxima moral. É óbvio que muitas máximas triviais, tais como «Deita sempre a língua de fora a pessoas

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mais altas do que tu», podem facilmente ser universalizáveis, apesar de terem pouco ou nada a ver com a moral. Outras máximas universalizáveis, como a máxima sobre o roubo que usei no parágrafo anterior, podem, mesmo assim, ser consideradas imorais.

Esta noção de universalizabilidade é uma versão da chamada regra de ouro do cristianismo: «Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti.» Alguém que agisse segundo a máxima «Sê um parasita, vive sempre à custa de outras pessoas», não estaria a agir moralmente, uma vez que seria impossível universalizar a máxima. Tentá-lo seria enfrentar a questão: «E se toda a gente fizesse isso?» Se todas as pessoas fossem parasitas, não sobraria ninguém para ser parasitado. A máxima não passa o teste de Kant e por isso não pode ser uma máxima moral.

Por outro lado, podemos facilmente universalizar a máxima «Nunca tortures bebés». E certamente possível e desejável que todos obedeçam a esta ordem, apesar de poderem não o fazer. Aqueles que não lhe obedecerem e torturarem bebés estarão a agir imoralmente. Com máximas como esta, a noção de universalizabilidade de Kant dá claramente uma resposta consonante com as intuições incontestadas da maior parte das pessoas acerca da rectidão.

2.4.5 Meios e fins

Outra das versões de Kant do imperativo categórico era «Trata as outras pessoas como fins em si, nunca como meios». Esta é outra forma de dizer que não devemos usar as outras pessoas e que devemos, ao invés, reconhecer a sua humanidade: o facto de serem pessoas com arbítrio e desejos próprios. Se alguém for simpático consigo só porque sabe que o leitor pode dar-lhe um emprego, estará a tratá-lo como um meio de obter esse emprego, e não como uma pessoa, um fim em si. E claro que, se alguém for simpático consigo porque acontece gostar de si, isso nada terá a ver com a moral.

2.5 CRÍTICAS À ÉTICA KANTIANA

2.5.1 É vazia

A teoria ética de Kant, e sobretudo a sua noção de universalizabilidade dos juízos morais, é

por vezes criticada por ser vazia. Isto significa que a sua teoria só nos oferece um enquadramento que revela a estrutura dos juízos morais sem ajudar em nada os que estão perante tomadas de decisão morais efectivas. Dá pouca ajuda às pessoas que tentam decidir o que devem fazer.

Esta crítica negligencia a versão do imperativo categórico que nos ensina a tratar as pessoas como fins, e nunca como meios. Nesta última formulação, Kant dá, sem dúvida, algum conteúdo à sua teoria moral. Mas, mesmo combinando a tese da universalizabilidade com a formulação dos meios e dos fins, a teoria de Kant não oferece soluções satisfatórias para muitas questões morais.

Por exemplo, a teoria de Kant não consegue dar facilmente conta dos conflitos entre deveres. Se, por exemplo, eu tenho o dever de dizer sempre a verdade e também o de proteger os meus amigos, a teoria de Kant não me poderá mostrar o que deverei fazer quando estes deveres entram em conflito. Se um louco com um machado me perguntasse onde está o meu amigo, a minha primeira reacção seria mentir-lhe. Dizer a verdade seria fugir ao meu dever de proteger o meu amigo. Mas, por outro lado, segundo Kant, dizer uma mentira, mesmo numa situação-limite como esta, seria uma acção imoral: tenho o dever absoluto de nunca mentir.

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2.5.2 Actos imorais universalizáveis

Outro ponto fraco, relacionado com o anterior, que algumas pessoas detectam na teoria de Kant é o facto de, aparentemente, permitir algumas acções obviamente imorais. Por exemplo, aparentemente, uma máxima como «Mata qualquer pessoa que te estorve» poderia ser consistentemente universalizada. E, no entanto, esta máxima é claramente imoral. Mas este tipo de crítica não consegue ser uma crítica a Kant: ignora a versão do imperativo categórico em termos de meios e fins, uma vez que a contradiz claramente. Matar alguém que nos estorva dificilmente é tratar essa pessoa como um fim em si: não mostra consideração pelos seus interesses.

2.5.3 Aspectos implausíveis

Apesar de grande parte da teoria de Kant ser plausível — especialmente a ideia de respeitar

os interesses das outras pessoas — , tem alguns aspectos implausíveis. E m primeiro lugar, parece justificar algumas acções absurdas, tal como dizer a um louco com um machado onde o nosso amigo se encontra, em vez de o afastar, mentindo-lhe.

Em segundo lugar, o papel que a teoria dá a emoções tais como a compaixão, a simpatia e a piedade parece inadequado. Kant afasta tais emoções c o m o irrelevantes para a moral: a única motivação apropriada para a acção moral é o sentido do dever. Sentir compaixão pelos mais necessitados — apesar de, de certos pontos de vista, poder ser digno de louvor — não tem, para Kant, nada a ver com a moral. Pelo contrário, muitas pessoas pensam que há emoções distintamente morais — tais como a compaixão, a simpatia e o remorso — e separá-las da moral, como Kant tentou fazer, será ignorar um aspecto central do comportamento moral.

E m terceiro lugar, a teoria não dá atenção às consequências da acção. Isto significa que idiotas bem intencionados que, involuntariamente, causem várias mortes em consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant, uma vez que seriam primariamente julgados pelas suas intenções. Mas, em alguns casos, as consequências das acções parecem relevantes para uma apreciação do seu valor moral: pense como se sentiria em relação a uma babysitter que tentasse secar o seu gato no microondas. Contudo, para ser justo com Kant a este respeito, é verdade que ele considera condenáveis alguns tipos de incompetência.

Os que acham convincente este último tipo de críticas às teorias deontológicas verão muito provavelmente o que há de apelativo no tipo de teoria ética conhecido como consequencialismo.

2.6 CONSEQUENCIALISMO

O termo «consequencialismo» é usado para descrever teorias éticas que ajuízam da rectidão ou não de uma acção, não através das intenções do autor da acção, mas antes das consequências da acção. Enquanto Kant afirmaria que dizer uma mentira será sempre errado, sejam quais forem os possíveis benefícios que daí possam resultar, um consequencialista julgaria o acto de mentir através dos seus resultados efectivos ou previstos.

2.7 UTILITARISMO

O utilitarismo é o tipo mais bem conhecido de teoria ética consequencialista. O seu mais famoso

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defensor foi John Stuart Mill (1806-1873). O utilitarismo baseia-se no pressuposto de que o objectivo último de toda a actividade humana é (num certo sentido) a felicidade. Esta perspectiva é conhecida como hedonismo. Um utilitarista define o «bem» como «seja o que for que trouxer a maior felicidade global». Isto é, por vezes, conhecido como o princípio da maior felicidade ou princípio da utilidade. Para um utilitarista, a boa acção pode ser calculada, em quaisquer circunstâncias, examinando as consequências prováveis dos vários cursos possíveis de acção. A boa acção é a que tiver mais probabilidades de trazer a maior felicidade nas circunstâncias em causa (ou, pelo menos, mais felicidade do que infelicidade), seja ela qual for.

O utilitarismo tem de lidar com consequências prováveis, porque habitualmente é extremamente difícil, se não mesmo impossível, prever os resultados possíveis de uma acção específica: por exemplo, insultar pessoas provoca habitualmente infelicidade, mas a pessoa que estamos a insultar pode ser afinal um masochista que tem imenso prazer em ser insultado.

2.8 CRÍTICAS AO UTILITARISMO

2.8.1 Dificuldades de cálculo

Apesar de os princípios utilitaristas poderem parecer apelativos, há muitas dificuldades que

se levantam quando tentamos pô-los em prática.

E extremamente difícil medir a felicidade e comparar a felicidade de pessoas diferentes. Quem decidirá se o enorme prazer do sádico ultrapassa ou não o sofrimento da sua vítima? Ou como se compara o prazer que um entusiasta do futebol tem quando a sua equipa marca um golo brilhante com as deleitosas vibrações de um devoto da ópera que ouve uma ária favorita? E como se comparam estes tipos de prazer com sensações de carácter mais físico, tais como as que se obtêm com o sexo e a alimentação?

Jeremy Bentham (1748-1832), um dos primeiros utilitaristas, pensava que, em princípio, tais comparações poderiam ser feitas. Para ele, a origem da felicidade era irrelevante. A felicidade era apenas um estado de espírito bem-aventurado: prazer e ausência de dor. Apesar de ocorrer com diferentes intensidades, era sempre do mesmo tipo e, portanto, devia ter peso nos cálculos utilitaristas, independentemente da forma como era obtido. No que chamou o seu «cálculo da felicidade» estabeleceu directrizes para fazer comparações entre prazeres, tendo em conta características como a sua intensidade, duração, tendência para dar origem a novos prazeres e assim por diante.

Contudo, John Stuart Mill achou que a abordagem de Bentham era grosseira: em seu lugar sugeriu uma distinção entre os chamados prazeres elevados e prazeres baixos. Mill argumentou que qualquer pessoa que tenha conhecido os prazeres elevados (que eram, na sua perspectiva, sobretudo intelectuais), iria automaticamente preferi-los aos chamados prazeres baixos (que eram sobretudo físicos). No esquema de Mill, os prazeres elevados contavam muito mais no cálculo da felicidade do que os baixos: por outras palavras, ele avaliava os prazeres de acordo não só com a sua qualidade, como também com a sua quantidade. Mill argumentou que seria certamente preferível ser um Sócrates triste, mas sábio, a um ignorante feliz, mas tolo, uma vez que os prazeres de Sócrates seriam de um género mais elevado do que os do tolo.

Mas isto soa a elitismo. E uma justificação intelectual para as suas próprias preferências

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particulares e os interesses e valores da sua classe social. O facto é que continua a ser extremamente difícil calcular quantidades relativas de felicidade. E, na verdade, este problema não estaria completamente resolvido mesmo que aceitássemos a divisão de Mill entre os prazeres elevados e os baixos.

Uma dificuldade de cálculo mais básica ocorre quanto à decisão do que irá contar como os efeitos de uma acção particular. Se alguém bate numa criança porque ela se portou mal, a questão de saber se esta foi uma acção moral ou não depende inteiramente das consequências da acção. Mas devemos nós contar unicamente os efeitos imediatos de bater na criança, ou ter em conta os efeitos a longo prazo? Se optarmos por esta última alternativa, podemos acabar por tentar contrabalançar coisas como o desenvolvimento emocional da criança (e até mesmo, talvez, os efeitos sobre os seus futuros filhos) com a felicidade resultante para a criança de se evitarem situações potencialmente perigosas em resultado do castigo. Os efeitos de qualquer acção podem prolongar-se extraordinariamente no futuro e só raramente há uma fronteira óbvia.

2.8.2 Casos problemáticos

Outra objecção ao utilitarismo defende que este pode justificar muitas acções que

habitualmente são consideradas imorais. Por exemplo, se pudesse mostrar-se que enforcar publicamente um inocente teria o efeito benéfico directo de reduzir os crimes violentos, por actuar como um factor de dissuasão, causando assim, no cômputo geral, mais prazer do que dor, um utilitarista seria obrigado a dizer que enforcar o inocente era a coisa moralmente correcta a fazer. Mas tal conclusão repugna ao nosso sentido de justiça. Claro que um sentimento de repugnância em relação a algumas das suas conclusões não demonstra que existe algo de errado com a teoria utilitarista. E de supor que um utilitarista inflexível aceitaria a conclusão facilmente e sem se queixar. Contudo, estas consequências desagradáveis devem fazer-nos ser cautelosos quanto à aceitação do utilitarismo como teoria moral completamente satisfatória.

Os utilitaristas que, como Bentham, acreditam que a felicidade é unicamente um estado de espírito bem-aventurado ficam sujeitos a outra objecção. A sua teoria sugere que o mundo seria moralmente melhor se se misturasse no abastecimento de água uma droga como a Ecstasy, que provocasse alterações no estado de espírito, desde que isso aumentasse o prazer global. No entanto, quase toda a gente acha que uma vida com menos momentos bem-aventurados, mas com a possibilidade de escolher como os atingir, seria preferível a esta situação e que a pessoa que misturasse a droga ao fornecimento de água teria feito algo imoral.

Considere outro caso difícil para o utilitarista. Ao passo que Kant afirma que devemos manter as nossas promessas sejam quais forem as consequências de o fazer, os utilitaristas calculariam a felicidade provável que resultaria, em cada caso, de manter ou faltar às promessas, agindo depois em conformidade com o resultado do cálculo. Os utilitaristas poderiam muito bem concluir que, nos casos em que soubessem que os seus credores se haviam esquecido de uma dívida e que não seria provável que alguma vez se lembrassem dela, seria moralmente correcto não pagar a dívida. A maior felicidade de quem fica a dever, em função do seu aumento de riqueza, pode muito bem ultrapassar qualquer infelicidade que sentisse em relação a enganar os outros. E o credor não sentiria, presumivelmente, nenhuma ou quase nenhuma infelicidade, uma vez que se teria esquecido da dívida.

Mas, em tais casos, a integridade pessoal parece constituir um aspecto importante da interacção humana. Efectivamente, muitas pessoas estariam dispostas a achar que dizer a verdade, pagar dívidas, ser honesto nas nossas relações com os outros, etc., constituem exemplos centrais de comportamento moral. Para essas pessoas, o utilitarismo, com a sua rejeição do conceito de deveres

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absolutos, é uma teoria moral inadequada.

2.9 UTILITARISMO NEGATIVO

O utilitarismo tem como pressuposto a ideia de que a acção moralmente boa é, em qualquer

circunstância, a que produz a maior felicidade global. Mas talvez isto coloque excessiva ênfase na felicidade. Evitar a dor e o sofrimento é um objectivo muito mais importante do que alcançar mais felicidade do que infelicidade. Certamente que um mundo no qual ninguém fosse particularmente feliz, mas no qual ninguém sofresse dor extrema, seria mais apelativo do que um mundo no qual algumas pessoas sofressem uma infelicidade extrema, compensada pelo facto de muitas outras pessoas beneficiarem de grande contentamento e felicidade.

Uma forma de enfrentar esta objecção é transformar o utilitarismo no que é habitualmente conhecido como utilitarismo negativo. O princípio básico do utilitarismo negativo é a ideia de que a melhor acção em quaisquer circunstâncias não é a que produz mais felicidade do que infelicidade para o maior número de pessoas possível, mas antes a que produz a menor quantidade geral de infelicidade. Por exemplo, um utilitarista negativo rico poderia perguntar-se se seria melhor deixar todo o seu dinheiro a um pobre gravemente doente, vítima de um extremo sofrimento, que seria consideravelmente aliviado por esta oferta, ou dividi-lo por mil pessoas moderadamente felizes, cada uma das quais veria a sua felicidade aumentar ligeiramente com esta oferta. Um utilitarista normal iria calcular qual das acções produziria mais felicidade do que infelicidade para o maior número de pessoas; um utilitarista negativo procuraria apenas minimizar o sofrimento. Logo, ao passo que um utilitarista normal dividiria provavelmente o dinheiro pelas mil pessoas moderadamente felizes, uma vez que isso iria maximizar a felicidade, o utilitarista negativo deixaria o dinheiro à pessoa gravemente doente, minimizando assim o sofrimento.

Mas este utilitarismo negativo está, contudo, sujeito a muitas das dificuldades de cálculo que se levantam ao utilitarismo normal. E está também sujeito a críticas próprias.

2.10 CRÍTICA AO UTILITARISMO NEGATIVO

2.10.1 Destruição de toda a vida

A melhor maneira de eliminar todo o sofrimento no mundo seria eliminar toda a vida

sensível. Se não existissem coisas vivas capazes de sentir dor, não existiria dor. Se fosse possível conseguir este resultado de forma indolor, talvez através de uma enorme explosão atómica, então, pelo princípio do utilitarismo negativo, esta seria uma acção moralmente correcta. Mesmo que o processo envolvesse alguma dor, esta seria provavelmente ultrapassada pelos benefícios a longo prazo no que respeita à eliminação da dor. No entanto, esta conclusão dificilmente é aceitável. No mínimo, o utilitarismo negativo precisa de ser reformulado de forma a poder evitar tal conclusão.

2.11 UTILITARISMO DAS REGRAS

Alguns filósofos sugeriram outra versão modificada da teoria, conhecida como utilitarismo das regras, como uma forma de contornar a objecção que afirma que o utilitarismo normal (também conhecido como utilitarismo dos actos) tem muitas consequências desagradáveis. Esta teoria procura combinar os melhores aspectos do utilitarismo dos actos com os melhores aspectos das

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éticas deontológicas.

Os utilitaristas das regras, em vez de avaliarem separadamente as consequências de cada acção, adoptam regras gerais acerca dos géneros de acções que geralmente produzem maior felicidade para o maior número de pessoas. Por exemplo, uma vez que, em geral, castigar pessoas inocentes produz mais infelicidade do que felicidade, os utilitaristas das regras adoptariam a regra «nunca castigues os inocentes», apesar de poderem existir casos particulares nos quais o castigo de inocentes produziria mais felicidade do que infelicidade — tal como quando actua como um forte factor de dissuasão contra o crime violento. Analogamente, um utilitarista das regras defenderia que devemos cumprir as promessas porque, em geral, isto produz mais felicidade do que infelicidade.

O utilitarismo das regras tem a grande vantagem prática de tornar desnecessário fazer complicados cálculos de cada vez que estamos confrontados com uma decisão moral. Contudo, numa situação na qual sabemos que quebrar uma promessa terá como resultado mais felicidade do que se a honrássemos, e se as nossas simpatias morais básicas tiverem contornos utilitaristas, parece despropositado mantermo-nos fiéis a uma regra em vez de tratar esse caso específico unicamente segundo os seus méritos.

2.12 TEORIA DA VIRTUDE

A teoria da virtude baseia-se em grande parte na Ética a Nicómaco, de Aristóteles, sendo por

isso por ve zes conhecida como neo-aristotelismo («neo» quer dizer «novo»). Ao contrário dos kantianos e dos utilitaristas, que se concentram tipicamente na rectidão ou não de acções particulares, os teóricos da virtude concentram-se no carácter e estão interessados na vida da pessoa como um todo. A questão central para os teóricos da virtude é «Como devo viver?». A resposta por eles dada a esta questão é: cultive as virtudes. Só cultivando as virtudes poderemos prosperar como seres humanos.

2.12.1 Prosperar

De acordo com Aristóteles, toda a gente quer prosperar. A palavra grega usada para «prosperar» era eudaimonia, por vezes traduzida por «felicidade». Mas esta tradução pode gerar confusões, uma vez que Aristóteles acreditava que podíamos ter muito prazer físico, por exemplo, sem alcançar a eudaimonia. A eudaimonia aplica-se a toda uma vida, e não apenas a estados particulares em que nos podemos encontrar em certos momentos. Talvez «verdadeira felicidade» seja uma tradução melhor, mas dá a ideia errada de que a eudaimonia é um estado de espírito de bem-aventurança que se alcança, em vez de ser uma forma de viver a vida com sucesso. Aristóteles acreditava que certas formas de vida promoviam a prosperidade, tal como certas formas de cuidar de uma cerejeira farão que cresça, floresça e dê frutos.

2.12.2 As virtudes

Aristóteles defendia que a maneira de prosperar como ser humano é cultivar as virtudes.

Mas o que é uma virtude? E um padrão de comportamento e sentimento: uma tendência para agir de certa maneira e desejar e sentir certas coisas em certas situações. Ao contrário de Kant, Aristóteles pensava que ter as emoções apropriadas era essencial para a arte de viver bem. Uma virtude não é um hábito irreflectido; ao invés, implica um juízo inteligente sobre a resposta apropriada à situação em que nos encontramos.

Uma pessoa que tenha a virtude de ser generosa sentir-se-ia generosa e agiria generosamente nas situações apropriadas. Isto envolveria ajuizar a situação e a sua resposta como apropriadas. Uma pessoa virtuosa, colocada na situação do Bom Samaritano, sentiria compaixão pelo homem

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abandonado no caminho, ao mesmo tempo que agiria caridosamente em relação a ele. Um samaritano que se limitasse a ajudar a vítima por ter previsto um benefício futuro para si mesmo não estaria a agir virtuosamente, uma vez que a generosidade implica dar sem pensar no benefício próprio.

Se o Samaritano tivesse chegado no momento em que os ladrões atacavam a sua desventurada vítima, e se tivesse a virtude da coragem, teria vencido o medo e enfrentado os ladrões. Ser corajoso é, em parte, ser capaz de vencer o medo.

Virtudes como a generosidade e a coragem são, pensam os teóricos da virtude, necessárias para que qualquer ser humano viva bem. Isto pode dar a impressão de que uma pessoa virtuosa poderia escolher escrupulosamente num catálogo de virtudes aquelas que quereria desenvolver, ou de que alguém que tivesse uma única virtude muito desenvolvida poderia ser virtuosa. Contudo, isto seria um mal-entendido. Para Aristóteles, uma pessoa virtuosa é alguém que harmonizou todas as virtudes: elas têm de ser incorporadas na estrutura da vida da pessoa virtuosa.

2.13 CRÍTICAS À TEORIA DA VIRTUDE

2.13.1 Que virtudes devemos adoptar?

Uma grande dificuldade da teoria da virtude é estabelecer que padrões de comportamento,

desejo e sentimento devem contar como virtudes. A resposta do teórico da virtude é: aquelas virtudes de que os seres humanos carecem para prosperar. Mas isto não oferece, na verdade, muita ajuda. Os teóricos da virtude apresentam muitas vezes listas de virtudes tais como a benevolência, a honestidade, a coragem, a generosidade e a lealdade, etc., analisando-as com algum detalhe. Mas, uma vez que não existe completa coincidência entre as suas várias listas, há espaço para debater o que deve ser incluído. E nem sempre é claro com que fundamentos se elege algo como virtude.

O perigo consiste na possibilidade de os teóricos da virtude se limitarem a redefinir os seus preconceitos e formas de vida preferidas como virtudes e as actividades de que não gostam como vícios. Uma pessoa que gosta de boa comida e bebida pode declarar que o estímulo subtil das papilas gustativas faz parte essencial de uma boa vida humana, sendo portanto uma virtude gostar de boa comida e bebida. Um monógamo pode declarar a fidelidade a um parceiro sexual uma virtude; um teórico da virtude sexualmente promíscuo pode defender a virtude da independência sexual. Assim, a teoria da virtude pode ser usada como uma barreira intelectual atrás da qual os preconceitos são sub-repticiamente introduzidos. Além disso, se o teórico da virtude optar por aceitar apenas aquelas formas de comportamento, desejo e sentimento tipicamente consideradas virtuosas naquela sociedade em particular, a teoria surge como essencialmente conservadora, com pouco alcance para mudar essa sociedade em termos morais.

2.13.2 Natureza humana

Outra crítica à teoria da virtude é o facto de pressupor a existência de uma coisa a que chama

a natureza humana, existindo por isso padrões gerais de comportamento e sentimento apropriados para todos os seres humanos. Contudo, esta ideia tem sido posta em causa por muitos filósofos que acreditam ser um erro grave presumir a existência de uma natureza humana. Regressarei a este tema mais à frente, na secção sobre o naturalismo.

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2.14 ÉTICA APLICADA

Até agora, neste capítulo, esbocei três tópicos básicos de teoria ética. E óbvio que estes não são os únicos tipos de teoria ética, mas são os mais importantes. Vejamos agora como os filósofos aplicam realmente as suas teorias a decisões morais reais, e não apenas imaginadas. Para ilustrar os géneros de considerações relevantes em ética aplicada, iremos concentrar-nos num tema ético, nomeadamente o tema da eutanásia ou morte misericordiosa.

2.15 EUTANÁSIA

A eutanásia é habitualmente definida como morte misericordiosa. A questão de saber se a eutanásia é justificável surge tipicamente em relação às pessoas muito velhas e cronicamente doentes, especialmente as que estão em grande sofrimento. Se, por exemplo, alguém está a sofrer e não tem nenhumas perspectivas de viver uma vida que valha a pena, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou até, talvez, administrar uma droga letal? Esta é uma questão ética prática, uma questão que os médicos são muitas vezes obrigados a enfrentar. Tal como acontece com a maior parte da ética aplicada, nem todas as questões filosóficas que se levantam em relação à eutanásia são de carácter ético. Para começar, há várias distinções importantes que podemos fazer entre tipos de eutanásia. Em primeiro lugar, há a eutanásia voluntária — quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo. Geralmente, trata-se de uma forma de suicídio assistido. Em segundo lugar, há a eutanásia involuntária — quando o paciente não deseja morrer, mas o seu desejo é ignorado. Em muitos casos, isto é equivalente a assassínio. Em terceiro lugar, há a eutanásia não voluntária — quando o paciente não está consciente ou em posição de exprimir o seu desejo. Nesta secção iremos concentrar a nossa atenção no tema da moralidade da eutanásia voluntária. A teoria ética geral que uma pessoa adopta determina obviamente a sua reacção a questões específicas. Assim, é provável que um cristão que aceite a teoria ética baseada no dever, esboçada no início deste capítulo, responda a questões acerca da eutanásia de forma diferente da de alguém que aceite a teoria consequencialista de John Stuart Mill — o utilitarismo. Um cristão teria provavelmente dúvidas quanto à justificação moral da eutanásia voluntária porque parece contradizer o mandamento «Não matarás». Contudo, as coisas podem não ser assim tão simples. Poderá existir um conflito entre este mandamento e o mandamento do Novo Testamento acerca de amar o próximo. Se uma pessoa está a sofrer muito e deseja morrer, pode ser um acto de amor ajudá-la a acabar com a sua vida. U m cristão teria de decidir qual destes dois mandamentos tem mais força e agir em conformidade.

Analogamente, alguém que adopta a teoria ética de Kant pode sentir-se no dever de nunca matar. Matar alguém parece contradizer a perspectiva de Kant segundo a qual devemos tratar as outras pessoas como fins em si e nunca como meios para atingir fins — devemos respeitar a sua humanidade. Mas esta mesma versão do imperativo categórico poderia, no caso da eutanásia voluntária, proporcionar uma justificação moral a favor de acabar com a vida de alguém, se isso for o que o paciente quiser e, no entanto, não o puder fazer sem ajuda.

Um utilitarista veria a questão de forma muito diferente. Para um utilitarista, a dificuldade não consistiria num conflito de deveres, mas na forma de calcular os efeitos dos vários cursos de acção possíveis à nossa disposição. Fosse qual fosse o curso de acção que causasse a maior felicidade ao maior número, ou pelo m e n o s mais felicidade do que infelicidade, seria a moralmente correcta. O utilitarista consideraria as consequências para o paciente. Se o paciente continuasse a viver, teria grande sofrimento e, provavelmente, morreria, em qualquer caso, dentro de pouco tempo. Se o paciente morresse em consequência de um acto de eutanásia, o sofrimento terminaria, tal como terminaria toda a possibilidade de felicidade. Contudo, estes não são os únicos efeitos a ter em consideração. Há vários efeitos secundários. Por exemplo, a morte do

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paciente por eutanásia poderia implicar violar a lei, de forma que a pessoa que ajudasse o paciente a morrer poderia correr o risco de ser levado a tribunal. Isto levanta também a questão da moralidade de violar a lei em geral. Outro efeito secundário de praticar a eutanásia é a possibilidade de tornar mais fácil aos médicos sem escrúpulos matar pacientes fingindo que estão a cumprir os seus desejos. Os oponentes de todos os tipos de eutanásia fazem notar muitas vezes que as técnicas de extermínio de Hitler foram pela primeira vez testadas em vítimas de um programa de eutanásia involuntária. Talvez qualquer acto individual de eutanásia voluntária torne mais fácil a alguém implantar uma política de eutanásia involuntária. Um utilitarista ponderaria este tipo de consequências possíveis, de forma a poder decidir se o acto de eutanásia em causa seria moralmente justificado. Como esta breve discussão de um problema ético prático mostra, raramente há respostas fáceis acerca do que devemos fazer. E, no entanto, somos frequentemente forçados a proferir juízos morais. Os desenvolvimentos modernos da tecnologia e da genética dão constantemente origem a novas questões éticas acerca da vida e da morte. Na ciência médica, o desenvolvimento da possibilidade da fertilização in vitro e da engenharia genética levanta questões éticas difíceis; o mesmo acontece com os grandes avanços tecnológicos, como os ocorridos no campo da informática, que permitem vigiar e aceder a informações pessoais numa escala nunca antes imaginada. A epidemia da SIDA trouxe um largo espectro de questões éticas acerca de quando é aceitável forçar alguém a submeter-se aos testes de despistagem da síndrome. A clarificação das abordagens possíveis a tais problemas não pode deixar de ser útil. Mas continua a ser um facto que as decisões éticas são as mais difíceis e as mais importantes das nossas decisões. A responsabilidade pelas nossas escolhas repousa, em última análise, em cada um de nós.

2.16 ÉTICA E METAÉTICA

Os três tipos de teoria ética que examinámos até agora (a baseada nos direitos, a

consequencialista e a da virtude) são exemplos de teorias de primeira ordem. Isto é, são teorias acerca de como devemos agir. Os filósofos morais interessam-se também por questões de segunda ordem: questões acerca não do que devemos fazer, mas do estatuto das teorias éticas. Esta teorização acerca das teorias éticas é habitualmente conhecida como metaética. Uma teoria metaética típica pergunta: «Que quer dizer 'bem' no contexto moral?» Considerarei de seguida três exemplos de metateorias: naturalismo ético, relativismo e emotivismo.

2.17 NATURALISMO

A questão metaética de saber se as chamadas teorias éticas naturalistas são aceitáveis tem

sido uma das mais discutidas no século XX. Uma teoria ética naturalista é uma teoria baseada no pressuposto de que os juízos éticos emergem directamente de factos que podem ser descobertos pelas ciências — muitas vezes, factos acerca da natureza humana.

A ética utilitarista passa de uma descrição da natureza humana para uma perspectiva acerca de como devemos agir. Idealmente, o utilitarismo usaria méto dos científicos para medir a qualidade e a quantidade de felicidade de cada pessoa, de forma a poder mostrar o que é moralmente bom e o que é moralmente mau. Ao invés, a ética kantiana não está tão intimamente presa à psicologia humana: os nossos deveres categóricos seguem-se supostamente de considerações lógicas, e não psicológicas.

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2.18 CRÍTICAS AO NATURALISMO

2.18.1 Distinção facto/valor

Muitos filósofos acreditam que todas as teorias éticas naturalistas se baseiam num erro: a

incapacidade de reconhecer que factos e valores são coisas fundamentalmente diferentes. Os que se opõem ao naturalismo — os antinaturalistas — defendem que nenhuma descrição factual alguma vez conduz automaticamente a qualquer juízo de valor: são sempre necessários argumentos adicionais. Isto é por vezes conhecido como a lei de Hume, em homenagem a David Hume, um dos primeiros a fazer notar que os filósofos morais passam muitas vezes, sem argumentos adicionais, de discussões sobre «o que é» para discussões sobre «o que deve ser».

Os antinaturalistas defendem que é impossível oferecer os argumentos adicionais necessários para se poder passar sem sobressaltos dos factos aos valores, ou, como se diz por vezes, do «ser» para o «dever ser». Factos e valores constituem domínios diferentes e não existe conexão lógica entre, por exemplo, a felicidade humana e o valor moral. Seguindo G. E. Moore (18731958), os antinaturalistas usam por vezes o termo falácia naturalista para descrever o alegado erro de argumentar dos factos para o valor (uma falácia é um tipo de mau argumento).

Um argumento que os antinaturalistas usam para sustentar as suas posições é conhecido como argumento da questão em aberto.

2.18.2 O argumento da questão em aberto

Este argumento, usado pela primeira vez por G. E. Moore, é na verdade apenas uma maneira

de tornar mais claras as crenças que as pessoas efectivamente têm em relação à ética. E uma forma de mostrar que, pela maneira como pensamos acerca de termos como «bem» e «rectidão», quase todos nós já rejeitámos a abordagem naturalista.

O argumento é o seguinte: primeiro, tome-se qualquer afirmação factual da qual supostamente se seguem conclusões éticas. Por exemplo, pode ter sido um facto que, de todas as escolhas à disposição do Bom Samaritano, ajudar o homem roubado seria a que causaria mais felicidade ao maior número de pessoas. Numa análise utilitarista — uma forma de naturalismo ético — seguir-se-ia logicamente que ajudar o homem seria portanto uma acção moralmente boa. Contudo, um antinaturalista, usando o argumento da questão em aberto, faria notar que não há nada de logicamente inconsistente em dizer «É provável que esta acção dê origem à maior felicidade para o maior número, mas será ela a coisa moralmente correcta a fazer?». Se esta versão de naturalismo fosse verdadeira, não valeria a pena fazer tal pergunta: a resposta seria óbvia. Tal como as coisas são, argumentam os antinaturalistas, trata-se de uma questão que continua em aberto.

Um antinaturalista defenderia que poderia fazer-se o mesmo tipo de pergunta acerca de qualquer situação na qual a descrição de qualidades naturais dê supostamente origem, automaticamente, a uma conclusão ética. O argumento da questão em aberto é uma forma de os antinaturalistas sustentarem o seu lema: «O 'dever ser' não se segue do 'ser'.»

2.18.3 Não existe natureza humana

Outros filósofos, como Jean-Paul Sartre (1905-1980) na conferência O Existencialismo E

Um Humanismo, atacaram de outra forma as éticas naturalistas — pelo menos o género de ética

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naturalista que afirma ser a moralidade determinada por factos acerca da natureza humana. Estes filósofos argumentaram que é um erro presumir a existência de uma coisa como a natureza humana. Isto, afirmam eles, é uma forma de auto-ilusão, uma negação da grande responsabilidade que cada um de nós tem. Cada um tem de escolher por si próprio os seus valores, não existindo respostas simples às questões éticas. Não podemos determinar o que devemos fazer a partir de uma descrição científica do mundo; no entanto, todos temos de tomar decisões éticas. Um aspecto da condição humana é o facto de termos de fazer estes juízos de valor, mas sem quaisquer directrizes exteriores a nós. O naturalismo em ética é uma negação auto-enganadora desta liberdade de escolhermos por nós mesmos.

2.19 RELATIVISMO

E uma verdade incontroversa que pessoas de diferentes sociedades têm costumes diferentes

e diferentes ideias acerca do bem e do mal morais. Não há consenso mundial sobre a questão de saber que acções são moralmente boas e moralmente más, apesar de existir uma convergência considerável sobre estas matérias. Se tivermos em consideração o quanto as ideias morais mudaram, quer de lugar para lugar, quer ao longo do tempo, pode ser tentador pensar que não existem factos morais absolutos e que, pelo contrário, a moral é sempre relativa à sociedade na qual fomos educados. Segundo esta perspectiva, uma vez que a escravatura era moralmente aceitável para a maior parte dos Gregos antigos, apesar de o não ser para a maior parte dos Europeus de hoje em dia, a escravatura seria moralmente boa para os Gregos antigos, apesar de ser moralmente má para os Europeus contemporâneos. Esta perspectiva, conhecida como relativismo moral, faz que a moral seja apenas a descrição dos valores adoptados por uma sociedade em particular, num certo momento do tempo. Trata-se de uma perspectiva metaética acerca da natureza dos juízos morais. Os juízos morais só podem ser avaliados como verdadeiros ou falsos relativamente a uma sociedade particular. Não há juízos morais absolutos: são todos relativos. O relativismo moral contrasta fortemente com a perspectiva de que algumas acções são absolutamente boas ou más — uma perspectiva defendida, por exemplo, por muitas pessoas que acreditam que a moralidade é constituída pelos mandamentos prescritos por Deus à humanidade. Os relativistas juntam muitas vezes esta perspectiva da moralidade à crença de que, porque a moralidade é relativa, nunca devemos interferir com os hábitos de outras sociedades, uma vez que não existe uma perspectiva neutra a partir da qual possamos ajuizar. Esta pers pectiva tem sido especialmente popular junto dos antropólogos, talvez em parte porque tiveram muitas vezes contacto directo com a destruição causada noutras sociedades pela importação selvagem de valores ocidentais. Quando se acrescenta ao relativismo moral este componente, indicando como nos devemos comportar em relação a outras sociedades, obtém-se o que é habitualmente conhecido como relativismo normativo.

2.20 CRÍTICAS AO RELATIVISMO MORAL

2.20.1 Serão os relativistas inconsistentes?

Os relativistas morais são por vezes acusados de inconsistência, uma vez que defendem que

todos os juízos morais são relativos, ao mesmo tempo que querem que acreditemos que a própria teoria do relativismo moral é absolutamente verdadeira. Isto só é um problema sério para um relativista moral que seja também um relativista acerca da verdade, isto é, alguém que acha que a verdade absoluta é coisa que não existe: só existem verdades relativas a sociedades particulares. Este tipo de relativismo não pode defender nenhuma teoria como absolutamente verdadeira.

No entanto, os relativistas normativos estão certamente sujeitos à acusação de inconsistência. Eles acreditam simultaneamente que todos os juízos morais são relativos à nossa

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sociedade e que as sociedades não devem interferir umas com as outras. Mas esta segunda crença é certamente um exemplo de um juízo moral absoluto, um juízo completamente incompatível com a premissa básica do relativismo normativo. Esta é uma crítica devastadora para o relativismo normativo.

2.20.2 O que conta como sociedade?

Os relativistas morais são geralmente vagos acerca do que pode ou não contar como sociedade. Por exemplo, no Reino Unido contemporâneo há sem dúvida membros de subculturas que acreditam ser moralmente aceitável usar, com fins recreativos, drogas proibidas. A que ponto estará o relativista preparado para dizer que os membros destas subculturas formam uma sociedade separada, podendo portanto dizer-se que têm a sua própria moral, imune à crítica de outras culturas? Não há uma resposta óbvia a esta questão. Não há crítica moral dos valores de uma sociedade

Ainda que se possa responder à crítica anterior, levanta-se outra dificuldade com o relativismo moral. Não parece dar a possibilidade de crítica moral aos valores centrais de uma sociedade. Se os juízos morais se definem em termos dos valores centrais dessa mesma sociedade, nenhum crítico destes valores centrais pode usar argumentos morais contra ela. Numa sociedade na qual a perspectiva dominante seja a de que as mulheres não devem poder votar, qualquer pessoa que sugerisse o direito de voto para as mulheres estaria a sugerir algo imoral relativamente aos valores dessa sociedade.

2.21 EMOTIVISMO

Outra teoria metaética importante é conhecida como emotivismo ou não cognitivismo. Os emotivistas, como A. J. Ayer (1910-1988) no capítulo 6 de Linguagem, Ver dade e Lógica, defendem que as afirmações éticas não significam nada. Não exprimem quaisquer factos; o que exprimem é a emoção do locutor. Os juízos morais não têm nenhum significado literal: são apenas expressões de emoção, como resmungos, bocejos ou gargalhadas. Logo, quando alguém diz «A tortura está errada» ou «Devemos dizer a verdade», está a fazer pouco mais do que mostrar o que sente em relação à tortura e à honestidade. O que dizem não é verdadeiro nem falso: é mais ou menos o mesmo que gritar «Abaixo!» perante a tortura e «Viva!» perante a honestidade. Na verdade, tem-se chamado por vezes ao emotivismo a teoria do abaixo/viva. Tal como quando uma pessoa grita «Abaixo!» ou «Viva!» não está geralmente apenas a mostrar como se sente, mas também a tentar encorajar as outras pessoas a partilhar o seu sentimento, também, com as afirmações morais, o locutor está frequentemente a tentar persuadir alguém a pensar da mesma maneira acerca do tema em causa.

2.22 CRÍTICAS AO EMOTIVISMO

2.22.1 A discussão moral é impossível

Uma das críticas ao emotivismo é que, se fosse verdadeiro, toda a discussão moral seria impossível. O mais parecido com uma discussão moral a que poderíamos chegar seria uma situação em que duas pessoas expressassem as suas emoções uma à outra: o equivalente à situação em que uma grita «Abaixo!» e a outra «Viva!» Mas, alega esta crítica, existem debates sérios de temas morais; logo, o emotivismo é falso.

Contudo, um emotivista não veria esta crítica como uma ameaça à teoria. Usam-se muitos tipos diferentes de argumentos nos chamados debates morais. Por exemplo, ao discutir a questão

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ética prática de saber se o aborto voluntário é ou não moralmente aceitável, o que está em questão pode ser em parte uma questão factual. O que está a ser discutido pode ser a questão de saber com quantas semanas um feto seria capaz de sobreviver fora do útero. Esta seria uma questão científica e não ética. Ou então, algumas pessoas, aparentemente empenhadas num debate ético, podem estar preocupadas com a definição de termos éticos como «bem moral», «mal moral», «responsabilidade», etc.: o emotivista admitiria que tal debate poderia ter significado. Só os verdadeiros juízos morais, como «E errado matar pessoas», são meramente expressões da emoção.

Assim, um emotivista concordaria que existe de facto algum debate com significado acerca de questões morais: a discussão só se torna uma expressão sem significado da emoção quando os intervenientes proferem verdadeiros juízos morais. Consequênciasperigosas

Uma segunda crítica ao emotivismo é que, mesmo que seja verdadeiro, terá provavelmente consequências perigosas. Se toda a gente acabasse por acreditar que uma frase como «O assassínio é mau» era equivalente a afirmar «Assassínio — puh!», então, defende esta crítica, a sociedade entraria em colapso.

Uma perspectiva, como a kantiana, de que os juízos morais se aplicam a toda a gente — de que são impessoais — oferece boas razões para que as pessoas obedeçam a um código moral aceite de maneira geral. Mas, se tudo o que estamos a fazer quando proferimos u m juízo moral é exprimir as nossas emoções, não parece ser muito importante quais os juízos morais que escolhemos : poderíamos igualmente dizer «Torturar crianças é moralmente bom», se isso correspondesse ao nosso sentimento; e ninguém pode empreender uma discussão moral significativa connosco acerca deste juízo: o melhor que alguém pode fazer é exprimir os seus próprios sentimentos morais no que respeita à questão.

Contudo, isto não é verdadeiramente um argumento contra o emotivismo, uma vez que não põe a teoria em causa directamente: indica apenas os perigos para a sociedade que a aceitação generalizada do emotivismo acarretaria, o que é outra questão.

2.23 CONCLUSÃO

Como pode ver-se desta breve discussão, a filosofia moral é uma vasta e complicada área da filosofia. Os filósofos americanos e britânicos do pós-guerra concentraram-se sobretudo em questões metaéticas. Contudo, têm recentemente voltado progressivamente as suas atenções para problemas éticos práticos, como a moralidade da eutanásia, do aborto, da investigação com embriões, das experiências com animais e de muitos outros temas. Apesar de a filosofia não oferecer respostas fáceis a estas ou quaisquer outras questões morais, fornece um vocabulário e um enquadramento no qual essas questões podem ser discutidas racionalmente.

2.24 LEITURA COMPLEMENTAR

The Moral Philosophers, de Richard Norman (Oxford, Clarendon Press, 1983), é uma

excelente introdução à história da ética: inclui sugestões detalhadas de leitura.

A melhor introdução ao utilitarismo é Utilitarianism and Its Critics, organizado por Jonathan Glover (Nova Iorque, Macmillan, 1990). Inclui excertos dos textos mais importantes de Bentham e Mill, assim como textos mais recentes sobre o utilitarismo e as suas variantes. Parte do material é bastante avançado, mas as introduções de Glover a cada secção são muito úteis.

Sobre o tema da ética aplicada, Causing Death and Saving Lives, de Jonathan Glover

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(Londres, Penguin, 1977) e Practical Ethics, de Peter Singer (Cambridge, Cambridge University Press, 2.a ed., 1993), são ambos interessantes e acessíveis. Applied Ethics ( O x f o r d , Oxford University Press, 1986), organizado por Peter Singer, é uma excelente selecção de ensaios.

Ethics: Inventing Right and Wrong, de J. L. Mackie (Londres, Penguin, 1977), e Contemporary Moral Philosophy, de G. J. Warnock (Londres, Macmillan, 1967), são livros introdutórios sobre filosofia moral cuja leitura é compensadora, apesar de nenhum dos dois ser fácil.

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3 POLÍTICA

O que é a igualdade? O que é a liberdade? Serão estes objectivos que valham a pena? Como

podem atingir-se? Que justificação pode dar-se para as restrições impostas pelo estado aos que violam a lei? Existem algumas circunstâncias nas quais d e v a m o s violar a lei? Estas são questões importantes para todas as pessoas. Os filósofos políticos têm tentado clarificá-las e responder-lhes. A filosofia política é um tema vasto, cruzando-se com a ética, a economia, a ciência política e a história das ideias. Os filósofos políticos escrevem geralmente em resposta às situações políticas nas quais se encontram. Nesta área, mais do que na maior parte das outras, o conhecimento do contexto histórico é importante para compreender os argumentos de um filósofo. Neste pequeno livro não há espaço, obviamente, para dar u m a imagem histórica. Para os que se interessarem pela história das ideias, a lista de leituras complementares, no final do capítulo, deverá ser útil.

Neste capítulo concentrar-me-ei nos conceitos políticos centrais de igualdade, democracia, liberdade, castigo e desobediência civil; e examinarei as questões filosóficas a que dão origem.

3.1 IGUALDADE

A igualdade é muitas vezes apresentada como um objectivo político, um ideal que vale a

pena tentar alcançar. Os que argumentam a favor de uma qualquer forma de igualdade são conhecidos como igualitaristas. A motivação para alcançar esta igualdade é habitualmente moral: pode basear-se na crença cristã de que somos todos iguais aos olhos de Deus, numa crença kantiana na racionalidade da igualdade de respeito de todas as pessoas ou, talvez, numa crença utilitarista de que tratar todas as pessoas como iguais é a melhor forma de maximizar a felicidade. Os igualitaristas defendem que os governantes devem procurar passar do reconhecimento da igualdade moral para a criação efectiva de algum tipo de igualdade nas vidas daqueles que governam.

Mas como devemos entender a «igualdade»? E claro que os seres humanos nunca poderiam ser iguais em todos os aspectos. As pessoas diferem em inteligência, beleza, valor atlético, altura, cor do cabelo, local de nascimento, sentido da moda e em muitos outros aspectos. Seria ridículo defender que as pessoas devem ser absolutamente iguais em todos os aspectos. A completa uniformidade é pouco apelativa. Os igualitaristas não propõem um mundo povoado por clones. No entanto, apesar dos absurdos óbvios de interpretar a igualdade como completa uniformidade, alguns adver sários do igualitarismo insistem em descrevê-lo desta forma. Este é um exemplo da falácia do homem de palha: cria-se um alvo fácil apenas para o deitar abaixo. Eles pensam que refutam o igualitarismo ao apontar aspectos importantes que diferenciam as pessoas ou fazendo notar que, mesmo que uma quase uniformidade fosse alcançada, as pessoas recuariam muito rapidamente para qualquer coisa semelhante à sua situação anterior. Contudo, tal ataque só tem êxito contra uma caricatura da teoria, deixando incólume a maior parte das versões de igualitarismo.

Assim, a igualdade é sempre relativa a certos aspectos, e não a todos os aspectos. Assim, quando alguém afirma ser um igualitarista, é importante descobrir em que sentido o é. Por outras palavras, o termo «igualdade», no contexto político, não quer dizer praticamente nada a não ser que exista uma explicação sobre o que devia ser partilhado de forma mais igualitária e por quem. Algumas das coisas que os igualitaristas muitas vezes defendem que devem ser igualitariamente, ou mais igualitariamente, distribuídas são o dinheiro, o acesso ao emprego e o poder político. Apesar de os gostos das pessoas diferirem consideravelmente, todas estas coisas podem contribuir significativamente para uma vida aprazível e que valha a pena. Distribuir estes bens de forma mais igualitária é uma maneira de conceder igualdade de respeito a todos os seres humanos.

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3.2 DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO

Um igualitarista radical poderia defender que o dinheiro deveria ser igualitariamente

distribuído por todos os seres humanos adultos, recebendo toda a gente exactamente os mesmos proventos. Na maior parte das sociedades, o dinheiro é necessário para as pessoas viverem; sem ele não podem obter comida, abrigo ou roupas. A redistribuição poderia justificar-se, por exemplo, numa base utilitarista, como a forma que mais provavelmente maximizaria a felicidade e minimizaria o sofrimento.

3.3 CRÍTICAS À DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO

3.3.1 Impraticável e de curta duração

É razoavelmente óbvio que a distribuição igualitária do dinheiro é um objectivo inalcançável. As dificuldades práticas da distribuição igualitária do dinheiro numa cidade seriam imensas; distribuir o dinheiro igualitariamente por todos os seres humanos adultos seria um pesadelo logístico. Logo, em termos realistas, o máximo a que esta forma de igualitarismo pode almejar será uma distribuição mais igualitária do dinheiro, talvez através do estabelecimento de um salário fixo distribuído a todos os adultos.

Mas, mesmo que conseguíssemos aproximar-nos substancialmente de uma distribuição igualitária da riqueza, seria sempre de curta duração. Pessoas diferentes iriam usar o seu dinheiro de formas diversas; os inteligentes, os traiçoeiros e os fortes ficariam rapidamente com a riqueza dos fracos, dos tolos e dos ignorantes. Algumas pessoas esbanjariam o seu dinheiro; outros poupá-lo-iam. Algumas pessoas poderiam perder o seu dinheiro no jogo assim que o recebessem; outras poderiam roubar para aumentar o seu quinhão. A única forma de manter qualquer coisa parecida com uma distribuição igualitária da riqueza seria através da intervenção enérgica vinda de cima. Isto implicaria, sem dúvida, a intromissão desagradável na vida das pessoas e limitaria a sua liberdade de fazerem o que querem.

3.3.2 Pessoas diferentes merecem quantitativos diferentes

Outra objecção a qualquer tentativa de alcançar uma distribuição igualitária do dinheiro

defende que diferentes pessoas merecem diferentes recompensas financeiras pelo trabalho desempenhado e pela sua contribuição para com a sociedade. Assim, por exemplo, defende-se por vezes que os grandes patrões da indústria merecem os enormes salários que pagam a si próprios devido à sua contribuição, relativamente maior, para a nação: eles tornam possível o trabalho a outras pessoas e aumentam o bem-estar econômico geral de todo o país no qual operam.

Mesmo que não mereçam salários mais elevados, talvez os salários mais elevados sejam necessários como incentivo para que as suas funções sejam desempenhadas eficientemente, sendo os seus custos ultrapassados pelos benefícios gerais colhidos pela sociedade: sem eles poderia existir muito menos para toda a gente. Sem o incentivo de altos salários, ninguém que fosse competente para desempenhar esse cargo o aceitaria.

Neste caso encontramos uma diferença fundamental entre os igualitaristas e os que acreditam que as grandes desigualdades de riqueza entre as pessoas são aceitáveis. Uma crença básica da maior parte dos igualitaristas é que só são aceitáveis diferenças moderadas de riqueza entre as pessoas e que, idealmente, essas diferenças deveriam corresponder a diferentes carências. Isto sugere outra crítica ao princípio da distribuição igualitária do dinheiro.

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3.3.3 Pessoas diferentes têm diferentes carências

Algumas pessoas precisam de mais dinheiro para viver do que outras. Alguém que só consiga sobreviver se lhe for ministrado diariamente um tratamento médico dispendioso teria poucas probabilidades de viver muito tempo numa sociedade em que cada pessoa tivesse apenas uma parte igual da riqueza total dessa sociedade, a não ser, claro, que a sociedade fosse particularmente rica. Um método de distribuição baseado na carência individual estaria mais próximo do objectivo de respeitar a humanidade comum do que um método de distribuição igualitária do dinheiro.

3.3.4 Ninguém tem o direito de redistribuir

Alguns filósofos argumentaram que, independentemente de quão apelativo possa ser o

objectivo da redistribuição do dinheiro, este violaria o direito de as pessoas preservarem a sua propriedade e que essa violação é sempre moralmente errada. Estes filósofos defendem que os direitos ultrapassam sempre quaisquer outras considerações, como as utilitaristas. Robert Nozick (1938-), no seu livro Anarchy, State and Utopia, toma esta posição, sublinhando o direito básico de preservar a propriedade legalmente adquirida.

Estes filósofos ficam com o problema de dizer precisamente o que são estes direitos e qual a sua origem. Por «direitos», eles não querem dizer direitos legais, apesar de tais direitos poderem coincidir com os direitos legais numa sociedade justa: os direitos legais são determinados pelo governo ou pela autoridade competente. Os direitos em questão são os direitos naturais, que deveriam, idealmente, orientar a formação de leis. Alguns filósofos resistiram à ideia de que tais direitos naturais poderiam existir: é famosa a atitude de Bentham, afastando a noção como um «disparate emproado» («nonsense on stilts»). No mínimo, um partidário da ideia de que o estado não tem o direito de redistribuir a riqueza terá de poder explicar a origem dos supostos direitos de propriedade naturais, em vez de se limitar a afirmar a sua existência. É de assinalar que os partidários dos direitos naturais não têm conseguido explicar a sua origem.

3.4 IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NO EMPREGO

Muitos igualitaristas acreditam que todas as pessoas deviam ter as mesmas oportunidades,

apesar de não poder existir uma distribuição igualitária da riqueza. Uma área importante na qual há grandes desigualdades de tratamento é a do emprego. A igualdade de oportunidades no emprego não significa que todas as pessoas devem poder ter o emprego que querem, independentemente das suas capacidades: a ideia de que qualquer pessoa que queira deve poder tornar-se dentista ou cirurgião, por pior que seja a sua coordenação visual-motora, é claramente absurda. O que a igualdade de oportunidades quer dizer é igualdade de oportunidades para todos os que possuam as capacidades e competências relevantes para desempenhar a tarefa em questão. Isto pode ainda ser encarado como uma forma de desigualdade de tratamento, uma vez que algumas pessoas tiveram a sorte de nascer com mais potencial genético do que outras ou receberam melhor formação e por isso têm vantagens, logo à partida, numa competição aparentemente igualitária no mercado de emprego. Contudo, a igualdade de oportunidades no emprego é habitualmente defendida como um dos aspectos de um movimento que visa uma maior igualdade de vários géneros, tais como a igualdade de acesso à educação.

A exigência de igualdade de oportunidades no emprego é em grande parte motivada pela vasta discriminação racial e sexual existente em algumas profissões. Os igualitaristas defendem que devem ser dadas as mesmas oportunidades a todas as pessoas com qualificações relevantes que procurem emprego. Ninguém deve ser discriminado com base no sexo ou na raça, excepto nos

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casos em que precisamente a raça ou o sexo possam ser consideradas qualificações relevantes para o emprego em questão: por exemplo, seria impossível a uma mulher doar esperma; logo, não representaria uma violação do princípio da igualdade de oportunidades desqualificar qualquer mulher que apresentasse a sua candidatura.

Alguns igualitaristas vão mesmo mais longe do que a simples exigência da existência de igualdade de tratamento nos concursos para empregos: defendem que é importante eliminarmos desequilíbrios existentes em certas profissões, como, por exemplo, a predominância de juízes em detrimento de juízas. O método por eles proposto para compensar os desequilíbrios existentes é conhecido por discriminação positiva.

3.5 DISCRIMINAÇÃO POSITIVA

A discriminação positiva significa recrutar activamente pessoas de grupos previamente em

situação de desvantagem. Por outras palavras, a discriminação positiva trata deliberadamente os candidatos de forma desigual, favorecendo pessoas de grupos que tenham sido vítimas habituais de discriminação. O objectivo de tratar as pessoas desta forma desigual é acelerar o processo de tornar a sociedade mais igualitária, acabando não apenas com desequilíbrios existentes em certas profissões, mas proporcionando também modelos que possam ser seguidos e respeitados pelos jovens dos grupos tradicionalmente menos privilegiados.

Assim, por exemplo, existem no Reino Unido mais professores universitários de Filosofia do sexo masculino do que do feminino, apesar de muitas mulheres estudarem Filosofia ao nível da licenciatura. Um partidário da discriminação positiva argumentaria que, em vez de esperar que esta situação mude gradualmente, devemos actuar categoricamente e discriminar favoravelmente as candidatas a professoras nas universidades. Isto significa que, se uma mulher e um homem se candidatassem ao mesmo lugar e tivessem mais ou menos a mesma habilitação, deveríamos escolher a mulher. Mas a maior parte dos defensores da discriminação positiva iria mais longe do que isto, defendendo que, mesmo que a mulher fosse um candidato pior do que o homem, desde que fosse competente para executar as funções associadas ao lugar, deveríamos empregá-la a ela, preterindo o homem. A discriminação positiva é apenas uma medida temporária, até que a percentagem de membros do grupo tradicionalmente excluído reflicta mais ou menos a percentagem de membros deste grupo na população em geral. Em alguns países é ilegal; noutros é obrigatória.

3.6 CRÍTICAS À DISCRIMINAÇÃO POSITIVA

3.6.1 Anti-igualitária

O objectivo da discriminação positiva pode ser igualitário, mas algumas pessoas sentem que

a forma de a atingir é injusta. Para um igualitarista dedicado, um princípio de igualdade de oportunidades no emprego significa que se deve evitar qualquer forma de discriminação baseada em aspectos irrelevantes. O tratamento diferenciado de candidatos só pode basear-se nos atributos relevantes que estes possuam. No entanto, a justificação da discriminação positiva baseia-se no pressuposto de que, na maior parte dos empregos, coisas como o sexo, as preferências sexuais ou a origem racial dos candidatos não são relevantes. Logo, por mais apelativo que o resultado final da discriminação positiva possa ser, deveria ser inaceitável para alguém que esteja comprometido com a igualdade de oportunidades como um princípio fundamental.

Um defensor da discriminação positiva poderá responder que o estado de coisas atual é

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muito mais injusto em relação a membros de grupos em situação de desvantagem do que uma situação na qual a discriminação positiva seja geralmente praticada. Alternativamente, nos casos em que esta política extrema seja apropriada, as origens raciais ou o sexo dos candidatos podem de facto tornar-se qualificações para o desempenho das suas funções; isto porque parte da função de qualquer pessoa selecionada através desta forma seria agir como um modelo a seguir, para mostrar que aquelas funções podem ser desempenhadas por membros do seu grupo. Contudo, é discutível se esta última situação é realmente um caso de discriminação positiva: se estes atributos são relevantes, tomá-los em consideração aquando da seleção de pessoal não é realmente uma forma de discriminação, mas antes um ajustamento do que pensamos serem as qualidades mais importantes necessárias para desempenhar determinada função.

3.6.2 Pode conduzir ao ressentimento

Apesar de o objectivo da discriminação positiva ser criar uma sociedade na qual o acesso a certas profissões esteja distribuído de forma mais justa, na prática pode causar mais discriminação contra grupos em situação de desvantagem. Os que não conseguem ser contratados para um emprego determinado por não pertencerem a grupos em situação de desvantagem podem ficar ressentidos com os que obtêm empregos em grande parte por causa da sua origem sexual ou racial. Este é um problema sobretudo quando os empregadores admitem candidatos visivelmente incapazes de desempenhar bem as suas funções. Isto não só confirma os piores preconceitos dos seus empregadores e colegas, como acaba também por fazer deles maus modelos a seguir pelos outros membros do seu grupo. A longo prazo, isto pode destruir todo o movimento a favor da igualdade de acesso ao trabalho que a discriminação positiva procura atingir. Contudo, esta crítica pode ser anulada se se garantir ser relativamente alto o nível mínimo de capacidades de um candidato seleccionado em função da discriminação positiva.

3.7 IGUALDADE POLÍTICA: DEMOCRACIA

Outra área na qual se procura atingir a igualdade é a da participação política. A democracia é muito famosa como método de distribuir por todos os cidadãos parte do processo de tomada de decisão política. Contudo, a palavra «democracia» é usada de várias formas. Há duas perspectivas potencialmente diferentes de democracia que sobressaem. A primeira salienta a necessidade de os membros da população terem a oportunidade de participar no governo do estado, geralmente através da votação. A segunda salienta a necessidade de um estado democrático reflectir os verdadeiros interesses do povo, apesar de o próprio povo os poder ignorar. Nestas páginas concentrar-me-ei no primeiro tipo de democracia. Na Grécia antiga, uma democracia era uma cidade-estado governada pelo povo, e não por um pequeno grupo (uma oligarquia) ou por uma única pessoa (uma monarquia). A Atenas antiga é habitualmente considerada um modelo de democracia, mas seria um erro pensar que era governada pelo povo como um todo, uma vez que a participação não era permitida às mulheres, aos escravos e a muitos outros não cidadãos que residiam na cidade-estado. Nenhum estado democrático permite o voto a todos os que vivem sob o seu controlo, o que incluiria muitas pessoas incapazes de compreenderem o que estariam a fazer, como as crianças e os deficientes mentais graves. Contudo, um estado que negasse a participação política a uma grande parte do seu povo não teria hoje direito a intitular-se democrático.

3.8 DEMOCRACIA DIRETA

Os primeiros estados democráticos eram democracias directas; isto é, os que podiam votar discutiam e votavam cada assunto, em vez de elegerem representantes. As democracias directas só

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são exequíveis com um pequeno número de participantes ou quando as decisões a tomar são relativamente poucas. São imensas as dificuldades práticas de pôr um grande número de pessoas a votar sobre variadíssimos assuntos, apesar de ser possível que a comunicação electrónica acabe por permiti-lo. Mas, ainda que isto se conseguisse, para que nessa democracia se chegasse a decisões razoáveis, os eleitores teriam de perceber bem os assuntos em votação, uma condição que exigiria tempo e um programa de educação política. Pressupor que todos os cidadãos se mantêm a par dos assuntos relevantes é talvez esperar demasiado. As democracias actuais são representativas.

3.9 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

Numa democracia representativa realizam-se eleições nas quais os eleitores seleccionam os seus representantes preferidos. Estes representantes participam então no processo quotidiano de decisão, que pode estar, ele próprio, organizado segundo um tipo qualquer de princípios democráticos. Há várias formas de conduzir essas eleições gerais, exigindo algumas uma decisão maioritária. Outras formas, como é o caso da britânica, seguem um processo que permite que os representantes sejam eleitos ainda que a maioria do eleitorado não vote neles, desde que mais ninguém receba mais votos do que eles.

As democracias representativas constituem um governo do povo em alguns aspectos, mas não noutros. Constituem um governo do povo no sentido em que os que foram eleitos foram escolhidos pelo povo. Contudo, uma vez eleitos, os representantes do povo não estão geralmente obrigados a seguir os desejos do povo em tópicos específicos. Ter eleições frequentes é uma garantia contra o abuso de poder: os representantes que não respeitarem os desejos do eleitorado têm poucas probabilidades de ser reeleitos.

3.10 CRÍTICAS À DEMOCRACIA

3.10.1 Uma ilusão

Alguns teóricos, sobretudo os que foram influenciados por Karl Marx (1818-1883), têm

atacado as formas de democracia esboçadas acima por darem uma sensação meramente ilusória de participação na decisão política. Defendem estes teóricos que os processos eleitorais não garantem o governo do povo. Alguns eleitores podem não compreender quem defende melhor os seus interesses ou ser intrujados, através de discursos hábeis. Além disso, a variedade de candidatos oferecida na maior parte das eleições não dá aos eleitores uma escolha genuína. É difícil ver por que razão este tipo de democracia é tão elogiada, quando, tipicamente, acaba por significar escolher entre dois ou três candidatos com propostas políticas virtualmente impossíveis de distinguir. Isto, afirmam os marxistas, é mera «democracia burguesa», limitando-se a reflectir relações de poder já existentes, sendo estas, por sua vez, o resultado de relações econômicas. Enquanto estas relações de poder não forem alteradas, dar à população a hipótese de votar em eleições é uma perda de tempo.

3.10.2 Os eleitores não são especialistas

Outros críticos da democracia, dos quais se destaca Platão, fazem notar que as decisões políticas sólidas exigem um elevado grau de conhecimentos especializados, conhecimentos estes que os eleitores não têm. Assim, a democracia direta resultaria muito provavelmente num sistema político muito pobre, uma vez que o estado estaria nas mãos de pessoas com fracos conhecimentos e competências. Um argumento semelhante pode ser usado para atacar a democracia representativa. Muitos eleitores não estão em posição de avaliar a aptidão de certos candidatos.

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Uma vez que não estão em posição de avaliar as opções políticas, escolhem os seus representantes com base em atributos irrelevantes, tais como o aspecto físico ou o sorriso. Ou, então, o seu voto é determinado por preconceitos irrefletidos acerca de partidos políticos. Em resultado disso, muitos excelentes representantes potenciais não são eleitos, escolhendo-se muitos que são inadequados com base em qualidades inapropriadas que por acaso possuam.

Contudo, estes dados podem ser usados contra os detractores da democracia como um argumento a favor da educação dos cidadãos para a participação democrática, em vez de ser um argumento a favor do abandono da democracia. Mas, mesmo que isto não seja possível, pode ainda assim ser verdade que a democracia representativa seja, de todas as alternativas à nossa disposição, aquela que tem mais probabilidades de promover os interesses do povo.

3.10.3 O paradoxo da democracia

Eu acredito que a pena capital é bárbara e que jamais deveria existir num estado civilizado. Se num referendo sobre este tema eu votar contra a pena capital e, no entanto, a maioria decidir que esta deve ser adotada, fico diante de um paradoxo. Enquanto partidário dos princípios democráticos, acredito que a decisão da maioria deve ser seguida. Enquanto indivíduo com crenças fortes contra a pena capital, acredito que a pena capital nunca deve ser permitida. Assim, parece que, neste caso, acredito simultaneamente que a pena capital deve existir (em resultado da decisão da maioria) e que não deve existir (por causa das minhas crenças pessoais). Mas estas duas crenças são incompatíveis. E provável que qualquer pessoa partidária dos princípios democráticos fique perante um paradoxo semelhante quando se encontra em minoria.

Isto não enfraquece completamente a noção de democracia, mas chama a atenção, na verdade, para a possibilidade de conflitos entre a consciência e a decisão da maioria, algo que discutirei mais à frente, na secção da desobediência civil. Qualquer pessoa partidária dos princípios democráticos terá de decidir o peso relativo dado às crenças individuais e às decisões colectivas. Terá também de explicar o que significa ser «partidário de princípios democráticos».

3.11 LIBERDADE

Tal como a «democracia», a «liberdade» é uma palavra que tem sido usada de formas muito

diferentes. Há dois sentidos principais da palavra «liberdade» no contexto político: o negativo e o positivo. Estes dois sentidos foram identificados e analisados por Isaiah Berlin (1909-1997) num artigo famoso, «Two Concepts of Liberty».

3.12 LIBERDADE NEGATIVA

Uma definição de liberdade é «ausência de coerção». A coerção existe quando alguém nos

força a agir de certa maneira, ou quando nos impede de agir de certa maneira. Se ninguém exerce coerção sobre nós, então somos livres — neste sentido negativo de liberdade.

Se alguém nos prendeu e nos mantém presos, não somos livres. Nem somos livres se queremos deixar o país e o nosso passaporte for confiscado; nem se queremos viver abertamente uma relação homossexual e formos processados judicialmente por fazê-lo. A liberdade negativa consiste em não ter obstáculos nem imposições. Se ninguém nos impede activamente de fazer algo, então, a esse respeito, somos livres.

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A maioria dos governos restringe, de uma forma ou outra, a liberdade das pessoas. A justificação apresentada é geralmente a necessidade de proteger todos os membros da sociedade. Se todas as pessoas tivessem a liberdade de fazer tudo o que quisessem, os mais fortes e implacáveis prosperariam provavelmente à custa dos fracos. Contudo, muitos filósofos políticos liberais acreditam que deve existir uma área sacrossanta de liberdade individual de tal maneira que, desde que não estejamos a prejudicar mais ninguém, o governo não possa intervir. No seu ensaio Da Liberdade, por exemplo, John Stuart Mill defendeu energicamente que os indivíduos devem poder conduzir as suas próprias «experiências de vida» sem interferência do estado, desde que ninguém fique por isso prejudicado.

3.13 CRÍTICAS À LIBERDADE NEGATIVA

3.13.1 O que conta como prejuízo?

Na prática, pode ser difícil decidir o que conta como prejuízo para as outras pessoas. Incluirá, por exemplo, ofender outras pessoas? Se inclui, temos de excluir vários tipos de «experiências de vida», uma vez que ofendem um grande número de pessoas. Por exemplo, um vizinho especialmente pudico pode sentir-se ofendido por saber que um casal naturista da casa ao lado nunca usa roupas. Ou, já agora, o casal naturista pode sentir-se ofendido por saber que muitas pessoas usam roupas. Quer os naturistas quer os seus vizinhos podem sentir-se prejudicados pelos estilos de vida das outras pessoas. Mill não acreditava que ficar ofendido devesse contar como um prejuízo sério, mas não é fácil traçar a linha entre ficar ofendido e ficar prejudicado; por exemplo, muitas pessoas considerariam a blasfémia contra a sua religião muito mais prejudicial do que os danos físicos. Com que fundamentos poderemos dizer que estas pessoas estão erradas?

3.14 LIBERDADE POSITIVA

Alguns filósofos têm atacado a ideia de a liberdade negativa ser o tipo de liberdade que devemos procurar aumentar. Argumentam que a liberdade positiva é um objectivo político muito mais importante. A liberdade positiva é a liberdade de controlar a nossa própria vida. Somos livres, em sentido positivo, se controlarmos de facto as nossas vidas e não somos livres se não o fizermos, ainda que não estejamos de facto submetidos a qualquer tipo de constrangimento. A maior parte dos defensores do conceito positivo de liberdade acredita que a verdadeira liberdade consiste num tipo qualquer de auto-realização que resulta de as pessoas poderem fazer as suas próprias escolhas de vida.

Por exemplo, se um alcoólico for convencido, contra aquilo que lhe convém, a gastar todo o seu dinheiro numa pândega, representa esta atitude o exercício da sua liberdade? Intuitivamente, parece implausível, sobretudo se nos momentos em que está sóbrio o alcoólico se arrepende dessas patuscadas. Pelo contrário, temos tendência para pensar que o alcoólico estava sob o efeito do álcool: um escravo dos impulsos. Apesar de não existir constrangimento do ponto de vista da liberdade positiva, o alcoólico não é genuinamente livre.

Mesmo um defensor da liberdade negativa poderá argumentar que se deve exercer alguma coerção sobre os alcoólicos, tal como sobre as crianças, uma vez que nem as crianças nem os alcoólicos são completamente responsáveis pelas suas acções. Mas se alguém toma sistematicamente decisões disparatadas em relação à sua vida, desperdiçando todos os seus talentos, etc., temos, de acordo com os princípios de Mill, o direito de discutir com eles, mas não o de exercer a coerção para os conduzir a uma vida melhor. Tal coerção implicaria a limitação da sua liberdade negativa. Os que defendem um qualquer princípio de liberdade positiva poderiam

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argumentar que tal pessoa não é verdadeiramente livre até desenvolver o seu potencial e ultrapassar as suas tendências caprichosas. O passo que separa esta posição da defesa da coerção como um caminho para a liberdade genuína é muito pequeno.

Isaiah Berlin sustenta que a concepção positiva de liberdade pode ser usada para justificar todos os tipos de coerção injusta: os agentes do estado podem justificar-se, sempre que nos forçam a agir de certa forma, com o argumento de que estão a ajudar-nos a aumentar a nossa liberdade. De facto, Berlin sublinha que, historicamente, o conceito positivo de liberdade tem sido frequentemente usado de forma abusiva neste sentido. Não há nada de intrinsecamente errado com a concepção de liberdade positiva; acontece apenas que a história mostrou tratar-se de uma arma perigosa quando é mal usada.

3.15 SUBTRAIR A LIBERDADE: O CASTIGO

O que pode justificar que se subtraia a liberdade a alguém como uma forma de castigo? Por

outras palavras, que razões podem dar-se para se exercer a coerção sobre pessoas, tirando-lhes a liberdade no sentido negativo? Como vimos na secção anterior, a noção de liberdade positiva pode ser usada para justificar certas formas de coerção: certas pessoas só podem atingir a verdadeira liberdade quando as protegemos delas mesmas.

Os filósofos têm tentado justificar o castigo estatal de pessoas com base em quatro ideias principais: retribuição, dissuasão, protecção da sociedade e reabilitação da pessoa que sofre o castigo. A primeira é habitualmente defendida a partir de uma posição deontológica; as outras três são tipicamente defendidas com argumentos consequencialistas.

3.16 O CASTIGO COMO RETRIBUIÇÃO

Na sua forma mais simples, o retributivismo é a perspectiva segundo a qual aqueles que

violam a lei merecem o seu castigo, independentemente de existi rem ou não quaisquer consequências benéficas para eles ou para a sociedade. Aqueles que violam intencionalmente a lei merecem sofrer. Existem claramente muitas pessoas que não podem ser completamente responsáveis pela sua própria violação da lei, pelo que merecem um castigo mais moderado ou até, em casos extremos, tratamento, tal como acontece com os doentes mentais graves. Contudo, em geral, de acordo com uma teoria retributivista, o castigo justifica-se como uma resposta adequada à violação da lei. Além disso, a severidade do castigo deve reflectir a severidade do crime. Na sua forma mais simples («olho por olho», por vezes conhecida como lex talionis), o retributivismo exige uma resposta exactamente proporcional ao crime cometido. Em alguns crimes, como a chantagem, é difícil ver o que seria uma resposta adequada: não se pode esperar que o juiz condene o chantagista a seis meses de chantagem. Analogamente, é difícil de perceber como poderia punir-se de forma exactamente proporcional um pobre que tivesse roubado um relógio de ouro. Isto só constitui um problema para o princípio do olho por olho; com formas mais sofisticadas de retributivismo, o castigo não tem de espelhar o crime.

3.17 CRÍTICAS AO RETRIBUTIVISMO

3.17.1 Faz apelo a sentimentos baixos

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Grande parte da força do retributivismo deriva de sentimentos de vingança. A vingança é uma forma muito básica de resposta ao dano. Os oponentes do retributivismo reconhecem que este sentimento é muito comum, mas argumentam que o castigo estatal deve ter como base um princípio mais sólido do que o «pagar na mesma moeda». Contudo, os que defendem justificações híbridas do castigo incluem-no muitas vezes nas suas teorias.

3.17.2 Ignora os efeitos

A crítica principal ao retributivismo defende que este não dá atenção aos efeitos produzidos

pelo castigo no criminoso e na sociedade. Questões de dissuasão, reabilitação e protecção são irrelevantes. De acordo com os retributivistas, os criminosos merecem ser castigados quer isso tenha um efeito benéfico sobre eles quer não. Os consequencialistas objectam a esta ideia afirmando que nenhuma acção pode ser moralmente boa, a menos que tenha consequências benéficas; perante isto, os deontologistas poderão responder que, se uma acção se justifica moralmente, justificar-se-á sempre, sejam quais forem as suas consequências.

3.18 DISSUASÃO

Uma justificação comum do castigo defende que este desencoraja a violação da lei, quer

pela pessoa que é castigada, quer pelas outras pessoas que sabem que o castigo existe e que lhes será aplicado se violarem a lei. Se soubermos que poderemos acabar na prisão, defende este argumento, será mais improvável que enveredemos por uma carreira de ladrão do que seria se pensássemos que poderíamos não ser castigados. Isto justifica o castigo mesmo em relação aos que não serão reabilitados por ele: ver o castigo como um resultado do crime é mais importante do que a modificação do carácter da pessoa em causa. Este tipo de justificação centra-se exclusivamente nas consequências do castigo. O sofrimento dos que perdem a sua liberdade tem menos peso do que os benefícios sociais.

3.19 CRÍTICAS À DISSUASÃO

3.19.1 O castigo dos inocentes

Uma crítica muito séria à teoria dissuasiva do castigo defende que, pelo menos na sua forma mais simples, esta teoria poderia ser usada para justificar o castigo de pessoas completamente inocentes, ou inocentes em relação ao crime pelo qual são castigadas. Em algumas situações, castigar um bode expiatório, o qual muita gente acusa de ter cometido um certo crime, terá um efeito dissuasor muito forte noutras pessoas que terão considerado a hipótese de perpetrar crimes semelhantes, sobretudo se o público em geral continuar sem saber que a vítima do castigo está de facto inocente. Em tais casos, parece que teríamos justificação para castigar um inocente — uma consequência desagradável desta teoria. Qualquer teoria plausível da dissuasão terá de enfrentar esta objecção.

3.19.2 Não funciona

Alguns críticos do castigo como dissuasão argumentam que este, pura e simplesmente, não funciona. Mesmo os castigos extremos, tais como a pena de morte, não detêm os serial killers; castigos mais moderados, tais como multas e pequenos períodos de aprisionamento, não dissuadem os ladrões.

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Este tipo de crítica apoia-se em dados empíricos. A relação entre diferentes tipos de castigo e

as taxas de criminalidade é extremamente difícil de apurar, uma vez que existem muitos factores que podem distorcer a interpretação dos dados. Contudo, se pudesse mostrar-se conclusivamente que o castigo tinha pouco ou nenhum efeito dissuasor, isto seria um golpe devastador para este tipo específico de justificação do castigo.

3.20 PROTECÇÃO DA SOCIEDADE

Outra justificação do castigo, baseada nas suas alegadas consequências benéficas, sublinha a

necessidade de proteger a sociedade de pessoas que têm tendência para violar a lei. Se alguém arrombou uma casa, é provável que arrombe outras. Assim, a justificação estatal para os prender é o impedir a reincidência. Esta justificação é usada sobretudo no caso de crimes violentos, tais como a violação ou o assassínio.

3.21 CRÍTICAS À PROTEÇÃO DA SOCIEDADE

3.21.1 Só é relevante para alguns crimes

Alguns tipos de crimes, tais como a violação, podem ser cometidos repetidamente pela

mesma pessoa. Em tais casos, a restrição da liberdade do criminoso minimizará as hipóteses de o crime voltar a ser come tido. Contudo, outros crimes são isolados. Por exemplo, uma mulher ressentida durante toda a sua vida com o seu marido pode um dia reunir finalmente a coragem suficiente para lhe envenenar o muesli. Esta mulher pode não representar nenhuma ameaça para mais ninguém. Cometeu um crime muito sério, mas é um crime que provavelmente jamais voltará a cometer. Em relação a tal mulher, a proteção da sociedade não ofereceria nenhuma justificação para o seu castigo. Contudo, na prática não é fácil identificar os criminosos que não reincidirão.

3.21.2 Não funciona

Outra crítica a esta justificação do castigo defende que aprisionar os criminosos só protege a sociedade a curto prazo e que a longo prazo tem de facto como resultado uma sociedade mais perigosa, porque os presos ensinam uns aos outros como levar a melhor no mundo do crime. Assim, a menos que todos os crimes graves sejam punidos com a prisão perpétua, é improvável que a prisão possa proteger a sociedade.

Trata-se, uma vez mais, de um argumento empírico. Se aquilo que afirma for verdade, existem boas razões para combinar a proteção da sociedade com algumas tentativas de reabilitar os hábitos dos criminosos.

3.22 REABILITAÇÃO

Uma outra justificação para castigar quem viola a lei é a tendência que o castigo tem para

reabilitar os prevaricadores. Isto é, o castigo serve para mudar os seus caracteres de forma a não voltarem a cometer crimes depois de libertados. Nesta perspectiva, subtrair a liberdade pode servir como uma forma de tratamento.

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3.23 CRÍTICAS À REABILITAÇÃO

3.23.1 Só e relevante para alguns criminosos

Alguns criminosos não precisam de ser reabilitados. As pessoas que cometem crimes isolados não devem ser castigados de acordo com esta justificação, uma vez que é improvável que violem outra vez a lei. Além disso, alguns criminosos estão claramente para lá da reabilitação, pelo que também não valeria a pena castigá-los, presumindo que poderiam ser identificados. Este argumento não é em si uma crítica à teoria, mas um olhar mais detalhado sobre o que a teoria implica. Contudo, muitas pessoas acham que estas implicações são inaceitáveis. Não funciona

Os castigos existentes raramente reabilitam os criminosos. Contudo, nem todos os tipos de castigo estão condenados a falhar a este respeito. Este tipo de argumento empírico só seria fatal para a ideia do castigo como reabilitação se pudesse mostrar-se que tais tentativas de reabilitação nunca poderiam ser bem sucedidas. Contudo, existem pouquíssimas justificações que se centrem exclusivamente nos aspectos reabilitadores do castigo. As justificações mais plausíveis fazem da reabilitação um elemento da justificação, juntamente com a dissuasão e a protecção da sociedade. Estas justificações híbridas baseiam-se habitualmente em princípios morais consequencialistas.

3.24 DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Estudamos, até agora, as justificações para punir quem viola a lei. As razões para punir eram

morais. Mas poderá alguma vez a violação da lei ser moralmente aceitável? Nesta secção deito um olhar sobre um tipo particular de violação da lei que se justifica em termos morais: a desobediência civil.

Algumas pessoas argumentam que a violação da lei nunca se pode justificar: se não estamos satisfeitos com a lei, devemos tentar mudá-la através dos meios legais, como as campanhas, a redacção de cartas, etc. Mas há muitos casos em que tais protestos legais são completamente inúteis. Há uma tradição de violação da lei em tais circunstâncias conhecida por desobediência civil. A ocasião para a desobediência civil emerge quando as pessoas descobrem que lhes é pedido que obedeçam a leis ou a políticas governamentais que consideram injustas.

A desobediência civil trouxe mudanças importantes no direito e na governação. Um exemplo famoso é o movimento das sufragistas britânicas, que conseguiu publicitar o seu objectivo de dar o voto às mulheres através de uma campanha de desobediência civil pública que incluía o auto-acorrentamento das manifestantes. A emancipação limitada foi finalmente alcançada em 1918, quando foi permitido o voto às mulheres com mais de 30 anos, em parte devido ao impacte da primeira guerra mundial. No entanto, o movimento das sufragistas desempenhou um papel significativo na mudança da lei injusta que impedia as mulheres de participar em eleições supostamente democráticas. Mahatma Gandi e Martin Luther King foram ambos defensores apaixonados da desobediência civil. Gandi influenciou decisivamente a independência indiana através do protesto ilegal não violento, que acabou por conduzir ao fim da soberania britânica na índia; o desafio de Martin Luther King ao preconceito racial através de métodos análogos ajudou a garantir direitos civis básicos para os Negros americanos nos estados americanos do Sul. Outro exemplo de desobediência civil está patente na recusa de alguns americanos em participarem na Guerra do Vietname, apesar de serem requisitados pelo governo. Alguns americanos justificaram esta atitude afirmando acreditar que matar é moralmente errado, pensando por isso que era mais importante violar a lei do que lutar e possivelmente matar outros seres humanos. Outros havia que não objectavam a todas as guerras, mas sentiam que a guerra no Vietname era injusta e que sujeitava os civis a grandes riscos, sem nenhuma boa razão. A dimensão da oposição à guerra no

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Vietname acabou por conduzir os Estados Unidos à retirada. Sem dúvida que a violação pública da lei alimentou esta oposição.

A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação não violenta e pública da lei, concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os que agem nesta tradição de desobediência civil não violam a lei unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a atenção para uma lei injusta ou uma política moralmente objectável e para publicitar ao máximo a sua causa. Por isso é que estes protestos ocorrem habitualmente em lugares públicos, de preferência na presença de jornalistas, fotógrafos e câmaras de televisão. Por exemplo, um americano chamado para a guerra que deitasse fora a sua convocatória durante a Guerra do Vietname, escondendo-se de seguida do exército só por ter medo de ir para a guerra e por não querer morrer, não estaria a executar um acto de desobediência civil. Seria um acto de autopreservação. Se agisse da mesma maneira, não por causa da sua segurança pessoal, mas por motivos morais, mas que no entanto o fizesse em segredo, não tornando público este caso de nenhuma forma, continuaria a não poder considerar-se um acto de desobediência civil. Pelo contrário, outro americano convocado para a guerra que queimasse a sua convocatória em público perante câmaras da televisão, comunicando ao mesmo tempo à imprensa as razões que o levavam a pensar que o envolvimento americano no Vietname era imoral, estaria a cometer um acto de desobediência civil.

O objectivo da desobediência civil é, em última análise, mudar leis e políticas particulares, e não arruinar completamente o estado de direito. Os que agem na tradição da desobediência civil evitam geralmente todos os tipos de violência, não apenas porque pode arruinar a sua causa ao encorajar a retaliação, conduzindo assim a um agravamento do conflito, mas sobretudo porque a sua justificação para violar a lei é moral, e a maior parte dos princípios morais só permite que se prejudique outras pessoas em situações extremas, tal como quando somos atacados e temos de nos defender.

Os terroristas ou os combatentes pela liberdade (a maneira como lhes chamamos depende da simpatia que temos pelos seus objectivos) usam actos violentos com fins políticos. Tal como os que enveredam por actos de desobediência civil, também eles desejam mudar o estado de coisas existente, não para benefícios privados, mas para o bem geral, tal como este é por eles concebido; mas diferem nos métodos que estão preparados para usar para originar a mudança desejada.

Críticas à desobediência civil Não é democrática Presumindo que a desobediência civil ocorre num tipo qualquer de democracia, pode parecer não democrática. Se uma maioria de representantes democraticamente eleitos vota a favor de uma certa lei ou de uma certa política, violar a lei como protesto parece ir contra o espírito da democracia, sobretudo se só uma pequena minoria de cidadãos está envolvida no acto de desobediência civil. Certamente que o facto de ser provável que todas as pessoas achem uma ou outra política desagradável é apenas o preço a pagar por viver num estado democrático. Se a desobediência civil praticada por uma minoria for eficaz, parece dar a um pequeno número de pessoas o poder de contrariar a opinião da maioria. Isto parece profundamente antidemocrático. No entanto, se a desobediência civil não for eficaz, não parece valer a pena adoptá-la. Logo, nesta perspectiva, a desobediência civil ou é antidemocrática ou não vale a pena.

E importante darmo-nos conta, contra tal argumento, de que os actos de desobediência civil têm por objectivo salientar decisões ou práticas moralmente inaceitáveis. Por exemplo, o movimento a favor dos direitos cívicos, na América dos anos 60, através de manifestações muito publicitadas contra as leis a favor da segregação racial deram publicidade mundial ao tratamento injusto dos Americanos negros. Compreendida assim, a desobediência civil é uma técnica para que a maioria ou os seus representantes reconsiderem a sua posição sobre um tema específico, e não uma forma não democrática de mudar a lei ou a política. Derrapagem para a anarquia

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Outra objecção à desobediência civil faz notar que ela encoraja a violação da lei, o que poderia a longo prazo corroer o poder do governo e o estado de direito e que este risco ultrapassa decisivamente quaisquer possíveis benefícios a que possa dar origem. Uma vez colocado em causa o respeito pela lei, há o perigo de que resulte daí a anarquia. Este é um argumento da derrapagem, um argumento que sugere que, se dermos um passo numa certa direcção, não seremos capazes de parar um processo que terá um resultado obviamente desagradável. Tal como quando damos um passo para descer um declive escorregadio é quase impossível parar antes de chegar ao fim, o mesmo acontece, defendem algumas pessoas, se tornarmos aceitáveis alguns tipos menores de violação da lei: não seremos capazes de parar e, no fim, já ninguém respeitará a lei. Contudo, este tipo de argumento pode fazer que o resultado final pareça inevitável, quando na verdade o não é. Não há razão para acreditar na afirmação de que os actos de desobediência civil arruinarão o respeito pela lei, ou, para continuarmos com a metáfora do declive escorregadio, não há nenhuma razão para acreditar que não podemos parar num certo ponto e dizer: «Não avanço mais.» Na verdade, alguns defensores da desobediência civil argumentam que, longe de pôr em perigo o estado de direito, o que eles fazem revela um profundo respeito pela lei. Se alguém está preparado para ser castigado pelo estado por chamar a atenção para o que pensa ser uma lei injusta, isso revela que está comprometido com a posição geral de que as leis devem ser justas e respeitadas. Isto é muito diferente da violação da lei para benefício pessoal.

3.25 CONCLUSÃO

Neste capítulo discuti vários tópicos centrais de filosofia política. Subjacente a todos estes tópicos está a questão da relação das pessoas com o estado, em particular a origem de qualquer autoridade que o estado tenha sobre as pessoas, uma questão tratada directamente em muitas das leituras complementares recomendadas a seguir.

Os próximos dois capítulos centram-se sobre o nosso conhecimento e compreensão do mundo que nos rodeia, prestando especial atenção à questão de saber o que podemos aprender através dos sentidos.

3.26 LEITURA COMPLEMENTAR

Para os interessados na história da filosofia política, Great Political Thinkers, de Quentin

Skinner, Richard Tuk, William Thomas e Peter Singer (Oxford, Oxford University Press, 1992), oferece uma boa introdução à obra de Maquiavel, Hobbes, Mill e Marx. Recomendo também Political Thought from Plato to Nato, organizado por Brian Redhead (Londres, BBC Books, 1984).

Political Philosophy: An Introduction, de Jonathan Wolff (Oxford, Oxford University Press, 1996), é uma introdução minuciosa que aborda um vasto leque de temas nesta área da filosofia.

Practical Ethics, de Peter Singer (2.a ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1993), um livro que recomendei como leitura complementar para o capítulo 2, contém uma discussão da igualdade, incluindo a igualdade no emprego. O autor defende também a igualdade dos animais. The Sceptical Feminist, de Janet Radcliffe Richards (2.a ed., Londres, Penguin, 1994), é um estudo filosófico claro e incisivo de algumas questões morais e políticas acerca das mulheres, incluindo a questão da discriminação positiva no emprego.

Democracy, de Ross Harrison (Londres, Routledge, 1993), é uma lúcida introdução a um dos conceitos centrais da filosofia política. Combina um levantamento crítico da história da

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democracia com a análise filosófica do conceito tal como o usamos hoje.

Liberty, o r g a n i z a d o por D a v i d M i l l e r ( O x f o r d , Oxford University Press, Oxford Readings in Politics and Government, 1991), inclui um excerto do ensaio «Two Concepts of Liberty», de Isaiah Berlin. O Ensaio sobre a Liberdade (1859, trad. 1964), de John Stuart Mill, é a defesa clássica do liberalismo.

Civil Disobedience in Focus, organizado por Hugo A d a m Bedau (Londres, Routledge, 1991), é uma interessante colecção de artigos sobre este tópico, incluindo o texto «Letter from Birmingham City Jail», de Martin Luther King.

Para os que desejam estudar filosofia política mais detalhadamente e a um nível mais avançado, Contemporary Political Philosophy: An Introduction (Oxford, Oxford University Press, 1990), de Will Kymlicka, oferece uma avaliação crítica das tendências principais na filosofia política corrente. Algumas passagens são bastantes difíceis.

4 4 O MUNDO EXTERIOR

O nosso conhecimento básico do mundo exterior chega-nos através dos cinco sentidos: visão, audição, tacto, olfacto e gosto. Para quase toda a gente, a visão desempenha o papel principal. Sei como é o mundo exterior porque posso vê-lo. Se duvido da existência real do que vejo, posso, em geral, estender o braço e tocar-lhe para ter a certeza. Sei que tenho uma mosca na sopa porque posso vê-la e, se chegar a tanto, posso tocar-lhe e até prová-la. Mas qual é exactamente a relação entre o que penso ver e o que está de facto à minha frente? Poderei alguma vez ter a certeza acerca do que existe no mundo exterior? Poderei eu estar a sonhar? Os objectos continuam a existir quando ninguém os está a observar? Terei alguma vez experiência directa do mundo exterior? Todas estas questões são acerca de saber como adquirimos conhecimento das nossas imediações; pertencem ao ramo da filosofia conhecido por teoria do conhecimento ou epistemologia.

Neste capítulo examinaremos várias questões epistemológicas, concentrando-nos nas teorias da percepção.

4.1 REALISMO DE SENSO COMUM

O realismo de senso comum é a posição assumida pela maior parte das pessoas que não

estudaram filosofia. Admite a existência de objectos físicos — casas, árvores, carros, sardinhas, colheres de chá, bolas de futebol, corpos humanos, livros de filosofia, etc. — acerca dos quais podemos ter conhecimento directo através dos nossos cinco sentidos. Estes objectos físicos continuam a existir quer os estejamos a percepcionar, quer não. Além disso, estes objectos são mais ou menos como nos parecem ser: as sardinhas são de facto cinzentas e as bolas de futebol são de facto esféricas. Isto é assim porque os nossos órgãos dos sentidos — os olhos, os ouvidos, a língua, a pele e o nariz — são, em geral, fidedignos; dão-nos uma apreciação realista do que está realmente lá fora.

Contudo, apesar de ser possível viver a vida toda sem nunca questionar as crenças do realismo de senso comum acerca da percepção sensorial, esta perspectiva não é satisfatória. O realismo de senso comum não resiste satisfatoriamente aos argumentos cépticos acerca da

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fiabilidade dos sentidos. Nesta secção examinaremos vários argumentos cépticos que parecem enfraquecer o realismo de senso comum, antes de examinarmos quatro teorias da percepção mais sofisticadas: o realismo representativo, o idealismo, o fenomenismo e o realismo causal.

4.2 CEPTICISMO ACERCA DOS DADOS DOS SENTIDOS

O cepticismo é a perspectiva segundo a qual nunca podemos ter a certeza de nada; há

sempre algumas razões para duvidar mesmo das nossas crenças mais fundamentais acerca do mundo. Na filosofia, os argumentos cépticos procuram mostrar que as formas tradicionais de descobrir coisas acerca do mundo não são fidedignas e que não nos garantem o conhecimento do que realmente existe. Os argumentos cépticos das secções seguintes baseiam-se nos argumentos de Descartes patentes na primeira das suas Meditações.

4.3 O ARGUMENTO DA ILUSÃO

O argumento da ilusão é um argumento céptico que questiona a fiabilidade dos sentidos,

ameaçando assim enfraquecer o realismo de senso comum. Habitualmente, confiamos nos nossos sentidos, mas, por vezes, eles enganam-nos. Por exemplo, quase toda a gente já teve a experiência embaraçosa de parecer reconhecer um amigo à distância, para descobrir depois que estamos a acenar a um desconhecido. Uma vara direita parcialmente imersa em água pode parecer curva; uma maçã pode ter um sabor amargo se acabámos de comer qualquer coisa muito doce; vista de certo ângulo, uma moeda redonda pode parecer oval; os carris do comboio parecem convergir à distância; o tempo quente pode fazer que a estrada pareça tremeluzir; o mesmo vestido pode parecer carmesim na penumbra e escarlate à luz do Sol; a Lua parece tanto maior quanto mais baixa está no horizonte. Estas ilusões sensoriais, e outras análogas, mostram que os sentidos não são sempre completamente fidedignos: pa rece pouco provável que o mundo exterior seja exactamente como parece ser. O argumento da ilusão afirma que, porque os nossos sentidos nos enganam por vezes, nunca podemos ter a certeza, perante qualquer caso específico, que não nos estão a enganar nesse momento. Este é um argumento céptico porque desafia a nossa crença quotidiana — o realismo de senso comum — de que os sentidos nos dão conhecimento do mundo.

4.4 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DA ILUSÃO

4.4.1 Graus de certeza

Apesar de podermos cometer erros no que respeita à visão de objectos à distância sob

condições extraordinárias, existem certamente observações das quais não podemos duvidar seriamente. Por exemplo, não posso duvidar seriamente de que neste momento estou sentado à minha secretária a escrever estas palavras, de que tenho uma caneta na minha mão e de que existe um bloco de apontamentos à minha frente. Analogamente, não posso duvidar seriamente de que estou em Inglaterra, e não, por exemplo, no Japão. Há casos incontestáveis de conhecimento através dos quais aprendemos o conceito de conhecimento. Só podemos duvidar de outras crenças porque temos este pano de fundo de casos de conhecimento: sem estes casos incontroversos não teríamos nenhum conceito de conhecimento e não teríamos nada contra o qual pudéssemos contrastar crenças mais duvidosas.

Contra esta perspectiva, um céptico faria notar que eu poderia muito bem estar enganado

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quanto ao que parecem casos inquestionáveis de conhecimento: posso ter pensado, em sonhos, que estava acordado a escrever, quando de facto estava a dormir na minha cama. Logo, como posso afirmar que não estou a sonhar e que estou a escrever? Como posso afirmar que não estou deitado algures em Tóquio, sonhando que estou acordado em Inglaterra? Certamente que já tive sonhos mais estranhos do que isso. Existe alguma coisa na experiência do sonho que possa distingui-lo conclusivamente da experiência da vigília?

4.5 PODEREI ESTAR A SONHAR?

4.5.1 Não posso estar sempre a sonhar

Não faria sentido dizer que toda a minha vida é um sonho. Se eu estivesse sempre a sonhar,

não teria qualquer conceito de sonho: não teria nada com o qual contrastar o sonho, uma vez que não teria nenhum conceito de estar acordado. Só podemos dar sentido à ideia de uma nota falsa quando existem notas genuínas com as quais podemos compará-las; analogamente, a ideia de sonho só faz sentido quando podemos compará-lo com a vigília.

Isto é verdade, mas não destrói a posição céptica. O céptico não afirma que podemos estar sempre a sonhar, mas antes que em nenhum momento podemos ter a certeza se estamos ou não a sonhar.

4.5.2 Os sonhos são diferentes

Outra objecção à ideia de que poderia estar a sonhar que estou a escrever estas palavras

defende que a experiência que temos quando sonhamos é muito diferente daquela que possuímos durante a vigília e que, de facto, podemos saber se estamos a sonhar ou não através do exame da qualidade da nossa experiência. Os sonhos implicam muitos acontecimentos que seriam impossíveis na vigília; habitualmente, não são tão vívidos como a experiência da vigília; podem ser imprecisos, desarticulados, impressivos, bizarros, etc. Além disso, todo o argumento céptico se baseia na capacidade de distinguir os sonhos da vigília: de que outra forma poderia eu saber que por vezes sonhei estar acordado quando, na realidade, estava a dormir? Esta recordação só faz sentido se eu tiver uma forma de afirmar que numa das experiências estava realmente acordado e que na outra estava a sonhar que estava acordado.A força desta resposta depende muito da experiência que cada um tem dos sonhos. Os sonhos de algumas pessoas podem ser extraordinariamente diferentes da vigília. Contudo, muitas pessoas têm pelo menos alguns sonhos indistinguíveis da experiência quotidiana; e a experiência que algumas pessoas têm durante a vigília, sobretudo quando estão sob a influência do álcool ou de outras drogas, pode ter uma índole fortemente onírica. Além disso, a experiência de falsos despertares — quando o sonhador sonha que acordou, se levantou, se vestiu, tomou o pequeno-almoço, etc. — é relativamente comum. Contudo, em tais casos, o sonhador não se pergunta habitualmente se se trata da vigília ou não; geralmente, só quando ele acorda de facto é que a questão «Estarei a sonhar agora?» se torna relevante. Não posso perguntar «Estarei a

sonhar?»

Pelo menos um filósofo contemporâneo, Norman Malcom (1911-), defendeu que o conceito de sonho faz que seja logicamente impossível perguntar «estarei a sonhar?» quando estamos a sonhar. Fazer uma pergunta implica que a pessoa que a faz está consciente. Mas, sustenta Malcom, quando estou a sonhar, não estou, por definição, consciente, uma vez que estou a dormir. Se não estou a dormir, não posso estar a sonhar. Se posso fazer a pergunta, não posso estar a dormir e,

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portanto, não posso estar a sonhar. Só posso sonhar que estou a fazer a pergunta e isso não é o mesmo que fazer, verdadeiramente, a pergunta.

Contudo, a investigação sobre o sonho mostrou que muitas pessoas experimentam diferentes níveis de consciência enquanto dormem. Algumas têm o que é conhecido por sonhos lúcidos. Num sonho lúcido, o sonhador torna-se consciente de que está a sonhar, continuando no entanto a sonhar. A existência de tais sonhos refuta a ideia de que é impossível estar consciente ao mesmo tempo que se está a dormir. O erro cometido por Malcom foi redefinir «sonho» de forma a já não significar o que geralmente se entende por esse termo. Afirmar que o sonho é necessariamente um estado não consciente é uma perspectiva excessivamente simples.

4.6 ALUCINAÇÃO

Mesmo que não esteja a dormir, posso estar a alucinar. Alguém pode ter deitado uma droga

no meu café que provoque alterações mentais de forma que me pareça ver coisas que na verdade não existem. Talvez não tenha realmente uma caneta na mão; talvez não esteja de facto sentado frente a uma janela num dia soalheiro. Se ninguém deitou LSD no meu café, talvez aconteça apenas que atingi um tal estado de alcoolismo que comecei a alucinar. Contudo, apesar de esta ser uma possibilidade, é altamente improvável que possa prosseguir tão facilmente a minha vida. Se a cadeira onde estou sentado é apenas imaginária, como pode ela sustentar o meu peso? Uma resposta a isto é que eu posso desde logo estar a alucinar que estou sentado: posso pensar que me vou sentar numa confortável poltrona quando de facto estou deitado num chão de pedra e tomei um alucinogénio, ou bebi uma garrafa inteira de Pernod.

4.7 CÉREBRO NUMA CUBA?

A versão mais extrema deste cepticismo acerca do mundo exterior e da minha relação com ele é imaginar que não tenho corpo. Tudo o que sou é um cérebro a flutuar numa cuba de produtos químicos. Um cientista perverso ligou de tal forma fios ao meu cérebro que tenho a ilusão da experiência sensorial. O cientista criou uma espécie de máquina de experiências. Do meu ponto de vista, posso levantar-me e dirigir-me à loja para comprar um jornal. Contudo, quando faço isto, o que está realmente a acontecer é que o cientista está a estimular certos nervos do meu cérebro de maneira que eu tenha a ilusão de fazer isto. Toda a experiência que penso provir dos meus cinco sentidos é na verdade o resultado de este cientista perverso estar a estimular o meu cérebro desencarnado. Com esta máquina de experiências, o cientista pode fazer que eu tenha qualquer experiência sensorial que poderia ter na vida real. Através de um estímulo complexo dos nervos do meu cérebro, o cientista pode dar-me a ilusão de estar a ver televisão, a correr uma maratona, a escrever um livro, a comer massa ou qualquer outra coisa que eu poderia fazer. A situação não é tão rebuscada como pode parecer: os cientistas estão já a fazer experiências com simulações feitas em computador conhecidas como máquinas de «realidade virtual». A história do cientista perverso é um exemplo do que os filósofos chamam uma experiência mental. Trata-se de uma situação imaginária descrita de forma a esclarecer certas características dos nossos conceitos e pressupostos diários. Numa experiência mental, tal como numa experiência científica, através da eliminação de detalhes que complicam as coisas e através do controlo do que acontece, o filósofo pode fazer descobertas acerca dos conceitos sob investigação. Neste caso, a experiência mental é concebida para mostrar alguns dos pressupostos que costumamos ter acerca das causas da nossa experiência. Haverá alguma coisa acerca da minha experiência que possa mostrar que esta experiência mental não dá uma boa imagem da realidade, que eu não sou apenas um cérebro numa cuba a um canto do laboratório do cientista perverso?

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4.8 MEMÓRIA E LÓGICA

Apesar de a ideia de que posso ser apenas um cérebro numa cuba parecer constituir uma forma extrema de cepticismo, há ainda, de facto, outros pressupostos de que podemos duvidar. Todos os argumentos que discutimos até agora pressupõem que a memória é mais ou menos digna de confiança. Quando dizemos que nos recordamos de ocasiões passadas em que os nossos sentidos não foram dignos de confiança, pressupomos que estas recordações são realmente recordações e que não são apenas produtos da nossa imaginação ou de raciocínios caprichosos. E todos os argumentos que usam palavras pressupõem que nos lembramos correctamente do significado das palavras usadas. No entanto, a memória, tal como os dados dos nossos sentidos, não é digna de confiança. A minha experiência é não só compatível com a perspectiva de que poderia ser um cérebro numa cuba estimulado por um cientista perverso, mas também, como Bertrand Russell (1872-1970) fez notar, com a ideia de que o mundo poderia ter aparecido há cinco minutos juntamente com todas as pessoas que o habitam com «recordações» intactas, recordando-se todas de um passado completamente irreal.

Contudo, se começarmos a questionar seriamente a fiabilidade da memória, tornamos toda a comunicação impossível: se não podemos presumir que as nossas recordações dos significados das palavras são geralmente fidedignas, não há maneira de podermos sequer discutir o cepticismo. Além disso, poderia argumentar-se que a experiência mental do cientista perverso que manipula o cérebro numa cuba já introduz um cepticismo acerca da fiabilidade da memória, uma vez que se pressupõe que o nosso algoz tem o poder suficiente para nos fazer acreditar que as palavras significam seja o que for que ele quiser.

Um segundo tipo de pressuposto de que os cépticos raramente duvidam é a fiabilidade da lógica. Se os cépticos duvidassem que a lógica era realmente digna de confiança, isto enfraqueceria a sua posição. Os cépticos usam argumentos que se apoiam na lógica: o seu objectivo não é autocontradizer-se. No entanto, se usam argumentos lógicos para demonstrar que nada é imune à dúvida, isto significa que os seus próprios argumentos podem não ser procedentes. Logo, ao usar argumentos, os cépticos parecem apoiar-se fortemente em algo que, se fossem consistentes, teriam de afirmar ser incerto.Contudo, estas objecções não respondem ao argumento da ilusão: sugerem apenas que o cepticismo tem limites; há alguns pressupostos que até mesmo um céptico extremo tem de admitir.

4.9 PENSO, LOGO EXISTO

Sendo assim, existirá alguma coisa acerca da qual eu possa ter a certeza? A resposta mais famosa e importante a esta questão céptica foi dada por Descartes. Ele argumentou que, mesmo que toda a minha experiência fosse o produto de algo ou de alguém que me enganasse deliberadamente — Descartes usou a ideia de um génio maligno em vez de um cientista perverso —, o próprio facto de eu estar a ser iludido me mostraria algo de indubitável — me mostraria que existo, uma vez que, se não existisse, não haveria ninguém para o enganador enganar. Este argumento é muitas vezes conhecido como o cogito, do latim «Cogito ergo sum», que significa «Penso, logo existo».

4.10 CRÍTICA AO COGITO

Algumas pessoas acham o argumento do cogito convincente. No entanto, as suas conclusões

são extremamente limitadas. Mesmo que aceitemos que o facto de eu estar a pensar constitui uma demonstração da minha existência real, nada diz quanto ao que sou, excepto que sou uma coisa pensante.

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De facto, alguns filósofos, incluindo A. J. Ayer, argumentaram que mesmo esta conclusão vai demasiado longe. Descartes errou ao usar a expressão «Eu penso»: se tivesse sido consistente com a sua abordagem céptica geral, deveria ter dito «Há pensamentos». Descartes estava a pressupor que, se há pensamentos, tem de haver um pensador. Mas podemos duvidar disto. Talvez os pensamentos possam existir independentemente dos pensadores. Talvez seja apenas a forma como a nossa linguagem está estruturada que nos leva a pensar que todo o pensamento precisa de um pensador. O «eu» da expressão «Eu penso» pode ser do mesmo tipo que o «ele» da expressão «Ele hoje ainda vem chuva», que não se refere a nada.

4.11 REALISMO REPRESENTATIVO

Percorremos um longo caminho, no qual considerámos a posição do realismo de senso comum. Ao seguir os argumentos cépticos acerca dos sentidos e da questão de saber se poderemos estar a sonhar, vimos o alcance e os limites deste tipo de dúvida filosófica. Entretanto, descobrimos algumas das limitações do realismo de senso comum. O argumento da ilusão, sobretudo, mostrou a implausibilidade do pressuposto de que os sentidos nos dão, quase sempre, informação verdadeira sobre a natureza do mundo exterior. O facto de os nossos sentidos nos poderem enganar tão facilmente deveria ser suficiente para reduzir a nossa confiança na ideia de que os objectos são realmente como parecem.

O realismo representativo é uma forma modificada do realismo do senso comum. Chama-se representativo porque sugere que toda a percepção é o resultado da consciência de representações internas do mundo exterior. Quando vejo uma gaivota, não a vejo directamente, ao contrário do que sugere o realismo de senso comum. Não tenho contacto sensorial directo com a ave. Ao invés, aquilo de que tenho consciência é uma representação mental, qualquer coisa como uma imagem interna da gaivota. Não tenho uma experiência visual directa da gaivota, apesar de a minha experiência visual ser causada pela gaivota; ao invés, tenho uma experiência da representação da gaivota produzida pelos meus sentidos.

O realismo representativo responde a objecções levantadas pelo argumento da ilusão. Tomemos o exemplo da cor. O mesmo vestido pode parecer muito diferente quando é visto sob diferentes iluminações: o espectro de cores aparentes pode ir de escarlate a negro. Se examinássemos as fibras do tecido do vestido mais de perto descobriríamos, provavelmente, tratar-se de uma mistura de cores. A maneira como é percepcionado dependerá também do observador: um daltónico pode muito bem ver o vestido de forma diferente de mim. Perante estas observações, não faz sentido afirmar que o vestido é realmente vermelho: a sua cor vermelha não é independente de quem percepciona. Para poder explicar este tipo de fenómeno, o realismo representativo introduz a noção de qualidades primárias e secundárias.

4.11.1 Qualidades primárias e secundárias

John Locke (1632-1704) usou a distinção entre qualidades primárias e secundárias. As qualidades primárias são aquelas que um objecto tem efectivamente, independentemente das condições sob as quais é percepcionado e de estar sequer a ser percepcionado. As qualidades primárias incluem o tamanho, a forma e o movimento. Todos os objectos, por mais pequenos que sejam, têm estas qualidades e, segundo Locke, as nossas representações mentais destas qualidades são muito parecidas às dos objectos. A ciência preocupa-se sobretudo com as qualidades primárias dos objectos físicos. A constituição de um objecto, detern inada pelas suas qualidades primárias, dá origem à nossa experiência das qualidades secundárias.

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As qualidades secundárias incluem a cor, o cheiro e o sabor. Pode parecer que estas qualidades pertencem realmente aos objectos da nossa percepção, fazendo a cor vermelha parte, de alguma forma, de um vestido vermelho. Mas, na verdade, a cor vermelha não é senão a capacidade de produzir imagens vermelhas num observador normal em condições normais. A cor vermelha não faz parte de um vestido vermelho da mesma maneira que a sua forma faz. As ideias de qualidades secundárias não são semelhantes aos próprios objectos; são em parte, ao invés, um produto do tipo de sistema sensorial que por acaso é o nosso. Segundo o realismo indirecto, quando vemos um vestido vermelho, vemos uma imagem mental que corresponde parcialmente ao vestido real que dá origem à imagem. A cor vermelha da imagem do vestido vermelho (uma qualidade secundária do vestido) não é semelhante a qualidades efectivas existentes no vestido real; contudo, a forma da imagem do vestido (uma qualidade primária do vestido) é geralmente parecida com a forma do vestido real.

4.12 CRÍTICAS AO REALISMO REPRESENTATIVO

4.12.1 Observador na cabeça

Uma crítica ao realismo representativo defende que esta teoria parece limitar-se a fazer recuar o problema da compreensão da percepção. Segundo o realismo representativo, quando percepcionamos algo, fazemo-lo através de um tipo qualquer de representação mental. Assim, ver alguém a dirigir-se na minha direcção é como ver um filme deste acontecimento. Mas se isto é assim, o que estará então a interpretar a imagem no écran? E como se eu tivesse uma pessoa pequenina sentada na minha cabeça a interpretar o que acontece. E é de presumir que esta pessoa pequenina teria de ter outra pessoa ainda mais pequenina dentro da sua cabeça para interpretar a interpretação: e assim por diante, infinitamente. Parece improvável que eu tenha um número infinito de pequenos intérpretes na minha cabeça. O mundo real é incognoscível Uma objecção importante ao realismo representativo afirma que esta teoria faz que o mundo real seja incognoscível. Ou então só é indirectamente cognoscível. Tudo o que poderá alguma vez constituir as nossas experiências são as nossas representações mentais do mundo — e não temos maneira de comparar as nossas representações mentais do mundo com o próprio mundo. É como se cada um de nós estivesse encurralado num cinema privado que nunca podemos abandonar. No écran vemos vários filmes e presumimos que eles mostram o mundo real tal como é — pelo menos em termos das qualidades primárias dos objectos que vemos representados. Mas, uma vez que não podemos sair do cinema para verificar o nosso pressuposto, nunca podemos saber qual é o grau de semelhança entre o mundo tal como aparece nos filmes e o mundo real.Este é um problema sobretudo para o realismo representativo, porque esta teoria afirma que as nossas representações mentais das qualidades primárias dos objectos são semelhantes às próprias qualidades dos objectos do mundo exterior. Mas, se não temos maneira de verificar se isto é verdade, não temos razões para acreditar nisso. Se a minha representação mental de uma moeda é circular, não tenho maneira de verificar se isto corresponde à verdadeira forma da moeda. Estou limitado aos dados dos meus sentidos e, uma vez que estes funcionam através de representações mentais, nunca poderei ter uma informação directa acerca das verdadeiras propriedades da moeda.

4.13 IDEALISMO

O idealismo é uma teoria que evita algumas das dificuldades que se levantam ao realismo representativo. Tal como esta última teoria, o idealismo faz dos dados sensoriais de entrada o ingrediente básico na nossa experiência do mundo. Assim, também o idealismo se baseia na noção de que toda a nossa experiência é constituída por representações mentais, e não pelo mundo.

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Contudo, o idealismo vai mais longe do que o realismo representativo. Defende que não existe justificação para afirmar que o mundo exterior existe realmente, uma vez que, como vimos nas nossas críticas ao realismo representativo, o mundo exterior é incognoscível. Isto parece absurdo. Como pode alguém defender seriamente que estamos enganados quando falamos do mundo exterior? Sem dúvida que todos os indícios apontam na direcção oposta. Um idealista responderia que os objectos físicos — a Catedral de S. Paulo, a minha secretária, as outras pessoas, etc. — só existem enquanto estão a ser percepcionadas. Não precisamos de introduzir a ideia da existência de um mundo real para lá da nossa experiência: tudo o que podemos de facto conhecer são as nossas experiências. E mais conveniente dizer «Estou a ver ali a minha guitarra» do que «Estou a ter uma experiência visual do tipo guitarra», mas um idealista argumentaria que a primeira é apenas uma abreviatura da última. As palavras «minha guitarra» são uma forma conveniente de referir um padrão recorrente de experiências sensoriais, e não um qualquer objecto físico que exista independentemente das minhas percepções. Estamos todos fechados em cinemas individuais a ver filmes, mas não há nenhum mundo fora dos cinemas. Não podemos abandonar o cinema porque não há nada lá fora. Os filmes são a nossa única realidade. Quando ninguém está a olhar para o écran, o projector desliga-se, mas o filme continua a passar. Sempre que olho para o écran, o projector acende-se e o filme está precisamente no momento em que estaria se o projector tivesse estado sempre ligado.

Uma consequência disto é que, para os idealistas, os objectos só existem enquanto são percepcionados. Quando um objecto não está a ser percepcionado no meu cinema privado, não existe. O bispo Berkeley (1685-1753), o mais famoso idealista, declarou que «esse est percipi»: existir é ser percepcionado. Assim, quando deixo uma sala, esta deixa de existir, quando fecho os olhos, o mundo desaparece, quando pestanejo, seja o que for que está à minha frente deixa de estar — desde que, claro, mais ninguém esteja a percepcionar estas coisas na altura.

4.14 CRÍTICAS AO IDEALISMO

4.14.1 Alucinações e sonhos

Á primeira vista, esta teoria da percepção pode ter dificuldades em lidar com as alucinações

e com os sonhos. Se tudo aquilo de que temos experiência são as nossas próprias ideias, como conseguimos distinguir a realidade da imaginação?

Contudo, os idealistas conseguem explicar isto. Os verdadeiros objectos físicos são, de acordo com o idealista, padrões repetidos de informação sensorial. A minha guitarra é um padrão de informação sensorial, previsivelmente recorrente. As minhas experiências visuais da guitarra ajustam-se às minhas experiências tácteis da mesma: posso ver a minha guitarra encostada à parede e depois tocar-Ihe. As minhas experiências da guitarra relacionam-se entre si de forma regular. Se estivesse a ter a alucinação de uma guitarra, não existiria tal inter-relação entre as minhas experiências: talvez no momento em que fosse tocar guitarra não tivesse as experiências tácteis que esperava. Talvez as minhas experiências visuais da guitarra se comportassem de formas completamente imprevisíveis: a minha guitarra poderia parecer materializar-se e dissolver-se à minha frente.

Analogamente, um idealista pode explicar como podemos distinguir entre os sonhos e a vigília através das diferenças detectáveis entre as diversas maneiras segundo as quais as experiências sensoriais se conectam entre si. Por outras palavras, não é apenas a natureza de uma experiência imediata que é capaz de identificar se se trata de uma alucinação, de um sonho ou de uma experiência da vida real, mas também a sua relação com outras experiências: o contexto geral

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da experiência.

4.14.2 Conduz ao solipsismo

Uma das principais críticas à teoria idealista da percepção defende que esta parece conduzir

ao solipsismo: a perspectiva segundo a qual a minha mente é tudo o que existe e que tudo o resto é uma criação minha. Se as únicas coisas de que posso ter experiência são as minhas próprias ideias, não somos conduzidos apenas à perspectiva segundo a qual não existem objectos físicos; somos também conduzidos à perspectiva segundo a qual não existem outras pessoas (ver a secção «Mentes alheias», pp. 212-213). Tenho tantos indícios favoráveis à existência de outras pessoas como a favor da existência de outros objectos físicos, nomeadamente padrões repetidos de informação sensorial. Mas então, uma vez que afastámos a ideia da existência de objectos físicos reais responsáveis pela minha experiência, talvez nada exista excepto enquanto ideia na minha mente. Talvez todo o mundo e tudo o que ele tem seja uma criação da minha mente. Talvez não exista mais ninguém. Para o colocar em termos do meu exemplo do cinema: talvez o meu próprio cinema privado, com o seu repertório específico de filmes, seja a única coisa que existe. Não há outros cinemas e não há nada exterior ao meu cinema. Por que razão constituirá uma crítica afirmar que uma teoria conduz ao solipsismo? Uma resposta a isto é que o solipsismo se parece mais com uma doença mental, uma forma de megalomania, do que com uma posição filosófica defensável. Talvez uma resposta mais persuasiva, usada por Jean-Paul Sartre na sua obra O Ser e o Nada, seja a de que, em quase todas as acções, todos nós mostramos acreditar que existem outras mentes para além da nossa. Por outras palavras, não é o tipo de posição que qualquer de nós poderia facilmente adoptar à vontade: estamos tão acostumados a presumir a existência de outras pessoas que agir de acordo com o solipsismo dificilmente seria concebível. Tome-se o exemplo de emoções sociais como a vergonha e o embaraço. Se for apanhado a fazer qualquer coisa que preferia não ser visto a fazer, tal como espreitar pelo buraco da fechadura, terei muito provavelmente vergonha. No entanto, se eu fosse um solipsista, isto não faria sentido. O próprio conceito de vergonha não teria sentido. Enquanto solipsista, eu acreditaria ser a única mente existente: não existiria mais ninguém para me julgar. Analogamente, sentir embaraço seria absurdo para um solipsista. Não existiria nenhuma pessoa perante a qual pudesse sentir-me embaraçado, excepto eu mesmo. O grau com que estamos comprometidos com a crença na existência de um mundo para além das nossas próprias experiências é tal, que mostrar que uma posição filosófica conduz ao solipsismo é suficiente para enfraquecer a sua plausibilidade.

4.14.3 A explicação mais simples

O idealismo pode também ser criticado por outros motivos. Mesmo que concordemos com a

ideia do idealista de que tudo a que temos acesso são as nossas próprias experiências sensoriais, poderíamos, ainda assim, querer saber o que causa estas experiências e porque se conformam a tais padrões regulares. Por que razão podem as experiências sensoriais ser organizadas tão facilmente naquilo a que na linguagem quotidiana chamamos «objectos físicos»? Certamente que a resposta mais directa a isto é afirmar que os objectos físicos existem realmente lá fora, no mundo exterior, e que causam as experiências sensoriais que temos deles. Era isto, sem dúvida, que Samuel Johnson (1709-1784) queria dizer quando, em resposta ao idealismo do bispo Berkeley, deu um forte pontapé numa grande pedra, declarando: «Refuto-o assim.»

Berkeley sugeriu que é Deus, e não os objectos físicos, que causa a nossa experiência sensorial. Deus deu-nos uma experiência sensorial ordenada. Deus percepciona todos os objectos

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durante todo o tempo, de forma que o mundo continua a existir quando não é percepcionado pelos seres humanos. Contudo, como vimos no capítulo 1, a existência de Deus não pode ser dada como garantida. Para muitas pessoas, a existência de objectos físicos reais seria uma hipótese explicativa muito mais aceitável das causas da nossa experiência.

O idealista acredita que, para que algo exista, tem de ser percepcionado. Uma razão para esta crença é o facto de ser logicamente impossível que alguém possa verificar se o contrário é verdade: ninguém poderia observar se a minha guitarra deixa de existir quando ninguém está a percepcioná-la, uma vez que para fazer essa observação alguém teria de estar a percepcioná-la. No entanto, mesmo que isto seja verdade, há vários indícios que apontam para o facto de a minha guitarra continuar a existir quando não é percepcionada. A ex plicação mais simples para o facto de ela continuar encostada à parede quando acordo de manhã é admitir que ninguém lhe mexeu, nem a levou emprestada, nem a roubou e que continuou a existir impercepcionada pela noite fora. A teoria do fenomenismo é um desenvolvimento do idealismo que leva em linha de conta esta hipótese altamente plausível.

4.15 FENOMENISMO

Tal como o idealismo, o fenomenismo é uma teoria da percepção baseada na ideia de que só

temos acesso directo à experiência sensorial e não ao mundo exterior. Mas difere do idealismo na sua explicação dos objectos físicos. Ao passo que os idealistas defendem que a nossa noção de um objecto físico é uma abreviatura de um grupo de experiências sensoriais, fenomenistas como John Stuart Mill pensam que os objectos físicos podem ser completamente descritos em termos de padrões de experiências sensoriais efectivas ou possíveis. A possibilidade de ter experiência sensorial da minha guitarra continua em aberto mesmo quando não estou efectivamente a olhar para ela ou a tocar-lhe. Os fenomenistas acreditam que todas as descrições dos objectos físicos podem ser traduzidas em termos de descrições de experiências sensoriais efectivas ou hipotéticas.

Um fenomenista é como alguém encurralado no seu próprio cinema privado, a ver filmes. Mas, ao contrário do idealista, que acredita que as coisas representadas no écran deixam de existir quando não estão a ser projectadas, o fenomenista acredita que estes objectos continuam a existir enquanto experiências possíveis mesmo que não estejam a ser projectados no écran nesse momento. Além disso, o fenomenista acredita que tudo o que aparece, ou poderia aparecer, no écran pode ser descrito na linguagem da experiência sensorial sem qualquer referência a objectos físicos. O fenomenismo pode ser criticado das seguintes formas.

4.16 CRÍTICAS AO FENOMENISMO

4.16.1 Dificuldade em descrever objectos

É extremamente complicado exprimir uma afirmação sobre objectos físicos como «a minha

guitarra está encostada à parede, no meu quarto, impercepcionada» somente em termos de experiências sensoriais. Na verdade, todas as tentativas de descrever objectos físicos desta forma falharam.

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4.16.2 O solipsismo e o argumento da linguagem privada

O fenomenismo, tal como o idealismo, parece conduzir ao solipsismo: as outras pessoas são

apenas experiências perceptivas efectivas ou possíveis que eu poderia ter. Já examinámos várias objecções ao solipsismo. O argumento da linguagem privada, originalmente usado por Ludwig Wittgenstein (1889-1951) na sua obra Investigações Filosóficas, proporciona outra objecção a este aspecto do fenomenismo.

O fenomenismo presume que cada pessoa pode identificar e nomear sensações particulares somente com base na sua própria experiência directa. Esta identificação e reidentificação de sensações apoia-se na experiência privada, e não na existência de objectos físicos públicos. O argumento da linguagem privada mostra que esse acto privado de nomear e re-identificar as sensações jamais poderia ocorrer, enfraquecendo assim o fenomenismo.

Toda a linguagem depende de regras e as regras dependem da existência de maneiras de verificar se elas foram ou não bem aplicadas. Ora, suponha-se que um fenomenista teve uma sensação de vermelho: como pode ele verificar se esta sensação é da mesma cor que as outras que ele rotulou de «vermelho»? Não há maneira de verificar isto, uma vez que para o fenomenista não há diferença entre ser vermelho e pensar-se que é vermelho. E como alguém que procura recordar-se do horário do comboio e tem de verificar a sua recordação através de si próprio, em vez de através do horário real. É uma verificação privada, e não pública, não podendo ser usada para ter a certeza quanto à correcção do nosso uso público da palavra «vermelho». Assim, o pressuposto de que um fenomenista poderia descrever a sua experiência nesta linguagem que se verifica a si mesma está errado.

4.17 REALISMO CAUSAL

O realismo causal presume que as causas da nossa experiência sensorial são os objectos

físicos existentes no mundo exterior. O realismo causal parte da observação de que a função biológica principal dos nossos sentidos é ajudar a orientarmo-nos no nosso meio ambiente. E através dos nossos sentidos que adquirimos crenças acerca do nosso meio. Segundo o realismo causal, quando vejo a minha guitarra, o que acontece realmente é o seguinte: os raios de luz reflectidos na guitarra causam certos efeitos na minha retina e noutras áreas do meu cérebro. Isto faz-me adquirir certas crenças acerca do que estou a ver. A experiência de adquirir tais crenças é a experiência de ver a minha guitarra.

A maneira pela qual adquirimos crenças perceptivas é importante: nem todas as maneiras servem. Para que eu possa ver realmente a minha guitarra é essencial que a mesma seja a causa das crenças por mim adquiridas acerca dela. A ligação causal própria da visão é a que resulta de um objecto que reflecte raios de luz para a minha retina e o processo subsequente de processar esta informação no meu cérebro. Se, por exemplo, eu estava sob o efeito de barbitúricos e estava apenas a sofrer uma alucinação, não estava a ver a minha guitarra. A causa das minhas crenças eram os barbitúricos, e não a guitarra.

Na visão trata-se de adquirir informação acerca do meio, e não de produzir representações mentais de qualquer tipo. Tal como o realismo representativo, o realismo causal presume que existe realmente um mundo exterior que continua a existir quer esteja a ser objecto de experiência quer não. Presume também que as crenças que adquirimos através dos órgãos dos sentidos são geralmente verdadeiras — é por isso que, em resultado da selecção natural no decurso da evolução, os nossos receptores sensoriais são como são: têm a tendência para nos dar informação fidedigna

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acerca do nosso meio.

Outra grande vantagem do realismo causal sobre as teorias rivais da percepção é o facto de poder facilmente explicar c o m o pode o nosso c o n h e c i m e n t o actual afectar a nossa percepção. Ao adquirir informação, o nosso sistema de classificação e o nosso conhecimento existente afectam directamente a forma como tratamos a nova informação e o que seleccionamos e interp r e t a m o s c o m o relevante. Iremos regressar a este tema no próximo capítulo, na secção «Observação» (ver pp. 168-171).

4.18 CRÍTICAS AO REALISMO CAUSAL

4.18.1 A experiência da visão

A principal crítica ao realismo causal defende que ele não dá conta, satisfatoriamente, do

que é realmente ver algo, não dá conta do aspecto qualitativo da visão. Reduz a experiência da percepção a uma forma de recolha de informação. Contudo, o realismo causal é, até hoje, a teoria da percepção mais satisfatória.

4.18.2 Pressupõe o mundo real

O realismo causal pressupõe um mundo real exterior que existe independentemente de as

pessoas o percepcionarem ou não. Isto é conhecido como um pressuposto metafísico — por outras palavras, é um pressuposto acerca da natureza da realidade. Para uma pessoa com tendências idealistas, este pressuposto metafísico é inaceitável. Contudo, uma vez que quase toda a gente está comprometida com a crença num m u n d o real que existe independentemente de nós, este pressuposto pode ser encarado como um aspecto a favor do realismo causal, em vez de constituir uma crítica. 164

4.19 CONCLUSÃO

Neste capítulo explorámos algumas das teorias filosóficas mais importantes acerca do mundo exterior e da nossa relação com ele. O próximo capítulo centra-se numa forma particular de descobrir o mundo, nomeadamente a investigação científica.

4.20 LEITURA COMPLEMENTAR

Os argumentos cépticos de Descartes são apresentados na primeira das suas Meditações e o seu argumento do cogito encontra-se no princípio da segunda. A m b a s podem ser encontradas em Meditações sobre a Filosofia Primeira (Coimbra, Livraria Almedina, 1985). A melhor pequena introdução à filosofia de Descartes é, de longe, a entrevista de Bernard Williams presente em Os Grandes Filósofos, organizado por Brian Magee (Lisboa, Editorial Presença, 1989), um livro que já recomendei.

The British Empiricists, de Stephen Priest (Londres, Penguin, 1990), outro livro já recomendado na minha introdução, inclui discussões de vários tópicos deste capítulo.

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Introduction to the Theory of Knowledge (Brighton, Harvester, 1982), de D. J. O'Connor e Brian Carr, é uma introdução útil a esta área, tal como The Problem of Knowledge (Londres, Penguin, 1956), de A. J. Ayer.

Os Problemas da Filosofia (Coimbra, Arménio Amado, 1980), de Bertrand Russell, é ainda hoje uma leitura compensadora: trata-se de uma pequena introdução à filosofia que se concentra sobre questões epistemológicas e tem feito parte das leituras recomendadas aos candidatos ao estudo universitário da Filosofia ao longo da maior parte desde século.

5 CIÊNCIA

A ciência permitiu-nos mandar pessoas à Lua, curar a tuberculose, inventar a bomba atómica, os automóveis, o aeroplano, a televisão, os computadores e várias outras coisas que mudaram a natureza da nossa vida quotidiana. Reconhece-se, geralmente, que o método científico é a forma mais eficaz de descobrir e prever o comportamento da natureza. Nem todas as invenções científicas têm sido benéficas para os seres humanos — é óbvio que esses desenvolvimentos tanto têm sido usados para destruir como para melhorar a vida humana. Contudo, seria difícil negar o sucesso na manipulação da natureza que a ciência tornou possível. A ciência produziu resultados, ao passo que a bruxaria, a magia, a superstição e a mera tradição não têm mostrado, comparativamente, grande coisa a seu favor. O método científico é um grande avanço em relação a formas anteriores de adquirir conhecimento. Historicamente, a ciência substituiu a «verdade de autoridade». A verdade de autoridade significava aceitar como verdadeiras as ideias de várias «autoridades» importantes — especialmente as obras que sobreviveram de Aristóteles (384-322 a. C.)7 o filósofo grego antigo, e os ensinamentos da Igreja —, por causa não do que afirmavam, mas de quem o afirmava. Ao invés, o método científico sublinha a necessidade de efectuar testes e fazer observações detalhadas acerca dos resultados antes de confiar em qualquer afirmação.

Mas o que é o método científico? Será realmente tão digno de confiança quanto somos habitualmente levados a acreditar? Como progride a ciência? Este é o tipo de questões que os filósofos da ciência colocam. Nesta secção, consideraremos algumas questões gerais acerca da natureza do método científico. A perspectiva simples do método científico

Uma perspectiva simples, mas muito comum, do método científico é a seguinte: o cientista começa por um vasto número de observações de certo aspecto do mundo: por exemplo, o efeito de aquecer a água. Estas observações devem ser tão objectivas quanto possível:

o objectivo do cientista é ser imparcial e não ter preconceitos ao registar os dados. Uma vez recolhida, pelo cientista, uma grande quantidade de dados baseados na observação, o estádio seguinte é criar uma teoria que explique o padrão de resultados. Esta teoria, se for boa, explicará simultaneamente o que estava a acontecer e irá prever o que é provável que aconteça no

futuro. Se os resultados futuros não se coadunarem completamente com estas previsões, o cientista modificará a sua teoria para dar conta deles. Porque existe uma grande regularidade na natureza, as previsões científicas podem ser extraordinariamente precisas.

Assim, por exemplo, um cientista pode começar por aquecer água a 100°C sob condições normais e observar a água a entrar em ebulição e a evaporar-se. O cientista pode então fazer várias outras observações do comportamento da água sob diferentes temperaturas e pressões. Com base nestas observações, o cientista irá sugerir uma teoria acerca do ponto de ebulição da água em relação à temperatura e à pressão. Esta teoria irá explicar não apenas as observações particulares feitas pelo cientista, mas também, se for uma boa teoria, explicar e prever todas as observações futuras do comportamento da água sob diferentes temperaturas e pressões. Segundo esta

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perspectiva, o método científico começa com observações, passa à teoria e produz assim uma generalização (ou enunciado universal) capaz de gerar previsões. Se a generalização for boa, será considerada uma lei da natureza. A ciência produz resultados objectivos que podem ser confirmados por qualquer pessoa que queira repetir os testes originais.

Esta perspectiva do método científico é surpreendentemente comum, mesmo entre os cientistas activos. No entanto, é insatisfatória por vários motivos, os mais importantes dos quais são os seus pressupostos acerca da natureza da observação e dos argumentos indutivos.

5.1 CRÍTICAS À PERSPECTIVA SIMPLES

5.1.1 Observação

Como vimos, a perspectiva simples do método científico afirma que os cientistas começam

por efectuar observações imparciais antes de formularem teorias para explicar essas observações. Contudo, isto é uma má descrição do que a observação realmente é: a perspectiva simples pressupõe que o nosso conhecimento e expectativas não afectam as nossas observações, que é possível fazer observações de forma completamente isenta de preconceitos.

Tal como sugeri quando discuti a percepção no capítulo anterior, ver algo não é apenas ter uma imagem na nossa retina. Ou, como defendeu o filósofo N. R. Hanson (1924-1967), «a visão envolve mais coisas do que o globo ocular». O nosso conhecimento e as nossas expectativas do que iremos provavelmente ver afectam o que vemos de facto. Por exemplo, quando eu olho para os fios de uma central telefónica, vejo apenas um emaranhado caótico de fios coloridos; um engenheiro de telecomunicações, ao olhar para a mesma coisa, veria padrões de conexões e outras coisas. O pano de fundo das crenças do engenheiro de telecomunicações afecta o que ele efectivamente vê. O engenheiro e eu não temos a mesma experiência visual que depois interpretamos de forma diferente: a experiência visual, como a teoria realista causal da percepção sublinha, não pode separar-se das nossas crenças acerca do que estamos a ver.

Como outro exemplo deste aspecto, pense o leitor na diferença entre o que um físico experiente vê quando olha para um microscópio electrónico e o que uma pessoa de uma cultura pré-científica veria ao olhar para o mesmo equipamento. O físico compreenderia a inter-relação entre as diferentes partes do instrumento e avaliaria a forma de o usar e o que poderia fazer-se com ele. Para a pessoa da cultura pré-científica, o instrumento constituiria provavelmente uma confusão de estranhos bocados de metal e fios, unidos de forma misteriosa.

É claro que existem muitas coisas em comum que observadores diferentes da mesma coisa irão ver; caso contrário, a comunicação seria impossível. Mas a perspectiva simples do método científico tem tendência para menosprezar este facto importante acerca da observação: o que vemos não pode ser pura e simplesmente reduzido às imagens nas nossas retinas. O que habitualmente vemos depende daquilo a que se chama o «enquadramento mental»: o nosso conhecimento e expectativas e também o meio cultural em que fomos educados. Contudo, vale a pena notar que existem algumas observações que se recusam obstinadamente a ser afectadas pelas nossas crenças. Apesar de saber que a Lua não é maior quando surge mais abaixo no horizonte do que quando está no seu zénite, não consigo evitar vê-la maior. Neste caso, a minha experiência perceptiva da Lua não é afectada pelas minhas crenças conscientes de fundo. E óbvio que digo que a Lua «parece maior», e não que «é maior», e isto implica a presença de conhecimentos teóricos, mas parece ser um caso em que a minha experiência perceptiva é imune à influência das minhas crenças. Isto mostra que a relação entre o que sabemos e o que vemos não é tão simples como por vezes se

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pensa: o conhecimento de fundo não faz sempre que vejamos de forma diferente. Isto não enfraquece o argumento contra a perspectiva simples da ciência, uma vez que, na maioria dos casos, o que vemos é significativamente afectado pelo nosso enquadramento mental. Enunciados observacionais

Uma segunda característica importante da observação num contexto científico que a perspectiva simples negligencia é a natureza dos enunciados observacio170

nais. O cientista tem de exprimir observações particulares numa linguagem. No entanto, a linguagem que o cientista usa para exprimir estes enunciados observacionais tem sempre pressupostos teóricos associados. Um enunciado observacional completamente neutro é coisa que não existe: os enunciados observacionais estão «teoricamente subordinados». Por exemplo, até uma afirmação comum como «Ele tocou no fio eléctrico e apanhou um choque» presume que existe electricidade e que a electricidade pode ser perigosa. Ao usar a palavra «eléctrico», o locutor pressupõe toda uma teoria acerca das causas do dano sofrido pela pessoa que tocou no fio. Compreender o enunciado completamente implica compreender teorias acerca de coisas como a electricidade e a fisiologia. Os pressupostos teóricos estão incorporados na forma como o acontecimento é descrito. Por outras palavras, os enunciados observacionais classificam a nossa experiência de uma forma específica, mas esta não é a única maneira de a classificar.

O tipo de enunciado observacional efectivamente feito em ciência, como, por exemplo, «a estrutura molecular da substância foi afectada pelo calor», pressupõe teorias bastante elaboradas. A teoria v e m sempre primeiro: a perspectiva simples do método científico está completamente enganada ao supor que a observação imparcial precede sempre a teoria. O que vemos depende do que sabemos e as palavras que escolhemos para descrever o que vemos pressupõem sempre uma teoria sobre a natureza do que v e m o s . Estes são dois factos inescapáveis acerca da natureza da observação que enfraquecem a noção de uma observação objectiva, sem preconceitos e neutra.

5.1.2 Selecção

Um terceiro aspecto acerca da observação é que os cientistas não se limitam a «observar», registando todas as medições de todos os fenómenos. Isso seria fisicamente impossível. Os cientistas escolhem os aspectos da situação sobre os quais se concentram. Esta escolha envolve, também ela, decisões teoricamente subordinadas.

5.2 O PROBLEMA DA INDUÇÃO

Um tipo diferente de objecção à perspectiva simples do método científico levanta-se pelo facto de esta se apoiar na indução, e não na dedução. A indução e a dedução são dois tipos diferentes de argumentos. Um argumento indutivo envolve uma generalização baseada num certo número de observações específicas. Se eu observar um grande número de animais com pêlo, concluindo a partir das minhas observações que todos os animais com pêlo são vivíparos (isto é, dão à luz crias em vez de porem ovos), estaria a usar um argumento indutivo. Um argumento dedutivo, por outro lado, parte de certas premissas, passando depois logicamente para uma conclusão que se segue dessas premissas. Por exemplo, das premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» posso concluir que, portanto, todos os cisnes são animais: este é um argumento dedutivo. Os argumentos dedutivos preservam a verdade. Isto significa que, se as suas premissas são verdadeiras, as suas conclusões tèn de ser verdadeiras. Entraríamos em contradição se afirmássemos as premissas e negássemos a conclusão. Assim, se as premissas «Todas as aves são

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animais» e «Os cisnes são aves» são ambas verdadeiras, tem de ser verdade que todos os cisnes são animais. Ao invés, os argumentos indutivos com premissas verdadeiras podem ter ou não ter conclusões verdadeiras. Mesmo que todas as observações de animais com pêlo por mim efectuadas tenham sido fidedignas e que todos os animais sejam de facto vivíparos, e mesmo que eu tenha feito milhares de observações, pode vir a descobrir-se que a minha conclusão indutiva de que todos os animais com pêlo são vivíparos é falsa. Na verdade, a existência do plátipo ornitorrinco, um tipo peculiar de animal com pêlo que põe ovos, significa que se trata de uma generalização falsa.

Estamos sempre a usar argumentos indutivos. E a indução que nos leva a esperar que o futuro seja semelhante ao passado. Já bebi café muitas vezes, mas nunca me envenenou, por isso presumo, com base num argumento indutivo, que o café não me vai envenenar daqui para a frente. Sempre vi o dia seguir-se à noite, pelo que presumo que continuará a fazê-lo. Observei muitas vezes que, se estiver à chuva, fico molhado, pelo que presumo que o futuro será como o passado e evito sempre que possível estar à chuva. Todos estes exemplos são casos de indução. As nossas vidas são todas baseadas no facto de a indução nos proporcionar previsões razoavelmente fidedignas acerca do nosso meio e do resultado provável das nossas acções. Sem o princípio da indução, a nossa interacção com o meio seria completamente caótica: não teríamos bases para presumir que o futuro seria como o passado. Não saberíamos se a comida que nos preparamos para ingerir iria alimentar-nos ou envenenar-nos; não saberíamos a cada passo se o chão iria sustentar-nos ou abrir-se um abismo, etc. Toda a regularidade prevista do nosso meio estaria aberta à dúvida.

Apesar deste papel central desempenhado pela indução nas nossas vidas, é um facto indesmentível que o princípio da indução não é inteiramente fidedigno. Como já vimos, pode dar-nos uma conclusão falsa relativamente à questão de saber se é verdade que todos os animais com pêlo são vivíparos. As suas conclusões não são tão fidedignas quanto as conclusões resultantes de argumentos dedutivos com premissas verdadeiras. Para ilustrar este aspecto, Bertrand Russell, nos Problemas da Filosofia, usou o exemplo de uma galinha que acorda todas as manhãs pensando que, uma vez que foi alimentada no dia anterior, sê-lo-á mais uma vez naquele dia. Um dia acorda e o camponês torce-lhe o pescoço. A galinha estava a usar um argumento indutivo baseado num grande número de observações. Estaremos a ser tão tolos quanto esta galinha ao apoiar-nos tão fortemente na indução? Como poderemos justificar a nossa fé na indução? Este é o chamado problema da indução, um problema identificado por David Hume no seu Tratado acerca do Conhecimento Humano. Como poderemos nós alguma vez justificar a nossa confiança num método de argumentação tão pouco digno de confiança? Esta questão é particularmente relevante para a filosofia da ciência porque, pelo menos na teoria simples delineada acima, a indução desempenha um papel crucial no método científico. Outro aspecto do problema da indução

Até agora tratámos o problema da indução como uma questão acerca da justificação da generalização sobre o futuro com base no passado. Há outro aspecto do problema da indução que ainda não abordámos. Trata-se do facto de existirem numerosas generalizações muito diferentes que poderíamos fazer com base no passado, todas elas consistentes com a informação disponível. Contudo, estas diferentes generalizações podem resultar em previsões completamente diferentes acerca do futuro. Isto é muito bem exemplificado no exemplo do «verdul», introduzido pelo filósofo contemporâneo Nelson Goodman (1906-). Este exemplo pode parecer de alguma forma artificial, mas ilustra um aspecto importante.

Goodman inventou o termo «verdul» para revelar este segundo aspecto do problema da indução. «Verdul» é o nome de uma cor. Uma coisa é verdul se for observada antes do ano 2000 e for verde ou se não for observada antes do ano 2000 e for azul. Temos uma vasta experiência que sugere ser verdadeira a generalização «Todas as esmeraldas são verdes». Mas a informação disponível é igualmente consistente com a ideia de que «todas as esmeraldas são verduis» (presumindo que todas as observações foram feitas antes do ano 2000). No entanto, afirmar que

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todas as esmeraldas são verdes ou que são verduis afecta as previsões que faremos acerca da observação de esmeraldas depois do ano 2000. Se dissermos que todas as esmeraldas são verduis, a nossa previsão será a de que algumas esmeraldas observadas depois do ano 2000 serão azuis: as que foram observadas antes do ano 2000 serão verdes e as que não foram observadas antes do ano 2000 serão azuis. No entanto, se dissermos, como é mais natural, que todas as esmeraldas são verdes, a nossa previsão será a de que todas elas serão verdes seja qual for a altura em que forem observadas.

Este exemplo mostra que as previsões que fazemos com base na indução não são as únicas que poderíamos fazer com base na informação disponível. Assim, não só ficamos com a conclusão de que as previsões que fazemos com base na indução não são cem por cento fidedignas, mas também que nem sequer são as únicas previsões consistentes com a informação que acumulámos.

5.3 TENTATIVAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DA INDUÇÃO

5.3.1 Parece funcionar

Uma resposta ao problema da indução é fazer notar que a confiança na indução não é apenas generalizada, mas também razoavelmente frutuosa: a maior parte das vezes é uma forma extremamente útil de descobrir regularidades na natureza e de descobrir o seu comportamento futuro. Como já fizemos notar, a ciência permitiu-nos mandar pessoas à Lua: se a ciência se baseia no princípio da indução temos muitíssimos indícios de que a nossa crença na indução, é justificada. E claro que há sempre a possibilidade de o Sol não nascer amanhã ou de, como a galinha, nos torcerem o pescoço mal acordemos amanhã, mas a indução é o melhor método que temos. Nenhuma outra forma de argumentação nos ajudará a prever melhor o futuro do que o princípio da indução. Uma objecção a esta defesa do princípio da indução afirma que a própria defesa se apoia na indução. Por outras palavras, é um argumento viciosamente circular. O argumento acaba por não ser mais do que afirmar que, porque a indução demonstrou no passado ser bem sucedida, sob vários aspectos, continuará a sê-lo no futuro. Mas esta afirmação é, ela própria, uma generalização baseada num número específico de casos felizes de indução, tratando-se por isso, também, de um argumento indutivo. Um argumento indutivo não pode justificar satisfatoriamente a indução: isso seria uma petição de princípio, pressupondo o que nos propomos demonstrar, nomeadamente que a indução é justificada. Evolução

Proposições universais, isto é, enunciados que começam por «Todos ...», tais como «Todos os cisnes são brancos», pressupõem semelhanças entre as coisas individuais que estão a ser agrupadas. Neste caso tem de existir uma semelhança entre todos os cisnes individuais para que faça sentido agrupá-los. Contudo, como vimos no caso do «verdul», não existe apenas uma maneira de classificar as coisas que encontramos no mundo ou as propriedades que lhes atribuímos. E possível que, se um dia alguns extraterrestres pousassem na Terra, viéssemos a descobrir que usavam categorias muito diferentes das que nós usamos e que, com base nelas, faziam previsões indutivas muito diferentes das que nós fazemos.

No entanto, como o exemplo do «verdul» mostra, algumas generalizações parecem mais naturais do que outras. A explicação mais plausível deste facto é evolucionista: os seres humanos nascem com um grupo de categorias geneticamente programadas, com base nas quais classificamos a nossa experiência. Obtivemos, enquanto espécie, por um processo de selecção natural, uma tendência para fazer generalizações que prevêem com bastante exactidão o comportamento do mundo que nos rodeia. São estas tendências que entram em jogo quando raciocinamos indutivamente: temos uma tendência natural para classificar as nossas experiências do mundo de formas que conduzem a previsões fidedignas. Quer esta explicação da indução justifique

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a nossa confiança nela quer não, proporciona sem dúvida uma explicação da razão pela qual confiamos geralmente nos argumentos indutivos e do motivo por que esta confiança é geralmente correcta. Probabilidade Outra resposta ao problema da indução é admitir que, apesar de nunca podermos mostrar que a conclusão de um argumento indutivo é cem por cento certa, podemos, no entanto, mostrar que é muito provavelmente verdadeira. As chamadas leis da natureza que a ciência descobre não estão absolutamente demonstradas como verdadeiras: são generalizações que têm uma alta probabilidade de serem verdadeiras. Quantas mais observações confirmarem estas leis, mais provavelmente serão verdadeiras. Esta resposta é por vezes conhecida como probabilismo. Não podemos ter a certeza de que o Sol irá nascer amanhã, mas podemos, com base na indução, achar que isso é altamente provável.

Contudo, uma objecção a esta ideia é que a própria probabilidade é algo que pode mudar. A atribuição de probabilidades a um acontecimento futuro é baseada na frequência da sua ocorrência no passado. Mas a única justificação para supor que a probabilidade se verificará no futuro é, ela mesma, indutiva. Logo, trata-se de um argumento circular, uma vez que confia na indução para justificar a nossa confiança na indução.

5.4 FALSIFICACIONISMO: CONJECTURA E REFUTAÇÃO

Outra saída para o problema da indução, pelo menos tal como ele afecta o tema do método

científico, é negar que a indução seja a base do método científico. O falsificacionismo, a filosofia da ciência desenvolvida por Karl Popper (1902-1994), entre outros, ocasiona isto mesmo. Os falsificacionistas defendem que a perspectiva simples da ciência está errada. Os cientistas não começam por fazer observações, começam com uma teoria. As teorias científicas e as chamadas leis da natureza não aspiram à verdade: ao invés, são tentativas especulativas de oferecer uma análise de vários aspectos da natureza. São conjecturas: suposições bem informadas, concebidas para serem melhores do que as teorias anteriores.

Estas conjecturas são então sujeitas a testes experimentais. Mas estes testes têm um objectivo muito específico. Não pretendem demonstrar que a conjectura é verdadeira, mas antes demonstrar que é falsa. A ciência funciona tentando falsificar teorias, e não demonstrar que são verdadeiras. Qualquer teoria que se mostre ser falsa é abandonada ou, pelo menos, modificada. A ciência progride, assim, através de conjecturas e refutações. Nunca podemos ter a certeza, em relação a qualquer teoria, de que ela é absolutamente verdadeira: em princípio, qualquer teoria pode ser falsificada. Esta perspectiva parece adaptar-se bem ao progresso testemunhado na história da ciência: a visão ptolemaica do universo, que coloca a Terra no seu centro, foi ultrapassada pela copernicana; a física de Newton foi ultrapassada pela física de Einstein.

A falsificação tem pelo menos uma grande vantagem em relação à perspectiva simples da ciência: um único caso de falsificação é suficiente para mostrar que uma teoria não é satisfatória, ao passo que, por mais observações que confirmem uma teoria, nunca podem ser suficientes para nos darem cem por cento de certeza de que a teoria será confirmada por todas as observações futuras. Esta é uma característica dos enunciados universais. Se digo «Todos os cisnes são brancos», basta a observação de um único cisne preto para refutar a minha teoria. Contudo, se eu observar dois milhões de cisnes brancos, o próximo cisne que observar pode muito bem ser preto: por outras palavras, a generalização é muito mais fácil de refutar do que de demonstrar. Falsificabilidade O falsificacionismo proporciona também uma maneira de distinguir as hipóteses científicas úteis das hipóteses irrelevantes para a ciência. O teste da utilidade de uma teoria é o seu grau de falsificabilidade. Uma teoria é inútil para a ciência — na verdade, nem sequer é uma hipótese científica — se não for possível que exista qualquer observação que a falsifique. Por exemplo, é relativamente simples conceber testes que poderiam falsificar a hipótese «A chuva em Espanha

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atinge principalmente a planície», ao passo que nenhum teste pode mostrar que é falso que «Ou vai chover hoje ou não». Este último enunciado é verdadeiro por definição e portanto não tem nada a ver com a observação empírica: não é uma hipótese científica.

Quanto mais falsificável for um enunciado, mais útil é à ciência. Muitos enunciados são expressos de forma vaga, fazendo que seja bastante difícil ver como poderiam ser testados e como interpretar os resultados. Um enunciado arrojado e falsificável, contudo, mostrará muito rapidamente ser falso, ou então resistirá à falsificação. Em qualquer dos casos ajudará ao progresso da ciência: se for falsificável, contribuirá para encorajar o desenvolvimento de uma hipótese que não possa ser assim tão facilmente refutada; se mostrar ser difícil de falsificar, fornecerá uma teoria convincente, e quaisquer novas teorias serão ainda melhores. • Ao examinar melhor algumas hipóteses que muitas pessoas pensam serem científicas verificamos não serem testáveis: não há observações que as falsifiquem. U m exemplo controverso disto ocorre no caso da psicanálise. Alguns falsificacionistas argumentaram que muitas das afirmações da psicanálise são logicamente infalsificáveis, não sendo, portanto, científicas. Se um psicanalista afirma que o sonho de um certo doente é de facto acerca de um conflito sexual não resolvido da sua infância, não há nenhuma observação que possa falsificar esta afirmação. Se o doente negar a existência de qualquer conflito, o analista tomará isto como mais uma confirmação de que o doente está a reprimir algo. Se o doente admitir que a interpretação do analista é correcta, também isto irá confirmar a hipótese. Logo, não há maneira de falsificar a afirmação, não podendo portanto aumentar o nosso conhecimento do mundo. Portanto, segundo os falsificacionistas, é uma hipótese pseudocientífica: não é de maneira nenhuma uma verdadeira hipótese científica. Contudo, só porque uma teoria não é científica neste sentido, não se segue que não tenha valor. Popper pensava que muitas das afirmações da psicanálise poderiam eventualmente tornar-se testáveis, mas que, na sua forma pré-científica, não deveriam ser tomadas como hipóteses científicas.

A razão para evitar hipóteses que não podem ser testadas é o facto de impedirem o progresso científico: se não é possível refutá-las, não há maneira de as substituir por uma teoria melhor. O processo da conjectura e refutação característico do progresso científico seria contrariado. A ciência progride através dos erros: através de teorias que são falsificadas e substituídas por outras melhores. Neste sentido, há um certo grau de tentativa e erro na ciência. Os cientistas experimentam uma hipótese, verificam se podem falsificá-la e, se o conseguirem, substituem-na por outra melhor, que é então sujeita ao mesmo tratamento. Todas as hipóteses substituídas — os erros — contribuem para o acréscimo geral do nosso conhecimento do mundo. Ao invés, as teorias logicamente infalsificáveis são, a esse respeito, pouco úteis para o cientista.

Muitas das mais revolucionárias teorias científicas tiveram origem em conjecturas arrojadas e imaginativas. A teoria de Popper sublinha a imaginação criativa envolvida na concepção de novas teorias. A este respeito dá uma explicação mais plausível da criatividade cientifica do que a perspectiva simples, que faz das teorias científicas deduções lógicas a partir das observações.

5.5 CRÍTICAS AO FALSIFICACIONISMO

5.5.1 O papel da confirmação

Uma crítica ao falsificacionismo é o facto de não conseguir tomar em linha de conta o papel

da confirmação de hipóteses na ciência. Ao concentrar-se nas tentativas de falsificar hipóteses, não presta atenção aos efeitos das previsões bem sucedidas sobre a aceitação ou não de uma hipótese científica. Por exemplo, se a minha hipótese afirma que a temperatura a que a água entra em ebulição varia de forma constante em relação à pressão atmosférica do ambiente em que a

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experiência for conduzida, isto permitir-me-á fazer várias previsões acerca da temperatura a que a água entrará em ebulição sob diferentes pressões. Por exemplo, poderá levar-me a prever — e bem — que os montanhistas não conseguirão fazer uma boa chávena de chá a altitudes elevadas porque a água entra em ebulição a uma temperatura inferior a 100°C, de forma que a infusão das folhas de chá não se daria da forma apropriada. Se se mostrar que as minhas previsões são precisas, esse facto servirá para apoiar a minha teoria. O tipo de falsificacionismo descrito acima ignora este aspecto da ciência. Previsões bem sucedidas com base em hipóteses, sobretudo se são hipóteses invulgares e originais, desempenham um papel importante no desenvolvimento científico.

Isto não destrói o falsificacionismo: o poder lógico de uma única observação falsificadora continuará a ser sempre maior do que qualquer número de observações confirmadoras. No entanto, o falsificacionismo precisa de ser ligeiramente modificado para dar conta do papel desempenhado pela confirmação de hipóteses.

5.5.2 Erro humano

O falsificacionismo parece advogar o derrube de uma teoria com base num único caso de

falsificação. Contudo, na prática há muitas componentes em qualquer experiência ou estudo científico, havendo geralmente margem considerável para o erro e a má interpretação dos resultados. Os aparelhos de medição podem funcionar mal ou os métodos de recolha de dados podem não ser fidedignos. Assim, os cientistas não deviam, certamente, ser facilmente influenciados por uma observação única que pareça destruir uma teoria. Popper concordaria com isto. Não se trata de um problema sério para o falsificacionismo. Do ponto de vista da lógica é claro que, em princípio, um único caso falsificador pode destruir uma teoria. Contudo, Popper não sugere que os que praticam a ciência devem pura e simplesmente abandonar uma teoria assim que tiverem um caso que aparentemente a falsifique: pelo contrário, devem ser cépticos e investigar todas as origens possíveis de erro. Historicamente incorrecto O falsificacionismo não dá adequadamente conta de muitos dos desenvolvimentos mais significativos da história da ciência. A revolução copernicana, a ideia de que o Sol estava no centro do universo e de que a Terra e os outros planetas o orbitavam, ilustra o facto de a presença de casos aparentemente falsificadores não ter conduzido as grandes figuras à rejeição das suas hipóteses. Agarraram-se às suas teorias perante dados em contrário que, segundo os padrões da época, eram arrasadores. A alteração do modelo científico da natureza do universo não ocorreu segundo um processo de conjecturas seguido de refutações. Só depois de vários séculos de desenvolvimento da física pôde a teoria ser adequadamente testada em função da observação.

Analogamente, a teoria da gravitação de Isaac Newton (1642-1727) foi aparentemente falsificada por observações da órbita lunar, realizadas pouco depois da apresentação pública da sua teoria. Só muito mais tarde se mostrou que estas observações tinham sido enganadoras. Apesar desta refutação aparente, Newton e outros cientistas mantiveram-se fiéis à teoria da gravitação, o que teve efeitos benéficos para o desenvolvimento da ciência. No entanto, segundo a perspectiva falsificacionista de Popper, a teoria de Newton deveria ter sido abandonada por ter sido falsificada.

O que estes dois exemplos sugerem é que a teoria falsificacionista da ciência nem sempre se ajusta muito bem à história efectiva da ciência. A teoria precisa pelo menos de ser modificada para poder explicar de forma precisa como as teorias científicas são substituídas.

5.5.3 Conclusão

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Neste capítulo centrei-me no problema da indução e na perspectiva falsificacionista do método científico. Apesar de as pessoas que fazem ciência não precisarem de estar conscientes das implicações filosóficas do que fazem, muitas delas foram influenciadas pela explicação falsificacionista do progresso científico. Apesar de a filosofia não afectar necessariamente a forma como os cientistas trabalham, pode, sem dúvida, alterar a forma como compreendem o seu trabalho.

5.6 LEITURA COMPLEMENTAR

What Is This Thing Called Science? (Milton Keynes, Open University Press, 1978), de A. F.

Chalmers, é uma excelente introdução a esta área: está bem escrito e é estimulante. Cobre de forma acessível a maior parte dos temas importantes da filosofia contemporânea da ciência. Philosophy of Natural Science (Nova Jérsia, Prentice-Hall, 1966), de C. G. Hempel, e An Introduction to the Philosophy of Science (Oxford, Clarendon Press, 1989), de Anthony O'Hear, podem também ser úteis. Popper (Londres, Fontana, 1973), de Bryan Magee, é uma boa introdução à obra de Karl Popper. A Historical Introduction to the Philosophy of Science (Oxford, Oxford University Press, 3.a ed., 1993), de John Losee, oferece um estudo claro e interessante da história da filosofia da ciência.

6 MENTE

O que é a mente? Teremos nós almas não físicas? É o pensamento apenas um aspecto da matéria física, unicamente um resultado do estímulo de nervos no cérebro? Como poderemos ter a certeza de que as outras pessoas não são apenas robots sofisticados? Como podemos afirmar que são efectivamente conscientes? Todas estas questões pertencem à área da filosofia da mente.

6.1 FILOSOFIA DA MENTE E PSICOLOGIA

A filosofia da mente deve distinguir-se da psicologia, apesar de as suas relações serem estreitas. A psicologia é o estudo científico do comportamento e pensamento humanos: baseia-se na observação das pessoas, muitas vezes sob condições experimentais. Ao invés, a filosofia da mente não é uma disciplina experimental: não envolve a produção de verdadeiras observações científicas. A filosofia centra-se na análise dos nossos conceitos.

Os filósofos da mente ocupam-se de questões conceptuais que surgem quando pensamos acerca da mente. Um psicólogo pode investigar, por exemplo, alterações da personalidade, como a esquizofrenia, através do exame de doentes, submetendo-os a testes, etc. Um filósofo, por outro lado, coloca questões conceptuais como «O que é a mente?» ou «Que queremos dizer com 'doença mental'?». Tais questões não podem ser respondidas através do exame só de casos reais: exigem que analisemos o significado dos termos nos quais as próprias questões se exprimem.

Para ilustrar este aspecto considere-se outro exemplo. Um neuropsicólogo que investigue o pensamento humano pode observar padrões de estimulação nervosa no cérebro. Um filósofo da mente colocaria a questão conceptual mais básica de saber se a actividade destes nervos é equivalente ao pensamento ou se existe alguma característica do nosso conceito de pensamento que signifique que não pode ser reduzido a uma ocorrência física. Ou, para colocar a questão de uma forma mais tradicional, teremos nós mentes distintas dos nossos corpos?

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Neste capítulo, examinaremos alguns dos debates centrais da filosofia da mente, concentrando-nos nas questões de saber se uma explicação física da mente é adequada e se podemos ter conhecimento das mentes das outras pessoas.

6.2 O PROBLEMA DA MENTE /CORPO

Na forma como nos descrevemos a nós próprios e ao mundo fazemos geralmente uma

distinção entre os aspectos mentais e os aspectos físicos. Os aspectos mentais são coisas como o pensamento, o sentimento, A decisão, o sonho, a imaginação, os desejos, etc. Os físicos incluem os pés, os membros, os nossos cérebros, chávenas de chá, o Empire State Building, etc.

Quando fazemos algo, tal como jogar ténis, usamos ambos os aspectos, mentais e físicos: pensamos nas regras do jogo, de onde o nosso adversário irá provavelmente fazer a próxima jogada, etc., e movemos os nossos corpos. Mas existirá uma verdadeira divisão entre a mente e o corpo, ou será esta apenas uma forma conveniente de falar sobre nós mesmos? O problema de explicar a verdadeira relação entre a mente e o corpo é conhecido como o problema da mente/corpo.

Chamam-se dualistas aos que acreditam que a mente e o corpo são coisas separadas, que cada um de nós tem as duas coisas, a mente e o corpo. Os que acreditam que o mental é, num certo sentido, a mesma coisa que o físico, que não somos mais do que carne e sangue e que não temos uma substância mental separada são conhecidos como fisicalistas. Começaremos por considerar o dualismo e as suas principais críticas.

6.3 DUALISMO

O dualismo, como vimos, envolve a crença na existência de uma substância não física: o

mental. Um dualista acredita tipicamente que o corpo e a mente são substâncias distintas que interagem uma com a outra, mas que permanecem separadas. Os processos mentais, tais como o pensamento, não são o mesmo que os físicos, tais como o disparar das células do cérebro; os processos mentais ocorrem na mente, e não no corpo. A mente não é o cérebro vivo.

O dualismo mente/corpo é uma perspectiva defendida por muita gente, sobretudo aqueles que acreditam ser possível sobreviver à nossa morte corpórea, quer vivamos num tipo qualquer de mundo de espíritos, quer reencarnemos num novo corpo. Ambas estas perspectivas pressupõem que os seres humanos não são apenas seres físicos e que a nossa componente mais importante é a mente não física ou, como é geralmente chamada em contextos religiosos, a alma. René Descartes é provavelmente o dualista mente/corpo mais famoso: tal dualismo é geralmente conhecido como dualismo cartesiano (o adjectivo «cartesiano» é formado a partir do nome de Descartes).

Um motivo forte para acreditar que o dualismo é verdadeiro é a dificuldade que quase toda a gente tem em ver como pode uma coisa puramente física, como o cérebro, dar origem aos complexos padrões de sentimentos e pensamentos a que chamamos consciência. Como poderia uma coisa puramente física sentir melancolia ou apreciar uma pintura? Tais questões dão ao dualismo uma plausibilidade inicial, enquanto solução do problema da mente/corpo. Contudo, há várias críticas importantes a esta teoria.

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6.4 CRÍTICAS AO DUALISMO

6.4.1 Não pode ser cientificamente investigado

Uma crítica por vezes levantada ao dualismo mente/ /corpo defende que esta perspectiva

não nos ajuda realmente a compreender a natureza da mente. Tudo o que nos diz é que existe em cada um de nós uma substância não física que pensa, sonha, tem experiências, etc. Mas, alegam os fisicalistas, uma mente não física não poderia ser investigada directamente: em particular, não poderia ser investigada cientificamente, porque a ciência só lida com o mundo físico. Tudo o que poderíamos examinar seriam os seus efeitos no mundo. Contra isto, o dualista poderia responder que podemos observar a mente através da introspecção, isto é, através do exame do nosso pensamento. E nós podemos investigar, e investigamos de facto, a mente indirectamente, através dos seus efeitos no mundo físico. A inferência de causas a partir de efeitos é a maneira como a maior parte da ciência funciona; a investigação científica de uma mente não física seria um exemplo do mesmo tipo de abordagem. Além disso, o dualismo mente/corpo tem pelo menos a vantagem de explicar como poderia ser possível sobreviver à morte corpórea, algo que o fisicalismo não pode fazer sem introduzir a ideia de ressurreição do corpo depois da morte. Evolução Aceita-se geralmente que os seres humanos evoluíram a partir de formas de vida mais simples. Contudo, um dualista terá dificuldade em explicar como poderá isto ter sido assim. Presumivelmente, as formas de vida muito simples, tais como as amebas, não têm mentes, ao passo que os seres humanos, e talvez alguns dos animais mais complexos, as têm. Mas então como poderão as amebas ter dado origem a criaturas que têm mentes? De onde poderia esta substância mental ter subitamente aparecido? E por que razão é a evolução da mente completamente paralela à evolução do cérebro?

Uma maneira de responder a esta crítica é afirmar que mesmo as amebas têm mentes de um tipo muito limitado e que a evolução da mente é paralela à evolução dos corpos dos animais. Ou então o dualista poderia ir mais longe e afirmar que todas as coisas físicas têm também uma mente de um certo tipo: esta última perspectiva é conhecida como pampsiquismo. De acordo com os partidários do pampsiquismo, até as pedras têm mentes muito primitivas. O desenvolvimento da capacidade mental humana pode então ser explicado em termos de uma combinação de substâncias físicas, constituindo assim uma fusão de mentes simples que criam uma mente mais complexa. Contudo, poucos dualistas são simpáticos a esta abordagem, em parte porque obscurece a distinção entre seres humanos e aquilo que consideramos o mundo inanimado.

6.4.2 Interacção

A dificuldade mais séria que o dualista enfrenta consiste em explicar como é possível que duas substâncias tão diferentes como a mente e o corpo possam interagir. Na perspectiva do dualista é claro que, por exemplo, posso ter um pensamento, dando este pensamento em seguida origem a um movimento. Por exemplo, posso pensar que vou coçar o nariz, movendo-se de seguida o meu dedo em direcção ao meu nariz, coçando-o. A dificuldade para o dualista é mostrar precisamente como pode o pensamento puramente mental conduzir à acção física de coçar o nariz.

Esta dificuldade torna-se mais crítica pelo facto de os acontecimentos no cérebro estarem ligados de forma muito íntima a acontecimentos mentais. Para quê introduzir a ideia de que a mente é distinta do corpo quando é óbvio que, por exemplo, as lesões cerebrais graves conduzem à deficiência mental? Se a mente e o corpo são realmente distintos, como se explica isto? 192

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6.4.3 Contradiz um princípio científico básico

Outro aspecto da dificuldade de explicar a interacção é que esta parece contradizer um

princípio muito básico da ciência. A maior parte dos cientistas, sobretudo os fisicalistas, presume que todas as mudanças num objecto podem ser explicadas por um acontecimento físico anterior: as causas de todos os acontecimentos físicos são, elas próprias, físicas. Assim, por exemplo, se uma célula nervosa no cérebro de alguém dispara, um neuropsicólogo irá procurar uma das suas causas físicas. Mas, se o pensamento puro, que é uma actividade da mente, pode levar à acção, alguns acontecimentos meramente mentais têm de conduzir directamente a acontecimentos físicos. Os dualistas têm de justificar a revisão de um pressuposto muito básico da ciência. É claro que eles podem sentir que têm a possibilidade de justificar esta revisão afirmando que a verdade do dualismo é auto-evidente; mas, se duvidarmos disto, parece mais sensato presumir que é a teoria do dualismo que está errada, e não aquele pressuposto científico, que até agora produziu resultados tão frutuosos na investigação científica.

6.5 DUALISMO SEM INTERACÇÃO

6.5.1 Paralelismo mente/corpo

Uma maneira de o dualista contornar os problemas associados com a explicação de como é

possível a interacção mente/corpo é negar pura e simplesmente a sua ocorrência. Alguns dualistas defendem que, apesar de ambos existirem, a mente e o corpo, e de cada um de nós ter um de cada, não existe interacção efectiva entre eles. Esta ideia ligeiramente estranha é conhecida como paralelismo psicofísico. A mente e o corpo funcionam em paralelo como dois relógios sincronizados. Quando alguém me pisa, sinto uma dor, mas não por receber uma mensagem do meu corpo para a minha mente. Acontece apenas que Deus (ou então uma coincidência cosmológica espantosa) fez que esses dois aspectos independentes da minha pessoa funcionassem em paralelo. No momento em que alguém me pisa, as coisas foram arranjadas de maneira que eu sinta dor na minha mente, mas o primeiro acontecimento não causa o segundo: acontece apenas que um ocorre imediatamente depois do outro.

6.5.2 Ocasionalismo

Outra tentativa igualmente estranha de explicar como a mente e o corpo podem interagir é conhecida como ocasionalismo. Ao passo que o paralelismo afirma que a existência de uma ligação aparente entre a mente e o corpo é uma ilusão, o ocasionalismo permite a existência real de uma ligação, mas defende que esta é sustentada pela intervenção de Deus. Deus proporciona a conexão entre a mente e o corpo, entre a lesão do meu pé e a minha sensação de dor ou entre a minha decisão de coçar o nariz e o movimento da minha mão.

Um enorme problema que se depara quer ao paralelismo mente/corpo, pelo menos na sua forma mais plausível, quer ao ocasionalismo, é o facto de ambos pressuporem a existência de Deus, algo que, como vimos no capítulo 1, não é de forma alguma auto-evidente. Além disso, até os teístas costumam achar estas teorias um pouco rebuscadas.

6.5.3 Epifenomenismo

Uma terceira abordagem do problema da interacção é conhecida como epifenomenismo. Trata-se da

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perspectiva segundo a qual, apesar de os acontecimentos no corpo causarem os acontecimentos mentais, os acontecimentos mentais nunca causam acontecimentos físicos nem dão origem a outros estados mentais. A mente é então um epifenómeno: por outras palavras, é algo que não afecta directamente o corpo de forma nenhuma. O epifenomenista explica a minha aparente capacidade de levantar a minha mão concebendo-a Como uma ilusão. Levantar a minha mão é uma acção puramente física que só parece ser causada pelo meu pensamento. Todos os acontecimentos mentais são directamente causados por acontecimentos físicos, mas nenhuns acontecimentos mentais dão origem a acontecimentos físicos. Tal como o paralelismo e o ocasionalismo, o epifenomenismo tem pouca plausibilidade enquanto teoria da mente. Levanta tantas questões difíceis quantas as respostas que oferece. Um dos problemas mais graves a si associados é o facto de tornar o livre nrbítrio uma impossibilidade: nunca podemos realmente escolher agir, tudo o que podemos ter é a ilusão de agir em consequência de uma escolha. E por que razão só há causalidade numa direcção, tendo as causas físicas efeitos mentais, mas nunca vice-versa?

6.6 FISICALISMO

Depois de termos examinado o dualismo mente/ /corpo e as suas várias críticas e variantes, voltemo -nos agora para o fisicalismo. O fisicalismo é a perspectiva segundo a qual os acontecimentos mentais podem ser completamente explicados em termos de acontecimentos físicos, habitualmente e m termos do cérebro. Ao contrário do dualismo m e n t e / c o r p o , que a f i r m a a existência de dois tipos de substâncias , o fisicalismo é uma forma de m on i s m o : é a perspectiva de que só existe um tipo de substância, a física. U m a vantagem imediata do fisicalismo em relação ao dualismo é o facto de sugerir um programa de estudo científico da mente. Teoricamente, pelo menos, deve ser possível oferecer uma descrição c o m p l e t a m e n t e física de qualquer acontecimento mental. Os filósofos fisicalistas não procuram descobrir a correspondência precisa entre os estados mentais particulares e os pensamentos: essa é uma tarefa para os neuropsicólogos e outros cientistas. Tais filósofos estão sobretudo preocupados em demonstrar que todos os acontecimentos mentais são físicos e que o dualismo é, portanto, falso.

Há vários tipos de fisicalismo, alguns mais susceptíveis de crítica do que outros.

6.7 TEORIA DA IDENTIDADE-TIPO

Este tipo de fisicalismo afirma que os estados mentais são idênticos a estados físicos. U m

pensamento acerca do tempo, por exemplo, é unicamente um estado particular do cérebro. Sempre que este estado particular do cérebro ocorre, podemos descrever isto como u m pensamento acerca do tempo. Isto é conhecido como teoria da identidade-tipo. Todos os estados físicos de um tipo particular são também estados mentais de um tipo particular.

Para tornar esta perspectiva clara, considere-se como os termos «água» e «H20» referem ambos a mesma substância. Usamos o termo «água» em contextos quotidianos e «H20» em contextos científicos. Ora, apesar de ambos os termos referirem a mesma coisa, têm significados ligeiramente diferentes: «água» é usado para chamar a atenção para as propriedades básicas de humidade, etc., da substância; «H20» é usado para revelar a sua composição química. Ninguém pede um copo de H20 para misturar com o uísque; no entanto, n água é H20: são uma e a mesma coisa.

Analogamente, um relâmpago é também uma descarga eléctrica de um certo tipo. Usaremos

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«relâmpago» ou «descarga eléctrica» para descrever este acontecimento consoante tivermos sido apanhados por uma tempestade ou estivermos a fornecer uma análise científica do que se está a passar. Podemos usar o termo quotidiano, «relâmpago», sem ter nenhuma consciência da análise científica da causa deste fenómeno, tal como podemos usar o termo «água» e compreender o que é ficar molhado, sem saber a composição química da água.

Regressando à teoria da identidade mente/corpo, «um pensamento acerca do tempo» e «um estado particular do cérebro» podem ser duas maneiras de referir precisamente a mesma coisa. As duas expressões descrevem um acontecimento idêntico, mas o significado das expressões é, de certo modo, diferente. Quase toda a gente usaria a descrição mental, «um pensamento acerca do tempo», para descrever essa coisa, mas, de acordo com a teoria da identidade-tipo, um cientista poderia, em princípio, oferecer uma análise detalhada do estado do cérebro que este pensamento constitui. Além disso, um teórico da identidade-tipo argumentaria que todos os pensamentos deste tipo são efectivamente estados cerebrais do mesmo tipo. Uma vantagem desta teoria da mente é sugerir o tipo de coisas que os neuropsicólogos podem procurar, nomeadamente os estados físicos do cérebro que correspondem a vários tipos de pensamento. Contudo, há várias objecções à teoria da identidade-tipo.

6.8 CRÍTICAS À TEORIA DA IDENTIDADE-TIPO

6.8.1 Não há conhecimento dos processos cerebrais

Temos um conhecimento directo dos nossos pensamentos; no entanto, quase ninguém sabe

nada de processos cerebrais. Algumas pessoas encaram isto como uma objecção ao fisicalismo: o pensamento não pode ser a mesma coisa que um processo cerebral, porque é possível conhecer o pensamento sem saber nada de neuropsicologia. Todos nós temos um acesso privilegiado aos nossos próprios pensamentos: isto é, sabemos melhor do que qualquer outra pessoa o que são os nossos próprios pensamentos conscientes, mas o mesmo não acontece em relação aos estados do cérebro. No entanto, se os pensamentos e os estados do cérebro são idênticos, deveriam partilhar as mesmas propriedades.

Contudo, esta objecção não é um problema sério para o fisicalista. Podemos não saber nada acerca da composição química da água; no entanto, isto não nos impede de compreender o conceito de «água» e de reconhecer o seu sabor quando a bebemos. Analogamente, todos os pensamentos podem ser processos do 198 cérebro sem que, no entanto, exista razão para esperar que os pensadores têm de compreender a natureza precisa destes processos do cérebro para poderem compreender os seus pensamentos. As propriedades dos pensamentos c dos estados do cérebro Se um pensamento acerca da minha irmã é idêntico a um certo estado do cérebro, segue-se que o pensamento tem de estar localizado exactamente no mesmo sítio do estado cerebral. Mas isto parece um pouco estranho: os pensamentos não parecem ter uma localização precisa neste sentido. No entanto, deveriam tê-la, pois isso é uma consequência da teoria da identidade-tipo. Se tenho uma pós-imagem verde fluorescente provocada por fixar a vista numa luz intensa, esta pós-imagem tem um certo tamanho, uma cor lívida e uma forma específica; no entanto, o estado do meu cérebro é, presumivelmente, muito diferente em relação a estes aspectos. C o m o pode então a pós-imagem ser idêntica a uni estado específico do cérebro? Todos os pensamentos são acerca de algo Todos os pensamentos são acerca de algo: é impossível ter um pensamento acerca de nada. Se eu penso «Paris é a minha cidade favorita», o meu pensamento relaciona-se com um local no mundo real. Mas os processos e

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estados do cérebro não parecem ser acerca de nada: ao contrário dos pensamentos, não parecem relacionar-se com nada de exterior.

6.8.2 Qualia

O fisicalismo-tipo, como muitas tentativas de solução do problema da mente/corpo, é muitas

vezes criticado por não conseguir dar conta da experiência consciente: o que é estar efectivamente num certo estado. A consciência pode ser difícil de definir, mas inclui certamente sensações, sentimentos, dor, alegria, desejo, etc. A palavra latina qualia é por vezes usada como um termo geral para designar tais coisas. Apesar de podermos falar de «água» e «H20» como descrições alternativas da mesma coisa, «uma recordação da primeira vez que avistei Nova Iorque» não pode ser tão facilmente parafraseada em termos de «um certo estado do cérebro». A diferença é que no segundo caso não estamos a lidar com objectos inanimados: há um sentimento específico correspondente a essa experiência consciente. No entanto, reduzir completamente este pensamento a um estado do cérebro não oferece nenhuma explicação de como isto pode ser possível. Ignora um dos fenómenos mais básicos associados à consciência e ao pensamento: a existência de qualia. Para destacar este aspecto, considere-se a diferença entre os aspectos puramente físicos de uma dor terrível — em termos do comportamento das células nervosas, etc. — e a sensação real e lancinante de dor: a descrição física é claramente incapaz de captar o que é realmente sofrer essa experiência.

6.8.3 Diferenças individuais

Outra crítica ainda à teoria da identidade-tipo resulta do facto de sustentar que, por exemplo,

os pensamentos acerca do tempo têm todos de ser estados do cérebro de tipo idêntico, mesmo quando os pensamentos pertencem a pessoas diferentes. Mas podem existir boas razões para acreditar que os cérebros de pessoas diferentes funcionam de formas ligeiramente diferentes, de maneira que cérebros diferentes em pessoas diferentes possam, apesar disso, dar origem a um pensamento análogo.

Mesmo esta ideia pressupõe que os pensamentos podem ser claramente divididos, que podemos dizer onde acaba um pensamento e começa outro. Um pressuposto básico da teoria da identidade-tipo é que duas pessoas podem ter pensamentos precisamente do mesmo tipo. Uma análise mais detalhada mostra que este parece ser um pressuposto dúbio. Se o leitor e eu estamos a pensar que o céu escuro é bonito, podemos exprimir-nos com palavras idênticas. Podemos ambos chamar a atenção para a forma especial como a Lua ilumina as nuvens, etc. Mas estaremos nós necessariamente a ter um pensamento do mesmo tipo?

O meu pensamento acerca da beleza do céu não pode isolar-se facilmente de toda a minha experiência de céus nocturnos, que é obviamente muito diferente da do leitor. Outro caso: se acredito que o autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro usou um pseudónimo e se o leitor acredita que Eric Blair usou um pseudónimo, partilharemos nós um pensamento do mesmo tipo? Certamente que os enunciados das nossas crenças referem o mesmo homem, geralmente conhecido em círculos literários como George Orwell. No entanto, não há uma resposta fácil a estas questões. O que elas mostram é a dificuldade de dividir a nossa vida mental em pedaços claramente definidos que possam depois ser removidos e comparados com os pedaços da vida mental de outras pessoas. Se é impossível determinar quando duas pessoas têm pensamentos do mesmo tipo, o fisicalismo do género identidade-tipo é implausível enquanto teoria da mente.

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6.9 TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME

Uma forma de contornar algumas destas críticas à teoria da identidade-tipo é fornecida pela

teoria da identidade-espécime. Tal como a teoria da identidade-tipo, a teoria da identidade-espécime, que é outra forma de fisicalismo, afirma que todos os pensamentos são idênticos a estados do cérebro. Contudo, ao contrário da teoria da identidade-tipo, a teoria da identidade-espécime permite que os pensamentos do mesmo tipo não sejam todos estados cerebrais do mesmo tipo. Esta teoria usa a distinção básica entre «tipo» e «espécime»: esta distinção explica-se mais facilmente através de exemplos. Todos os exemplares do livro Guerra e Paz são espécimes de um tipo específico (o romance Guerra e Paz); se o leitor possui um Volkswagen «carocha», possui um espécime de um tipo específico (um «carocha»). O tipo é a espécie; o espécime é o caso individual da espécie. O que a teoria da identidade-espécime afirma é que os espécimes individuais de um tipo específico de pensamento não são necessariamente estados físicos precisamente do mesmo tipo.

Assim, quando penso hoje «Bertrand Russell era um filósofo», isto pode envolver um estado do cérebro diferente do de quando tive esse pensamento ontem. Analogamente, para que o leitor tenha este pensamento, não precisa de estar no mesmo estado cerebral em que eu estava em qualquer das duas situações anteriores. A teoria da identidade-espécime, contudo, está sujeita a pelo menos uma crítica fundamental.

6.10 CRÍTICAS À TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME

6.10.1 Alguns estados do cérebro podem ser pensamentos diferentes

Esta simples identidade-espécime parece permitir que duas pessoas sejam fisicamente

idênticas, até à mais pequena molécula, e, no entanto, diferir completamente do ponto de vista mental. Isto parece tornar o mental excessivamente independente do físico. Torna a relação entre o físico e o mental completamente misteriosa: mais misteriosa até do que o dualismo mente/corpo.

Contudo, os teóricos da identidade-espécime introduzem geralmente a noção de superveniência na sua teoria. Uma propriedade de algo é superveniente em relação a outra propriedade (literalmente, «vai mais nlto») se a sua existência depende dessa outra. Assim, por exemplo, pode dizer-se que a beleza (física) é superveniente em relação aos atributos físicos: se duas pessoas são fisicamente idênticas, é impossível que uma delas seja bonita e a outra não. Contudo, isto não é afirmar que todas as pessoas bonitas são idênticas; quer dizer apenas que, se duas pessoas são idênticas célula a célula, não é possível que uma delas seja bonita e a outra não. Se adaptarmos a teoria da identidade-espécime, acrescentando-lhe a ideia de que as propriedades mentais são supervenientes em relação às propriedades físicas, isto significa que, se se mantiverem as mesmas propriedades físicas, as propriedades mentais não podem variar. Por outras palavras, se duas pessoas estão precisamente no mesmo estado cerebral, terão a mesma experiência mental. Contudo, isto não significa que só porque duas pessoas partilham a mesma experiência mental tenham de ter o mesmo estado cerebral.

6.11 BEHAVIOURISMO

Em relação às teorias dualistas e fisicalistas examinadas, o behaviourismo oferece uma saída muito diferente para o problema da mente/corpo. Quando dizemos que alguém está com dores ou

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irritado, isto não é, defendem os behaviouristas, uma descrição da experiência mental dessa pessoa. Trata-se antes de uma descrição do comportamento público dessa pessoa ou do seu comportamento potencial em situações hipotéticas. Por outras palavras, trata-se de uma descrição do que ela faria em tais e tais circunstâncias, isto é, das suas disposições comportamentais. Ter dores é ter tendência para ficar inquieto, para gemer, chorar, gritar, etc., dependendo da intensidade da dor. Estar irritado é ter tendência para gritar, bater com os pés e ser rude com as pessoas. Apesar de falarmos de estados mentais, isto é apenas, segundo o behaviourista, uma forma abreviada de descrever o nosso comportamento e a tendência para nos comportarmos de certas formas. Esta forma abreviada de descrever o comportamento mental levou-nos a pensar que a mente é uma coisa separada: no seu livro The Concept of Mind, Gilbert Ryle (1900-1976), um famoso filósofo behaviourista, chamou a esta concepção dualista «o dogma do fantasma na máquina», sendo o fantasma a mente e a máquina o corpo.

A concepção behaviourista faz com que o problema da mente/corpo seja um pseudoproblema — e não um problema genuíno. Não há dificuldade em explicar a relação entre a mente e o corpo porque os padrões de comportamento dão perfeitamente conta da experiência mental. Logo, em vez de resolver o problema, os behaviouristas defendem tê-lo dissolvido completamente.

6.12 CRÍTICAS AO BEHAVIOURISMO

6.12.1 Fingimento

Uma crítica que por vezes se faz ao behaviourismo defende que esta concepção não

consegue distinguir entre uma pessoa que esteja efectivamente com dores e outra que finja estar com dores. Se tudo o que se diz do mental deve ser reduzido a descrições de comportamentos, então não pode haver uma explicação da diferença entre um actor convincente e alguém que está genuinamente em agonia.

Contra esta objecção, um behaviourista poderia fazer notai" que a análise disposicional de uma pessoa que finge ter dores seria diferente da de uma pessoa i|ue tivesse efectivamente dores. Apesar de o seus comportamentos serem superficialmente análogos, existiriam certamente aspectos em relação aos quais seriam diferentes. Por exemplo, é improvável que uma pessoa que finja estar com dores produza todas as características fisiológicas que acompanham a dor — mudanças de temperatura, suores, etc. Além disso, uma pessoa que fingisse estar com dores reagiria de forma muito diferente a analgésicos do que alguém que estivesse genuinamente com dores: o fingidor não teria maneira de saber em que momento os analgésicos teriam começado a surtir efeito, ao passo que a pessoa que estava efectivamente com dores o saberia, devido a uma mudança no seu comportamento relacionado com a dor.

6.12.2 Qualia

Outra crítica ao behaviourismo é que ele não consegue incluir nenhuma referência ao que se

sente efectivamente quando estamos num estado mental específico. Ao reduzir todos os acontecimentos mentais a tendências comportamentais, o behaviourismo deixa os qualia fora da equação. Uma das críticas mais importantes ã teoria é a afirmação de que ela reduz a experiência de ter efectivamente dores a ter pura e simplesmente uma disposição para gritar, ficar inquieto e dizer «Está a doer-me». Há algo que se sente efectivamente quando temos dores, e isto é um aspecto essencial da vida mental; no entanto, o behaviourismo ignora este aspecto.

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6.12.3 Como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças?

De acordo com o behaviourismo, a maneira como adquiro conhecimento das minhas

próprias crenças é precisamente igual à maneira como adquiro o conhecimento das crenças das outras pessoas, nomeadamente através da observação do comportamento. Mas esta é sem dúvida uma imagem inexacta do que acontece efectivamente. Pode ser verdade que eu faça descobertas interessantes acerca das minhas próprias crenças ao ouvir o que digo e ao prestar atenção ao que faço em várias circunstâncias. Contudo, não preciso de fazer observações do meu próprio comportamento para saber que acredito que o assassínio é errado ou que vivo na Inglaterra. Sei estas coisas sem precisar de agir como um detective privado que investiga o seu próprio comportamento. Logo, o behaviourismo não oferece uma explicação satisfatória da diferença entre formas de conhecimento de si e formas de descobrir quais são as crenças das outras pessoas.

Uma resposta possível a esta crítica defende que o que faço na introspecção (quando olho para o meu interior), para ver se acredito que, por exemplo, a tortura é cruel, é pensar para mim mesmo: «Que diria e faria eu se descobrisse que alguém estava a ser torturado?» A resposta a esta questão revelar-me-ia então as minhas disposições relevantes. Se isto for verdade, o behaviourista pode justificadamente presumir que não existe nenhuma diferença entre descobrir quais são as suas próprias crenças e descobrir quais são as crenças de outra pessoa qualquer. Contudo, esta análise da introspecção não é especialmente convincente: não coincide com o que sinto que faço quando pratico a introspecção.

6.12.4 A dor dos paralíticos

Dado que o behaviourismo se baseia inteiramente nas respostas ou possíveis respostas do

indivíduo em questão, parece seguir-se que, numa análise behaviourista, as pessoas que estão completamente paralíticas não podem ter experiências mentais. Se não se podem mexer, e nunca poderão fazê-lo, como podem apresentar um qualquer comportamento? Um behaviourista teria de dizer que as pessoas completamente paralíticas não podem sentir dor, uma vez que não mostram nenhum comportamento associado à dor. No entanto, a partir das informações fornecidas por pessoas que estiveram paralíticas, mas que recuperaram a mobilidade, sabemos que os paralíticos têm muitas vezes uma vida mental muito rica e que possuem, sem dúvida, a capacidade de sentir dor.

6.12.5 As crenças podem causar o comportamento

Uma outra crítica ao behaviourismo consiste em ele tornar impossível o comportamento de

alguém poder ser influenciado pelas suas crenças. Na análise behaviourista, a causa do acto de vestir a gabardina não é a crença de que está a chover; ao invés, é a tendência para vestir uma gabardina que constitui o elemento fundamental da crença. Os acontecimentos mentais não podem causar o comportamento porque não existem independentemente do comportamento: segundo o behaviourismo, os acontecimentos mentais são apenas disposições para certos comportamentos. No entanto, é certamente verdade que, pelo menos por vezes, os nossos acontecimentos mentais conduzem ao comportamento. Visto a minha gabardina porque penso que vai chover. Mas um behaviourista não poderia usar a minha crença de que vai chover, nem mesmo como uma explicação do meu comportamento, porque a minha crença é de facto constituída pelo comportamento e pela minha disposição para adoptar certos comportamentos: a crença e a acção

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não podem ser separadas.

6.12.6 Funcionalismo

O funcionalismo é uma abordagem do problema da mente/corpo recentemente desenvolvida. Concentra-se no papel funcional dos estados mentais: na prática, isto significa que se concentra nos dados de entrada (input), nos dados de saída (output) e na relação entre os estados internos. Um funcionalista define qualquer estado mental em termos das suas relações típicas com outros estados mentais e dos seus efeitos no comportamento. Assim, um pensamento acerca do tempo define-se em termos das suas relações com outros pensamentos e com o comportamento: o que me levou a ter esse pensamento; a sua relação com outros pensamentos; e o que esse pensamento me leva a fazer. Assim, o funcionalismo beneficia de algumas das ideias perspicazes do behaviourismo — tal como a de que a actividade mental está em geral intimamente ligada a disposições comportamentais—, ao mesmo tempo que admite que os acontecimentos mentais podem efectivamente causar comportamentos.

O funcionalismo pode compreender-se mais facilmente através de uma comparação com a relação entre um computador e o seu programa. Quando falamos de computadores, é conveniente distinguir entre o suporte físico (hardware) e o suporte lógico (software). O suporte físico de um computador é aquilo de que ele é efectivamente feito: transístores, circuitos, integrados de silicone, monitor, teclado, etc. O suporte lógico, por outro lado, é o programa, 0 sistema de operações que o suporte físico executa. O suporte lógico pode geralmente ser adaptado para ser usado em vários sistemas diferentes. O suporte lógico é habitualmente um complicado sistema de instruções dadas ao suporte físico do computador, que pode ser executado de várias formas, atingindo sempre o mesmo resultado.

O funcionalismo, enquanto teoria da mente, trata do suporte lógico do pensamento, e não do suporte físico. Neste aspecto assemelha-se ao behaviourismo. A o invés, o fisicalismo procura mostrar a relação existente entre certos fragmentos do suporte físico — o cérebro humano — e um pacote específico de suporte lógico — o pensamento humano. O funcionalismo não é de maneira nenhuma uma teoria acerca do suporte físico do pensamento, apesar de ser certamente compatível com vários tipos de fisicalismo: é neutro em relação à questão de saber em que tipos de sistemas físicos operam os programas mentais. O seu objectivo principal é especificar as relações existentes entre diferentes tipos de pensamentos e comportamentos.

6.13 CRÍTICAS AO FUNCIONALISMO

6.13.1 Qualia: computadores e pessoas

Apesar de o funcionalismo ser uma teoria da mente extremamente popular no meio

filosófico, uma crítica frequente afirma que esta concepção não dá adequadamente conta da experiência e sensações conscientes: o que é ter dores, estar feliz, estar a pensar acerca do tempo, etc.

Uma objecção análoga é muitas vezes levantada à perspectiva segundo a qual os computadores têm mentes. Por exemplo, o filósofo contemporâneo John Searle usou uma experiência mental para tentar indicar a diferença entre a compreensão que um ser humano tem de uma história e a «compreensão» que um computador tem dela. Imagine o leitor que está fechado num quarto e que não percebe chinês. Pela caixa do correio da porta entram vários caracteres Chineses impressos em pedaços de cartão. Numa mesa do quarto está um livro e um monte de

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pedaços de cartão com outros caracteres chineses. A sua tarefa é fazer coincidir o carácter chinês do pedaço de cartão que entrou pela caixa do correio com u m carácter chinês do livro. O livro indica então outro carácter chinês diferente, que está colocado ao lado do primeiro. O leitor tem de tirar este outro carácter do monte de cartões que estão em cima da mesa, mandando-o para fora pela caixa do correio. Do exterior do quarto parece que o leitor responde em chinês a perguntas acerca de uma história. Os cartões que entram no quarto são perguntas escritas em chinês; os cartões que o leitor empurra para fora são as suas respostas, também em chinês. Apesar de o leitor não perceber chinês, do exterior do quarto parece que compreende a história e que está a responder de forma inteligente às perguntas que lhe são feitas acerca dela. No entanto, o leitor não tem qualquer experiência da compreensão da história: limita-se a manipular o que para si são caracteres sem significado. Um chamado programa «inteligente» de computador está na mesma posição em que o leitor se encontra no «quarto chinês» da experiência mental de Searle. Tal como o leitor, o computador manipula Símbolos sem compreender genuinamente ao que eles se referem. Consequentemente, se na analogia com o computador sugerida acima pensarmos no funcionalismo, esta concepção não pode dar-nos uma imagem completa da mente. Não capta a compreensão genuína, tornando-a equivalente à manipulação de símbolos.

6.14 MENTES ALHEIAS

Já examinámos a maior parte das tentativas mais importantes de solução do problema da mente/corpo. Como vimos, nenhuma teoria da mente é inteiramente satisfatória. Voltemo-nos agora para outro tema da filosofia da mente, o chamado problema das mentes alheias. Como posso saber que as outras pessoas pensam, sentem e são conscientes como eu? Sei, sem sombra de dúvidas, quando tenho dores; mas como posso alguma vez ter a certeza de que outra pessoa tem dores? Da maneira como vivo a minha vida pressuponho que as outras pessoas são seres sencientes, capazes de ter experiências muito semelhantes às minhas. Mas poderei ter a certeza disto? Tanto quanto posso saber, as outras pessoas podem ser todas robots altamente sofisticados ou, como por vezes são chamados, autómatos, programados para responder como se tivessem vida interior, quando de facto não têm. Apesar de esta noção parecer próxima de uma forma de paranóia, é uma questão séria à qual os filósofos têm dedicado muita atenção. O seu estudo revela diferenças importantes entre a forma como conhecemos a nossa própria experiência e a forma como conhecemos a experiência alheia.

6.14.1 Não é um problema para o behaviourismo

Antes de examinar a forma mais comum de responder a estas dúvidas acerca da experiência alheia, vale a pena fazer notar que o problema das mentes alheias não se levanta para os behaviouristas. Para um behaviourista é claramente apropriado atribuir experiências mentais aos outros com base no seu comportamento, uma vez que isso é o que a mente é: tendências para certos comportamentos em certas situações. Isto dá origem à devastadora piada behaviourista: dois behaviouristas fazem amor, após o que um deles diz ao outro: «Tu gostaste muito; e eu, também gostei?»

6.15 O ARGUMENTO POR ANALOGIA

A resposta mais óbvia à dúvida quanto à consciência alheia é um argumento por analogia. Como vimos no capítulo 1, quando examinámos o argumento do desígnio a favor da existência de Deus, um argumento por analogia baseia-se numa comparação entre duas coisas bastante

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semelhantes. Se uma coisa é análoga a outra em alguns aspectos, presume-se que o será também noutros.

As outras pessoas são semelhantes a mim em muitos aspectos importantes: somos todos membros da mesma espécie e, consequentemente, temos corpos bastante semelhantes; também temos comportamentos muito semelhantes. Quando tenho muitas dores, grito, tal como a maior parte das pessoas quando se encontram em situações nas quais eu esperaria que sentissem dor. O argumento por analogia defende que as semelhanças dos corpos e dos comportamentos entre o meu caso e o das outras pessoas são suficientes para inferir que as outras pessoas são, tal como eu, genuinamente conscientes.

6.16 CRÍTICAS AO ARGUMENTO POR ANALOGIA

6.16.1 Não é uma demonstração

O argumento por analogia não proporciona uma demonstração conclusiva da existência de mentes alheias. Os argumentos por analogia exigem bastantes dados de apoio. Mas no caso deste argumento por analogia só há um único exemplo — eu próprio — no qual testemunhei uma conexão entre um certo tipo de corpo e de comportamento e um certo tipo de consciência.

Além disso, os corpos e comportamentos alheios são diferentes em muitos aspectos do meu próprio corpo e comportamento. Estas diferenças podem ser mais importantes do que as semelhanças: poderia usar um argumento por analogia para demonstrar que as diferenças existentes entre o meu corpo e o meu comportamento, por um lado, e os corpos e os comportamentos alheios, por outro, indicam uma diferença provável entre o tipo de experiência mental que eu tenho e aquele que têm as outras pessoas. Além disso, os argumentos por analogia, sendo indutivos, só podem fornecer indícios prováveis a favor das suas conclusões: nunca podem demonstrar nada de forma conclusiva. Assim, na melhor das hipóteses, tal argumento só poderia mostrar que as outras pessoas quase de certeza têm mentes. Não é uma demonstração dedutiva, mas, como vimos no capítulo sobre a ciência, não está demonstrado que o Sol nascerá amanhã — e, no entanto, temos, mesmo assim, boas razões para ter a certeza de que nascerá.

6.16.2 Inverificável

No entanto, parece não existir nenhuma maneira de mostrar conclusivamente que uma

afirmação como «ele tem dores» é verdadeira ou, então, que é falsa. Só porque alguém está a gritar não se segue que essa pessoa tenha o mesmo tipo de experiência que eu tenho quando sinto dores. Essa pessoa pode nem estar a ter qualquer experiência. Nenhum relato verbal da sua experiência é fidedigno: um robot poderia ter sido programado para responder persuasivamente em tais circunstâncias. Não há observação possível que possa confirmar ou refutar a ideia de que a pessoa tem dores. E óbvio que o facto de alguém estar a gritar seria suficiente, em casos reais, para que estivéssemos razoavelmente certos de que a pessoa estava com dores. Mas, do ponto de vista lógico, o comportamento não oferece uma demonstração absoluta da existência de dor (apesar de a maior parte das pessoas partir do pressuposto de que o comportamento é um indício fidedigno).

Claro que podemos achar que a suposição de que as outras pessoas não são conscientes é bastante rebuscada. Podemos, pois, estar já tão certos de que os outros têm mentes que não precisamos de uma demonstração conclusiva nesta matéria — certamente que n maioria das pessoas age, a maior parte do tempo, sob o pressuposto de que os outros têm mentes. O solipcismo, como

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vimos no capítulo sobre o mundo exterior, não é uma posição sustentável.

6.17 CONCLUSÃO

Este capítulo centrou-se nos debates em torno do dualismo, do fisicalismo e do problema das mentes alheias. Estes são tópicos centrais na filosofia da mente. Uma vez que a filosofia se ocupa muito da natureza do pensamento, muitos filósofos, sobretudo os que se especializam na filosofia da mente, acham que o tipo de questões discutidas neste capítulo constituem o âmago de quase todas as questões filosóficas. Sem dúvida que muitos dos mais brilhantes filósofos do século xx têm dirigido as suas energias para questões da filosofia da mente. Em resultado disso, muitos dos escritos desta área são altamente sofisticados e técnicos. Os livros listados a seguir deverão orientá-lo no complicado labirinto bibliográfico desta área.

6.17.1 Leitura complementar

A melhor introdução à filosofia da mente é a de Peter Smith e O. R. Jones, The Philosophy

of Mind (Cambridge, Cambridge University Press, 1986): é clara e informativa acerca da maior parte dos debates contemporâneos nesta área. Matter and Consciousness, de P. M. Churchland (Cambridge, Mass., MIT Press, 1984), é outra introdução útil. Theories of the Mind, de Stephen Priest (Londres, Penguin, 1991), é um estudo crítico das abordagens mais importantes da filosofia da mente. Recomendo também The Character of Mind, de Colin McGinn (Oxford, Oxford University Press, 2. a ed., 1997), apesar de algumas passagens serem bastante difíceis. 216 The Mind's I, organizado por Douglas R. Hofstadter e Daniel C. Dennett (Londres, Penguin, 1982), é uma colecção interessante e divertida de artigos, meditações e pequenos contos que tratam de ideias filosóficas acerca da mente. Inclui o artigo «Mentes, cérebros e programas», de John Searle, no qual se discute a questão de saber se os computadores podem realmente pensar.

7 ARTE

A maior parte das pessoas que visitam galerias de arte, lêem romances e poesia, vão ao teatro e ao ballet, vêem cinema ou ouvem música, já perguntaram a si próprias, num momento ou noutro, o que é a arte. Esta é a questão básica que subjaz a toda a filosofia da arte. Este capítulo considera várias respostas que lhe têm sido dadas.

O facto de terem emergido novas formas de arte, tais como o cinema e a fotografia, e de as galerias de arte terem exibido coisas como um monte de tijolos ou uma pilha de caixas de cartão, forçou-nos a reflectir acerca dos limites do nosso conceito de arte. E óbvio que a arte tem tido significados diferentes em culturas diferentes e em épocas diferentes: tem servido fins rituais e religiosos, tem servido como diversão e tem dado corpo às crenças, medos e desejos mais importantes da cultura na qual é produzida. Dantes, o que contava como arte parecia estar mais claramente definido. No entanto, nos finais do século XX parece que chegamos a uma situação em que tudo e mais alguma coisa pode ser arte. Se isto é assim, o que fará que um certo objecto — um escrito ou uma peça musical — , e não outro, seja digno de se chamar arte?

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7.1 PODE A ARTE SER DEFINIDA?

Há uma imensa variedade de obras de arte — pinturas, peças de teatro, filmes, romances,

peças musicais, dança — e todas elas parecem ter muito pouco em comum. Isto levou alguns filósofos a defender que a arte não pode de maneira nenhuma ser definida; defendem que é um erro completo olhar para um denominador comum, uma vez que existe, pura e simplesmente, demasiada variedade entre as obras de arte para que uma definição que as cubra a todas possa ser satisfatória. Para sustentar esta opinião, estes filósofos usam a ideia de parecença familiar, uma noção usada pelo filósofo Ludwig Wittgenstein nas suas Investigações Filosóficas.

7.1.1 O conceito de parecença familiar

O leitor pode parecer-se ligeiramente com o seu pai e o seu pai pode parecer-se com a irmã

dele. Contudo, é possível que o leitor não se pareça nada com a irmã do seu pai. Por outras palavras, podem existir parecenças sobrepostas entre diferentes membros de uma família, sem que exista uma característica única observável, partilhada por todos. Analogamente, há muitos jogos semelhantes, mas é difícil ver o que têm em comum as paciências, o xadrez, o râguebi e a malha.

As semelhanças entre diferentes tipos de arte podem ser deste tipo: apesar das semelhanças óbvias entre algumas obras de arte, podem não existir características observáveis partilhadas por todas: podem não existir denominadores comuns. Se isto for verdade, é um erro procurar uma qualquer definição geral de arte. O melhor que podemos desejar é uma definição de uma certa forma de arte, como o romance, o filme de ficção ou a sinfonia.

7.2 CRÍTICAS À PERSPECTIVA DA PARECENÇA FAMILIAR

Uma forma de demonstrar a falsidade desta perspectiva seria produzir uma definição

satisfatória de arte. Examinaremos a seguir várias tentativas de o conseguir. Contudo, vale a pena notar que mesmo no caso das parecenças de família há algo que todos os membros de uma família têm realmente em comum: o facto de estarem geneticamente relacionados. E os jogos são todos parecidos por poderem constituir interesses absorventes de carácter não prático para jogadores ou espectadores. Ora, apesar de esta definição de jogo ser bastante vaga e nem sequer inteiramente satisfatória — não nos ajuda a distinguir os jogos de outras actividades, como, por exemplo, beijar ou ouvir música —, sugere que pode encontrar-se uma definição mais detalhada e plausível. Se isto pode fazer-se em relação aos jogos, não há razão para afastar à partida a possibilidade de o fazer em relação às obras de arte. Claro que o denominador comum a todas as formas de arte pode revelar-se particularmente pouco interessante ou importante, mas é claramente possível encontrar um. Consideremos, então, algumas das tentativas de definição da arte. Examinaremos a teoria da forma significante, a idealista e a institucional.

7.3 A TEORIA DA FORMA SIGNIFICANTE

A teoria da forma significante, popular no princípio do século XX e particularmente ligada ao crítico de arte Clive Bell (1881-1964) e ao seu livro Art, começa pelo pressuposto de que todas as obras de arte genuínas produzem uma emoção estética no espectador, ouvinte ou leitor. Esta emoção é diferente das emoções da vida quotidiana: distingue-se por não ter nada a ver com interesses

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práticos.Que características das obras de arte fazem que as pessoas reajam daquela forma? Porque

evocam as obras de arte aquela emoção estética? A resposta dada por Bell é que todas as obras de arte genuínas partilham uma qualidade conhecida como «forma significante» — um termo por ele introduzido. A forma significante é uma certa relação entre as partes — as características que distinguem a estrutura de uma obra de arte, e não o seu tema específico. Apesar de esta teoria se aplicar geralmente apenas às artes visuais, pode também ser tomada como uma definição de todas as artes. Assim, por exemplo, ao considerar o que faz que u quadro de Van Gogh representando um par de bom tas velhas seja uma obra de arte, um teórico da forma significante faria notar a combinação de cores e texturas que possuem forma significante e que produzem, portanto, a emoção estética em críticos sensíveis.

A forma significante é uma propriedade indefinível que os críticos sensíveis podem intuitivamente reconhecer numa obra de arte. Infelizmente, os críticos insensíveis são incapazes de apreciar a forma significante. Bell, ao contrário, por exemplo, dos teóricos institucionalistas discutidos a seguir, acreditava que a arte era um conceito valorativo: isto significa que afirmar que algo é uma obra de arte não é apenas classificá-lo, mas também atribuir-lhe um certo estatuto. Todas as obras de arte genuínas, de todas as épocas e culturas, possuem forma significante.

7.4 CRÍTICAS À TEORIA DA FORMA SIGNIFICANTE

7.4.1 Circularidade

O argumento a favor da teoria da forma significante parece ser circular. Parece estar apenas

a dizer que a emoção estética é produzida por uma propriedade que produz emoção estética, propriedade acerca da qual nada mais pode dizer-se. Isto é a mesma coisa que explicar como funciona um soporífero referindo a sua propriedade de provocar o sono. E um argumento circular porque o que se pretendia explicar é usado na explicação. Contudo, alguns argumentos circulares podem ser informativos; os que não são informativos são conhecidos como viciosamente circulares. Os defensores da teoria da forma significante sustentam que esta não é viciosamente circular, uma vez que permite compreender por que razão algumas pessoas são melhores críticos do que outras, nomeadamente porque têm mais capacidade para detectar a forma significante. Proporciona também uma justificação para a prática de tratar obras de arte de culturas e épocas diferentes como se fossem análogas, em muitos aspectos, às obras de arte actuais.

7.4.2 Irrefutabilidade

Outra objecção à teoria defende que esta não pode nor refutada. A teoria da forma significante pressupõe que todas as pessoas que genuinamente desfrutam da a r t e sentem um único tipo de emoção quando apreciam verdadeiras obras de arte. Contudo, isto é extremamente difícil, se não impossível, de demonstrar. Se alguém afirmar ter desfrutado genuinamente Uma obra de arte, sem no entanto ter sentido a referida emoção estética, Bell afirmará que essa pessoa está enganada: ou não a desfrutou genuinamente ou então nílo é um crítico sensível. Mas isto é pressupor precisamente o que a teoria estaria supostamente a demonstrar: que existe realmente uma emoção estética e que esta é produzida pelas obras de arte genuínas. A teoria parece, portanto, irrefutável. Muitos filósofos acreditam que uma teoria que seja logicamente impossível de refutar, porque todas as observações

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possíveis a confirmariam, não tem qualquer significado. Analogamente, se um exemplo de algo que consideramos uma obra de arte não evoca emoção estética a um crítico sensível, um teórico da forma significante ilefenderá que não se trata de uma obra de arte gen u í n a . Mais uma vez, não há qualquer observação pos'.(vel que possa demonstrar que esse teórico não tem razão.

7.5 A TEORIA IDEALISTA

A teoria idealista da arte, cuja formulação mais persuasiva se encontra em Principles of Art,

de R. G. Collingwood (1889-1943), difere de outras teorias da arte pelo facto de sustentar que a verdadeira obra de arte não é física: é uma ideia ou emoção na mente do artista. A esta ideia é dada uma expressão imaginativa física e é modificada pelo envolvimento do artista com um meio artístico específico, mas a própria obra de arte permanece na mente do artista. Algumas versões da teoria idealista dão muita importância à sinceridade da emoção expressa, o que acrescenta um forte elemento avaliativo à teoria.

A teoria idealista distingue a arte do artefacto. As obras de arte não têm qualquer propósito específico. São criadas em resultado do envolvimento do artista com um meio específico, como as tintas ou as palavras. Ao invés, o artefacto é criado com um propósito definido e o artesão começa por ter um plano, em vez do ir concebendo o objecto à medida que o vai criando. Assim, um quadro de Picasso, por exemplo, não tem nenhum propósito específico e não foi, presumivelmente, previamente planeado na sua totalidade, ao passo que a mesa defronte da qual estou sentado tem uma função óbvia e foi executada de acordo com um esboço preexistente, um projecto. O quadro é uma obra de arte; a mesa é um artefacto. Isto não significa que as obras de arte não possam ser em parte artefactos: é claro que muitas grandes obras de arte são em parte artefactos. Collingwood afirma explicitamente que as duas categorias, arte e artefacto, não são mutuamente exclusivas. Acontece apenas que nenhuma obra de arte é unicamente um meio para um fim.

A teoria idealista contrasta as obras de arte genuínas com a arte recreativa (arte produzida com o propósito único de divertir as pessoas ou de provocar emoções específicas). A arte genuína não tem nenhum propósito: é um fim em si. A arte recreativa é artefacto, sendo por isso inferior à verdadeira arte. Analogamente, a chamada arte puramente religiosa é também artefacto porque foi feita com um propósito específico.

7.6 CRÍTICAS À TEORIA IDEALISTA DA ARTE

7.6.1 Estranheza

A principal objecção à teoria idealista é a estranheza provocada pelo facto de considerar as

obras de arte Ideias que residem na mente, em vez de objectos físicos. Isto significa que, quando vamos a uma galeria de Arte, tudo o que vemos são vestígios das verdadeiras criações dos artistas. Esta é uma ideia difícil de aceitar, apesar de ser mais plausível no caso das obras de arte literárias e musicais, onde não existe um objecto físico Único a que possamos chamar obra de arte.

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7.6.2 Excessivamente restritiva

Uma segunda objecção a esta teoria afirma que esta 6 excessivamente restritiva: parece

classificar muitas obras de arte estabelecidas como artefactos, e não como verdadeiras obras de arte. Muitos dos grandes retratos foram pintados para se ter um registo da aparência da pessoa retratada; muitas das grandes peças de teatro foram escritas para divertir. Significa isto que, porque foram criadas tendo em mente propósitos específicos, lítio podem ser obras de arte? E quanto à arquitectura, que constitui tradicionalmente uma das belas-artes? A maior parte dos edifícios foram criados para um propósito específico, de maneira que esta teoria não pode considerá-los obras de arte.

7.7 A TEORIA INSTITUCIONAL

A chamada teoria institucional da arte é u m a tentativa recente, levada a cabo por autores c

o m o George Dickie (um filósofo contemporâneo), de explicar c o m o coisas tão diferentes como a peça Macbeth, a Quint ti Sinfonia de Beethoven, uma pilha de tijolos, u m urinol intitulado «A Fonte», o poema The Waste Land, de T. S. Eliot, As Viagens de Gulliver, de Swift, e as fotografias de William Klein podem ser consideradas obras de arte. A teoria afirma existirem duas coisas comuns a todas elas.

Em primeiro lugar, todas são artefactos: isto é, todas foram parcialmente manipula das por seres humanos. A palavra «artefacto» é usada de forma bastante vaga — até um pedaço de madeira flutuante apanhado na praia poderia ser considerado um artefacto se alguém o exibisse numa galeria de arte. Colocá-lo numa galeria para que as pessoas o observassem de certa maneira contaria c o m o manipulação. Na verdade, esta definição de artefacto é tão vaga que não acrescenta nada de importante ao conceito de arte. Em segundo lugar, e o que é mais importante, a todas aquelas obras foi dado o estatuto de obra de arte por um membro ou conjunto de membros do mundo da arte, tal como o proprietário de uma galeria, um editor, um produtor, um maestro ou um artista. Em todos os casos, alguém com a autoridade apropriada fez o equivalente a baptizá-las como obras de arte. Pode parecer que isto significa que as obras de arte são unicamente aquelas coisas a que certas pessoas chamam obras de arte, uma afirmação aparentemente circular. Contudo, os membros do m u n d o da arte não têm realmente de fazer nenhum tipo de cerimónia em que baptizam algo como uma obra de arte; não precilam sequer de lhe chamar realmente «obra de arte»: basta que tratem a obra como arte. A teoria institucional afirma, pois, que alguns indivíduos e grupos da nossa lociedade têm a capacidade de transformar qualquer ârtefacto numa obra de arte, através de uma acção de «baptismo», que pode consistir em chamar a algo ««arte», mas que muitas vezes consiste em publicar, exibir ou representar a obra. Os próprios artistas podem ser membros deste mundo da arte. Todos os membros desta elite têm uma capacidade equivalente ao rei Midas, que transformava em ouro tudo em que tocava.

7.8 CRÍTICAS À TEORIA INSTITUCIONAL

7.8.1 Não distingue a boa da má arte

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Defende-se por vezes que a teoria institucional é pobre porque parece justificar que se considerem obras de arte os objectos mais pretensiosos e superficiais. Se cu fosse um membro do mundo da arte, poderia fazer que o meu sapato esquerdo fosse uma obra de arte ao exibi-lo numa galeria.

E sem dúvida verdade que a teoria institucional permite que quase tudo possa tornar-se uma obra de arte. Baptizar uma coisa como obra de arte não significa que se trate de uma boa obra de arte, nem, na verdade, de uma má obra de arte. Só faz que o objecto em questão seja uma obra de arte do ponto de vista classificativo: por outras palavras, coloca o objecto na classe de coisas a que chamamos obras de arte. Isto é diferente da maneira como muitas vezes usamos a palavra «arte», não apenas para classificar algo, mas também para sugerir que esse algo é um bom exemplo da sua categoria. Por vezes também usamos o termo metaforicamente, para falar de coisas que literalmente não são, de maneira nenhuma, obras de arte: quando dizemos coisas como, por exemplo, «aquela omeleta é uma obra de arte». A teoria institucional não tem nada a dizer acerca de qualquer destes casos de uso valorativo da palavra «arte». E uma teoria acerca do que todas as obras de arte — boas, más e indiferentes — têm em comum. E apenas acerca do sentido classificativo da palavra «arte». Contudo, a maior parte das pessoas que levantam a questão «O que é a arte?» não estão apenas interessadas no que chamamos arte; querem saber porque valorizamos mais uns objectos do que outros. Quer a teoria da forma significante, quer a idealista, são parcialmente valorativas: segundo elas, chamar a algo «obra de arte» é dizer que é boa num certo sentido — quer porque tem uma forma significante, quer porque é a expressão artística sincera de uma emoção. A teoria institucional, contudo, não procura dar uma resposta a questões valorativas acerca da arte. E extremamente aberta acerca do que pode contar como arte. Algumas pessoas vêm isto como a sua maior virtude; outras, como o seu pior defeito.

7.8.2 Circularidade

A teoria institucional é circular. Afirma que a arte é o que um certo grupo de privilegiados escolher chamar arte, seja lá o que for.'Isto parece um jogo de palavras — um jogo que pode ter implicações políticas perturbadoras se só as pessoas de uma certa classe social tiverem o dom do toque de Midas.

Um defensor da teoria institucional poderia argumentar contra esta crítica, sustentando que a exigência de que a obra de arte seja um artefacto e a restrição sobre quem pode conferir o estatuto de obra de arte a um objecto são suficientes para dar algum conteúdo à teoria. Se isto for verdade, precisamos de uma elucidação mais pormenorizada acerca de quem faz exactamente parte do mundo da arte. No entanto, mesmo que soubéssemos quem tem este toque de Midas e por que razão estão habilitados a tê-lo, continuaríamos a querer saber porque escolhem eles alguns objectos, e não outros, para serem considerados obras de arte. Isto conduz à terceira crítica.

7.8.3 Que critérios usa o mundo da arte?

A objecção mais forte à teoria institucional é, talvez, a que foi feita pelo filósofo e escritor contemporâneo de arte, Richard Wollheim (1923-): mesmo que concordemos que os membros do mundo da arte têm o poder de transformar quaisquer artefactos em obras de arte, eles têm de ter razões para transformar em arte alguns artefactos e não outros. Se não há qualquer lógica por detrás do que fazem, então que razão haveria para que a categoria da arte tivesse para nós qualquer interesse? E se eles têm razões, serão estas, então, que determinam se algo é arte ou não. A análise destas razões seria muitíssimo mais interessante e informativa do que a — algo vazia — teoria institucional. Se pudéssemos identificar estas razões, a teoria institucional seria desnecessária.

Contudo, a teoria institucional chama-nos pelo menos a atenção para isto: o que faz que algo

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seja uma obra de arte é uma questão cultural, dependendo de instituições sociais em épocas específicas, e não de um cânone a temporal.

7.9 CRÍTICA DE ARTE

Outra área importante de debate filosófico acerca das artes tem-se centrado nos métodos e

justificações de vários tipos de crítica de arte. Um dos debates centrais nesta área tem sido acerca da questão de saber até que ponto as intenções manifestas do artista são relevantes para a interpretação crítica de uma obra de arte.

7.10 ANTI-INTENCIONALISMO

Os anti-intencionalistas defendem que só temos de dar atenção às intenções presentes na

própria obra de arte. Seja o que for que se recolha de diários, entrevistas com o artista, manifestos artísticos, etc., não é directamente relevante para o acto de genuína interpretação crítica. Tal informação é mais relevante para um estudo da psicologia do artista. A psicologia é em si mesma um assunto muito interessante e pode dizer-nos muito acerca das origens das obras de arte. Mas a origem de uma obra não deve ser confundida com o seu significado. A crítica deve lidar apenas com indícios internos à obra (i. e., contidos na obra). Afirmações pessoais acerca do que o artista tinha em mente são externas à obra e por isso irrelevantes para a verdadeira crítica. Os anti-intencionalistas, como os críticos William Wimsatt e Monroe Beardsley, nos seus escritos da década de 1940, chamaram ao suposto erro de se apoiar em indícios externos a falácia intencional.

Esta perspectiva anti-intencionalista é usada para defender leituras e análises escrupulosas de textos e outras obras de arte. Baseia-se na ideia de que as obras de arte são num certo sentido públicas e que, uma vez criadas, os artistas não devem ter mais controlo sobre a sua interpretação do que qualquer outra pessoa. Mais recentemente foi defendida uma ideia análoga, em termos metafóricos, por autores como Roland Barthes (1915-1980), que declararam a morte do autor. Parte do que eles queriam dizer com esta afirmação era que, uma vez tornado público um texto literário, compete ao leitor interpretá-lo: não deve considerar-se que o autor detém uma posição privilegiada a este respeito. Uma consequência desta perspectiva é passar a considerar-se que a importância dos textos é maior do que a dos autores que os produzem, elevando-se o papel do crítico. O significado dos textos é criado pela interpretação dos leitores, e não pela intenção dos escritores. A concepção anti-intencionalista é, assim, uma teoria acerca de quais são os aspectos relevantes de uma obra para a avaliação do crítico.

7.11 CRÍTICAS AO ANTI-INTENCIONALISMO

7.11.1 Uma ideia errada da intenção

Uma crítica à posição anti-intencionalista é que ela depende de uma concepção errada das

intenções. Trata as intenções como se fossem sempre acontecimentos mentais que ocorrem antes de fazermos qualquer coisa. Na verdade, muitos filósofos acreditam que as intenções estão normalmente misturadas com a maneira como fazemos coisas: não podem separar-se assim tão facilmente das próprias acções. Assim, quando acendo intencionalmente a luz, não tem de haver um acontecimento mental que anteceda imediatamente a minha acção de alcançar o interruptor: pode

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ocorrer ao mesmo tempo que eu alcanço o interruptor, constituindo o próprio acto de alcançar o interruptor a corporização da intenção.

Contudo, este não é de facto um argumento satisfatório contra o anti-intencionalismo, uma vez que aquilo a que os seus partidários se opõem não é unicamente a uma crítica baseada nas intenções, mas também a uma crítica baseada em tudo o que seja exterior à obra de arte. Os anti-intencionalistas não se importam de tratar como relevantes para a crítica as intenções que se corporizem efectivamente na obra.

7.11.2 Ironia

Uma objecção mais forte ao anti-intencionalismo defende que certos tipos de recursos

artísticos, como a ironia, exigem um reconhecimento das intenções do artista. Em muitos casos essas serão intenções exteriores.

A ironia é dizer ou descrever algo, querendo dizer o oposto. Por exemplo, quando um amigo nos diz «Está um belo dia», pode não ser óbvio se isto deve ser tomado literalmente ou ironicamente. Uma maneira de decidir seria olhar para coisas como o contexto no qual ele o disse — por exemplo, será que estava a chover torrencialmente? Outra maneira seria dar atenção ao tom de voz em que o disse. Mas se nenhuma destas informações decidisse a questão, uma forma óbvia de o fazer seria perguntar ao locutor se a sua afirmação era irónica: por outras palavras, apelar a intenções exteriores.

Em alguns usos da ironia na arte, a informação exterior à obra pode ser extremamente útil para descobrir o seu significado. Não parece razoável rejeitar completamente esta fonte de informação acerca da obra. Um anti-intencionalista responderia provavelmente que, se a ironia não é prontamente compreensível a partir de uma análise minuciosa da obra, é porque não é relevante para a crítica, uma vez que esta se ocupa do que é público. Qualquer ironia que se apoie nas intenções externas do artista é excessivamente parecida com um código secreto para ser realmente importante.

7.11.3 Uma perspectiva muito restritiva da crítica de arte

Uma terceira objecção ao anti-intencionalismo defende que esta posição adopta uma perspectiva muito restritiva do que constitui a crítica de arte. A boa crítica de arte usará todas as informações disponíveis, sejam elas internas ou externas à obra de arte em questão. É excessivamente restritivo impor ao crítico, à partida, regras rígidas e absolutas acerca dos tipos de informação que podem ser usados para apoiar comentários críticos.

7.11.4 Apresentação, interpretação, autenticidade

A apresentação de obras de arte pode levantar dificuldades filosóficas de alguma forma

análogas às levantadas pela prática da crítica de arte. Todas as apresentações constituem uma interpretação da obra em causa. Levantam-se dificuldades especiais quando a obra de arte pertence a um período muito antigo. Nesta secção irei considerar o caso da interpretação de peças musicais de séculos anteriores como um exemplo deste problema, mas podem usar-se argumentos análogos acerca de, por exemplo, representações historicamente rigorosas das peças de Shakespeare.

7.12 AUTENTICIDADE HISTÓRICA NA INTERPRETAÇÃO MUSICAL

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O número de concertos e gravações nos quais os músicos tentam produzir sons historicamente autênticos tem aumentado nos últimos tempos. Isto significa, habitualmente, usar o tipo de instrumentos disponíveis na altura em que a música foi composta, em vez dos seus descendentes modernos. Assim, por exemplo, uma orquestra que procure uma interpretação historicamente autêntica dos Concertos Brandeburgueses evitará os instrumentos modernos e usará antes o tipo de instrumentos disponíveis no tempo de Bach, com os seus sons e limitações característicos. O maestro consultará o maior número possível de estudos históricos para descobrir o tempo e o estilo de interpretação típicos da época de Bach. O objectivo de uma interpretação destas seria reproduzir tão fielmente quanto possível os sons que as primeiras audiências de Bach terão ouvido.

Estas interpretações levantam várias questões filosóficas importantes acerca do estatuto de diferentes apresentações de uma obra de arte, apesar de terem claramente grande interesse para um historiador da música. Usar a palavra «autêntica» para descrever estas interpretações sugere que as interpretações com instrumentos modernos são de alguma forma inautênticas: implica que existe algo significativamente melhor nas interpretações «autênticas». Isto levanta a questão de saber se as interpretações musicais devem procurar este tipo de autenticidade histórica, existindo várias objecções à ideia de que o devem fazer.

7.13 CRÍTICAS À AUTENTICIDADE HISTÓRICA NA INTERPRETAÇÃO

7.13.1 Viagem fantasiosa no tempo

Uma crítica ao movimento a favor das interpretações autênticas é que nunca se consegue uma interpretação historicamente autêntica. O que a motiva é uma tentativa ingénua de recuar no tempo para ouvir os sons que o compositor teria ouvido. Mas os intérpretes «autênticos» esquecem que, apesar de podermos ser bem sucedidos na recriação de instrumentos de uma época passada, nunca poderemos, pura e simplesmente, fazer desaparecer a música que desde essa época tem sido composta e interpretada. Por outras palavras, nunca podemos ouvir a música com ouvidos historicamente autênticos. Hoje em dia, ao ouvir Bach, temos consciência dos grandes desenvolvimentos que a música conheceu desde a sua época; estamos familiarizados com os sons dos instrumentos modernos, executados segundo técnicas modernas. Ouvimos música atonal e conhecemos melhor o som do piano moderno do que o do cravo. Consequentemente, a música de Bach tem para o ouvinte actual um significado completamente diferente do que tinha para as suas audiências originais.

7.13.2 Visão simplista da interpretação musical

Outra crítica a esta procura de uma interpretação historicamente autêntica é que ela implica

uma visão simplista da interpretação musical. Faz que o juízo sobre o valor de uma interpretação específica dependa unicamente de considerações históricas, e não de outras considerações artísticas relevantes. Limita seriamente as possibilidades do intérprete em termos de interpretação criativa de uma partitura. Cria um museu de interpretação musical, em vez de dar aos intérpretes de cada nova geração a possibilidade de interpretar de forma nova e estimulante a obra do compositor, uma interpretação que leve em linha de conta quer a história da música quer a história da interpretação daquela peça musical específica.

7.13.3 As interpretações históricas podem falsear o espírito

Uma preocupação exagerada com o rigor histórico pode muitas vezes piorar a interpretação

de uma peça musical. Um intérprete cuja preocupação principal seja a história pode muito bem não

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conseguir fazer justiça à obra do compositor: uma interpretação sensível, que procure capturar o espírito da obra do compositor, em vez de tentar reproduzir os sons originais, tem muito a seu favor. Este é um tipo diferente de autenticidade: é uma autenticidade de interpretação, na qual a palavra «autenticidade» quer dizer qualquer coisa como «sinceridade artística», e não apenas rigor histórico.

7.14 IMITAÇÕES E VALOR ARTÍSTICO

Outra questão acerca da autenticidade que levanta questões filosóficas é a que diz respeito

ao problema de saber se um quadro original tem mais valor artístico do que uma imitação perfeita. Nesta secção tratarei apenas das imitações no caso da pintura, mas podem existir imitações de qualquer tipo de obra de arte que se constitua como objecto físico: por exemplo, uma escultura, uma gravura, uma fotografia, etc. A impressão em série de romances, poemas e sinfonias não é considerada uma imitação. Contudo, os manuscritos originais podem ser falsificados e as imitações, escritas segundo o estilo de u m certo autor ou compositor, podem passar por genuínas.

É importante distinguir à partida entre diferentes tipos de imitação. Os dois tipos básicos são a cópia perfeita e a imitação do estilo de um artista famoso. Uma cópia exacta da Mona Lisa seria uma imitação do primeiro tipo; os quadros do falsário Van Meegeren, pintados de acordo com o estilo de Vermeer, que na verdade enganaram a maior parte dos especialistas, são exemplos do segundo tipo — os seus quadros não foram copiados a partir de originais. E óbvio que só o verdadeiro manuscrito de uma peça, de um romance ou de um poema podem ser falsificados no primeiro sentido. Contudo, poderiam fazer-se imitações do segundo tipo (por exemplo, das peças de Shakespeare), por alguém que imitasse de forma inteligente o estilo de um escritor.

Devem as imitações ser tratadas como obras de arte significativas em si? Se o falsário é capaz de produzir algo capaz de fazer os especialistas ficar convencidos que se trata de uma obra do artista original, isso significa que o falsário é certamente tão dotado quanto o artista original, devendo por isso ser tratado como um igual. Há argumentos a favor e contra esta posição.

7.14.1 Preço, snobismo, relíquias

O que faz as pessoas dar valor aos originais em detrimento das boas imitações talvez sejam

apenas as preocupações financeiras do mundo da arte, a obsessão com o preço dos quadros. Se existir um único exemplar de cada quadro, os leilões de arte podem vender cada quadro como um objecto único, por um preço elevadíssimo. Isto é por vezes conhecido como o «efeito Sotheby», em nome dos famosos leiloeiros de arte. Se existirem muitas cópias de um quadro, é provável que o preço de cada cópia baixe, sobretudo se o original tiver o mesmo estatuto que as cópias. Com efeito, isto colocaria os quadros na mesma posição que as gravuras. Ou talvez não seja apenas o aspecto financeiro do mundo da arte, mas também o snobismo dos coleccionadores de arte, que conduz à ênfase colocada nos quadros originais em detrimento das cópias. Os coleccionadores gostam de possuir um objecto único: para eles pode ser mais importante possuir um esboço original de Constable do que uma cópia perfeita, só por uma questão de valor snobe, e não de valor artístico.

Outra motivação para possuir originais tem a ver com o seu apelo enquanto relíquias. As relíquias são fascinantes por causa da sua história: um fragmento da verdadeira Cruz (a cruz onde Cristo foi crucificado) teria um fascínio especial comparado com quaisquer outros fragmentos indistinguíveis de madeira só por se pensar que esteve em contacto directo com a carne de Cristo. Analogamente, um quadro original de Van Gogh pode ser valorizado por se tratar de um objecto que o grande pintor tocou, ao qual deu atenção e no qual investiu o seu esforço artístico, etc.

O preço, o valor snobe e o valor de relíquia têm pouco a ver com o mérito artístico. O primeiro tem a ver com a raridade, as flutuações dos gostos dos coleccionadores e as manipulações

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dos negociantes de arte; o segundo é uma questão de rivalidade social; o terceiro, uma questão psicológica que tem a ver com a maneira como tratamos os objectos. Se estes três factores explicam as causas da grande preferência por obras de arte originais em detrimento da preferência por boas imitações, talvez as boas imitações sejam realmente tão significativas, artisticamente, quanto os originais. Contudo, há vários argumentos fortes contra esta posição.

7.14.2 Imitações perfeitas

Uma razão para preferir originais a imitações é o facto de nunca podermos ter a certeza de

uma imitação ser realmente perfeita. O facto de uma imitação de um quadro de Van Gogh ser suficientemente boa para enganar os especialistas actuais não significa que irá enganar os especialistas do futuro. Se as diferenças se tornam visíveis mais tarde, nunca podemos ter a certeza se uma imitação será perfeita. Logo, mesmo que acreditássemos que uma imitação perfeita tinha o mesmo mérito artístico que o original, em nenhum caso real de imitação poderíamos ter a certeza se essa imitação seria uma cópia rigorosa.

Vale a pena notar, contra esta posição, que as diferenças que poderão surgir entre imitação e original serão geralmente pequeníssimas. E implausível supor que serão muitas vezes de uma natureza tal que possam vir a alterar substancialmente a nossa apreciação do valor artístico do quadro.

7.14.3 Obras de arte versus artistas

Mesmo que alguém conseguisse produzir um quadro que não se distinguisse de uma obra de

Cézanne, por exemplo, constituiria um feito muito diferente do feito do próprio Cézanne. Parte do que valorizamos no feito de Cézanne não é apenas a produção de um belo quadro isolado, mas também a forma como criou um estilo original e toda uma série de quadros. A sua originalidade faz parte do seu feito; e os diferentes quadros que produziu ao longo da sua vida contribuem para a nossa compreensão de cada imagem individual por ele pintada. Só podemos dar valor ao seu feito artístico se pudermos colocar cada quadro no contexto da sua produção completa.

Ora, apesar de um falsário poder possuir a mesma destreza mecânica de pintor que Cézanne tinha, não devemos reduzir o feito de Cézanne à sua destreza artesanal. O falsário, com a sua cópia barata, nunca pode esperar vir a ser um grande pintor porque não pode ser original como Cézanne.

No caso de um falsário que produza obras com o estilo de Cézanne (imitações do segundo tipo), em vez de fazer cópias efectivas de quadros específicos, pode haver mais razões para comparar o mérito artístico das imitações com o mérito dos quadros de Cézanne. Mas, mesmo nesse caso, o falsário estaria a copiar um estilo, e não a criar um novo — e nós temos tendência para dar mais valor à criatividade do artista original do que à destreza de um imitador. A criatividade é um aspecto importante do mérito artístico.

Isto mostra que não devemos realmente pôr o falsário a par do artista original só porque é capaz de produzir uma imitação convincente. Mas, apesar disso, no caso de uma cópia de um quadro original, poderíamos, mesmo assim, admirar o mérito artístico de Cézanne olhando para a cópia. Logo, isto não é um argumento contra o valor artístico das imitações, mas contra o mérito artístico dos falsários. A cópia permitiria detectar indícios do génio de Cézanne, e não do falsário. 240

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7.14.4 O argumento moral

O que as imitações têm realmente de errado é o facto de, pela sua própria natureza, implicarem uma tentativa de enganar o público acerca das suas origens. Uma imitação não seria uma imitação sem o objectivo de enganar: seria uma cópia ou um ensaio de pintura com o estilo de outro artista — o que é conhecido como pasticho. E em parte devido à fraude envolvida — o equivalente a uma mentira — que as imitações são inferiores aos originais. Contudo, podem existir boas razões para separar por vezes as questões morais das artísticas: mesmo que uma imitação brilhante implique a fraude, pode ser tocante como obra de arte.

7.15 CONCLUSÃO

Neste capítulo examinei várias questões filosóficas relacionadas com a arte e a crítica de

arte, desde questões sobre a definição da arte até questões sobre o valor estético das imitações. Muitas das discussões sobre a arte conduzidas por artistas, críticos e público interessado são confusas e ilógicas. O uso de rigor filosófico e a insistência na clareza dos argumentos só pode melhorar a situação desta área. Como em todas as áreas da filosofia, o argumento claro não garante respostas convincentes às questões difíceis, mas aumenta sem dúvida a probabilidade de que isso venha a acontecer.

7.16 LEITURA COMPLEMENTAR

Aesthetics: An Introduction to the Philosophy of Art, de Anne Sheppard (Oxford: Oxford

University Press, 1987), é uma útil introdução geral a esta área. Philosophical Aesthetics: An Introduction, organizado por Oswald Hanfling (Oxford, Blackwell, 1992), cobre muitos dos tópicos deste capítulo com maior detalhe. Faz parte do curso de Filosofia da Arte da Universidade Aberta britânica. Arguing About Art, organizado por Alex Neill e Aaron Ridley (Nova Iorque, McGraw-Hill, 1995), é uma boa colecção de artigos sobre tópicos contemporâneos de filosofia da arte.

Literary Theory: An Introduction (Oxford, Blackwell, 1983), de Terry Eagleton, proporciona u m estudo interessante de alguns dos desenvolvimentos na filosofia da literatura, apesar de se centrar na tradição da crítica continental, e não na anglo-americana.

Sobre o tópico da autenticidade na música antiga, o livro organizado por Nicholas Kenyon, Authenticity in Early Music (Oxford, Oxford University Press, 1988), é muito bom. The Forger's Art, de Denis Dutton (Berkeley, Cal., University of California Press, 1983), é uma colecção fascinante de artigos sobre o estatuto das imitações.

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8 GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

Neste glossário listam-se não apenas os termos cuja tradução portuguesa se procurou fixar, mas também outros que o leitor pode encontrar na literatura filosófica escrita em língua inglesa, sem que, no entanto, saiba o seu equivalente português. Trata-se de equivalências de vocabulário técnico, e não de equivalências linguísticas estritas. Na Internet encontra-se uma versão sempre actualizada deste glossário: http://www.terravista.pt/Nazare/1339.

acceptance — aceitação acquaintance — contacto acquaintance, knowledge by— contacto, conhecimento por acquaintance, principle of—contacto, princípio do acrolect — acrolecto actuality and potenciality — acto e potência act utilitarianism — utilitarismo dos actos aeviternity — eviternidade after-image — imagem residual agent-causation — causalidade do agente Al — IA akoluthic — acolutia Al-Farabi — Alfarrabi Al-Ghazali — Algazel alienans — adjectivo pseudoqualificativo aliorelative relation — relação irreflexiva apodeitic — apodíctico apodosis — apódose aseity — asseidade assertability — assertibilidade assumption — pressuposto, premissa (lógica) avowals — exteriorização backwards causation — causalidade invertida basiled — basilecto belief— crença bleen — azerde boolean algebra — álgebra de Boole bundle theory — teoria do feixe burden of proof— ónus da prova cancel out — neutralizar cataphora — ca tá fora categorial grammar — gramática categorial causation — causalidade central state materialism — materialismo de estados centrais claim-right — exigência cognitive achievement word — termo de consecução cognitiva •coherentism — coerentismo commensurable — comensurável commitment — comprometimento commonsense realism — realismo de senso comum compactness theorem — teorema da compacidade connectionism — conexionismo

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consent — consentimento conservantism — conservadorismo consilience — consiliência context-free grammar — gramática independente do contexto co-ordinative definitions — definições coordenadoras coreferential — co-referencial counterpart theory — teoria das contrapartes count-noun — termo contável covering law model — modelo da cobertura por leis crossing over — sobrecruzamento deceit — dolo deconstruction — desconstrução defensible — revogável definist fallacy — falácia da definição delusion — delusão demonstration — prova denoting phrase — expressão denotativa descriptive meaning — significado descritivo desert — merecimento differentia — diferença específica disconfirmation — infirmação domain — domínio dominance (decision theory) — dominância (teoria da decisão) dyslogistic — dislogístico economistn — economismo efective procedure — processo efectivo egocentric predicament — dificuldade egocêntrica eigenfunction — função própria eigenvalue — valor próprio eightfold path — caminho das oito vias eliminativism — elimina tivismo endurance/perdurance— permanência/persistência entailment — derivabilidade entrenchement — entrincheiramento equitiumerous sets — conjuntos equipotentes equivalence class — classe de equivalência erotetic — erotemática ESP — P E S eudaimonism — eudemonismo eulogistic — eu logístico evidence — dados, indícios (em probabilidades: informação) exaptation — exaptação exchangeability — permutabilidade existential import — implicação existencial expected utility — utilidade esperada experience — experiência experiment — experiência científica explanation — explicação explication — explanação /active — factivo felicific calculus — cálculo da felicidade field theory — teoria de campo

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finitary methods — métodos finitistas flourishing — prosperar folk psychology — psicologia popular follow — seguir-se foundationalism — fundacionalismo frame problem — problema do enquadramento framework — enquadramento frequency theory of probability — teoria frequencista das pro-

babilidades free will — livre arbítrio functional kind — categoria funcional fuzzy logic — lógica difusa gambler's argument — argumento do apostador ghost in the machine — fantasma na máquina great circles — geodésicas greatest happiness principle — princípio da maior felicidade grue — verdul haecceity — ecceidade halting problem — problema da paragem hardware — suporte físico high/low redefinition — redefinição forte/fraca horns of dilemma — alternativas do dilema Hume's fork — dilema de Hume hylozoism — hilozoismo ideational theory of meaning — teoria ideativa do significado identity theory of mind — teoria identitativa da mente ideolect — idiolecto idiographic methods — métodos idiográficos illocutionary act — acto ilocutório immunity right — imunidade implicature — implicatura incongruent counterparts — contrapartes incongruentes indexical — indexical inertial frame — referencial de inércia infirmation — desconfirmação intentional stance — postura intencional interval scale — escala de intervalos intuition pump — sonda de intuição inverse methods — métodos da inversão intensive magnitude — grandeza intensiva knowledge by acquaintance — conhecimento por contacto labour theory of value — teoria do valor-trabalho laiolike — legiforme least upper bound — supremo lect — lecto libertarianism(metaphysical) — libertismo libertarianism (political) — libertarismo liberty-right — liberdade locutionary act — acto locutório many-one function — função de muitos para u m many questions fallacy — falácia das várias perguntas many-sorted logic — lógica multi-espécie

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many-valued logic —lógica polivalente mapping (function) — aplicação (função) mass-noun — termo de massa matter of fact — questão de facto maximin principie — princípio maximin mean (ethical) — m e i o t e r m o meaning — significado means-ends reasoning — raciocínio instrumental measurement — medida mechanism — m e c a n i c i s m o median — m e d i a n a mereology — mereologia merit — mérito method of agreement — m é t o d o da concordância method of doubt — dúvida metódica metric tensor — tensor métrico mind — m e n t e mnemic causation — causalidade mnésica monophysite — m o n o f i s i s m o monothetic — m o n o t é t i c o moot — litigiosa motive of an action — m o t i v a ç ã o de u m a acção multi-valued logic — lógica polivalente narrow content — c o n t e ú d o restrito natural kind — categoria natural neural net — rede neuronal neustic — neustico no false lemmas principle — princípio da recusa d e lemas falsos nomic — n ó m i c o nomological dangler — conexão nomológica nonaptation — inaptação non-standard analysis — análise não standard no-ownership theory — teoria da despossessão noun phrase — sintagma nominal observation statement — enunciado observacional one-one function — função injectiva one-to-one correspondence — correspondência b i u n í v o c a operation letter — símbolo funcional ordering relation — relação de o r d e m ordinal-interval scale — escala ordinal de intervalos other minds — m e n t e s alheias other-regarding — hetero-relativa Pascal's wager — aposta de Pascal performance — d e s e m p e n h o performative utterances — elocuções p e r f o r m a t i v a s peritrope — perítropo perlocutionary acts — actos perlocutórios perseity — p e r s e i d a d e phatic — fático phenomenalism — fenomenismo phoronomy — foronomia phrastic/neustic — frástico/nêustico

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picture theory of meaning — teoria pictórica do significado pleonotetic logic — lógica pliotética phirative logic — lógica plurativa power-right — poder point particles — pontos materiais posit — s u p o s t o posterior probability — probabilidade a posteriori power set — conjunto-potência pragmatics — pragmática pragmatism — p r a g m a t i s m o prediction — previsão principle of acquaintance — princípio do contacto prior probability — probabilidade a priori procedural semantics — semântica procedimental projection function — função de projecção proof— demonstração protasis — prótase protocol statements — proposições protocolares proxy function — função de representação pseudo-statement — pseudoproposição range (function) — i m a g e m (função) range (interpretation) — d o m í n i o de variação range theory of probability — teoria do âmbito da probabilidade ratio scale — escala de proporção reduction sentence—frase de redução relevance logics — lógicas relevantes reliabilism — fiabilismo reliability — fiabilidade representationalism — representacionalismo retrodiction — retroprevisão reverse discrimination — discriminação positiva satisfiable — satisfazível scope — âmbito self-deception — auto-engano self-intirnating — auto-intimador self-knowledge — conhecimento de si self-regarding — auto-relativa self-respect — respeito-próprio semantic engine — dispositivo semântico sense and reference — sentido e referência sense-data — d a d o s dos sentidos sensible knave — patife discreto sentence — frase sentenciai function — função frásica set-theoretic hierarchy — hierarquia cumulativa dos c o n j u n t o s

Sheffer's stroke— traço de Sheffer sign — sinal, signo

significant form theory—teoria da forma significante situation semantics — semântica de situações slingshot — catapulta

, slippery slope — situação escorregadia, d e r r a p a g e m slippery slope argument — argumento da derrapagem

Page 113: Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia

soft determinism — determinismo moderado software — suporte lógico sortal — categorial soul — alma soundness (of a formal system) — adequação (de u m sistema

formal) spirit — espírito state of mind — estado de espírito statement — a f i r m a ç ã o , asserção, e n u n c i a d o sum set — c o n j u n t o u n i ã o success word — termo factivo superstring theory — teoria das cordas supervenience — superveniência sure thing principle — princípio da coisa certa surjection — sobrejecção synderesis (synteresis) — sindérese theory-laden — subordinação teórica thick terms — termos densos thisness — istidade thought experiment — experiência mental time-lag argument — a r g u m e n t o d o lapso d e t e m p o time-slice — corte no t e m p o tit for tat — p a g a r na m e s m a m o e d a tone — tom token — espécime token reflexive — espécime-reflexiva topic-neutral — tópico-neutral trademark argument — argumento da marca transcendental signified — transcendental assinalado trial (probability) — ensaio, lançamento trolley problem — problema do eléctrico truth-apt — susceptível de verdade two-way interactionism — interaccionismo reflexivo type/tokeyi — tipo/espécime unbounded quantifiers — quantificadores ilimitados unit set — c o n j u n t o s i n g u l a r universalizability — universalizabilidade upper bound — majorante utter — proferir utterance — elocução vagueness — vagueza variable realization — realização variável vindication — vindicação warrant — garantia warranted assertability — assertibilidade garantida wave equation — equação de onda wave function — função de onda wave packet — pacote de ondas well-ordering — boa-ordem wickedness — perversidade wide and narrow content — conteúdo lato e restrito zoroastrianism— zoroastrismo