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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA IVAN KOLTUN REBUTINI NINA RODRIGUES E A MULTIPLICIDADE CULTURAL Curitiba 2011

NINA RODRIGUES E A MULTIPLICIDADE CULTURAL · : o cruzamento de raças entendido como uma especificidade nacional era o sinal de diferenciação do Brasil em relação ao concerto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

IVAN KOLTUN REBUTINI

NINA RODRIGUES E A MULTIPLICIDADE CULTURAL

Curitiba

2011

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IVAN KOLTUN REBUTINI

NINA RODRIGUES E A MULTIPLICIDADE CULTURAL

Monografia apresentada à disciplina de

Orientação monográfica de História,

como requisito à conclusão do curso de

bacharelado e licenciatura em História,

oferecido pelo Setor de Ciências

Humanas, Letras e Artes da

Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.ª Dr. Carlos Alberto

Medeiros Lima.

Curitiba

2011

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AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, como manda o ritual, agradeço a Exu Ventania, que me protege e me guia nas encruzilhadas da vida. Laroyé.

Agradeço a todos que se envolveram na produção desse trabalho, em especial ao professor Carlos Lima, que pegou esse trabalho em frangalhos. Se há algum mérito nessas linhas que escrevi, devo a você. Lhe agradeço muito.

Agradeço a meus pais que desde o começo, lá em 2007, me ensinaram que eu deveria remar contra a maré. Merci Beaucoup.

Je remercie à bien aimé; celle qui est toujours à côté de moi, Koko Marie Edith Kouamelan – sans toi rien ne serais possible. Merci!

Sou mais do que agradecido ao meu molt amic Rogerio Ribeiro Tostes – irmão para todas as horas, especialmente nas que faltam ânimo. Moltes gràcies.

A meus irmãos, Blaise Musipere Musipere, Didier Mpolesha Kazadi, Fabrice Lushiku Kabuayi e Igor Koltun Rebutini, obrigado pela paciência. Sikoyo, biso nionso, tozokende liboso. Nzambe akotiya loboko.

A meus companheiros de curso, em especial: André Pupo, Clara Lume, Danilo Prandi, Flora Morena e Noemi Santos que partilharam de todas as lágrimas envolvidas em cada linha desse trabalho. Muito obrigado!

A Ana Paula Albuquerque, Uelton Rocha e suas famílias – ao Dr. Delegado Ezequias, Tia Simone, Dona Nádia e Seu Agnaldo, muito obrigado! Fizeram-me um pouquinho menos paranaense com sua maravilhosa acolhida.

A todos os que estão no meu coração mas que por ventura não tenham passado pela minha cabeça, sintam-se mais que agradecidos!

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SUMÁRIO

RESUMO.............................................................................................................5

INTRODUÇÃO....................................................................................................6

CAPÍTULO 1: O século XIX e o pensamento de Nina

Rodrigues.........................................................................................................11

CAPÍTULO 2: Os candomblés de Salvador............................................................................................................18

CONCLUSÃO....................................................................................................30

FONTES............................................................................................................34

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................35

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RESUMO

O presente trabalho aborda a obra O animismo fetichista dos negros baianos, de Nina Rodrigues. Tendo como recorte o final do século XIX, busca traçar um pequeno histórico da formação da intelectualidade nacional no período, além da influência do ideais racistas na obra do autor. Busca também, introduzindo a ideia de multiplicidade cultural abordar a fonte de maneira a perceber nas entrelinhas de que forma se configurava a sociedade baiana em torno da ideia de religião. Isso foi feito por meio da leitura atenta do texto da fonte e da contextualização de sua argumentação com as ideias de desigualdade e diferença presentes no pensamento científico no século XIX. A análise da fonte revela que mais do que apenas utilizar as descrições dos cultos de tradição iorubana realizados por africanos e seus descendentes em Salvador, Nina Rodrigues foi capaz de perceber uma interpenetração de culturas. Para ele, esse era um fenômeno condenável que levaria à degeneração da raça superior e que deveria ser evitado. De todas as formas, Nina deixa transparecer em seu discurso que a Bahia do século XIX é uma sociedade múltipla.

Palavras-chave: Nina Rodrigues, Multiplicidade Cultural, Iorubás.

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INTRODUÇÃO

“Em finais do século passado o Brasil era apontado como um caso único

e singular de extremada miscigenação racial.”1 Essa não é uma afirmação ao

acaso. Nesse século, o XIX, muito se discutiu, em vários lugares e por várias

pessoas, a origem e as implicações dessa afirmação. Quem, por que, onde e

como são algumas das questões que norteiam esse trabalho. Lançando mão

da obra de um desses intelectuais buscamos traçar uma linha de compreensão

desse fenômeno destacando suas especificidades e suas contribuições no

grande quadro das ciências a fins do século XIX.

No cenário nacional e internacional o Brasil do século XIX era visto como

um “paiz mestiço... somos mestiços se não no sangue ao menos na alma”2,

“uma população totalmente mulata”3: o cruzamento de raças entendido como

uma especificidade nacional era o sinal de diferenciação do Brasil em relação

ao concerto geral das nações, constituía “uma pista para explicar o atraso ou

uma possível inviabilidade da nação.”4 Raiz da explicação, a mestiçagem era

observada por estrangeiros, temida por boa parte das elites locais e entendida

como questão central para a compreensão do destino da nação.5

É essencialmente a partir de 1870 que essas novas interpretações do

fenômeno nacional ganham terreno no Brasil. Essa década é essencial no

contexto da escravidão, a Lei do Ventre Livre de 1871 “anunciava a derrocada

de um regime de trabalho havia muito arraigado”6, o liberalismo era largamente

apreciado e exerceu importante pressão na direção desse e de outros

fenômenos. No mesmo período, contudo, entrava no país o novo ideário

                                                            1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no

Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 8a reimpressão, 2008. p.11. 2 Romero, 1888 apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças... Idem, Ibidem. 3 Gobineau, apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças... Idem, Ibidem. 4 Idem, p. 13. 5 Idem, p. 14. 6 Idem, Ibidem. 

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positivo-evolucionista no qual se baseavam os modelos raciais de análise. É

nesse mesmo período que os recém criados centros de ensino nacionais se

fortalecem: são criados museus etnográficos, faculdades de direito e medicina

além de institutos históricos e geográficos. É interessante observar que, apesar

do paradoxo aparente entre esses dois modelos teóricos, liberalismo e racismo

– o primeiro centrando sua atuação no grupo entendido como uma estrutura

biológica singular, o segundo focando no indivíduo e sua responsabilidade

pessoal – há uma conformação bastante sólida dessas ideias o que possibilitou

muitos daqueles intelectuais a atuarem em algumas dessas instituições liberais

defendendo seus pressupostos racistas.7

Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), maranhense, é um desses

intelectuais que no decurso dos últimos anos do século XIX freqüenta e

contribui para esse ambiente acadêmico. Em 1882 iniciou o curso de medicina

na Faculdade de Medicina da Bahia, indo para o Rio de Janeiro em 1885,

voltando para Salvador onde conclui seus estudos em 1887. Em 1889, presta

concurso para aquela mesma faculdade, ocupando o posto de adjunto na

cadeira de Clínica Médica. Já em 1890, em artigos publicados nos periódicos

Gazeta Médica e Brazil Médico, Nina Rodrigues introduz idéias como as de

“anthropologia patológica” e “anthropologia criminal” – referindo-se pela

primeira vez às “doutrinas da escola positiva italiana” de Lombroso, Ferri e

Garófalo, entre outros.8

Em 1894, já como titular da cadeira de Medicina Pública em Salvador,

Nina publica seu primeiro livro “As raças humanas e a responsabilidade penal

no Brasil” em que deixa claro suas posições a respeito da medicina legal e do

papel da raça nas patologias da população brasileira.9 No período de 1896 a

1897 começa a publicar na Revista Brazileira os artigos que compõem o seu

livro “O Animismo Fetichista dos Negros Baianos”, publicado primeiramente em                                                             7 Idem, Ibidem. 8 CORRÊA, Mariza. Raimundo Nina Rodrigues e a “garantia da ordem social”. REVISTA USP,

São Paulo, n.68, pp. 130-139. Dezembro/fevereiro 2005-2006. Os dados expressos nesse

parágrafo estão presentes nesse artigo. 9 Idem, p. 133. 

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francês (1898), na Bahia, e mais tarde traduzido por ele próprio em 1900 – o

objeto de nosso estudo. Mais tarde publica outras obras como “O Alienado no

direito civil brasileiro”, “Collectividades Anormaes” e um segundo livro sobre o

tema “negro” “Os Africanos no Brasil”10. Em 1906, quando visitava seus

colegas franceses da Société Médico-Psychologique de Paris da qual era

membro colaborador no estrangeiro, em busca de financiamentos para a

instituição de um laboratório de pesquisas e formação de médicos legistas e

peritos criminais, Nina Rodrigues falece, aos 44 anos.

Nos anos que se seguem à morte de Nina Rodrigues, especialmente nas

décadas de 20 e 30 do século XX, alguns autores voltaram-se a seus trabalhos

e lhes dedicaram especial atenção – destacando-se a chamada “Escola Nina

Rodrigues”11. Mariza Corrêa aponta em sua obra para a criação dessa escola

na década de 30, especialmente dada por Arthur Ramos e Afrânio Peixoto, que

se dedicaram à compilação e publicação de muitos estudos de Rodrigues.

Considerando-se discípulos de Nina, muitos intelectuais puseram-se a dar

continuidade às contribuições do “fundador”, descaracterizando, contudo, o

contexto no qual este trabalhava, demolindo algumas de suas interpretações e

enfatizando outras.12 Essa nova interpretação, segundo Corrêa, é fruto da

necessidade patente do começo do século XX de colocar-se à busca de

interpretações e modelos que explicassem a formação da sociedade brasileira,

da definição do país como nação.13 A partir da década de 30 deu-se maior

importância aos escritos associados à questão racial e algumas das questões

levantadas por ele inspiraram várias discussões, que, contudo, não se

esgotaram. O seu objeto de estudo e a forma pela qual ele o aborda, fizeram

com que Nina ficasse conhecido como um dos primeiros etnógrafos brasileiro,

seus estudos sendo até hoje apreciados, discutidos e analisados.

                                                            10 Idem, pp. 133-134. 11 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no

Brasil. 1998. 2ª. ed.rev. Bragança Paulista: Editora da Universidade de São Francisco, 2001. 12 Idem, p. 10. 13 Idem, Ibidem. 

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Para nossa pesquisa, a fonte a ser utilizada é a reprodução em Fac-

Símile dos artigos de Raimundo Nina Rodrigues publicados na Revista

Brazileira entre os anos de 1896 e 1897, compilados por Artur Ramos e

republicados pela Fundação da Biblioteca Nacional em 2006.14 Tratam-se de

artigos relativos à pesquisa de campo realizada pelo autor junto às

comunidades de religião “fetichista”15 de Salvador, durante cinco anos. São ao

total quatro capítulos e um apêndice chamado “Ilusões da catequese no Brasil”

– nos quatro primeiros o autor se dedica à descrição da “Zoologia fetichista dos

áfrico-baianos”, da “Liturgia fetichista dos áfrico-baianos”, do “Feitiço, vaticínio,

estado de possessão, oráculos fetichistas” e “Cerimônias do culto fetichista:

candomblés, sacrifícios, ritos funerários”.

Essa obra é menos produto de uma afeição especial a essas populações

de que de uma confirmação de suas posições e dos seus projetos de “garantia

da ordem social”16. Mais do que apenas apelar à ordem social e civil, ela busca

demonstrar o perigo da mestiçagem para os pilares da nação: “ (Nina) visita os

candomblés para comprovar a fraqueza da hegemonia religiosa do catolicismo

no país”17 – pois “não era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias;

conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar

venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e

superstições.”18

                                                            14 RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Fac-símile de artigos

publicados na Revista Brazileira em 1896 e 1897. Rio de Janeiro, Fundação da Biblioteca

Nacional. Editora UFRJ, 2006. 15 Nina Rodrigues não explicita exatamente no que consistem essas religiões, porém na sua

obra essas são múltiplas e sempre atreladas a populações negras. No caso do fetichismo nagô

o termo é usado, geralmente, como sinônimo do que atualmente designamos como candomblé. 16 CORRÊA, Mariza. Raimundo Nina Rodrigues e a “garantia da ordem social”. Op.cit. 17 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade... Op.Cit. p. 165. 18 RODRIGUIES, Nina. O animismo fetichista... Op. Cit. p. 124. 

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CAPÍTULO 1: O século XIX e o pensamento de Nina Rodrigues

A necessidade de produzir recortes que fossem capazes de dar

inteligibilidade à figura de Nina e sua produção perpassa a obra de vários

intelectuais. Mariza Corrêa produz, em seu doutorado, uma tese apresentada

ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo em 1982,

intitulada As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no

Brasil19 analisando a produção teórica de um grupo de médico e cientistas

sociais que, na década de vinte do século passado, diziam-se discípulos de

Nina Rodrigues. Para tal, a autora lança mão de um profundo estudo da obra

do intelectual maranhense, confrontando-o com o contexto social brasileiro em

que viveu, apontando em sua produção os parâmetros teóricos, políticos e

relacionais entre este intelectual e a sociedade da época.

Se na primeira metade do século XIX não encontramos uma

“comunidade científica” largamente estruturada20, com o desenvolvimento de

novos centros de saber, já na segunda metade do século XIX, nos deparamos

com a formação de uma elite intelectual que produzia muito e que sempre se

encontrava “fosse na livraria Garnier do Rio, fosse em alguma viagem pela

Europa, (...) [ou] em grupos, ‘igrejinhas’ e ‘escolas’21. É nesses últimos

espaços, representados seja pelos vários Institutos Históricos e Geográficos

espalhados pelas províncias, ou pela Academia Nacional de Medicina, ou pelos

jornais e gazetas nas quais esses autores publicavam e criticavam-se

mutuamente, que essa intelectualidade se desenvolve fortemente. Muitas

dessas publicações tinham uma circulação ampla, não só pelo centro político

do país “mas também pelos sertões”22, revelando a pluralidade de autores e

interlocutores, diferentemente do início do século, em que, conforme José

                                                            19 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade... Op. Cit. 20 Idem, pp. 22-26. 21 Idem, p. 26. 22 Idem, Ibidem. 

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Murilo de Carvalho23, a elite estudava Direito em Coimbra, integrava a carreira

burocrática e compunha um grupo relativamente homogêneo.

Mais do que apenas apontar a singularidade do processo de formação

da elite acadêmica da segunda metade do século XIX, Mariza Corrêa propõe

que se analise a linguagem em comum presente nesses círculos de

intelectuais, sua postura teórica e metodológica e, porventura, um projeto

institucional - além das contribuições que esses autores possam ter dado à

conformação do campo das ciências no Brasil. Em Nina Rodrigues, há nesse

ponto, um aspecto que particularmente interessa a nosso estudo: “a

multiplicidade cultural, talvez malgrado sua vontade”24, reconhecida por ele.

Voltaremos a esse ponto.

Em Lilia Moritz Schwarcz encontramos uma historicidade das doutrinas

raciais no século XIX que é particularmente interessante para pensarmos a

formação intelectual de Nina Rodrigues. Schwarcz afirma que o final do século

XVIII é um momento em que o debate sobre a origem dos povos ainda se

estendia. Ideias advindas da Revolução Francesa tendiam a considerar os

diversos grupos humanos como “povos”, “nações”, iguais por princípio, jamais

como raças diferentes em sua origem e conformação.25 Contudo, já no começo

do século XIX, o conceito de raça é reincorporado “como variante do debate

sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos discorria-se mais

sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do

indivíduo(...)”26

Na composição do argumento racial, Schwarcz aponta duas grandes

vertentes que aglutinavam diferentes autores: a visão monogenista e a

hipótese poligenista. A primeira, dominante até meados do século XIX,

congregava pensadores que, conforme às escrituras bíblicas, acreditavam que

                                                            23 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:

Campus, 1980. 24 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade, op cit, p. 32. 25 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, op cit, p. 47 26 Idem, Ibidem.  

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a humanidade era una – sendo os diferentes tipos humanos apenas um

produto de degenerações da perfeição do Éden. Nesse tipo de argumentação

predominava a noção de virtude como elemento garantidor de desenvolvimento

– que podia variar em graus conforme a civilidade de cada povo.

Já a visão poligenista, que surge em meados do século, derivada da

sofisticação das ciências biológicas e da contestação aos dogmas da Igreja,

parte da ideia de múltiplos centros de criação que corresponderiam às

diferenças raciais observadas.27 Essa hipótese, por sua vez, propiciou,

segundo a autora, que os comportamentos humanos passassem a ser

observados como resultado de leis biológicas e naturais. Essas teorias são

encorajadas pelo nascimento da frenologia e da antropometria, que

interpretavam a capacidade humana tendo em conta o tamanho e a proporção

do cérebro dos diferentes povos.

Ainda seguindo esse modelo determinista, afirma Schwarcz, ganham

impulso as hipóteses que se detinham na observação da natureza biológica e

no comportamento criminoso – a antropologia criminal – que teve em Cesare

Lombroso seu maior expoente. Lombroso acreditava que por meio da utilização

de técnicas tais quais a medição de crânios, a pesagem de cérebros e a

observação de estigmas e deformações faciais, fosse possível determinar o

comportamento social de determinados indivíduos e prever quais seriam

naturalmente propensos a cometerem delitos.28

O debate entre monogenistas e poligenistas traria, também, a

delimitação de campos específicos de algumas disciplinas. Segundo a autora,

se os estudos antropológicos nascem diretamente vinculados às ciências

físicas e biológicas em suas interpretações poligenistas, as análises

etnológicas mantêm-se ligadas a uma orientação humanista e de tradição

monogenista.29 É somente com a publicação de A origem das espécies, em

1859, que, segundo Schwarcz, a polêmica tende a amenizar-se. De um lado,

                                                            27 Idem, p. 48. 28 Idem, p. 49. 29 Idem, pp. 52-53. 

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monogenistas satisfizeram-se com o suposto evolucionista da origem una da

humanidade, e de outro, poligenistas, admitiam ao mesmo tempo a existência

de ancestrais comuns, afirmando que teria havido uma separação entre as

espécies humanas há tempo de forma que se configurado heranças e aptidões

diversas.

O pensamento social dessa época acabará também sendo influenciado

por esses tipos de reflexão. “Assim, enquanto a etnografia cultural adaptava a

noção monogenista aos novos postulados evolucionistas, darwinistas sociais

ressucitavam, com nova força, as perspectivas poligenistas de inícios do

século. Era preciso pensar na antiguidade da ‘seleção natural’ e na nova

realidade que se apresentava: a mestiçagem racial. Os mestiços

representavam (...) a diferença fundamental entre as raças e personificavam a

‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de ‘espécies diversas’.”30

A antropologia cultural ou etnologia social, que se constitui como

disciplina nesse momento, tinha, justamente, como foco central a cultura – vista

sob um aspecto evolucionista. Conceitos como civilização e progresso eram

entendidos como universais – estágios pelos quais a cultura teria se

desenvolvido – obrigatórios e direcionados “do mais simples ao mais complexo

e diferenciado.”31 Paralelamente a essas ideias, o darwinismo social ou teoria

das raças entendia as raças como “fenômenos finais”, resultados imutáveis –

sendo todo e qualquer cruzamento entendido como um erro. Essa afirmação

implicou, por sua vez, “um ‘ideal político’, um diagnóstico sobre a submissão ou

mesmo a possível eliminação das raças inferiores, que se converteu em uma

espécie de prática avançada do darwinismo social – a eugenia –, cuja meta era

intervir na reprodução das populações.”32

É justamente nesse contexto que conceitos como desigualdade e

diferença passam a representar posturas e princípios diversos. A noção de

desigualdade implicaria a continuidade de uma humanidade indivisível: as

                                                            30 Idem, p. 56. 31 Idem, pp. 57-58. 32 Idem, p. 60. 

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diversidades existentes entre os homens seriam apenas transitórias e

remediáveis pela ação do tempo “ou modificáveis mediante o contato

cultural”.33 As diferenças, contudo, seriam definitivas e irreparáveis,

“transformando a igualdade em um problema ilusório.”34 Em Nina Rodrigues,

essa percepção é muito clara: a diferença é absoluta e intransponível.

Falaremos disso adiante.

A historiografia que se voltou para Nina Rodrigues descobriu nele um

campo fértil de análise. É notável, contudo, uma centralização na análise racial

da qual o autor lança mão em seus estudos. Há, contudo, muito em

decorrência da forma como esse autor faz suas análises, algumas

particularidades que estudos como o de Hilton Costa35 vem evidenciando:

dentro das denominações de raça de Rodrigues há alguns aspectos que

diferenciam as populações umas das outras – e conseqüentemente as colocam

em posições diferentes no trajeto rumo à civilidade: a religião; o politeísmo e o

monoteísmo são alguns dessas ferramentas de análise. Aspecto singular e

central para nosso trabalho é a ideia de que o conceito de “raça” tal como

expresso por Nina Rodrigues e suas imbricações, sejam teórico-metodológicas

ou na prática de pesquisa, levaram ao reconhecimento da diferença e da

diversidade.

Mais do que isso, partindo da afirmação de Mariza Corrêa acima citada,

de que Nina tenha admitido, talvez malgrado sua vontade, a multiplicidade

cultural, onde podemos encontrá-la e como se dá esse reconhecimento? Para

isso, buscamos uma definição de multiplicidade cultural capaz de dar conta do

conjunto de ideias que Nina tenha deixado transparecer em seus estudos.

A ideia de multiplicidade cultural que aparece evidenciado no título deste

trabalho é a síntese da apropriação de dois conceitos definidos por Stuart Hall

                                                            33 Idem, p. 62. 34 Idem, Ibidem. 35 COSTA, Hilton. Nina Rodrigues e os malês. Revista Vernáculo: Dossiê Norbert Elias. no 4,

2001. 

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em seu livro Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais36, quais sejam o

multicultural e o multiculturalismo. Para Hall “Multicultural é um termo

qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de

governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes

comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao

mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade ‘original’”37. Já o

multiculturalismo “é substantivo”. Ele se refere às estratégias e políticas – a

variedade de articulações, ideais e práticas sociais que são adotadas para

governar e administrar os problemas de diversidade e multiplicidade advindos

justamente das sociedades multiculturais. O multiculturalismo descreve uma

série de processos sempre inacabados: quanto mais plurais as sociedades,

mais plurais são as formas de definição e modos de agir na mesma.

A multiplicidade cultural é, dessa forma, dada em sociedades

multiculturais, em que a diferença é vivida e experimentada por seus sujeitos –

experiência que é determinada, muitas vezes, por um conjunto de estratégias e

práticas sociais adotadas pelos indivíduos aí envolvidos. Essa multiplicidade

implica o (re)conhecimento da diferença, a sua vivência ou não, e as formas de

nela ou sobre ela agir.

Se observarmos que no Ocidente, de diversas maneiras, o conceito de

“raça” foi abrindo o caminho para que a noção de “diferença” – que por sua vez

vai adquirindo novo sentido e se insinuando no meio dos discursos e práticas

que, a princípio, eram marcados apenas pelo eixo da

superordenação/subordinação.38 Em Nina Rodrigues a ideia de religião opera,

talvez contra sua vontade, esse mecanismo. É nesse sentido que se impõe a

nossa pergunta. Nessa perspectiva, na obra Nina Rodrigues, buscaremos

mapear a utilização da idéia de religião buscando responder à seguinte

                                                            36 HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik; trad. Adelaine

la Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. 37 HALL, Stuart. Da diáspora... Op.Cit., p. 50. 38 FILHO, Nemezio. Para além do conceito de raça. Revista Científica de Información y

Comunicación, Numero 3, 2006, Sevilla. Sección Selecta. 

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pergunta: é possível entender, em o Animismo Fetichista dos Negros Baianos o

reconhecimento de uma sociedade multicultural?

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CAPÍTULO 2: Os candomblés de Salvador

Na recém criada República do Brasil, o que é a religião? Para melhor

entendermos a questão, cabe aqui uma pequena análise de longa-duração.

Desde o início da colonização a evangelização foi um dos compromissos

assumidos pelas coroas ibéricas. O modelo político-administrativo introduzido

na América portuguesa era avalizado e justificado pela motivação da

cristianização: o direito do padroado, pelo qual os monarcas ibéricos

controlavam as atividades da Igreja em seus territórios moldou a organização

do poder religioso dirigindo-o segundo os interesses do poder temporal.39 No

século XIX, após a independência, a religião continuou a se desenvolver sob a

regulamentação e proteção do Estado Imperial – adquirindo, com a constituição

de 1824, o status de religião oficial do Império. Mesmo beneficiada por essa

dependência, da qual decorria o sustento dos quadros eclesiásticos, o domínio

sobre os serviços públicos como educação, saúde, registros de nascimento,

casamento e óbito, a Igreja viu seu papel na vida religiosa diminuir com o

afrouxamento das prerrogativas sobre os assuntos relativos à fé e disciplina em

seu interior. Seu papel, cada vez mais, tornava-se burocrático e subordinado às

necessidades do poder temporal.40 O Estado, a seu lado, acenava com a

concessão de culto a outras religiões na já citada constituição de 1824, desde

que observadas as ressalvas de domesticidade do culto e a não caracterização

externa do templo.41 Além disso, o Império continuava nomeando bispos

conservadores, de forma a garantir que as relações entre ambos continuassem

da forma como vinham se dando. É na década de 1870 que as latentes

                                                            39 CAES, Andre Luiz. As portas do inferno não prevalecerão: a espiritualidade católica como

estratégia política (1872-1916). Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História

do IFCH-Unicamp em fevereiro de 2002, p. 79. 40 Idem, Ibidem. 41 Constituição Política do Império do Brazil, 1824. Ver:

http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-G_2.pdf. 

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diferenças chegam a um limite no que é chamado de Questão Religiosa com o

Estado confiscando terras de irmandades religiosas, a Igreja reivindicando

autonomia e direitos. A separação definitiva só se dará em 1890, já no contexto

republicano – o que não diminuía sensivelmente nem a presença da Igreja no

seio da população nem seu poder doutrinário.42 De todas as formas, durante o

século XIX são esses dois poderes os responsáveis por regulamentar os cultos

e a religiosidade nacional. O Ministério de Estado dos Negócios do Império –

responsável pela organização do culto religioso – prestava contas da situação

da pasta à Assembleia Geral Legislativa43. O Estado, que não expunha

preocupação constante com a situação em que se encontrava o culto, nem por

aquele motivo abriu o seu leque em direção a aceitação de outros cultos. Uma

consulta feita aos relatórios enviados à Assembleia entre os anos de 1880 e

1888 nos revela a visão do Império sobre a situação da religião.

Diversos ministros atentam para um fator comum a todas as províncias e

“até para freguezias das cidades mais populosas, das proprias capitaes”44: a

“omissão, (...) há muitos anos já, mormente em certas dioceses, (...) dos

concursos e assim do provimento effectivo das igrejas parochiaes.”45 Mais: “em

mais de um logar têm-se dado abusos relativamente a casamentos celebrados

por pastores acatholicos (...) esses e outros factos succedidos nas

denominadas communidades de seitas dissidentes é a falta de garantia na

nomeação ou eleição daquelles pastores, á vista da legislação existente.”46 Na

voz dos clérigos, há uma carência administrativa, que deve ser resolvida pelo

Estado em favor da manutenção da crença e controle religioso. Este Estado

que está se afastando da Igreja e que entende por “acatholicos” apenas e tão

                                                            42 CAES, Andre Luiz. As portas do inferno não prevalecerão... Op.Cit. p. 90. 43 Disponíveis em http://www.crl.edu/brazil/ministerial/imperio, Latin American Microform Project

(LAMP). 44 “Relatorio apresentado á Assembléia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretario de Estado

dos Negocios do Imperio, Barão de Mamoré, 1886. p. 84. 45 Idem, Ibidem. 46 Idem, pp. 85-86. 

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somente protestantes,47 não parece na observação do conjunto das fontes

oferecer qualquer solução para o problema. Se para a Igreja e para o Estado o

problema da fé é administrativo e como consequência dessa dificuldade,

doutrinário, quando transportamos a questão para o nosso estudo sugere-se a

entrada de um terceiro elemento na caracterização desse problema.

Nina Rodrigues, por sua vez, também reconhece a situação periclitante

do catolicismo. Dedica-se profundamente à análise do “culto fetichista” baiano,

colocando um terceiro elemento nessa discussão: os cultos de origem africana

que são capazes, inclusive, de “mobilizar as elites”. Ele faz um mapeamento

dessas crenças e práticas religiosas enfatizando sempre a “ilusão da

catequese”48, a ideia de que “no Brazil o mestiçamento não é só physico e

intellectual, é ainda affectivo ou dos sentimentos, religioso igualmente

portanto.”49

No primeiro parágrafo do primeiro dos seus artigos que compõe essa

obra analisada, Nina aponta para o fato de que “só a sciencia official, na

superficialidade e dogmatismo do ensino, poderia persistir em affirmar ainda

hoje que a população bahiana é na sua totalidade uma população monotheista

christan.”50 Seu trabalho está, então, “empenhado em bem precisar a natureza

e a fórma do sentimento religioso dos negros bahianos.”51

O próprio título que o autor deu a seu trabalho, Animismo Fetichista,

explicita qual é a “expressão do sentimento religioso” baiano – e que é do

conhecimento de todos: “as crenças fetichistas (...) tão regularmente

constituídas como as da África (...)”.52 Ainda nessa introdução o autor revela

que seus estudos tem o objetivo, justamente, de examinar o sentimento

religioso que “sobrevive nos negros que se incorporaram á população

                                                            47 CAES, André Luiz. As portas do inferno... Op. Cit. 48 RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos... Op.Cit. pp. 107-119. 49 Idem, p. 116. 50 Idem, p. 27. 51 Idem, Ibidem. 52 Idem, Ibidem. 

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brazileira, tal como elle está actuando grandemente em todas as manifestações

da nossa vida particular e publica”.53

É nesse tom que a obra começa. A primeira parte, chamada Ethnografia,

dedica-se a falar da Zoologia Fetichista dos Africo-Bahianos, busca traçar um

perfil histórico das contribuições às crenças religiosas africanas na Bahia de

seu contexto. Nina afirma que o tráfico transportava para o Brasil grande

número de indivíduos de diversas “tribus ou nações africanas”, e que como

todos esses grupos partilhavam de alguma forma de fetichismo que ia desde “o

fetichismo mais estreito e grosseiro até os limites das generalizações

polytheistas”54 assim também eram os cultos no território nacional.

Aqui, Nina dá a primeira pista de quem será o sujeito por excelência do

seu trabalho, os Iorubás. Nosso autor apresenta o argumento de que a

“modalidade fetichista especial” predominante entre a população baiana é a

iorubana e afirma que assim o é porque estes escravos teriam sido importados

em maior número ou porque adquirissem a liberdade mais rapidamente – dada

a grande capacidade de acumular recursos pecuniários graças às relações

comerciais que mantinham com a cidade de Lagos.55

É nesse momento que aparece, pela primeira vez, a ideia de religião

associada a um culto de origem africana. Nina cita a “religião de Jorubá”, que

pelo conhecimento que tinha por intermédio de algumas obras, seria capaz de

afirmar que “a concepção theologica que predomina na Bahia é a dos

Jorubanos (...) que atinge ás raias do polytheismo.” 56 Os capítulos que se

seguem serão baseados na busca da descrição e comprovação desses dois

argumentos.

Ainda no capítulo 1, Nina Rodrigues afirma que na Bahia a “religião dos

Jorubanos” é sem dúvida a mais importante e que ao seu entorno estão negros

                                                            53 Idem, p. 30. 54 Idem, p. 31. 55 Idem, p. 32. 56 Idem, p. 33. 

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crioulos e mestiços, além de vários outros grupos de africanos não-iorubanos.

E para defini-la melhor, Nina procede à observação do “Deus-creador”, sem

representação ou adoração – Olorun. Ao fazê-lo, Nina sugere que a

organização do culto se dá tal qual a organização da sociedade civil: se só há

um rei na nação, só há um Deus no universo e se para se chegar ao rei deve-

se passar pelos cortesãos, deve-se recorrer aos Orixás para se chegar a

Olorun. Nina aponta também que a presença de um deus superior não é

unanimidade entre os crentes, derivação de pura ignorância de alguns

iorubanos ou da identificação por parte dos creoulos da figura Cristo com outro

orixá, o que dificulta a ligação entre Olorun e Deus.57 Os orixás, ou santos –

seres de “constituição chimerica, formando uma mythologia complexa em que

se sentem ainda bem discriminados a litholatria, a phytolatria, o animismo

primitivo em todas as suas manifestações emfim”58 – são o segundo ponto da

análise: Nina descreve a idealização e a forma de culto de alguns orixás, entre

eles Obatalá, Exú, Xangô – e suas mulheres Iansã e Oxum –, Iemanjá e

Oxóssi.

Já no segundo capítulo, Liturgia fetichista dos africo-bahianos, Nina

Rodrigues detêm-se mais nos aspectos litúrgicos apenas enunciados no

primeiro capítulo. Começa por explicar que o culto fetichista iorubano tem na

Bahia uma forma exterior complexa. Possuem nas cidades templos especiais –

os terreiros – para as grandes festas anuais, mas espalhados nas casas

particulares pequenos oratórios para as orações corriqueiras. Nina afirma que

na capital, Salvador, existem pelo menos entre 15 e 20 grandes terreiros, mas

que os números exatos são difíceis de obter. Alguns entre eles são mais

afamados, tais quais o do “Gantais, o do Engenho Velho e o do Garcia”59 e em

outras cidades da Bahia, tais quais Cachoeira de Santo Amaro e São Francisco

o número de terreiros e oratórios seria muito grande. Usando o terreiro do

Gantois como exemplo padrão, Nina descreve como são as casas de culto na

capital – localizadas em locais ermos, na maioria das vezes sítios, chácaras ou                                                             57 Idem, p. 39. 58 Idem, p. 40. 59 Idem, p. 50. 

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roças alugadas ou arrendadas para as grandes festas e que na maior parte das

vezes são deixadas vazias, com apenas algum morador tomando conta no

restante do ano.

São, em geral, grandes barracões cobertos de telha ou taipa

sombreados de grandes árvores. A parte interior formada por uma grande sala

de dança de chão batido que abarca metade do espaço total – a outra metade

se subdividiria em pequenos aposentos onde “os hábitos do negro para logo se

revelam.”60 São quartos onde se encontram “na mais indescriptivel

promiscuidade, taboleiros de cereaes, frutas e ervas, garrafas e tigelas de

azeite de dendê, pratos com moquecas e outros preparados africanos (...) um

armário tosco de madeira onde se guarda roupa e as vezes comestíveis.”61 O

ultimo destes quartos é o santuário, o Peji, “o Jará-Orisá, a igreja propriamente

dita.”62 Segundo Rodrigues, ali ficam guardadas, nos dias dos candomblés,

grande quantidade de roupas e adornos de santos – faixas bordadas de búzios,

colares de contas e miçangas: “é o guarda-roupa dos santos.” Ali se encontram

também o altar, sobre o qual se colocam os fetiches ou ídolos. No chão, em

frente a eles, estariam as oferendas que consistiam substancialmente em

alimentos e água. Na maioria dos casos o Peji não se diferencia desse modelo,

segundo Nina – observando que no Gantois não há apenas o barracão mas

também outras casinhas em que se guardam os animais para o sacrifício, onde

se cozinham os pratos e oferendas e onde se colocam santos que não podem

ser colocados no santuário.63

A palavra terreiro, para Nina Rodrigues, tem duas significações: designa

o local onde reside ou se celebram as festas religiosas e qualifica a jurisdição

de um pontífice fetichista que dele toma o título de pai ou mãe de terreiro.64

Além do pontífice, aponta Nina, há outras postos que são necessários. Há os

ougans, que são os responsáveis e protetores dos candomblés – pessoas que                                                             60 Idem, p. 52. 61 Idem, Ibidem. 62 Idem, Ibidem. 63 Idem, pp. 53-54. 64 Idem, p. 54. 

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têm algum interesse nessas práticas religiosas, que podem ser iniciadas ou

não. Os ougans têm algumas poucas obrigações e direitos muito amplos,

segundo Rodrigues. São ouvidos nas deliberações do terreiro, têm a proteção

de todos os santos da casa e dos feiticieros no caso de alguma ofensa ter sido

lançada sobre eles e em contrapartida devem apenas protegem as casas das

investidas da polícia e fazer oferendas a seus orixás. 65

O pai ou mãe de terreiro que, para Nina, “é a um tempo pontifice e

feiticeiro, funcções pouco distintas e correlatas. Como sacerdote, preside e

dirige as festas do culto exterior, e organiza uma espécie de confraria ou

collegio de iniciados. Nas suas funções sacerdotaes, tem auxiliares e

subalternos. Quasi sempre trabalham juntos pai e mãi de terreiro, mas não

podem ainda prescindir de outras dignidades. Assim, entre outras, o regente da

orchestra, cuja alta função sacerdotal é invocar ou chamar o santo nas dansas;

um outro dignatario que invoca ou chama o santo nas arvores, e finalmente o

mestre dos sacrifícios que sabe escolher, matar e preparar os animaes

destinados ao sacrifício.”66

Por último, Nina descreve os filhos de santo. Segundo ele, esses são

pessoas que, preparadas por uma iniciação especial, são voltadas ao culto de

um ou mais santos. Elas se distinguem por preceitos especiais relativos à

alimentação, às vestimentas, aos deveres religiosos e tabus relativos a este ou

aquele santo.67 Nesse ponto da análise, Nina se detêm aos aspectos mais

práticos da iniciação, tais como a feitura do santo, os sacrifícios necessários,

as cerimônias que se passam no Peji, as escarificações na face, a raspagem

da cabeça, as saídas de santo e o preço a ser pago por todo o processo. Para

nós, o mais importante dessa descrição é a afirmação de Nina Rodrigues, de

que os filhos de santo, a partir da iniciação, tornam-se dependentes dos pais

de terreiro que exercem “uma tyrannia espiritual quasi descricionaria”.68

                                                            65 Idem, p. 55. 66 Idem, Ibidem. 67 Idem, p. 56. 68 Idem, p. 62. 

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Segundo ele, aos pais de terreiro é desnecessário trabalhar – já que suas

terras e plantações são lavradas pelos crentes e, no contexto urbano, os

proventos do sacerdócio lhes garantem independência. Esse sacerdócio, já

que o pai de terreiro é “antes de tudo, o preparador de feitiços”, é exercido para

uma clientela que acredita nas virtudes do feitiço. “Esta clientela não se recruta

sempre nas negras boçaes e ignorantes, sinão mesmo na melhor sociedade da

terra.”69

No capítulo 3, Feitiço, Vaiticnio; Estado de Possessão, Oraculos

fetichistas, Nina apresenta de que forma se dá a manifestação dos santos nos

fiéis. O santo se manifesta no pai de terreiro ou nos fiéis produzindo-lhes a

perda de consciência dos seus atos e de personalidade – essa substituída pela

do santo manifestado. É nesse estado que se fazem as predições comunicadas

ou diretamente à pessoa interessada ou, como afirma o autor, na maioria das

vezes ao pai do terreiro que interpreta seus desejos e ordens.

Nina, partindo então para uma abordagem mais direta do fenômeno da

possessão diz que, sem dúvida, as manifestações de santos não podem ser

associadas a uma farsa. Para ele, “o principal garante da sinceridade e

convicção dos negros fetichistas, – simples crentes, sacerdotes ou pontífices, –

é precisamente essa manifestação de phenomenos estranhos e anormaes,

essa alienação passageira mas incontestavel, que, na ignorancia das suas

causas, elles attribuem á intervenção extranatural do fetiche.”70

Para ele, “do que tenho ouvido, dos casos que tenho observado, dos

exames que tenho feito, sou levado a acreditar que os oráculos fetichistas, ou

possessão de santo, não são mais do que estados de somnambulismo

provocado, com desdobramentos e substituição de personalidade”71,

provocados por “banhos, fumigações, ingestão de substancias dotadas de

virtudes especiaes, jejuns prolongados, abstinências sexuaes, mortificações

                                                            69 Idem, p. 65. 70 Idem, p. 72. 71 Idem, p. 74. 

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diversas”72 Para confirmar suas ideias, Nina Rodrigues convence uma moça

negra a ser por ele hipnotizada. Reproduzindo durante a hipnose a sequência

das cerimônias, Nina mostra que “era assim evidente que ao somnambulismo

provocado pelas minhas suggestões verbaes no estado de hypnose se havia

substituído o somnambulismo provocado pela allucinação da musica sacra, isto

é o estado de santo ou de possessão.”73

No capítulo 4, Cerimônias do culto fetichista: candomblés, sacrifícios,

ritos funerários, Nina apresenta como se configuram as festas anuais em que

os iniciados dão de comer ao santo, festa de grandes proporções. Nelas, diz

Nina, sacrificam-se animais e preparam-se os pratos necessários às oferendas:

“vatapás, carurus, acaçás batidos, vazos com sangue, quartinhas com agua”74

e outros alimentos, alguns deles posteriormente consumidos pelos fiéis. O

autor apresenta também de que forma são feitos os ritos funerários, e de que

forma a concepção de morte dos africo-bahianos foi inspirada pelo convívio

com católicos – “encontro nelles a idéa ou pelo menos o conhecimento de uma

outra vida de recompensa para os bons e de castigos para os maus.”75

Logo após, Nina retoma a explicação das grandes festas anuais,

dizendo que a influência delas na cidade de Salvador é grande, avaliando o

público em algumas delas – como a dos terreiros do Gantois e Engenho Velho

em muitos milhares de pessoas. Esse fenômeno, que chamou a atenção da

imprensa e da polícia, é composto de cânticos, músicas e cerimônias que

perpassam várias semanas.

Ao final, Nina afirma:

“Taes são em largos traços e nas suas grandes linhas a religião e o culto fetichista dos

áfrico-bahianos no que elles conservaram de quase puro das suas tradições africanas. (...)

Como quer que seja, este estudo basta aos intuitos com que foi feito, pois delle decorre de

                                                            72 Idem, Ibidem. 73 Idem, p. 80.  74 Idem, p. 94. 75 Idem, p. 100. 

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modo indiscutível que o fetichismo africano, organizado em culto mais ou menos completo,

ainda hoje persiste na Bahia tal como existe na Africa.”76

O último capítulo de nossa fonte é o apêndice Ilusões da Catechese no

Brazil, que, segundo o próprio autor é o “extracto de um livro de medicina legal

sobre a responsabilidade penal dos negros brazileiros, que a casa editora

Wilke, Picard & C., está publicando em francez sob o titulo – L’annimisme

fétichiste dês nègres de Bahia. Essai de étnographie religieuse et de

psychologie criminelle.”77

Nina inicia esse texto afirmando que:

“O animismo fetichista africano, diluído no fundo superticioso da raça branca e

reforçado pelo animismo incipiente do aborígene americano, constitue o sub-solo uberrimo de

que brotam exuberantes todas as manifestações ocultistas e religiosas da nossa população. As

crenças catholicas, as praticas spiritas, a cartomancia, etc., todas recebem por igual o influxo

da feitiçaria e da idolatria fetichista do negro.”

Para ele, na Bahia, assim como em todas as missões catequéticas das

raças superiores na Africa – sejam católicas, protestantes ou maometanas, fica

claro que longe do negro se converter ao catolicismo é este último que recebe

sua influência, “se adapta ao animismo rudimentar do negro que, para tornal-o

assimilavel, materializa e dá corpo e representação objectiva a todos os

mysterios e abstracções monotheistas.”78 É na análise dessas crenças, afirma

o autor, que se deve estabelecer uma distinção prévia entre Africanos e seus

descendentes crioulos. Segundo ele, nos africanos que ainda existiam na

Bahia de fins do XIX, a conversão não fez mais do que apenas aproximar as

crenças católicas das práticas fetichistas – já que estes compreendem os

orixás e santos católicos como de categoria igual, mas perfeitamente distintos.

Dessa forma, além do desconhecimento geral que tem da língua portuguesa,

suas práticas puderam manter-se inalteradas, quase idênticas às africanas. As

extensas relações comerciais estabelecidas com os portos africanos foram sem

                                                            76 Idem, p.103. 77 Idem, p. 107. 78 Idem, Ibidem. 

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dúvida de extrema importância na importação e re-importação de crenças,

segundo Rodrigues.

Já os negros crioulos, que não receberam a influência direta da

educação de pais africanos e que pela ignorância das línguas africanas e maior

convivência com outros elementos da população, vão gradualmente

transferindo sua adoração dos orixás aos santos católicos. Ou seja:

“Si no negro africano havia e há ainda simples juxtaposição das idéias religiosas

bebidas no ensino catholico, ás idéias e crenças fetichistas, trazidas da Africa; no creoulo e no

mulato ha uma tendencia manifesta e incoercivel a fundir essas crenças, a identificar esses

ensinamentos. (...) É estabelecendo por seu turno uma equivalência, que facilmente se

converte em identificação, entre os santos catholicos e os orisás yorubanos, que os negros

creoulos se habilitam a comprehender á religião christan a seu modo e a serem considerados

convertidos.”79

É assim, que segundo Nina Rodrigues, para todos os negros que

conhecem os santos africanos, Xangô é Santa Bárbara, Oxóssi é sinônimo de

São Jorge, Obatalá (ou Orixá-lá) é identificado com o Senhor do Bonfim – este

último objeto de uma grande celebração anual na igreja que lhe é consagrada,

para a qual Nina descrevia um grande afluxo de negros e outros fiéis das

crenças fetichistas vestidos de branco na quinta-feira da semana da festa com

o objetivo de lavar as escadarias e adros do templo.80

E para Nina, “o ponto capital deste estudo é que a esta equivalencia das

divindades corresponde a mais completa harmonia de sentimentos religiosos,

na adoração prestada aos deuses dos dois cultos. E é precisamente este facto

que dá a illusão da conversão catholica dos negros. Sem renunciar aos seus

deuses ou ourisás, o negro bahiano tem, pelos santos catholicos, profunda

devoção levada até ao sacrifício e ao fanatismo. Mas esse sacrifício e esse

                                                            79 Idem, p. 109. 80 Idem, p. 113. 

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fanatismo não podem ser sinão essencialmente fetichistas; os santos

catholicos e até mesmo as invocações do filho de Deus constituem para os

negros outros tantos orisás.”81 Prática que, segundo o autor, não é

exclusividade “dos negros mais boçaes e ignorantes da nossa população (...)

todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras.”82

                                                            81 Idem, p. 114. 82 Idem, p. 116. 

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CONCLUSÃO

Se Nina Rodrigues busca no todo de sua obra colocar o negro no seu

devido lugar no conjunto da sociedade - e nossa fonte é um dos braços desse

corpo que o autor buscou construir - é, sem dúvida, em decorrência dessa

intenção que Rodrigues se volta ao “problema o negro” e delineia-o no maior

número possível de traços. Analisando com particular atenção a presença de

uma “religião fetichista” iorubana na Bahia, Rodrigues busca apresentar mais

um critério de diferenciação entre o que ele concebe como as raças superiores

e inferiores. Como recuperamos anteriormente, o estabelecimento da ideia de

diferença desempenha papel central nas afirmações de que a igualdade entre

as raças é apenas uma utopia.

Para Nina, os negros, ou não são capazes de praticar o monoteísmo, ou

apenas justapuseram “as exterioridades muito mal comprehendidas do culto

catholico ás suas crenças e praticas fetichistas que em nada se modificaram”83,

de forma que “continuar a affirmar, em face de todos estes documentos, que os

negros bahianos são catholicos e que tem exito no Brazil a tentativa de

conversão, é, portanto, alimentar uma illusão que póde ser cara aos bons

intuitos de quem tinha interesse de que as coisas se tivessem passado assim,

mas que certamente não está conforme á realidade dos factos.”84 Os seus 4

primeiros capítulos são a prova exaustiva de que esta é a realidade da Bahia

naquele momento.

O que Nina deixa transparecer em vários momentos de sua análise é

que justamente por esse fato a realidade baiana não pode ser interpretada

como um todo homogêneo. Mesmo que contra sua vontade, as crenças

fetichistas estão dispersas por toda a sociedade. Dois elementos corroboram,

                                                            83 Idem, p. 108. 84 Idem, p. 121. 

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em nossa visão, com essa afirmação. São as descrições, dentro da grande

caracterização da religião iorubana, do sacerdote e do crente.

O sacerdote, segundo Nina, é a um só tempo o chefe do culto e o

detentor de poderes mágicos que lhe garantem o exercício de poder. Ele é o

chefe do culto porque é ao seu redor que se processam todas as cerimônias e,

a partir da sua interação com os orixás, que se determinam as demais posições

na hierarquia do terreiro. Em todos os momentos em que se processam as

iniciações, as grandes festas, rituais particulares e preparações de feitiços a

presença de um pai ou mãe de terreiro é indispensável. Os sacerdotes são

também a autoridade máxima de cada unidade de culto, tendo aqueles

iniciados por eles obrigações a cumprirem. Muitas vezes, como afirma o próprio

Nina, aos chefes de terreiro é desnecessário trabalhar, já que os crentes,

principalmente no contexto rural “se concertam no melhor modo de servil-o

[cultivar suas terras], ou concedendo-lhes todos um certo dia de serviço na

semana ou no mez, ou revesando-se cada qual de sorte a dar trabalho

continuado.”85 No contexto urbano, “o contigente das offerendas dos santos e

os proventos do sacerdócio lhe garantem inteira independencia.”86

O exercício do sacerdote – donde provém a independência financeira

mencionada – é a exemplificação do segundo papel desempenhado pelo pai do

terreiro: “elle é ainda antes de tudo o preparador de feitiços, fonte de pingues

proventos. É como em toda a parte, o curador de molestias, o fazedor de

malefícios, o distribuidor de felicidades.”87 O feitiço, “o que o torna [o feiticeiro]

ao mesmo tempo tão temido e tão procurado”88, é o que o une ao crente:

“O numero em que ellas [crentes] avultam ali sobre a mesa fatídica da feiticeira, bem

indica a riqueza da clientela e a extensão da crença nas virtudes do feitiço. Mas esta clientela

não se recruta sempre nas negras boçaes e ignorantes, sinão na melhor sociedade da terra.”89

                                                            85 Idem, p. 62. 86 Idem, Ibidem. 87 Idem, Ibidem. 88 Idem, Ibidem. 89 Idem, p. 65. 

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Nina diz que o número de pessoas de todas as classes que, em

momentos de aflição e desgraça vão consultar-se os negros feiticeiros, dos que

acreditam publicamente no poder sobrenatural dos talismãs e feitiços e dos que

– em maior número – zombam deles em público mas ocultamente os ouvem e

os consultam, “seria incalculavel si não fosse mais simples dizer de um modo

geral que é a população em massa, a excepção de uma pequena minoria de

espíritos superiores e esclarecidos que tem a noção verdadeira do valor exacto

dessas manifestações psychologicas.”90 Exemplos como os de que

importantes políticos antes de candidatarem-se a senador ou aceitarem um

importante cargo em um ministério do governo republicano procuram a

intervenção de uma afamada mãe de terreiro, dão a exata noção, para Nina, do

mestiçamento dos sentimentos religiosos naquele momento.

Dessa forma, a pergunta que colocamos à nossa fonte principal revela-

se tão perigosa quanto intrigante. Atribuir a ideia do reconhecimento de uma

cultura como entendemos tal conceito atualmente a um autor que desenvolveu

sua carreira sobre as bases do racismo científico, e dele extraiu frutos dos

quais a própria obra analisada, pode se revelar simplesmente anacrônico. Não

temos tal intenção nesse trabalho. O que sugerimos é que Nina Rodrigues, de

forma pouco usual para o contexto nacional, desenvolveu uma pesquisa de

campo que, segundo ele mesmo, na época da publicação original na Revista

Brazileira, “já vai prosseguida attentamente para quase cinco annos”91,

justamente buscando o esclarecimento da contradição entre seus estudos “da

analyse psychologica, em matéria de phreniatria medico-legal”92 e a “sciencia

official”, decorrência disso a necessidade de conhecer as “condições mentaes

que exige a adopção de cada crença religiosa, junto a incapacidade psychica

das raças inferiores para as elevadas abstrações do monotheismo”93. Observar

essa incapacidade e como ela se processa, é reconhecer que nem toda a

sociedade é monoteísta. A dualidade católico-protestante é exposta a mais um

                                                            90 Idem, p. 116. 91 Idem, p. 28. 92 Idem, p. 27. 93 Idem, Ibidem. 

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elemento: a religião do negro, que está estruturada na crença generalizada no

feitiço.

O reconhecimento dessa diferença acaba por revelar-se uma via de mão

dupla. Ao passo que para Nina esse conceito se aplica para o conhecimento

daquilo que se quer evitar, acentuando o caráter irreconciliável de dois

sistemas de crenças que só a incapacidade mental do negro seria capaz de

relacionar, ele deixa entrever que o que há entre as raças é a desigualdade.

Mais do que multicultural, a análise da obra de Nina mostra que os setores

dessa sociedade estão intimamente ligados, e que a adoção de práticas

religiosas outras que não as tradicionais é fruto do diálogo que se estabelece

entre as raças.

Os contatos culturais que se dão nessa sociedade – onde “inteiro e puro

só devemos encontrar o sentimento que anima as suas crenças [do elemento

africano] e em que “as soi-disant classes civilizadas” davam crédito às

feitiçarias94, são aspectos do que podemos chamar de multiculturalismo: os

sujeitos interpretam os fenômenos e os vivenciam de formas diferentes, mas

não mutuamente incompreensíveis. O que Nina acaba por mostrar é que, mais

do que isso, os sujeitos podem agir de formar idênticas na grande

multiplicidade cultural baiana que acaba por apresentar.

                                                            94 Idem, p. 28. 

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FONTES

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8a reimpressão, 2008.