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Nº 14 – DOM. 17 de JULHO de 2016 Amador e coisa amada N ão há ninguém no teatro português que goste que lhe chamem amador”. São os resquícios de uma época em que as compa- nhias independentes lutaram para se tornarem profissionais, na década de 70 do século passado, e ganharam um es- paço (e subvenções) no meio cultural português. Existe um filme (Os três da vida airada, de 1952, realizado por Perdigão Queiroga) que é anterior a esta época e no qual o paradigma é inverso: são os partidários do teatro amador que se revoltam contra “os profissionais”, como os insulta um António Silva colérico. No filme, que é uma óptima forma de descobrir as Avenidas Novas da Lisboa de 50, entram também Milu, Eu- génio Salvador, Mário Aberto e… Vasco Morgado, porventura o maior empresário do teatro português do século XX. Mor- gado corporizava aquilo que os amadores detestavam no teatro profissional (de então, claro): o entretenimento, a lógi- ca comercial, a perda do Amor, no fundo. É que amador, não por acaso, é etimologicamente íntimo de amor – e é por isso que, por vezes, pode não haver vantagem em afastar a palavra amador da palavra teatro. Um homem de teatro galego, Adol- fo Simón, chamou uma vez ao Festival de Almada um “tran- satlântico movido a pedais”. A parte do transatlântico é o cariz profissional, internacio- nal, do Festival. Os pedais são a sua parte amadora, que não deve confundir-se com amado- rismo: é sim amor pelo teatro. Um desses últimos episódios de amor aconteceu quando a professora de alemão, Lurdes Trilho, aceitou o nosso convite para operar as legendas de Susn – e fez ponto de honra em não receber nada em troca. No final dos espectáculos, brilha- vam-lhe os olhos, de satisfação, por ter contribuído para o Belo. Outras pessoas – essas mais obcecadas pelo anonimato – tiveram contribuições seme- lhantes. Se isto não é amor pelo teatro, então não sabemos o que isso seja. T odos os anos os espectado- res do Festival de Almada elegem o seu Espectáculo de Honra, isto é, o espectáculo que gostariam que se apresentas- se novamente no ano seguinte. Os boletins de voto serão distribuí- dos amanhã, à entrada da Escola D. António da Costa, juntamente com os exemplares das nossas Folhas Informativas, e devem ser depositados na urna que estará co- locada à entrada do Palco Grande. Do conjunto dos 29 espectáculos acolhidos este ano, apenas 14 estarão em votação. Com efeito, muitos correspondem a produ- ções pontuais que não têm no ho- rizonte a ideia de uma reposição. Deste modo, o espectador poderá escolher um espectáculo de en- tre os seguintes: Hedda Gabler, Be normal!, A lição, As vozes, Othello, variação para três acto- res, Tandem, O feio, Trópico do Mar da Prata, Housewife, Graça – Suite teatral em três movimen- tos, Rat, Hotel Louisiana – Quar- to 58, A conferência dos pássaros e Thanks for vaselina. Os resul- tados serão anunciados no final do espectáculo de encerramento: Déjame que te baile, da bailaora Mercedes Ruiz. Votação do Espectáculo de Honra D éjame que te baile ins- creve-se num percurso introspectivo de auto-co- nhecimento e de reflexão sobre a dança. No auge da sua carreira, Mercedes Ruiz fez questão de in- cluir, neste espectáculo, obras de flamenco mais antigas, do início do século XX, e outras, mais re- centes, das décadas de 60, 70 e 80. Paco López, seu colaborador e encenador, considera a bailaora a união perfeita entre a tradição e o arrojo, entre o conhecimento das raízes do flamenco e o domí- nio de uma técnica apuradíssima, mas com um sentido expressivo único”. Em declarações ao Diário de Notícias, acrescenta que Mer- cedes Ruiz “é uma mulher com medos e inseguranças, mas entra em palco e torna-se magnética”. Festival despede-se ao som do flamenco Para além do cuidado no desenho de luzes e da sofisticação dos fi- gurinos, Déjame que te baile con- ta ainda com alguns dos maiores talentos na área da composição, da direcção e da interpretação musical. É o caso dos cantaores Mercedes Ruiz é a protagonista do espectáculo de encerramento do Festival de Almada. Déjame que te baile é uma ode à tradição flamenca e uma viagem ao am- biente festivo das calles do país vizinho. O espectáculo será antecedido pela home- nagem a Ricardo Pais, o encenador em destaque nesta edição. David Palomar e Jesús Méndez, e do guitarrista Paco Cepero, que também actuarão ao vivo. Esta apresentação em Almada antece- de a passagem de Mercedes Ruiz pelo Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris, agendada para 2017. © João Tuna © Ana Palma Um museu vivo foi o vencedor em 2015.

Nº 14 – DOM. 17 de JULHO de 2016 Amador e coisa amada ... · nífica co-produção entre a CTA e o Teatro da Cornucópia. Dizem as más-línguas que, após receber o ... deixavam

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Page 1: Nº 14 – DOM. 17 de JULHO de 2016 Amador e coisa amada ... · nífica co-produção entre a CTA e o Teatro da Cornucópia. Dizem as más-línguas que, após receber o ... deixavam

Nº 14 – DOM. 17 de JULHO de 2016

Amador e coisa amada

Não há ninguém no teatro português que goste que lhe chamem

“amador”. São os resquícios de uma época em que as compa-nhias independentes lutaram para se tornarem profissionais, na década de 70 do século passado, e ganharam um es-paço (e subvenções) no meio cultural português. Existe um filme (Os três da vida airada, de 1952, realizado por Perdigão Queiroga) que é anterior a esta época e no qual o paradigma é inverso: são os partidários do teatro amador que se revoltam contra “os profissionais”, como os insulta um António Silva colérico. No filme, que é uma óptima forma de descobrir as Avenidas Novas da Lisboa de 50, entram também Milu, Eu-génio Salvador, Mário Aberto e… Vasco Morgado, porventura o maior empresário do teatro português do século XX. Mor-gado corporizava aquilo que os amadores detestavam no teatro profissional (de então, claro): o entretenimento, a lógi-ca comercial, a perda do Amor, no fundo. É que amador, não por acaso, é etimologicamente íntimo de amor – e é por isso que, por vezes, pode não haver vantagem em afastar a palavra amador da palavra teatro. Um homem de teatro galego, Adol-fo Simón, chamou uma vez ao Festival de Almada um “tran-satlântico movido a pedais”. A parte do transatlântico é o cariz profissional, internacio-nal, do Festival. Os pedais são a sua parte amadora, que não deve confundir-se com amado-rismo: é sim amor pelo teatro. Um desses últimos episódios de amor aconteceu quando a professora de alemão, Lurdes Trilho, aceitou o nosso convite para operar as legendas de Susn – e fez ponto de honra em não receber nada em troca. No final dos espectáculos, brilha-vam-lhe os olhos, de satisfação, por ter contribuído para o Belo. Outras pessoas – essas mais obcecadas pelo anonimato – tiveram contribuições seme-lhantes. Se isto não é amor pelo teatro, então não sabemos o que isso seja.

T odos os anos os espectado-res do Festival de Almada elegem o seu Espectáculo

de Honra, isto é, o espectáculo que gostariam que se apresentas-se novamente no ano seguinte. Os boletins de voto serão distribuí-dos amanhã, à entrada da Escola D. António da Costa, juntamente com os exemplares das nossas Folhas Informativas, e devem ser depositados na urna que estará co-locada à entrada do Palco Grande. Do conjunto dos 29 espectáculos acolhidos este ano, apenas 14 estarão em votação. Com efeito, muitos correspondem a produ-

ções pontuais que não têm no ho-rizonte a ideia de uma reposição. Deste modo, o espectador poderá escolher um espectáculo de en-tre os seguintes: Hedda Gabler, Be normal!, A lição, As vozes, Othello, variação para três acto-res, Tandem, O feio, Trópico do Mar da Prata, Housewife, Graça – Suite teatral em três movimen-tos, Rat, Hotel Louisiana – Quar-to 58, A conferência dos pássaros e Thanks for vaselina. Os resul-tados serão anunciados no fi nal do espectáculo de encerramento: Déjame que te baile, da bailaora Mercedes Ruiz.

Votação do Espectáculo de Honra

D éjame que te baile ins-creve-se num percurso introspectivo de auto-co-

nhecimento e de refl exão sobre a dança. No auge da sua carreira, Mercedes Ruiz fez questão de in-cluir, neste espectáculo, obras de fl amenco mais antigas, do início do século XX, e outras, mais re-centes, das décadas de 60, 70 e 80. Paco López, seu colaborador e encenador, considera a bailaora “a união perfeita entre a tradição e o arrojo, entre o conhecimento das raízes do fl amenco e o domí-nio de uma técnica apuradíssima, mas com um sentido expressivo único”. Em declarações ao Diário de Notícias, acrescenta que Mer-cedes Ruiz “é uma mulher com medos e inseguranças, mas entra em palco e torna-se magnética”.

Festival despede-se ao som do flamenco

Para além do cuidado no desenho de luzes e da sofi sticação dos fi -gurinos, Déjame que te baile con-ta ainda com alguns dos maiores talentos na área da composição, da direcção e da interpretação musical. É o caso dos cantaores

Mercedes Ruiz é a protagonista do espectáculo de encerramento do Festival de Almada. Déjame que te baile é uma ode à tradição flamenca e uma viagem ao am-biente festivo das calles do país vizinho. O espectáculo será antecedido pela home-nagem a Ricardo Pais, o encenador em destaque nesta edição.

David Palomar e Jesús Méndez, e do guitarrista Paco Cepero, que também actuarão ao vivo. Esta apresentação em Almada antece-de a passagem de Mercedes Ruiz pelo Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris, agendada para 2017.

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Um museu vivo foi o vencedor em 2015.

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AGENDA DE AMANHÃTEATRO

18:00 Thanks for VaselinaFórum Romeu Correia

18:30 Ricardo IIITeatro Municipal Joaquim Benite

TEATRO

20:30 OpazEscola D. António da Costa

MÚSICA NA ESPLANADA

RESTAURANTE DA ESPLANADA

• Bacalhau com cebolada e pimentos

• Escalopes

Hoje

Amanhã• Fideo com choco• Pernas de frango no forno

Homembala exibe GloboDurante as duas actuações de Ricardo III, o grupo Homembala terá um inusitado objecto em cena, junto à bateria do espectáculo: nada mais nada menos do que o Globo d’Oiro que o grupo infamemente ganhou na competição com Hamlet, a mag-nífica co-produção entre a CTA e o Teatro da Cornucópia. Dizem as más-línguas que, após receber o prémio, Tónan Quito nunca mais conseguiu separar-se dele, levando-o para todo o lado. Só recentemente os restantes elementos do numeroso elenco conseguiram estabelecer um sistema de rotatividade. “É mui-to bom para esmigalhar alhos”, afiança Sofia Marques. António Fonseca, por seu lado, gosta de segurar nele antes de dormir, quando passa Os Lusíadas em revista. Miguel Moreira, quando lhe calha a guarda partilhada, diz que leva o Globo para a praia: dentro da lancheira, ajuda a manter as jolas fresquinhas.

22:00 Deixa-me que te baileEscola D. António da Costa

DANÇA

23:30 Edison Otero Jazz QuartetEscola D. António da Costa

MÚSICA NA ESPLANADA

Nao d’amores no país vizinho

Depois de ter estreado na Sala Principal do TMJB, no segundo dia deste Fes-

tival de Almada, a Nao d’amores partiu para Espanha, numa di-gressão que passou por Madrid, Almagro e Segóvia. A Folha In-formativa conversou ao telefone com Luís Lima Barreto, um dos actores portugueses que participa no espectáculo, que nos falou de uma recepção “excelente” e de críticas “muito positivas”. “É cla-ro que a mudança de espaço al-tera muita coisa, nomeadamente as marcações que fi zemos no te-atro de Almada”, explica o actor.

“Por exemplo, em Segóvia, fi ze-mos o espectáculo numa igreja. As entradas não podiam ser pelo mesmo sítio. Em Almagro, repre-sentámos ao ar livre e tínhamos de esforçar muito mais a voz.” Luís Lima Barreto acrescentou ainda que o bilinguismo do texto de Gil Vicente não constituiu uma grande difi culdade: “Muitas pes-soas me disseram que, a certa al-tura, deixavam de ligar ao texto. Preferiam ver o espectáculo, que é muito alegre, muito animado”. A Nao d’amores será reposta no TMJB, entre 15 de Outubro e 13 de Novembro. ©

Rui

Car

los M

ateu

s

Grande noite para o jornalismo culturalDecorreu ontem a cerimónia

de entrega dos prémios de jornalismo Carlos Porto,

atribuídos pela Câmara Municipal de Almada. No palco, estiveram presentes Rodrigo Francisco, di-rector artístico do Festival de Al-mada, Joaquim Judas, Presidente da Câmara Municipal de Almada, e Teresa Cayola, viúva do crítico de teatro que dá nome ao prémio. Depois dos discursos inaugurais, durante os quais o Presidente da Câmara Municipal de Almada destacou a importância e as difi -culdades enfrentadas pelo jorna-lismo cultural em Portugal, Ro-drigo Francisco chamou ao palco os vencedores das três menções honrosas atribuídas: a jornalista Cláudia Galhós, pelo texto publi-cado no blogue Festival Bytes, o

jornalista Gonçalo Frota, pelos textos publicados no jornal Públi-co, e o jornalista espanhol Carlos Gil, pelos textos publicados no jornal Gara. Nenhum dos jornalis-tas distinguidos marcou presença, mas Carlos Gil fez-se representar pelo colega Manuel Sesma Sanz, que subiu ao palco para agradecer

© R

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eus

a distinção. Seguidamente, o Pré-mio Carlos Porto na categoria de imprensa especializada foi atribu-ído à jornalista Leonor Nunes, do Jornal de Letras, que se fez repre-sentar pelo marido. Na categoria de imprensa generalista, o grande vencedor foi Javier Villán, pelos textos publicados no diário espa-

nhol El Mundo. Este prémio foi entregue em mãos, estando o jor-nalista bastante emocionado com a distinção e com a morte recente de José Monleón. Finalmente, su-biu ao palco Inês Nadais, a ven-cedora do Grande Prémio Carlos Porto 2015. Agradeceu ao Festival de Almada por ser “uma grande escola” e por lhe ter proporcio-nado “a oportunidade de realizar a entrevista a Paolo Magelli, que lhe valeu o prémio”. Contou, com graça, como foi recebida “com vi-nho, queijo e cerejas” pelo ence-nador de Hotel Belvedere, um es-pectáculo que, no ano passado, fa-lava sobre o fi m da Europa. “Com aquela recepção, não é possível acreditar em tal coisa”, concluiu Inês Nadais, sendo em seguida muito aplaudida pelo público.

© L

uana

San

tos

Inês NadaisJavier Villán