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Nº 9, 2012

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  • O contedo dos artigos de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), que cederam a Comisso de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, os respectivos direitos de reproduo e/ou publicao. No permitida a utilizao desse contedo para fins comerciais.

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    1Professor Titular (aposentado) de Teoria Geral e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFMG, credenciado no Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da UFMG.

    O ESPRITO DO OCIDENTE, OU A RAZO COMO MEDIDA

    (Em trs conferncias)

    I-A CULTURA GREGA: A DESCOBERTA DA RAZO

    II- A RAZO TEORTICA COMO MEDIDA: CINCIA E VERDADE

    III- A RAZO PRTICA: A TICA E A RAZO COMO MEDIDA

    Joaquim Carlos Salgado

    n. 9, 2012

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 9, 2012

    2011 Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP

    Qualquer parte desta publicao pode ser reproduzida desde que citada a fonte

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO Reitor: Joo Grandino Rodas Vice-Reitor: Hlio Nogueira da Cruz Pr-Reitor de Ps-Graduao: Vahan Agopyan Faculdade de Direito Diretor: Antonio Magalhes Gomes Filho Vice-Diretor: Paulo Borba Casella Comisso de Ps-Graduao Presidente: Monica Herman Salem Caggiano Vice-Presidente: Estvo Mallet

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    FICHA CATALOGRFICA

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    Cadernos de Ps-Graduao em Direito : estudos e documentos de trabalho / Comisso de

    Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 1, 2011-. Mensal ISSN: 2236-4544 Publicao da Comisso de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo 1. Direito 2. Interdisciplinaridade. I. Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de

    Direito da USP CDU 34

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 9, 2012

    Os Cadernos de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, constitui uma publicao destinada a divulgar os trabalhos apresentados em eventos promovidos por este Programa de Ps-Graduao. Tem o objetivo de suscitar debates, promover e facilitar a cooperao e disseminao da informao jurdica entre docentes, discentes, profissionais do Direito e reas afins.

    Monica Herman Salem Caggiano

    Presidente da Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 9, 2012

    Apresentao

    As trs conferncias do Professor Joaquim Carlos Salgado, um dos maiores filsofos brasileiros,

    foram de grande importncia para a formao dos alunos da ps-graduao. Elas foram elaboradas para o 1

    Curso de Vero da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, realizado no perodo de 23/01/2012

    a 06/02/2012, com a participao Mario G. Losano (Universit del Piemonte Orientale Itlia), Ricardo

    Henrique Carvalho Salgado (UFMG), Celso Lafer (FADUSP) e Celso Campilongo (FADUSP). Esta iniciativa

    pioneira s foi possvel em decorrncia do apoio do Professor Titular Jos Eduardo Campos de Oliveira

    Faria, Chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP e da

    Presidente da Comisso de Ps-Graduao, Professora Associada Monica Herman Salem Caggiano.

    As aulas do Professor Joaquim Carlos Salgado revelam inmeras virtudes: citaremos apenas duas,

    pela sua repercusso direta na formao dos nossos alunos.

    Primeiro, salienta-se a clareza na explicao dos modelos de formao do homem grego (paideia),

    compreendendo as dimenses da aret herica, a techn poltica e a sophia cientfica.

    Segundo, destaca-se a exigncia da crtica (no sentido kantiano) na vida intelectual e profissional dos

    alunos, muitas vezes habituados a um trabalho meramente tcnico e formal. Finalmente, os participantes

    aprenderam a relevncia da filosofia do direito para as demais reas do saber jurdico.

    Agradecemos pela honrosa presena do estimado professor Joaquim Carlos Salgado no curso de

    vero, principalmente pela autorizao de publicao das conferncias inditas.

    Elza A. Pereira Boiteux

    Professora Associada Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. Coordenadora do Curso de Vero

    O Desafio da Interdisciplinaridade

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 9, 2012

    O ESPRITO DO OCIDENTE, OU A RAZO COMO MEDIDA (Em trs conferncias)

    I-A CULTURA GREGA: A DESCOBERTA DA RAZO

    [Primeira Conferncia]

    II- A RAZO TEORTICA COMO MEDIDA: CINCIA E VERDADE

    [Segunda Conferncia]

    III- A RAZO PRTICA: A TICA E A RAZO COMO MEDIDA

    [Terceira Conferncia]

    Joaquim Carlos Salgado

    Texto preparado para o Curso de Extenso promovido pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP.

  • Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 9, 2012

    SUMRIO

    O ESPRITO DO OCIDENTE, OU A RAZO COMO MEDIDA (Em trs conferncias) ............................................ 6 Joaquim Carlos Salgado

    I-A CULTURA GREGA: A DESCOBERTA DA RAZO [Primeira Conferncia] ............................................................................... 6 II- A RAZO TEORTICA COMO MEDIDA: CINCIA E VERDADE [Segunda Conferncia] .......................................................... 23 III- A RAZO PRTICA: A TICA E A RAZO COMO MEDIDA [Terceira Conferncia] ................................................................. 39

    Referncias ............................................................................................................................................................................. 50 CADERNOS DE PS-GRADUAO EM DIREITO: ESTUDOS E DOCUMENTOS DE TRABALHO .................................................. 53 Normas para Apresentao

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    Cadernos de Ps-Graduao em Direito, Comisso de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da USP, So Paulo, n. 9, 2012

    O ESPRITO DO OCIDENTE, OU A RAZO COMO MEDIDA

    (Em trs conferncias)

    Joaquim Carlos Salgado*

    I-A CULTURA GREGA: A DESCOBERTA DA RAZO

    [Primeira Conferncia]

    Resumo: Nessa primeira conferncia desenvolve-se o tema da descoberta ou do aparecimento da razo como medida na cultura grega (o milagre grego), segundo o critrio de um ideal de formao do homem grego, a paidia, nas etapas: a) a aret herica; b) a tchne poltica; c) a sophia cientfica, destacando-se, nesta ltima, Herclito e Parmnides.

    Palavras-chave: Filosofia do Direito, Ideia de Justia, Perodo Clssico, Grcia, Milagre Grego, Paidia, Herclito e Parmenides.

    Abstract: In this first conference develops the theme of discovery or the appearance of the ratio as a measure in Greek culture (the "Greek miracle"), according to the criteria of an ideal of formation of man Greek, paideia, in steps: a) the heroic arete, b) the political techne c) the scientific sophia, in this last with emphasis on Heraclitus and Parmenides.

    Keywords: Philosophy of Law, Idea of Justice, Classical Period, Greece, Greek Miracle, Paideia, Heraclitus and Parmenides.

    O mtodo pelo qual se conhece a coisa, ou seja, o mtodo do conhecimento o dado caracterstico da

    cultura grega. Era necessrio descobrir o modo de conhecer a realidade, abrindo-se assim um campo infinito ao

    saber cientfico. o que se denominou a descoberta da razo pelos gregos. No se trata de uma ou outra

    descoberta cientfica como a descoberta da plvora, astronmica ou de uma equao matemtica, mas da

    descoberta da prpria cincia, de como descobrir ao infinito verdades cientficas.

    Segundo o ideal de formao do homem grego, ele deveria se ver diferente dos demais objetos da

    natureza. Passa a se preocupar no apenas com as transformaes da natureza, mas do prprio homem. Na

    famosa frase: Torna-te aquilo que s, possvel compreender nesse imperativo que o homem deve buscar

    aquilo que ele pode ser. Evidentemente, o homem no pode o que quer. S uma vontade divina pode o que

    quer. O homem, porm, deve o que pode, isto , se pode ser melhor, deve ser. E aqui vlida uma inverso

    dialtica: se deve, pode, relembrando a Kant.

    O tema aqui desenvolvido foi preparado para o Curso de Extenso promovido pelo Programa de Ps-Graduao da

    Faculdade de Direito da USP. Foi apresentado em trs aulas ou conferncias, com os subttulos: A Cultura Grega: a Descoberta da Razo; A Razo Teortica como Medida e; A Razo Prtica ou a tica como Medida. Trata-se de um trabalho que procura realar a caracterstica da civilizao e cultura ocidental como civilizao ou cultura da cincia, devendo compor o primeiro volume intitulado A Idia de Justia no Perodo Clssico, de um total de cinco, sobre o tema do projeto de pesquisa, Justia: Teoria e Realidade, que coordeno ou de que participo, j h alguns anos na Faculdade de Direito da UFMG.

    *Professor Titular (aposentado) de Teoria Geral e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFMG, credenciado no Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da UFMG.

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    Atravs da educao, na concepo grega, o homem deveria buscar ser aquilo que ele projetava para

    si. Neste caso, a questo da medida da razo uma questo a priori, pois antes de tudo, como homem ou

    racional, a relao com o outro tem de dar-se no reconhecimento, que implica o ver o outro como um igual. A

    igualdade , ento, o primeiro ato de medida da razo, e que s ela pode fazer.

    Como nasce a ideia de igualdade? Essa a primeira questo que se coloca na busca da ideia de

    justia. na cultura grega que se encontra o comeo ou fonte da cultura e civilizao que se convencionou

    denominar civilizao da razo, entendida como razo cientfica ou demonstradora, a informar todo o processo

    civilizatrio do Ocidente. E na filosofia, entendida como vocao ou chamado para o saber, na busca da

    explicao radical do real, e desse modo como conhecimento metdico a implicar a separao do sujeito

    cognoscente e de um objeto que se lhe antepe, em abertura para um processo infinito, que se d a diferena

    fundamental entre esse saber e o de outros povos. Nesse sentido, a filosofia o saber prprio do Ocidente, e

    constitutivo do esprito do Ocidente, cuja caracterstica ter a razo como medida. suficiente lembrar o

    significado de cosmos, que traz em si o conceito de unidade de uma pluralidade, de equilbrio, ou seja, igual

    peso, harmonia, e da partir para o conceito de igualdade, implcito no de unidade do plrimo. Esse comeo da

    cincia e seu desenvolvimento traado por uma atitude de fundamento, um conhecimento notico jamais

    experimentado, sem precedentes histricos e sem pressupostos lgicos, pois que se trata de conhecimento por

    princpios, a metafsica, nesse momento da cultura ocidental, portal de todo conhecimento cientfico.1

    A cultura grega pode ser compreendida, usando uma expresso de Jger, a partir do ideal de formao

    do homem grego, de sua paideia.2

    atravs da paideia que podemos entender o esprito grego, ou a psiqu grega, em trs dimenses

    que compem substancialmente essa psiqu. Embora num certo tempo histrico prevalea um desses modelos

    de formao do homem grego, no quer isso dizer que as outras dimenses se tenham extinguido ou no

    estejam presentes. So elas, avanando a partir de Jger, a aret herica, a tchne poltica e a sophia cientfica.

    Antes, porm, de percorrer esses momentos da Paidia, convm entender como se estrutura a psiqu,

    na qual se desenvolve o processo de conhecimento, tal como a concebe o grego, principalmente na viso

    privilegiada de Aristteles.3

    Partindo do clssico conceito de homem dado por Aristteles, animal racional ( ), de

    imediato percebem-se duas caractersticas que tambm determinam as faculdades de conhecer desse ser: a

    sensibilidade () e o entendimento (). A sensibilidade por si s no produz conhecimento, pois o

    que captado pelos sentidos tem de ser levado ao plano do entendimento para ser pensado e gerar o

    conhecimento. A prevalncia dos sentidos no processo de conhecimento produz apenas doxa, opinio individual,

    a menos que se trate de uma opinio coletiva, admitida consensualmente, caso em que se dar um

    conhecimento vlido, do senso comum ( ), o que comumente aceito. Se essa verdade do senso

    1ROMILLY. Jacqueline. La loi dans la pense grecque: ds origine Aristotes. Paris: Belles Lettres, 1971. p. 175. 2JGER, Werner. Paideia: a formao do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 7: E

    foi sob a forma de paideia, de cultura, que os Gregos consideraram a totalidade de sua obra criadora em relao aos outros povos da Antiguidade de que foram herdeiros. Augusto concebeu a misso do Imprio romano em funo da idia da Cultura grega. Sem a concepo grega da cultura no teria existido a Antiguidade como unidade histrica, nem o mundo da cultura ocidental.

    3Ver a excelente exposio de BERTI, Enrico. As razes de Aristteles. So Paulo: Ed. Loyola, 1998.

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    comum admitida pelos sbios, passa a ter uma dimenso qualitativa, do bom senso, eudoxa. Esse um

    procedimento diaportico: a partir de uma premissa aceita, um endoxn, o raciocnio que a se desenvolve o

    dialtico, no qual evidentemente est presente o entendimento, o lgos.

    O conhecimento rigorosamente cientfico, apodtico () ou objetivo, no sentido de que se impe

    ao destinatrio ou a quem quer que a ele tenha acesso, desenvolve-se no plano do lgos. O lgos a faculdade

    de produzir conceitos, juzos e raciocnios, modo pelo qual discorre o pensamento, produz conceitos, relaciona-

    os e faz a conexo das proposies. Faz o discurso () da ousia, da essncia.

    O lgos, porm, considerado na sua natureza, concebido pelos gregos em dois nveis: a) o da

    dinoia, o entendimento propriamente dito, que em latim se denomina ratio; b) o do nous, a razo propriamente

    dita, que em latim costuma-se denominar intellectus. Resumidamente pode-se dizer que a dinoia a

    capacidade de produzir conhecimento, no caso conhecimento cientfico, por exemplo, o discurso matemtico

    para Plato. Ela a responsvel pela criao da cincia no sentido de epistme, conhecimento necessrio e

    universal, portanto terico (e) e do argumento apodtico () que se desenvolve no discorrer do

    lgos 4; pela tcnica, (), no sentido de conhecimento aplicado e pela prudncia (), no sentido de

    conhecimento aplicado conduta.

    O nous () (que em latim expresso com a palavra intellectus), a razo (no sentido dado em Kant,

    pode-se dizer) a faculdade de conhecer os princpios de toda cincia, da epistme em geral. A sabedoria, a

    sophia, em ltima instncia, une a dinoia, a capacidade de demonstrar, e o nous, a capacidade de conhecer os

    seus princpios diretamente. Plato fala em dinoia ousan ao lado de nous no qual se desenvolve o seu

    pensamento e que capta o bem diretamente, no sentido de uma intuio intelectual. Plato, como Parmnides,

    toma como nica sede da cincia (a Filosofia), o nous, a razo, prescindindo totalmente do sensvel.5

    O conhecimento diretamente pela razo, o nous, d-se num processo de trs momentos: o noetn, o

    inteligvel ou objeto do pensar; a nesis, a operao do nous; e a nesis noseos, o conhecimento do

    conhecimento.6 A phrnesis, finalmente, a faculdade do juzo, de conduzir o particular a um universal, de unir a

    demonstrao da episteme, a cincia, no plano do lgos, aos princpios, no plano do nous, ou, ainda, a

    capacidade de deliberar sobre os meios para alcanar um fim bom. Refere-se ao ltimo termo ou momento da

    aplicao e pode-se adquirir por experincia das coisas particulares.7

    Feitas essas consideraes sobre a psich e explicitado o lgos, com suporte na exposio de Aristteles, e na interpretao feita por E. Berti, pode-se avanar e considerar a forma pela qual o lgos se

    manifesta na criao da cultura grega, vale dizer, a razo mtica, pela qual a razo justifica o mundo, o kosmos,

    atravs da representao; a razo esttica, pela qual essa representao expressa na harmonia do cosmos ou

    da obra humana, na forma da intuio do belo na arte; e a razo epistmica, demonstradora, pela qual a razo

    d explicao da realidade. A cultura grega, porm, no se constitui apenas do ideal de formao do sbio, na

    4VAZ, Henrique Cludio de Lima. tica e justia: filosofia do agir humano. Sntese, Belo Horizonte, n. 75, p. 443, 1996. 5Cfr. SALGADO, J. C. A idia de justia em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. 2. ed. Belo Horizonte:

    UFMG, 1995. p. 122-123. 6Id. A idia de justia em Hegel. So Paulo: Loyola, 1996. p. 211 e ss. 7Cfr. BERTI, Enrico. op. cit., p. 145. Ver tambm Aristteles, Metafsica, Livro VI.

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    sophia cientfica. Ela manifesta-se ao longo da histria grega em trs ricas dimenses: a da formao do heri, a

    aret herica; a da formao do poltico, pela tchne poltica; e a da formao do sbio, pela sophia cientfica.

    1. A Aret herica. Embora presentes desde os primeiros momentos do desenvolvimento da cultura

    grega, sobressai, no primeiro perodo, segundo a evoluo que experimenta essa cultura, a aret herica. Nesse

    momento o homem grego chamado a formar-se como heri do seu povo, a cujo servio pe a sua vida, ou

    serve-o sob o risco da morte, na defesa da cidade (da plis).

    Ressalta-se nesse momento a razo mtica, pela qual a justificao da realidade se faz atravs do mito,

    da narrao fundada na crena religiosa, transmitida pela tradio, expressa na forma do belo, ou seja, de uma

    razo esttica, que j no primeiro momento se ocupa de encontrar a harmonia na expresso e na comunicao

    das figuras mitolgicas. Encontrar a harmonia que realiza a emoo do belo, significa para o grego traar a

    proporo das formas, o equilbrio das partes com o todo e entre si, vale dizer, buscar na razo a medida do belo

    e no belo a medida de expresso do sagrado, que, por sua vez, posto pela razo mtica a procurar a

    explicitao do real enquanto tal no mito. instigante lembrar que no mito grego no se privilegia o corpreo

    sobre o anmico. Ambos, corpo e alma, mostram-se na forma do belo, o primeiro privilegiadamente na escultura,

    e o segundo, a psiqu, na poesia, herica, cuja expresso maior e repositrio da mitologia grega a Ilada e a

    Odissia de Homero, ou dramatrgica, na expresso de Sfocles, Eurpedes ou de squilo. a razo que cria a

    religio e pe o mito como explicitao do mundo e o belo como sua expresso. ela que pe o absoluto na

    representao religiosa como forma de justificao do relativo ou do mundo contingente. O mito, para Plato,

    no o oposto mas o suporte imaginativo da razo.8 ilustrativo a esse respeito lembrar o mito de Kronos, a

    divindade que gera todas as coisas, mas que tambm a tudo devora, s concebvel por fora da razo que

    busca a justificao do real enquanto tal na prpria existncia sensvel, em que imanente o tempo (Kronos),

    contudo racionalmente significado na forma transcendente de um deus, que, como deus, garante a unidade e a

    permanncia na incessante mudana que ele mesmo produz. Tudo comea e acaba; s o tempo, Kronos,

    permanece. E o que se d na ordem da representao, do mito, d-se na ordem do conceito, da cincia: para

    Herclito tudo flui, se consome; s o lgos permanece.

    Est a, j na religio a presena da razo e a vocao do grego para a busca da unidade e da

    permanncia, que tornar possvel a criao da cincia. O mesmo ocorre com a religio definitiva do Ocidente, o

    Cristianismo, que entrou na Europa pela Grcia, recepcionou a cultura da razo e assumiu a necessidade de

    unir f e razo.

    O modo de expresso esttica desse momento herico caracterizou definitivamente a religio grega como a

    religio do belo, exemplarmente representada na escultura, na arquitetura, na dramaturgia e, principalmente, na pica de

    Homero, o repositrio da mais alta expresso artstica da religio grega. E porque a razo, legimimada ou no, instaura a

    busca do absoluto, f-lo na representao religiosa (o sentimento da f), na intuio artstica (a emoo do belo) ou no

    saber filosfico (a demonstrao da verdade), como de forma singular observou Hegel.9

    8VAZ, Henrique Cludio de Lima. Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fdon de Plato. Filosofar Cristiano, Crdoba, Argentina, n. 13-14, p. 117, nota n. 3, 1983.

    9A exposio do Esprito Absoluto mostra esses trs momentos de sua manifestao; a sua intuio na arte, a sua representao na religio e a unidade desses momentos no saber de si do Esprito absoluto na filosofia. Ver HEGEL, G. W. F. Enzyklopdie der philosophischen Wissenschaften (1830). Hrsg. F. Nicolin und O. Pggeler. Hamburg: Felix Meiner, 1969. 553 u. folg.

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    2. A tchne poltica. O segundo momento desse ideal de formao o preparo do homem grego para

    a poltica, com o advento da democracia. A direo da comunidade, sua administrao, a elaborao de suas

    leis e tudo o mais que a ela se refere, estava nas mos dos prprios membros da comunidade. Da a

    necessidade de preparar e formar o cidado para os debates na gora, o que fez surgir um dos modos de

    convivncia mais racional jamais conhecido, o dilogo, a busca da soluo dos problemas comuns atravs da

    razo, ou seja, pelo consenso, ou da experincia da liberdade. E dessa experincia da liberdade exercida

    atravs da palavra, do lgos, que surgem as duas vertentes da argumentao, a retrica para a persuaso e a

    lgica para o convencimento, vale dizer, o uso da palavra com sua dimenso emocional para conseguir a

    adeso do interlocutor, atuando na sua subjetividade, ou o uso dos conceitos apoditicamente articulados a

    impor-se objetivamente aceitao do interlocutor.

    A sofistica foi esse momento de fermentao da cultura grega, que privilegia, certo, a verdade

    consensual, por isso relativa, no sentido de possibilitar o domnio da palavra segundo o que era mais relevante,

    a convenincia, que caracteriza a poltica. Ela, porm, estabeleceu as condies do aparecimento de uma outra

    exigncia, que, na percepo do seu grande interlocutor, Scrates, deveria compor o poltico. Trata-se da tica,

    para a qual no era tolervel o relativismo das virtudes, sob pena de desfazer-se a argamassa axiolgica da

    sociedade. Possibilitou, portanto, a percepo de uma cincia com o rigor dos conceitos, a sustentar-se na

    demonstrao, a exigir o convencimento do argumento lgico e no a persuaso retrica. Possibilitou-se a

    disciplina da razo na conduta humana. Foi, contudo, necessrio o desenvolvimento do dilogo e, com ele, a

    arte da retrica, definida por Ccero como o talento de fazer valer as idias pelo modo de exprimi-las10, pela

    qual o cidado propunha solues para a plis, discutia e persuadia com a sua arte. O exerccio da arte retrica

    revelou a necessidade de uma outra cincia para instrumentar o raciocnio correto ou vlido, a Lgica.

    na tchne poltica que vamos encontrar a experincia da liberdade na sua primeira forma, a liberdade

    interior, que para Jger se mostra como liberdade conceituada negativamente, em oposio ao no livre, o

    escravo. Assim descreve Jger o conceito de liberdade entre os gregos:

    O princpio socrtico do domnio interior do Homem por si prprio tem implcito um novo conceito de liberdade. digno de nota que o ideal de liberdade que impera como nenhum outro da poca da Revoluo Francesa para c, no desempenhe nenhum papel importante no perodo clssico do helenismo, muito embora no esteja ausente dessa poca a idia de

    liberdade, como tal. a igualdade ( ) em sentido poltico que fundamentalmente aspira a democracia grega. A liberdade conceito demasiado polivalente para a caracterizao desta exigncia. Tanto pode indicar a independncia do indivduo, como a de todo o Estado ou da Nao. indubitvel que de vez em quando se fale de uma constituio livre ou se qualifiquem como livres os cidados do Estado em que essa constituio vigora, mas com isso apenas se quer significar que no so escravos de ningum. Com efeito, nesta poca, a

    palavra livre () primordialmente o que se ope palavra escravo ().11

    Scrates, segundo Jger, transfere esse conceito negativo de liberdade poltica para o interior do

    indivduo e o concebe como autonomia, ou seja, eficcia do domnio do Homem sobre si mesmo,

    independncia do Homem em relao parte animal da sua natureza. V-se, pois, que essa autonomia, no

    10CICERO, Marcus Tullius. De officiis, I, 1. Trad. Charles Appuhn. Paris: Librairie Garnier, [s.d.]. p. 171. 11JGER, Werner. op. cit., p. 510-512.

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    sentido socrtico, coincide apenas com o momento negativo da idia de liberdade de Kant (independncia da

    causalidade natural) e permanece como autonomia relativa, no sentido de no interessar a Scrates

    propriamente a independncia do indivduo com relao ordem normativa externa.12 A autonomia forma

    tica, de limite ou disciplina da razo. De outro lado, a liberdade est diretamente ligada com o conceito de

    igualdade. Nesse caso, devemos consider-la sob esse aspecto de interioridade a que se refere Jger, mas

    tambm sob o aspecto de liberdade externa, ou seja, liberdade em Atenas participar da assemblia, ser

    cidado, isto , exercer os princpios fundamentais da politia: ser igual perante a lei (isonomia), ter o direito ou

    liberdade de falar na gora, de abrir o dilogo ou ter voz (isegoria) e poder decidir, criar suas prprias leis

    (autonomia), momentos que se realizam na forma da equidade (a eunomia), a exprimir a proporcionalidade na

    aplicao da lei.13 claro que o cidado gozava de uma vida livre, um estilo de vida compatvel com a sua

    importncia como participante da assemblia e exercente daqueles direitos ou liberdades. Essa liberdade,

    porm, no entrou em considerao como tema autnomo.14 Ser livre no ter um senhor, melhor, ser senhor

    e, sendo senhor, ser igual a outro senhor; ser igual nas trs dimenses dessa igualdade ou direitos polticos

    acima citados. A igualdade poltica e, com isso, a liberdade poltica eram os dois elementos centrais da

    democracia ateniense. a igualdade, contudo, o elemento determinante da vida poltica ateniense. a vida

    poltica a razo de ser da vida individual. Esta submete-se quela. Portanto, a liberdade submete-se igualdade.

    Numa sociedade em que a vida individual coincide com a vida social, o senhor o livre e o poltico, ao qual

    incumbe o servio da plis, no h pensar em separar o indivduo livre do poltico como ocorrer aps a

    Revoluo Francesa, quando o primeiro valor a considerar o indivduo livre, no o poltico.

    Esse princpio de igualdade faz com que a lei seja criada por todos. A lei , portanto, o modo racional de

    viver livre, na medida em que esse viver livre viver para a comunidade como cidado, cujo momento de

    efetividade a voz e o voto na gora. E porque a lei resultado da deciso do cidado, tem de ser materializada

    em escrito, pois produto da vontade num momento do tempo. Expressando esse conceito de liberdade

    vinculado ao da igualdade e de democracia, Romilly faz persuasiva interpretao das Suplicantes de Eurpedes:

    do dilogo em que um tebano indagava quem era o tirano de Atenas, obteve a resposta de que Atenas tinha um

    rei, Teseu, mas que respeitava a democracia, portanto Atenas era livre15. E retoma o dilogo ilustrativamente:

    Esta cidade no o poder de um s: ela livre16, isto , o povo a governava.

    A liberdade simplesmente a da plis de no ser governada por um tirano.

    O Estado grego, porm, no contorno da plis, no realiza a universalidade ou a racionalidade que dar

    definitivo nascimento ao Estado ocidental, o mesmo ocorrendo com o direito.

    12JGER, Werner. op. cit., p. 917. Para o conceito de liberdade como autonomia em Kant, ver SALGADO, J. C. A idia de justia em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade, cit., especialmente o 56.

    13VAZ, Henrique Cludio de Lima. Escritos de filosofia IV. So Paulo: Ed. Loyola, 1999. p. 90; Id. Escritos de Filosofia V: introduo tica filosfica 2. So Paulo: Ed. Loyola, 2000. p. 121

    14V. ROMILLY, Jacqueline. La Grce antique la dcouverte de la libert. Paris: ditions de Fallois,1989. p. 69 e ss. 15Id. Ibid., p. 55. 16Id. Ibid., p. 56.

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    3. A Sophia cientfica. O terceiro momento dessa cultura exsurge na forma de sophia. Essa vocao

    cientfica do grego est presente desde o incio e marca uma forma qualitativamente superior do ideal de

    formao do homem grego, pois ser a responsvel pela perenizao dessa cultura que se dimensiona no

    tempo como permanente e no espao como planetria, o modelo ocidental de civilizao da razo ou da

    civilizao da cincia.

    O que caracteriza a sophia cientfica a mudana qualitativamente radical na explicao do real, por

    um passo abissal da histria humana que se transpe do modelo de justificao da realidade atravs da razo

    mtica, narradora, para a razo epistmica, demonstradora, denominado o milagre grego ou a descoberta da

    razo.17 No que outros povos no soubessem da razo ou no soubessem serem racionais, ou que no

    tivessem feito experincias e encontrado verdades de teor cientfico, como j foi lembrado acima. Trata-se de

    buscar a explicao do real enquanto tal, no por um mito que o tenha criado externamente, pressuposto a essa

    realidade; trata-se de encontrar na realidade mesma a sua explicao com a s fora da razo, que nesse mister

    tudo pode. Trata-se de encontrar a verdade do real enquanto tal no prprio real, atravs da razo, o que feito

    pela descoberta no desta ou daquela verdade, deste ou daquele objeto, ocasionalmente, mas de como

    descobrir a verdade controladamente. Em sntese, trata-se no de descobrir esta ou aquela verdade cientfica,

    mas de descobrir a prpria cincia, ou seja, da descoberta de como descobrir indefinidamente verdades

    cientificamente vlidas, o mtodo. Da, a Filosofia, o amor ao saber, o saber pelo saber, no se contentando

    aquele que procura o conhecimento, com apenas buscar conhecer o que lhe seja til, mas aquilo que o realiza na

    eudaimonia ou perfeio de um ser portador do lgos. Esse, o verdadeiro significado de filosofia, que com o tempo

    acabou por se deteriorar, at que Hegel18, ao considerar a Filosofia j como um saber autnomo, advertiu que no

    se trata de um diletantismo, mas de uma rigorosa cincia, vale dizer, rigorosa interveno da razo no mundo.

    Como se deu essa atitude cientfica, essa interveno rigorosa da razo no mundo?

    Observando o modo como a psiqu grega se desenvolve no processo de conhecimento cientifico,

    encontramos trs momentos.

    3.1 O Thauma. A cincia comea com o espanto. O bvio, o familiar torna-se estranho diante do

    cientista. As coisas cotidianas, mltiplas e mutveis, tornam-se estranhas e parecem guardar dentro de si um

    mistrio. A descoberta desse mistrio comea por negar o bvio aparente que o esconde. Para Galileu, a

    velocidade da carruagem, o girar do sol em torno da Terra tornaram-se uma incgnita. Era preciso descobri-los.

    Assim foi tambm para o grego a multiplicidade e mudana das coisas. O primeiro, o do thauma, a atitude do

    espanto diante do comum, da admirao diante do bvio, do maravilhar-se diante do trivial.

    O bvio a verdade imediata da aparncia, que nenhuma dvida oferece ao homem comum. a coisa

    tal como se mostra na sensibilidade. Que o sol nasa e novamente gire em torno da Terra o bvio sobre o qual

    no se interroga. Admirar-se diante do bvio, incomodar-se com ele, inquietar-se diante dele para depois num

    segundo momento question-lo, submeter a sua verdade inabalvel crtica, ao julgamento da razo, a

    17A expresso milagre grego indica que se trata de algo sem explicao, cujas condies de seu aparecimento Chevalier procura expor. (CHEVALIER, Jacques. Histoire de la pense: des pre-socratiques Platon. Paris: ditions Universitaires, 1991. v. 1, p. 49 e ss.).

    18HEGEL, G. W. F. Phnomenologie des Geistes. Hrsg. Johannes Hoffmeister. Felix Mainer: Harmburg, 1952. p 12.

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    primeira atitude cientfica de que fala Plato (thaumadzo)19, confirmado por Aristteles, para quem o saber dos

    primeiros princpios e das primeiras causas um saber especulativo, o que demonstrado pelos primeiros

    filsofos (at Aristteles), j que foi a admirao o que inicialmente motivou os homens a filosofar.20 Mesmo

    que o bvio seja o mltiplo e o mutvel, nele, com todo seu movimento, est algo permanente, tal como a

    imagem do divino empregada por Herclito: Mesmo aqui, disse Herclito, ao receber suas visitas,

    contemplando o movimento incessante das chamas de sua lareira os deuses tambm esto presentes.21

    Pode-se dizer: nesse puro movimento que o fogo, o permanente est presente. Ou tambm: nesta

    particularidade de uma situao to corriqueira tambm est presente o universal, ou como Heidegger comenta:

    O forno presenteia o po. Como pode o homem viver sem a ddiva do po? Essa ddiva do forno o sinal

    indicador do que so os Theo, os deuses. So os daontes, os que se oferecem como extraordinrio na

    intimidade do ordinrio.22 Algo de misterioso se esconde no bvio. O estranho habita o familiar. Ou ainda: neste

    elemento, o fogo, que parece mostrar-se aos olhos totalmente, algo se esconde, a essncia, a sua natureza.23

    No ordinrio da vida est o extraordinrio, naquele fogo que queima tudo o que material est algo espiritual ou

    universal, o lgos. No familiar cotidiano, no comum h algo estranho, encoberto; preciso descobri-lo, descobrir

    a sua verdade (altheia).

    3.2 A aporia. Diante dessa inquietao, o esprito avana, d mais um passo adiante, para o segundo

    momento: pergunta pelo que est por trs dessa verdade bvia, ou seja, levanta um problema segundo o qual o

    homem grego est consciente de que h algo recndito e que diferente do que aparece. a aporia, o caminho

    sem sada, a pergunta sobre por onde caminhar na floresta fechada, sem clareira, emaranhada, ou como

    avanar se diante dele est algo opaco. Como se formula esse problema? O que h por detrs desse fenmeno,

    disso que aparece e nos tranqiliza quanto ao que realmente , e que por isso mesmo nos quer demover de

    qualquer tentativa de romp-lo? Enfim, qual a essncia disso que aparece? Ao pr-se o problema, ao ser

    formulado, pem-se tambm os elementos equacionadores da sua soluo. A razo no se pe problema que

    no possa resolver, diz a tradio epistemolgica.

    A aporia um problema fundamental, pois indaga da essncia de uma determinada realidade. Todo

    problema cientfico pergunta pelo fundamento de um determinado fato ou determinada realidade. Perguntar pelo

    fundamento perguntar pela essncia. H, porm, uma pergunta ou um problema que, alm de ser fundamental

    tambm radical. No se trata de perguntar pelo fundamento deste ou daquele fato ou realidade, mas pelo

    fundamento do real como tal, ou de toda a realidade. Essa pergunta radical exige para sua resposta a

    competncia da Filosofia.

    19Muito prximo do filsofo o estado da tua alma: a admirao. Porque a filosofia no conhece outra origem seno esta. PLATO. Teeteto, o de la ciencia. Madrid: Aguilar, 1977, 155 c-d. Cfr. VAZ, Henrique Cludio de Lima. Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fdon de Plato, cit., p. 117.

    20ARISTTELES. Metafsica, A, 982 b. Cfr., ainda, VAZ, Henrique Cludio de Lima. Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fdon de Plato, cit., p. 117.

    21HEIDEGGER, Martin. Herclito. Trad. Marcia S Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1998. p. 22 e ss. Ver tambm: SNELL, Bruno. Nachrichten ber Heraklit () In: HERAKLIT. Fragmente. Mnchen: Heimeran Verlag, 1979. p. 47.

    22HEIDEGGER, Martin. Herclito, cit., p. 24. 23HERAKLIT. Fragmente, cit., (b123).

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    Trata-se de um problema fundamental, de uma determinada cincia, a Filosofia, no de um problema

    particular, sobre este ou aquele fenmeno, mas que constituir definitivamente a estrutura do processo do

    prprio conhecimento cientfico como tal. A partir da inicia-se o processo de logicizao ou de logificao24 ou

    de racionalizao da cultura helnica.

    Dado que os sentidos nos mostram, do ponto de vista do espao, uma multido indefinida de seres e,

    do ponto de vista do tempo, uma mutao incessante desses seres, no pode a sensibilidade resolver o

    problema, mas apenas dar suporte para ser levantado. Se se quer o conhecimento do que o real dessa

    pluralidade mutvel, preciso encontrar o que d unidade a essa pluralidade e o que , na mudana,

    permanncia. Este o problema fundamental da sophia grega: a unidade na pluralidade e a permanncia na

    mudana (Prado Junior). Trata-se de um problema fundamental, portanto de uma determinada cincia, a

    Filosofia; mas tambm o problema de toda cincia, qual seja, encontrar em todos os objetos da classe

    considerada, tanto no espao como no tempo, o que uno e permanente. Tem-se aqui o primeiro aparecimento

    da idia de igualdade, que ao mesmo tempo o universal. O que igual, em cada um, num conjunto de seres?

    O que igual em cada um do conjunto de seres universal. E este, o universal, posto pela razo.

    Como se trata de um problema fundamental, a pergunta que se pe tambm fundamental: o que

    isto que ?25 Ou seja, o que isto que dado na existncia? Qual o seu fundamento, em suma, qual a sua

    essncia (ousia)? Repita-se, no se trata deste ou daquele objeto, mas do real enquanto tal: o que isto que ?

    Qual a essncia do que existe, do que aparece? O grego abre essa ciso no real: o que aparece e o que

    recndito, a aparncia do mltiplo e do mutvel que os sentidos mostram, e a essncia, o permanente e uno que

    os sentidos no podem captar e que, portanto, s a razo pode desvelar e ver (id) como verdade ou

    desocultao (altheia). L est a doxa, aqui a epistme. De um lado, o mltiplo e mutvel: o sensvel, a

    aparncia, a opinio a doxa; de outro, o uno e permanente: o inteligvel, a essncia, a verdade a epistme.

    Quando Thales pe a questo: o que o que existe?, embora encontre a explicao na gua,

    substncia natural e empiricamente dada, a pergunta radical, isto , fundamental, sobre o real enquanto tal,

    pois que procede com a s fora da razo. Seu problema e sua resposta caracterizam uma atitude

    genuinamente metafsica, constitui um recuo com relao realidade emprica, num procedimento totalmente

    lgico, sem recurso ao emprico, como reconhece a Histria da Filosofia.

    O problema filosoficamente levantado pode ser, portanto, formulado como a busca da identidade na

    diferena e da diferena na identidade, pois na soluo filosfica do problema fundamental do real enquanto tal

    est o real a partir do qual se pe o problema, o plrimo e mutvel, que guardam em si o uno e o permanente,

    ou seja, a unidade da aparncia e da essncia, do fenmeno e do numenon.

    24PRADO JUNIOR, Caio. Dialtica do conhecimento. 4. ed. So Paulo: Brasiliense. 1963. t. 1, p. 108, 167, passim. 25A pergunta sobre o que isto que existe abre o captulo da pergunta sobre o ser. O verbo ser e seus correspondentes nas

    lnguas indo-europias tm a funo de pr algo na existncia, ou de atribuir um predicado ao sujeito (ver SALGADO, J. C. A idia de justia em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade, cit., 42, p. 176 e segs. Pe, contudo, a pergunta fundamental sobre o real como tal, ou, para dizer com Aristteles, do ser enquanto ser e no parcialmente considerado (Metafsica, D, 1002 d, e 1061 d). No se trata apenas de uma questo de linguagem, a no ser que se queira dizer com isso que a linguagem indica essa questo fundamental. Para ilustrar, no para provar evidentemente, cito um dilogo entre um aluno e o filsofo Pe. Henrique Cludio de Lima Vaz. Ao dizer-lhe o aluno que algumas lnguas no tm o correspondente do verbo ser, o que tornaria difcil o desenvolvimento da Ontologia, respondeu-lhe simplesmente o filsofo, numa analogia com a resposta de Hegel sobre a possvel irracionalidade de certos fatos: pior para elas.

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    Thales , portanto, o primeiro a pr a questo metafsica por excelncia, pois a gua, embora seja uma

    substncia fsica, dada na sensibilidade, posta pela razo como princpio explicativo de todas as coisas, um

    universal, que s a razo pode conceber.

    O que se deve realar aqui ter o grego, diante do bvio aparentemente inquestionvel do mltiplo e do

    mutvel, espantar-se, admirar-se e, com isso, interrog-lo. A possibilidade da cincia estava em encontrar a

    unidade na pluralidade e a permanncia na mudana. O que d a unidade das coisas? Enfim, do cosmos? O

    que nelas ou nele permanece. Ora, o sensvel ou a sensibilidade s mostra o plrimo e mutvel. A razo que

    deve buscar o uno e permanente. Da, a ciso entre sensvel, que mostra a aparncia e nos d apenas a doxa (a

    opinio) da pluralidade e mudana das coisas e, de outro lado, o inteligvel que revela a essncia oculta das

    coisas e nos fornece o conhecimento cientfico, a epistme, do permanente e uno. Essa ciso, necessria para a

    implantao da cincia, encontrar a recuperao da sua unidade numa filosofia que enfrenta a realidade no seu

    movimento dialtico, ou seja, que considera a identidade na diferena e a diferena na identidade e que, na

    linguagem de Hegel, se diz identidade da identidade e da no identidade. Nessa fase da descoberta da cincia,

    contudo, o modo de a razo explicar a realidade o analtico. O sensvel no d verdade cientfica, porque no

    capta a essncia, o uno e permanente. Somente o inteligvel o acolhe. A razo analtica ou o entendimento

    primeiro separa esses dois aspectos da realidade.

    Nesse procedimento, a razo preocupa-se, em primeiro lugar, com o cosmos. Como possvel a

    cincia do que se mostra ao homem externamente? Primeiramente, portanto, preciso buscar a unidade e

    permanncia dentro do todo do mundo exterior, o cosmos, atravs da filosofia; depois, busc-lo nas suas partes,

    nas cincias particulares.

    Depois de explicitado o cosmos, ou a natureza, nas suas manifestaes, busca o grego a unidade e

    permanncia no homem. As condutas do homem so vrias. O que uno nesse ser, especificamente nas suas

    condutas? O ethos e as virtudes. Na natureza, foi-se abstraindo, de Thales com a gua, at Demcrito com os

    tomos, os quais so partculas invisveis, portanto, no dadas ao sentido, mas, no perceptveis pelos sentidos,

    postas pela razo. No homem, busca-se o modelo de conduta virtuosa e, dentre as vrias, a justia. Scrates

    incumbe-se de fundar essa cincia do ethos e da virtude. Essa preocupao cientfica com o homem caracteriza

    o perodo antropolgico, ao qual se segue a busca da explicao de toda a realidade, a humana e a natural ou

    csmica, perodo sistemtico.

    Como essa identidade e diferena, que mais tarde se formular no mundo humano como igualdade e

    liberdade, captada na razo grega, encontra-se nas diversas e boas histrias da Filosofia.

    3.3 A Euporia.26 Diante do problema, da aporia, surgem as respostas, a viso do que se busca, o rumo

    certo ou o bom caminho, a boa sada: a euporia, as solues tericas (theorein, o ver da razo) que os sbios

    vo propor. Ao mencionar o ver da razo tem-se de levar em conta que a razo aborda a realidade de modos

    26Aristteles emprega a palavra euporia como momento metodolgico no procedimento diaportico, em que se usa a dialtica, ou seja, uma demonstrao de uma tese que coincide com a refutao da tese oposta. A aporia o momento da demonstrao em que as opinies opostas so apresentadas; pe-se prova cada uma das opinies, deduzindo-se as consequencias das opinies opostas, observando-se se um endoxon ou a premissa aceita no contradiz. Cfr. ARISTTELES, De Coelo, I, 10,279b 4-5; BERTI, Enrico. As razes de Aristteles, cit., p. 137.

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    diversos. Procura ela justificar a realidade, criando a religio ou pondo a f como pressuposto, como o faz a

    razo mtica dos gregos; reala a realidade ou os mitos da religio na expresso do belo, pela emoo; ou,

    enfim, demonstra a sua verdade, no conhecimento epistmico (cientfico). Coube ao grego, de forma

    inexplicvel, a descoberta da razo, isto , da razo demonstradora criadora da cincia. Da, a referncia, pela

    tradio filosfica, a essa descoberta da razo como o milagre grego. A sophia cientfica caracterizada por

    esta descoberta: da razo epistmica ou demonstradora. A razo passa a ter uma confiana absoluta em si

    mesma para dar conta de explicar a realidade, sem pressupostos externos a ela e ao objeto a ser explicado, sem

    recorrer a uma narrao acostada na crena em algo externo, e busca a unidade na pluralidade, a permanncia

    na mudana, o inteligvel no sensvel, a essncia na aparncia e constroi a epistme a substituir a doxa.

    O problema encontrar a possibilidade da cincia. Esta s possvel se, na mutabilidade e pluralidade

    infinitas das coisas, algo permanece igual. S possvel se a razo impe limite, medida ao caos da

    sensibilidade.

    A euporia ou as solues tericas para a aporia podem ser agrupadas em trs perodos, j por demais

    conhecidos na filosofia grega: o cosmolgico, o antropolgico e o sistemtico. Aqui trazem-se colao os dois

    grandes nomes da filosofia ocidental, que tornaram possvel a compreenso de dois modos de manifestao da

    razo no conhecimento da realidade, no que se pode denominar notico-ontolgico. So Herclito e

    Parmnides.

    A) Herclito: tudo flui ( ). A interpretao da cosmologia de Thales como atitude metafsica, cujo objeto, porm, era cosmolgico,

    finito ou determinado, e a de Anaximandro, entendida do mesmo modo, mas pondo como princpio o

    indeterminado, despertou em Herclito no s uma atitude metafsica, mas tambm a elaborao da Metafsica

    do ponto de vista do seu objeto. Pode-se dizer que o problema, ento, era o da posio entre o determinado e o

    indeterminado, ou do finito e o infinito. Esse problema exigiu compreender a realidade, sensvel e inteligvel,

    dialeticamente. A dialtica, nesse ponto, ao mesmo tempo o movimento do lgos e do cosmos. O puro

    movimento a prpria alma de todo o real, cuja forma de manifestao simblica mais prxima o fogo. Ao

    contrrio do princpio de Thales, o de Herclito era o mais puro, no sentido de no haver nele umidade alguma.

    A alma a Esprito ou o lgos, ou melhor, nous, como puro movimento a desconstituir o tecido conjuntural do

    real ou do ser, no qual, enquanto matria, se mostra na simbologia do fogo ( )27, movimento incessante, pois tudo se dispersa e volta; nada fixo28; tudo flui ( )29, ou, para usar a clssica imagem por ele construda: no se banha duas vezes no mesmo rio.30 O lgos , ento, energia pura ou

    puro movimento, a superar as contradies do mundo e de si mesmo.

    Tanto na viso cosmolgica, quanto na antropolgica, essa unidade sempre buscada nas oposies,

    em movimento circular, a mostrar, como no crculo, que o comeo sempre o fim31 e que o movimento dos

    27HERAKLIT. Fragmente, cit., B64a. 28Id. Ibid., B91. 29Id. Ibid., 65A3. 30Id., B49a. 31Id., B103.

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    contrrios no apenas uma sntese (composio), mas uma gnese, de forma que a morte se supera na vida e

    no algo que fica fora do processo, mas que se incorpora no seu resultado, isto , a morte do um o

    nascimento do outro32. A unidade na pluralidade do mundo sensvel possibilita o conhecimento por meio de uma

    hermenutica. A simbologia usada para expressar a realidade mutante decorre da necessidade de interpretar a

    realidade como se interpreta o orculo de Delphus33. Esse orculo nem expressa, nem oculta, mas d um sinal a

    ser interpretado. O que aparece o sinal, pois a essncia das coisas tende a ocultar-se.34 Do mesmo modo, o

    processo de conhecimento no descarta a sensibilidade, mas preciso que a alma compreenda a linguagem

    que os olhos e os ouvidos assinalaram35, pois a sabedoria () separa-se de tudo, um absolutum. A alma, porm, tem, como sua razo de ser, de enriquecer-se; e o seu enriquecimento a virtude da sabedoria, a qual, a

    suma perfeio, consiste em dizer e realizar a verdade segundo a essncia das coisas36 na medida em que se

    obedecem suas leis. O texto diz: a sabedoria dizer e fazer a verdade(... ...), a indicar que tambm o fazer est sob o plio da verdade ou do justo, que no se compreende sem o injusto37.

    Enfim, seguir a natureza das coisas.

    Resumindo essa filosofia das oposies, da guerra que conduz unio, diz Herclito que o direito (a

    justia) conflito e tudo o que nasce ou gerado enfim, nasce do conflito e da carncia (... , ' )38 Para Herclito existiam trs palavras fundamentais: i) O devir movimento permanente das coisas, que o prprio movimento do pensar, simbolizado por um crculo. Quando se afirma

    que o ponto do crculo o incio do mesmo, v-se que ele tambm o fim. Por isso, o crculo d idia de

    movimento, pois o ponto inicial, qualquer que seja esse ponto, vai ser sempre o ponto final tambm. ii) O lgos e

    a iii) alma para Herclito, o lgos, o pensamento, que explica tudo. ele, o lgos, que d a unidade de

    todas as coisas. A razo simbolizada pelo fogo, porque aparece como fundamental em todas as coisas e

    individual em cada um de ns. a energia universal. A energia individual representa o lgos em cada um, a

    alma.

    B) Parmnides: O mesmo o ser e o pensar ( ). Parmnides inaugura a histria da Ontologia grega, portanto ocidental, que se inicia j na mxima

    altitude especulativa alcanada pela identidade parmenidiana entre o pensar (noein) e o ser (einai), ento posta

    diante do imperativo absoluto de pensar a verdade como epifania eterna dessa identidade. 39

    O princpio (arch) que a tudo fundamenta e de que se desenvolve o seu pensamento, exposto no

    poema, A Via da Verdade, o da identidade de ser e pensar: O mesmo o ser e o pensar (

    32Cfr. SNELL, Nachwort, p. 50-51. 33HERAKLIT. Fragmente, cit., B93. 34Id. Ibid., B123. 35Id. Ibid., B107. 36Id. Ibid., B115 e B112. 37Id. Ibid., B23. Herclito diz , o nome de justia (direito). Donaldo Schler entende que Herclito reduz dike a

    apenas um nome desamparado de agente mitolgico e que, por isso, o nome dike entra no jogo tanto dos atos justos, como dos injustos (SCHLER, Donaldo. Herclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2000. p. 44)

    38HERAKLIT. Fragmente, cit., B80. 39VAZ, Henrique Cludio de Lima. Filosofia da religio e metafsica. Sntese, nova fase. Belo Horizonte, v. 25, n. 80, 136,

    1998.

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    ).40 A via da verdade que , a da inverdade que no ; mas esta impensvel. Do no ser nada se pode dizer, o impensvel. Parece que no se pode afirmar precedncia de uma ou de outra

    proposio: afirmar que o ser e o no ser no equivale a afirmar ser e pensar a mesma coisa. H uma

    metafsica, uma ontologia, uma lgica e uma teoria do conhecimento em Parmnides.41

    matriz primeira do desenvolvimento do pensamento ocidental at hoje. Para melhor entender

    Parmnides, convm levantar certas proposies, embora s vezes no expressas no seu poema. Algo que se

    adqua ao intelecto algo igual a ele. Se h algo que conatural ao intelecto, igual ao pensamento. Quando

    se diz que algo , pe-se esse algo plenamente no pensamento. Esse s possvel no pensar. Tudo

    significa, pois, que est tudo no plano do intelecto, pensamento. Tudo se identifica no ser.

    O problema fundamental para Parmnides pensar o ser, ou seja, trata-se de um problema

    legitimamente ontolgico, que se preocupa com o ser (ontos) e o pensar (lgos), mas na medida em que podem

    ser afirmados como idnticos. O sobre que Aristoteles perguntar posteriormente na frmula t t 'n, o que o

    ente, afasta-se, segundo Heidegger, da pergunta direta sobre o ser ( )42. Talvez porque a pergunta pelo ente, pelo sendo, t n, acaba por ocultar a verdade do que , o ser, t eina.

    O ser das coisas no dado pelo sensvel, somente pelo intelecto. O ser s na medida em que

    pensado. Ser e pensar so a mesma coisa.

    Para a cincia as coisas no mudam, no possvel dizer a verdade de alguma coisa se ela e de

    repente muda, no mais. O mutvel o que se d na sensibilidade. A cincia procura o imutvel, logo o seu

    lugar no intelecto, ou seja, no pensar.

    O pensamento de Parmnides desenvolve-se em rigorosa lgica. Uma coisa no pode ser e no ser ao

    mesmo tempo. Para Parmnides no basta saber que tudo constitudo de gua, por exemplo; preciso

    tambm entender, dar o fundamento da prpria gua. Aqui, busca-se abstrair-se de todas as coisas sensveis.

    As vias do pensar eram: a via do ser, a do no ser e a da aparncia. A via do ser a via da verdade

    epistmica; a do no ser impossvel (aqui surge o princpio de no contradio). A da aparncia no constitui a

    epistme, no alcana a certeza da verdade, apenas a doxa enganosa.

    Diz-se que uma coisa , atribuindo-se a ela um predicado. As coisas, porm, mudam o tempo todo.

    Contudo, no entender de Parmnides, as coisas mudam apenas na aparncia; e a aparncia no a verdade,

    pois se d no mundo da sensibilidade que o mundo do plrimo e do mutvel, das coisas que aparecem, ora

    sendo, ora no sendo, o mundo da aparncia em que as coisas apenas parecem ser; e o mundo da aparncia

    no o mundo da verdade, da cincia; desse mundo s se pode ter opinio, doxa. A cincia, que por definio

    o modo de busca de uma verdade inconteste, tem como objeto a essncia, o imutvel nas coisas. Ora, a

    afirmao que se pode fazer de todas as coisas, do que nelas universal e permanente, que tudo . Quer isso

    dizer: tudo ser. impossvel pensar algo sem saber imediatamente que ele . O absolutamente primeiro em

    todas as coisas o ser. Embora se possa falar em busca da essncia, o que Parmnides encontra o ser.

    40Cfr. CHEVALIER, Jacques. Histoire de la pense: des pre-socratiques Platon, cit., p. 75. Ver o texto do poema, A Via da Verdade, transcrito por Chevalier, em francs, a partir da pgina retrocitada, inclusive a nota n. 2 da mesma pgina.

    41Id., Ibid., p. 77. 42HEIDEGGER, Martin. Herclito, cit., p. 90.

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    O caminho da razo o nico que conduz verdade, altheia e o que est fora desse caminho

    conduz ao erro, mera opinio, doxa. O caminho da razo conduz ao ser, no qual no h abertura, no h um

    para fora do ser, pois o ser o absoluto. O ser simplesmente e no pode deixar de ser. Este o princpio (no

    postulado): o ser . O no ser seria o sem razo, o absolutamente fora do pensar. Disso nem sequer se pode

    falar. Entrar-se-ia em contradio, isto , dizer e desdizer, o absurdo. Por tudo isso, ser e pensar a mesma

    coisa. E disso se deduzem os atributos do ser: o uno, pois se h dois, um seria o no ser; o simples, pois se

    composto entraria na composio o no ser; o eterno, pois se tem comeo, haveria antes dele o no ser; o

    imutvel, pois se pudesse mudar, mudaria para o no ser; o imvel, pois se movesse, mover-se-ia para o no

    ser; e o finito, pois e se fosse aberto ao infinito estaria sempre se completando; mas ser completo, no pode

    ter carncia, perfeito, s poderia ser completado consigo mesmo.

    Era da natureza do homem grego buscar sempre o equilbrio. Para ele, a matemtica era o equilbrio. A

    deusa do amor , ao mesmo tempo, a expresso do equilbrio e da beleza. O desproporcional era expresso

    atravs dos monstros da mitologia grega. O belo sempre a manifestao do equilbrio das partes na formao

    do todo, da perfeio. A arte tinha a tarefa de buscar o equilbrio das formas. E o equilbrio das formas, a

    harmonia, era o belo.

    Em Parmnides ns encontramos o mito e a poesia para comunicar o saber, em surpreendente

    equilbrio. Atravs dessas vertentes de busca do absoluto, ele constitui a sophia, o conhecimento. Ser pensar,

    pensar ser, uma cincia, cujo nome traz a unidade absoluta do real, o ser e o pensar: ontos-logos, a Ontologia.

    No seu pensamento realizam-se em unidade os trs modos de manifestar-se a razo: a razo epistmica da

    verdade, a razo esttica referente ao belo na forma potica em que compe o seu discurso cientfico, e a razo

    mtica na forma simblica pela qual a deusa Justia conduz o discurso para a verdade. Na sua viso justia a

    verdade, o que adequado. A justia se identifica com a verdade. No seu poema, pois, esto os trs modos de

    manifestar o absoluto: a Filosofia na forma do conceito, a Arte na forma da intuio e a Religio na forma da

    representao simblica.

    Essa noo de equilbrio conjugada com a noo de medida, de limite, que vai dar a idia de justia.

    E justia a possibilidade de medida, mas que se adapta realidade. A justia se desenvolve num processo

    dialtico e no matemtico. Ou seja, essa adequao, esse equilbrio, essa medida, nesse perodo, corresponde

    justia. A Justia porm, uma deusa severa. Sua misso entregar o bem maior, a verdade, segundo o

    mrito daquele que a busca. Tal como a alegoria da caverna em A Repblica de Plato, que exige deciso,

    humilde aceitao do condutor e esforo na subida pelas rochas ngremes da caverna at s cumeadas, para

    contemplar o esplendor do bem que a verdade, simbolizada no fulgor do sol, a busca da verdade, j para

    Parmnides, exige porfia e sacrifcio, viajar pelo espao em fora, at o prtico do santurio que a guarda. E,

    alm desse sacrifcio, da viagem penosa, h ainda a necessidade de por-se com humildade diante da deusa

    para que ela abra os portes da morada da Verdade, e que o pretendente desse tesouro, a verdade, convena a

    Justia dos seus mritos, com brandas palavras,43 ou seja, com a mansido do lgos ou do discurso razovel,

    sem a impostura e exaltao dos sentidos na forma de sentimentos ou emoes.

    43MATOS, Andtyas Soares de Moura Costa. O grande sistema do mundo: do pensamento grego originrio mecnica quntica. Belo Horizonte: Crislida Livr. e Ed., 2011. p. 136.

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    Parmnides diz que o ser idntico a si mesmo. o evidente; o ser se impe ao nosso lgos. Esse o

    postulado fundamental, que abre o caminho para a cincia, porque o que ele disse lgico, e lgica a

    estrutura do pensamento. Essa obviedade que tornou possvel descobrir que possvel conhecer as coisas,

    mas de modo muito mais profundo, que possvel ir com o conhecer para alm da physis, Metafsica, a

    cincia das primeiras causas e dos primeiros princpios, no entender de Aristteles.

    Ora, se uma coisa idntica a si mesma, ela no pode ser outra coisa; porque uma coisa no pode ser

    e no ser, ao mesmo tempo. Como Parmnides, porm, no est falando de uma disciplina do pensar abstrato,

    mas do ser como tal, no pode ocorrer o ser e o no ser, no s ao mesmo tempo, mas a todo tempo, porque o

    ser eterno e infinito, sem comeo, nem fim. Trata-se de uma Ontologia e no de uma Lgica formal.

    Aqui h a indagao da possibilidade de explicao da natureza e do cosmos fora da razo mtica. Para

    o grego, como visto acima, antes do cosmos era o caos; Kronos pe ordem no caos, a tudo ordena; e o todo

    ordenado o cosmos.

    A ordem indefectvel procurada por Parmnides a absoluta igualdade. Essa absoluta igualdade a do

    ser e do pensar. Nesse caso, a absoluta igualdade torna-se absoluta identidade. O lgos no apenas o lugar

    de aparecer o ser, como se coisas diversas fossem. O lgos o esplender do ser, o ser na sua absoluta

    manifestao como essncia imutvel, da qual no h a aparncia como diferena. Como absoluta identidade de

    si mesmo, nada h fora dele. No h o nada, nem o outro. Tudo ser. No que tudo participa do ser. Melhor

    expressando o pensamento de Parmnides: tudo o ser, o ser tudo. uma Ontologia radical. Ao dizer-se que

    o ser a igualdade elevada ao absoluto, tornou-se ela identidade absoluta, porque o ser um s. No se pode

    falar do no ser. Ento, dizer que o nada no uma corts concesso linguagem, em razo de o lgos, para

    efeito de comunicao, dar-se na forma do discurso, da referncia ao outro, forma de o entendimento expor,

    dividindo e conectando em juzos. O lgos de Parmnides tem a natureza do nous, da razo que capta o

    absoluto, vez que o ser, tal como concebido por Parmnides, o absolutamente uno, sem diviso, sem o outro,

    sem o que no ele mesmo, o no ser; o absolutamente posto em si mesmo.

    Eis como a procura da igualdade levou o pensar ao mais alto grau da exigncia filosfica.

    Ao dizer acima que o lgos em Parmnides tem a natureza do nous, quer-se dizer que, ao tratar do

    absoluto (e essa a inteno de Parmnides ou o sentido do seu discurso), necessariamente se move o

    pensamento para um plano superior, o do nous, da razo (intellectus), que s nesse plano o pensar capta o

    absoluto.

    Em razo disso, parece ter Hegel interpretado bem a expresso de Parmnides: O ser . Para Hegel,

    h uma dialtica no interior do pensamento de Parmnides, pois, ao formular esse juzo extremo, o pensamento

    introduz a diviso.

    Como se sabe, o juzo implica uma diviso originria: para juntar um conceito ao outro, necessrio

    que tenha havido uma separao anterior, primeiro do conceito com relao coisa, depois de um conceito com

    o outro conceito.

    Para Hegel, o da proposio o ser , um predicado do sujeito o ser, ou seja, o , ainda que

    seja o mesmo de o ser, ps-se como seu outro, isto , como o seu oposto. Uma inevitvel dialtica no

    pensamento de Parmnides.

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    E mais, sobre a grandeza insupervel desse Pensador. Na sua proposio, o predicado o prprio

    sujeito que se pe na diferena. Essa diferena, contudo, absolutamente interna ao ser. Poder-se-ia dizer que

    a essncia pondo-se na existncia. Isso porque o que funciona como predicado, na verdade no atribui

    uma qualidade ou qualquer outra predicao ao Ser. O , a, simplesmente pe o ser na existncia, diz que ele

    est a. Eis a profundidade do seu pensamento: a absoluta unidade de essncia e aparncia, entendida esta

    como existncia ou esplendor do ser. De qualquer modo, essa dialtica do discurso apontou para um momento

    especulativo tambm inevitvel, o ser como o absoluto no momento da imediatidade, se se quiser inserir o

    pensamento de Parmnides no processo de formao do pensamento ocidental, no qual Hegel se pe como

    chegada, tendo como ponto de partida essa mxima altitude especulativa alcanada pela identidade

    parmenidiana entre o pensar (noein) e o ser (einai), com a qual se inaugura a histria da Ontologia grega,

    posta diante do imperativo absoluto inicial de pensar a verdade como epifania eterna dessa identidade44. A

    interpretao de Hegel enriquece a Filosofia de Parmnides; no a contesta.

    Outra no pode ser a interpretao do seu poema, a vista dos princpios ontolgicos, que tm a funo

    de encerrar o pensar e o ser na sua absoluta identidade: a) o princpio de identidade (o ser idntico a si

    mesmo); b) o princpio de no contradio (no se pode falar do no ser); c) o princpio do terceiro excludo (no

    h uma terceira via, um ser-no ser). Esses princpios ontolgicos tornaram-se princpios lgicos a reger a

    formao de todo discurso vlido, portanto princpios apenas do pensar, separado do ser por operao do

    entendimento. Em Parmnides, contudo, so princpios a uma s vez do ser e do pensar na sua absoluta

    identidade, portanto onto-lgicos. Eis porque esse extraordinrio pensador da humanidade o criador da

    ontologia, pela qual o ser se insere nos limites da razo; da lgica, pela qual a razo se d limites; e de todas

    invariantes (para usar um termo de um dos mais originais pensadores do sculo passado, Reale) postuladas

    pelas cincias se querem alar-se ao status epistmico.

    Como se v, em Parmnides, esse pilar dos pilares do pensamento ocidental, o tema da igualdade

    elevado ao grau mais alto, ao da absoluta identidade. Nesse sentido, Parmnides no simplesmente aquele

    que ainda no sabia o que os posteriores viriam a saber. Heidegger, na perspectiva do seu prprio pensamento,

    pondera que a

    questo, aqui, precisamente se os pensadores originrios, os que ainda no pensaram como Plato e Aristteles, devem continuar sendo considerados como os 'ainda no' de uma sequncia, como os que esto atrasados relativamente ao pensamento dos que os sucederam, ou se eles j anteciparam todos os pensadores posteriores, justamente porque 'ainda no' pensavam como Plato e Aristteles.45

    Parmnides antecipa o que eles iro dizer. Ou melhor, o que Parmnides antecipa ainda no . Com

    isso d-se passagem para o pensamento de Plato e sua dialtica das ideias, sempre na busca do universal e

    do igual.

    O universal o objeto prprio da razo. Ela se imps formao da cultura ocidental em todas as suas

    dimenses, inclusive na religio do Ocidente, o Cristianismo.

    44VAZ, Henrique Cludio de Lima. Filosofia da religio e metafsica, cit., p. 136. 45HEIDEGGER, Martin. Herclito, cit., p. 93.

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    Com efeito, essa religio universal, o Cristianismo, j, dede o incio, a religio que procura unir a

    representao do absoluto com o seu conceito dado na filosofia, ou seja, o Cristianismo recepciona a cultura

    grega no que ela tem de mais importante, o saber filosfico. E isso se d com o conceito mais elevado da

    filosofia, o ser, o absolutamente universal. que a traduo grega da Bblia, na sua passagem mais significativa,

    a resposta de Jav a Moiss, Eu sou o que sou, recebe na traduo grega um significado filosfico pelo qual

    um deus nominado pelos hebreus como seu deus, mas que, com Cristo se tornou Deus universal, de todos os

    povos, conceituado como aquele que ou Sou o ser, que se singulariza no seu Filho, cujo nome Jesus.

    O nome bblico de Deus identifica-se, nessa traduo, com o conceito filosfico, como expe um dos mais

    importantes telogos da contemporaneidade, ao comentar os artigos de f do Catolicismo, num texto que se

    tornou clssico na Teologia crist, Introduo ao Cristianismo. 46 Ele simplesmente . Nesse est o absoluto, o

    universal, o ser parmenidiano. No se situa no tempo ou no espao. No foi, nem ser, , presente eterno. E

    sendo simplesmente o ser tambm simplesmente o lgos, o Verbum a que se refere So Joo.

    O absoluto, abstratamente interiorizado na f, na forma da representao, ento levado ao saber de

    si, ainda tambm na forma abstrata, mas j no processo do conceito, cujo momento de chegada, depois da faina

    no tempo da histria, ser a sua manifestao ou imanentizao no tempo e no espao, vale dizer, na histria do

    Ocidente, na instituio do Estado de Direito.

    A contradio entre Parmnides e Herclito apenas aparente. O que ocorre que eles observam as

    coisas sob aspectos diferentes. Herclito reconhece a diferena entre o ser e o pensar, para estabelecer a

    identidade entre eles. Para ele s se pode estabelecer a identidade a partir do momento em que se constata a

    diferena. Procedendo dessa forma, Herclito encontra a dialtica dentro do pensamento. J que o ser

    pensado, preciso descobrir o momento do pensar. aqui que se encontram as razes do ser e do dever ser. O

    ideal que o grego traa para si , ento, o do dever ser, segundo a frmula imperativa do orculo: torna-te o que

    s. Ambos, Parmnides e Herclito buscam encontrar a unidade na diversidade da vida. E a encontram no

    lgos, na razo, enfim no pensar. Herclito eleva a princpio o prprio movimento, porque se as coisas se

    movimentam, porque tm nelas esse princpio, e esse princpio o lgos, o pensamento. Este, o pensamento,

    o universal. Parmnides recebe esse universal de Herclito e desenvolve as consequncias necessrias que

    da decorrem. De qualquer modo, h uma diferena no prprio princpio de Herclito com relao ao de

    Parmnides: neste o pensar ou o lgos, que o mesmo ser, imvel. Pensar o movimento seria pensar o no

    ser, e isso impossvel. O universal de Parmnides imvel, o de Herclito movimento. Em Parmnides, a

    razo mede analticamente; em Herclito, dialeticamente. Em Parmnides, a estrutura da razo de uma lgica

    binria; em Herclito, dialtica. Naquela, o princpio o do terceiro excludo, nesta ltima o do terceiro

    includo. Ambas as lgicas, porm, so modos de a razo medir e conhecer a realidade.

    46Cfr. RATZINGER, Joseph. Introduo ao cristianismo. Trad. de Alfred J. Keller. 4. ed. So Paulo: Ed. Loyola, 2011. p. 89; ver tambm p. 88 e 90.

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    II- A RAZO TEORTICA COMO MEDIDA: CINCIA E VERDADE

    [Segunda Conferncia]

    Resumo: Nesta segunda conferncia discutem-se algumas concepes de cincia e de verdade, portanto a razo teortica como medida da realidade cognoscvel.

    Palavras-chave: Filosofia do Direito, Ideia de Justia, Razo Teortica, Cincia e Verdade.

    Abstract: In this second conference discusses some conceptions of science and truth, so the theoretical ratio as a measure of reality knowable.

    Weywords: Philosophy of Law, Idea of Justice, Theoretical Ratio, Truth and Science.

    1. Na medida em que o Ocidente construiu uma cultura e civilizao da razo, mas de ordem planetria,

    ainda que na forma instrumental, legtimo que ela mesma postule alcanar o seu prprio significado. Uma vez

    que se caracteriza como civilizao da razo lcito que a prpria razo indague de si mesma ou (por que no

    dizer?) busque dar razo da razo.

    Se ela o vetor dessa civilizao e se da sua natureza no apenas dar e constatar a racionalidade

    dessa civilizao, mas indagar do que ela mesma , no h outro caminho seno a volta sobre si mesma para

    dar razo de si e navegar no cinzento a que se refere Hegel, ou do mesmo sobre o mesmo (aut kthauten) de

    Plato1. Eis como no se pode simplesmente expulsar da cultura a metafsica e proceder cabea com cabea

    (Unamuno) segundo a direo do cajado do pastor.

    Razo da razo, sim, porque s ela pode dar razo de si, enquanto dar razo, pois se ela a nica

    faculdade de julgar, s ela pode instaurar o seu prprio tribunal. A crtica da razo, o julgamento da razo, s ela

    mesma pode fazer, vez que no h no ser humano outra faculdade de julgar. Por isso legtima a preteno de

    Kant instaurar um tribunal da prpria razo para que ela mesma saiba dos seus limites, da sua medida, se que

    para ela h alguma limite.

    E no momento de volta para si, de si para si, eis o modo mais autntico de manifestao da liberdade,

    enquanto interioridade radical. Eis porque a tarefa ingente da Filosofia a reflexo sobre a liberdade, ou seja:

    unir dialeticamente Liberdade e Razo a nica tarefa da Filosofia, na expresso de Lima Vaz.2

    A descoberta da razo pelos gregos instaura definitivamente uma cultura da razo; o trao

    caracterstico da cultura ocidental. E por ser a razo a sede do universal, essa cultura tambm definida por seu

    esprito universal.3 Em razo disso vamos encontrar o universalismo da cincia entre os gregos e, em Roma, o

    da religio no Cristianismo, do Estado e do direito. O universalismo nesses povos o trao caracterstico do

    processo de racionalizao da sua cultura, como observa Max Weber.4

    1PLATO. Phaidon, 83 a-b. In: Werke. bersetzung von Friedrich Schleiermacher. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974. p. 88-91. (Griechisch u. Deutsch, v. 3); ver comentrio de Lima Vaz em Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fdon de Plato, cit., p. 122-123

    2VAZ, Henrique Cludio de Lima. Escritos de filosofia III. So Paulo: Ed. Loyola, 1997. p. 80. 3Cfr. SALGADO, J. C. A idia de justia no mundo contemporneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 90 4Cfr. WEBER, Max. Sociologie du droit. Trad. franaisie: Jacques Grosclaude. Paris: PUF, 1986. p. 162.

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    2. Quando se fala da civilizao ocidental, tem-se de considerar imediatamente os dois vetores

    essenciais da sua formao: a cultura greco-romana e o Cristianismo. A cultura greco-romana a responsvel

    pela formao racional do esprito livre do Ocidente, teortica e praticamente (para considerar apenas esses dois

    modos de ela atuar plenamente livre, pois, como razo poitica, est ela tambm determinada externamente

    pelo objeto do fazer tcnico), e o evento Cristo a constituir o mega simblico ou o destino da liberdade na forma

    da representao religiosa.

    Parte-se aqui de uma premissa bsica, segundo a qual a sede da liberdade a razo. Em virtude disso

    sempre que o homem usa a razo para qualquer situao age com liberdade, ainda que seu ato no seja

    totalmente determinado pela razo. Desse modo, a razo poitica introduz uma dimenso de liberdade na

    realidade em que ela atua, caracterizando-se essa liberdade como domnio da natureza. O modo pelo qual a

    razo atua na realidade externa a tcnica, A razo poitica desenvolve-se como um processo conduzido pelas

    regras tcnicas por ela elaboradas, segundo as determinaes dessa realidade. Esse processo culmina num

    resultado, num produto, pelo qual sua ao avaliada. Esse procedimento como um todo a poiesis. Como a

    razo estabelece limites e ao mesmo tempo se limita na produo poitica ensina o riqussimo percurso da

    evoluo tecnolgica que experimentou o Ocidente, quer no que tange natureza, quer no que se refere

    sociedade, principalmente num dos aspectos mais importantes da vida social, a poltica, na medida em que se

    define como tcnica de alcanar e de conservar o poder, segundo entendimento de Maquiavel.

    Conhecer (theorein), agir (pratein), e fazer (poiein) so os trs modos pelos quais a razo atua e

    determina, estabelecendo medidas e limites. Aqui, sero consideradas as formas plenamente livres de a razo

    conduzir a formao do Esprito do Ocidente. Assim, ser considerada na sua aptido de conhecer e de agir,

    enquanto o agir considerado em si mesmo como bom. No se considera a ao do ponto de vista dos seus

    efeitos externos, de uma ao avaliada segundo o seu resultado, do agir eficazmente (ou princpio eficiente,

    segundo outras tradues), na expresso de Aristoteles.5

    3. A Cincia (epistme) e a Verdade (altheia)

    3.1 - Tudo isso que acima foi dito quer significar simplesmente que a razo na cultura ocidental, desde

    o incio, medida: medida de si mesma e do real; do real no plano do conhecer, do fazer e do agir. Na esfera

    teortica, a razo mede o teor de verdade do conhecimento, na do tico ou prtico, a validade da conduta ou da

    norma de conduta; na esfera poitica, as regras do fazer e o resultado ou produto do fazer. E isso em todos os

    campos nos quais ela se manifesta: como razo mtica, vez que a divindade impe limites ao homem; como

    razo esttica, pois a arte a realizao da harmonia, do equilbrio das formas; como razo epistmica, seja

    quando ela se dirige ao conhecimento da physis ou do nomos.

    Como razo epistmica, teortica, demonstradora, convm lembrar que a cincia tem compromisso

    apenas com o valor verdade, e a verdade a revelao, na forma de conceito, da essncia da realidade; e

    tarefa tanto das cincias particulares (ditas stricto sensu) ou explicativas, como da filosofia compreendida

    tambm como cincia reflexiva. O grego, descobridor da razo epistmica, no fazia distino entre esses dois

    5ARISTTELES, Fsica, 189 b 8-16. Cfr. PHILIPPE, Marie-Dominique. Introduo filosofia de Aristteles. Trad. Gabriel Hibon. So Paulo: Paulus, 2002. p. 113.

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    modos do conhecer cientfico. Apenas os consideravam instncias cientficas com seus objetos e mtodos

    prprios, como se pode ver na classificao e sistematizao de Aristteles, como se pode ver, na seqncia, a

    Lgica, a tica a Nicmaco, a Poltica, a Fsica e a Metafsica, como tambm a Potica e a Retrica, depois do

    avano dado nessa sistematizao por Scrates e Plato como exemplificam A Repblica, Parmnides, Timeu,

    Teeteto, Fdon e outros textos, em que a razo aparece em todo o seu esplendor epistmico.

    A razo a medida de tudo e a medida de si mesma, o que significa: a razo legisla para o mundo e

    para si mesma. Por isso s ela o absolutamente livre, num certo sentido dado por Hegel.

    Cabe mostrar, aqui, que a razo medida tanto na esfera teortica, das cincias, como prtica, da tica

    ou do agir. medida da verdade e medida do bem e do justo. tambm medida do fazer, como acima se

    mencionou.

    A confiana na razo como medida da realidade retomada atravs de rigoroso mtodo por Descartes6

    que abre a corrente racionalista radical na filosofia, para ele uma espcie de mathesis universalis, levando

    tambm para a tica a fora explicativa da razo como fundamentao de uma tica mos geometricus.

    Com relao s cincias convm explicitar aqui o conceito de verdade, que a sua razo de ser. Pode-

    se dizer que da essncia da cincia a verdade e O pensamento cientfico busca a verdade do seu tempo.7 A

    razo a medida da verdade. Trata-se de um conceito analgico, como observa Lima Vaz. H para esse

    conceito, significaes com semelhanas e diferenas, como na verdade do bom senso ou do senso comum, da

    cincia, da filosofia e da teologia. Isso se compreende, pois, desde que a razo a faculdade do universal,

    habita ela a verdade8. S se pode falar em verdade para um ser dotado de razo. Neste primeiro tpico, tratar-

    se- da verdade tal como esse conceito usado na cincia e na filosofia.

    Ao estudar o conceito de cincia tem-se de recorrer sua gnese histrica: como e quando nasce a

    cincia. Os gregos so os responsveis pela sua descoberta ou criao, transmitindo esse elemento cultural,

    caracterizador da civilizao ocidental. Entre os gregos elemento da cultura, da formao do homem grego no

    nvel do intelecto. No Ocidente como um todo, includa a Grcia evidentemente, elemento civilizatrio, no

    apenas de formao. Faz parte da energia central ou essencial do desenvolvimento e histria do Ocidente,

    formando um plexo de atividades tpicas da civitas, do homo civilis. Quando o romano diz ser incivilis certa

    conduta, quer dizer que no pertence ela civitas, e, no pertencendo civitas, ou rstico? ou brbaro ou

    selvagem o comportamento. O plexo de atividades da civitas inclua desde as construes sofisticadas e teis da

    arquitetura e da engenharia, como fazer palcios, templos, abrir estradas, viadutos, aquedutos e esgotos, at a

    organizao do poder poltico, em carter definitivo pela estruturao das foras armadas e fundao do Estado

    universal no Imprio o qual assumiu a repblica em processo de desenvolvimento e a ordenao da vida

    social pela criao secular de um refinado e complexo direito positivo, a partir do qual criou-se tambm a Cincia

    do Direito (Jurisprudentia; a essncia civilizacional do Ocidente, cujo dado relevante a educao, atravs da

    lngua e seu cultivo, inclusive da lngua estrangeira, nas relaes internacionais criadas pelo Imprio e a

    necessidade dos tratados, j na forma de direito internacional, e do comrcio, tornando possvel uma civilizao

    6V. DESCARTES, Ren. Discurso sobre o mtodo. Trad. Miguel Lemos. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 7SALGADO, Ricardo Henrique C. Cincia do direito. In: TRAVESSONI, Alexandre, et al. (Org.). Dicionrio de teoria e filosofia do direito. 1. ed. So Paulo: LTr, 2011. p. 42.

    8Cfr. VAZ, Henrique Cludio de Lima. F e razo. So Leopoldo: Ed. Universidade do Vale dos Sinos, 1999. p. 13.

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    contnua e permanente. A cincia (includa nesse conceito a filosofia) elemento central dessa civilizao que

    por ela vai-se tornando planetria.

    3.2 - Que dizer da cincia, essa milagrosa criao dos gregos, e da verdade, seu nico objetivo?

    a) Cabe fazer uma advertncia prvia. O termo verdade empregado geralmente para significar uma

    relao com algo externo conscincia ou ao pensamento. A rigor certas cincias no esto diretamente ligadas

    ao problema da verdade. So infensas a ele. o caso da Lgica. A Lgica Formal lida com conexes do

    pensamento em si mesmo considerado e no com a relao entre o pensamento e a realidade externa a ele.

    Ora, as conexes do pensamento no mostram propriamente um resultado de verdade. As conexes de

    pensamento no so verdadeiras ou falsas, mas vlidas ou no vlidas, embora a Lgica use as valncias,

    verdadeiro/falso, para significar essa validade. Assim, um encadeamento de proposies no verdadeiras pode

    constituir um raciocnio vlido. claro, a Lgica est preocupada com a verdade indiretamente, pois

    instrumento necessrio das vrias cincias, as quais procuram a verdade.

    b) O mesmo ocorre com a Matemtica. Embora esteja ela sempre voltada para a realidade, as suas

    construes ou demonstraes tambm no so verdadeiras ou falsas propriamente, mas exatas ou inexatas.

    Com efeito, a verdade na Matemtica ou est no comeo, ou no final da demonstrao ou do raciocnio. No

    comeo, como postulado; nesse caso, como verdade apodtica, incontestvel, vale dizer, que no pede a

    aceitao do interlocutor, mas se impe objetivamente. No , portanto, uma verdade consensual. O postulado

    no uma intuio sensvel, evidncia intelectual, salvo se se concebe essa intuio como a priori da

    sensibilidade, segundo Kant. Se se trata de hiptese e no propriamente de postulado, tambm a no entra a

    consensualidade, a no ser provisoriamente, pois a demonstrao matemtica que dar validade verdade da

    hiptese. Do ponto de vista do resultado, da concluso da demonstrao dedutiva, a verdade dada pela

    validade da demonstrao. Ainda, a, no h falar em consenso.

    c) Tambm do contedo de uma norma no se pode dizer que verdadeiro ou falso, mas se vale ou

    no formalmente, segundo os critrios de validade postos por um determinado ordenamento normativo. No que

    tange ao contedo da norma ele definido historicamente por valores, num processo dialtico, que no direito

    culmina por um ato poltico legtimo, ou ex auctoritate.

    til essa diferenciao de conceitos.

    3.3 - O problema da cincia o problema da disciplina da razo na busca da essncia da realidade.

    Essa concepo de busca da essncia como verdade e abandono da aparncia est presente desde o

    nascimento da cultura grega.

    O problema da verdade cientfica comea pelo recuo diante da realidade sensvel para o inteligvel, ou

    seja, para uma plena confiana na razo, a faculdade do universal e do argumento, para buscar o permanente e

    uno em meio pluralidade e variaes da realidade sensvel. Isso ocorre a partir de Thales, desenvolve-se, cada

    vez mais, no rumo de um modelo lgico-formal, como em Parmnides que, ao estabelecer os princpios da

    ontologia ou do estudo do ser, estabelece tambm os da lgica, tais como o princpio de identidade, o de no

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    contradio e o do terceiro excludo at Plato, em que a verdade dada pela cincia e esta o saber da

    realidade em si9, portanto da forma10, pela qual o modelo passa a ser o matemtico. Esse procedimento dedutivo

    em que a verdade tem de ser acompanhada de razo11, abandonar a participao no sensvel e instalar-se

    plenamente no inteligvel12, encontra uma exemplar descrio em Permnides, cuja hiptese, uma proposio

    evidente, ser o Uno indivisvel, contraditrio pluralidade, do que se segue a deduo de vrias outras

    proposies, a confirmarem a prpria hiptese. A verdade coincide, na epistemologia grega, com o conceito, o

    qual revela a essncia do real, forma ou ideia.

    Plato o ponto de chegada e, ao mesmo tempo, de partida da cultura da cincia. Ao dividir

    Parmnides as esferas de conhecimento em mundo sensvel e mundo inteligvel, deslocando exclusivamente

    para este ltimo a possibilidade da cincia, reduziu-a busca da unidade do real, concentrado no ser. A

    pluralidade, porm, insiste em entrar na esfera da epistme, na viso de Herclito.

    O gnio de Plato encontra lugar no mundo inteligvel para ambas as dimenses do real: a pluralidade e

    a unidade. Na epistemologia expurga-se o sensv