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10 PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO/MESTRADO JAIME CUÉLLAR VELARDE No Crepúsculo Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense (1964-85) BELÉM 2012

No Crepúsculo

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Page 1: No Crepúsculo

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PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO/MESTRADO

JAIME CUÉLLAR VELARDE

No Crepúsculo

Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar

na Amazônia Paraense (1964-85)

BELÉM

2012

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JAIME CUÉLLAR VELARDE

No Crepúsculo

Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar

na Amazônia Paraense (1964-85)

Exame de Qualificação da Dissertação de Mestrado apresentado à Universidade da Amazônia,

como requisito para a Conclusão do Curso de Mestrado em Comunicação, Linguagens e

Cultura.

Orientadora: Prof.ª Drª. Neusa G. de Santana Pressler

Co-Orientador: Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco

BELÉM

2012

Page 3: No Crepúsculo

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JAIME CUÉLLAR VELARDE

No Crepúsculo

Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar

na Amazônia Paraense (1964-85)

Data: 10 / Agosto / 2012.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profª Drª. Neusa G. de Santana Pressler

_______________________________________________

Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco (UFPA)

Co-Orientador

_______________________________________________

Profª Drª. Ivone Xavier Amorim (UNAMA)

Examinadora

_______________________________________________

Prof. Dr. Pere Petit (UFPA)

Examinador

Page 4: No Crepúsculo

13

RESUMO

O golpe e processo ditatorial civil-militar (1964-85) incitaram consideráveis publicações,

ciclos de debates, fóruns, conferências e pesquisas. Esta vasta produção no cenário nacional

recebeu, em 2004, uma publicação regional de memórias sobre os quarenta anos do golpe em

solo amazônico paraense, intitulada “1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no

Pará”. A temática provocou-me o interesse por conhecer mais sobre a produção regional e tal

qual foi a surpresa ao perceber raras e honrosas produções nesta seara, cujo destaque recai

sobre as pesquisas de Pere Petit, com enfoques políticos e econômicos sobre o tema em tela.

De posse destas informações, decidi investigar as memórias de sujeitos culturais sobre o golpe

e Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense sob os auspícios dos Estudos Culturais.

Compreendendo a História Oral como método de captura e interpretação de memórias, investi

na compreensão deste advento a partir de relatos de memórias de oito narradores dissidentes

ao regime. Ao estabelecer aspectos identitários dos narradores, privilegiei mapear e analisar

sentimentos aflorados daquelas narrativas orais e performáticas por compreender corpo e

linguagem como portadores de cultura. Assim, ciente das importâncias dos métodos

tradicionais para a compreensão da história, alcancei outra compreensão para os anos de

Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense pautada nas encenações de memórias marginais

à historiografia tradicional.

PALAVRAS-CHAVE: Golpe e Ditadura Civil-Militar; Amazônia Paraense; Sujeitos

Culturais; Estudos Culturais; Memórias.

Page 5: No Crepúsculo

14

Dedico

A minha mãe, Josefina Velarde, pela formação

ética e cuidados a mim dedicados em momentos

tão frágeis de minha existência. E a meu pai,

Jaime Ottó Cuéllar Winkelmann, pelo incentivo à

leitura desde a mais tenra infância.

A meus filhos Sabina, Artur e Manuela, por me

fazerem sentir o peso da responsabilidade e fazer

brotar na pedra o germe do Amor incondicional.

A minha esposa Heliana Gabriel Velarde pelo

amor, paixão, romantismo, companheirismo e

cumplicidade.

A Pedro Galvão de Lima, Ruy Antonio Barata,

João de Jesus Paes Loureiro, Jose Seráfico de

Carvalho, Alfredo Oliveira, André Costa Nunes,

Cláudio Barradas e Dulce Rosa de Bacelar

Rocque, pela sinceridade e belas lições de

ousadia.

A memória post morten de Ronaldo Barata e

todos aqueles que derramaram suor e lágrimas

pelos ideais e convicções de um mundo mais justo.

Page 6: No Crepúsculo

15

AGRADECIMENTOS

Ao co-orientador e amigo Dr. Agenor Sarraf Pacheco, pelos primeiros incentivos

para cursar este Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura. Também pelos

telefonemas de repreensão e estímulo para talhar em minha identidade acadêmica a dedicação

tão necessária ao fazer-se pesquisador. Pelas horas de leituras e sugestões não remuneradas,

feitas tão somente pela atitude de companheirismo. Acima de tudo, pelas críticas corajosas e

sinceras na ânsia de tornar-me um Mestre com domínio sobre conceitos e discussões. Pelos

méritos deste trabalho, muito obrigado.

À Banca de Qualificação, na figura do Dr. Gerson Albuquerque, pela sensibilidade

em instigar-me buscar a presença feminina coadjuvante na cena cultural amazônica; Dr. Pere

Petit, pela sobriedade na análise de conceitos político-econômicos; Dra. Ivone Xavier, por

apontar percursos identitários. A Dra. Neusa Pressler por conceder seu tempo e nome a este

trabalho. A todos, pela leitura atenciosa e apontamentos necessários para construir um texto

com contornos acadêmicos tão necessários para o entendimento dos anos de Ditadura Civil-

Militar (1964-85) sem, contudo, cair na sisudez e monotonia.

A todos os professores do Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e

Cultura: Dra. Amarílis Tapiassu, por ensinar-me a ser mais humilde e menos arrogante; Dr.

Paulo Nunes, por fazer-me perceber o texto para além das narrativas falocêntricas; Dra.

Cenira Sampaio e Dra. Analaura Corradi, por ambas ensinarem sobre os meios adequados

para estabelecer a comunicação; Dr. Erasmo Borges, pelos favorecimentos em perceber os

sentidos nos textos e contextos. Pelo estímulo às leituras necessárias para realizar uma escrita

acadêmica voltada para a interdisciplinaridade e pelas contribuições para a tessitura final

desta dissertação, muito obrigado.

Especialmente, pelo academicismo competente, agradeço à Dra. Socorro Cardoso,

pelas lições metodológicas nos percursos da pesquisa e escrita; Dra. Mariza Mokarzel, por

instigar afloramentos de sensibilidades na interpretação da arte; Dra. Ivania Neves, pelos

aspectos não ditos e interstícios dos discursos; Dra. Ivone Xavier e Dr. Agenor Sarraf, pelas

contribuições diretas para a pesquisa e escrita desta dissertação nas indicações de leituras

sobre identidades e domínio da pesquisa. Pelos méritos deste trabalho, muito obrigado.

A todos os colegas de classe agradeço pelas discussões e afloramentos de

perspicácias em temas de parco domínio. Especialmente a Welton Diego, Hellen Monarcha,

Marcos Valério e Orlando Simões, por contribuir incisivamente para a construção de minha

identidade com elementos mais transitivos com questões sensíveis, tirar proveito do estar

Page 7: No Crepúsculo

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conectado com a imediatez cibernética, mais crítico com o chão social de sujeitos outrora

invisibilizados e, principalmente, mais peirciano nas análises semióticas. E, como não poderia

deixar de ser, a Valdir Ribeiro, por ouvir e guardar desabafos, ansiedades e pequenezas de

espírito no final das aulas.

Aos porta-vozes da cultura amazônica, em versos e prosas, Nilson Chaves e Juracy

Siqueira, pelas informações tão prestimosas e necessárias para compreender o âmbito cultural

paraense nos anos de censura ditatorial. Pela atenção, cordialidade e empenho em ajudar-me a

mapear a tênue relação entre censura-cultura naqueles tempos, muito obrigado.

Aos (mais que) amigos Ivonete Dias da Silva e Carlos Alberto Pompeu Costa. Pelo

suporte para os primeiros passos desta caminhada iniciada em 2001. Pela acolhida em vossos

lares, carinhos de vossos familiares, conselhos de ordem pessoal/profissional. Pelo estímulo

emocional nas horas de fragilidades, muito obrigado.

Ao colega de ofício, Marivaldo Soeiro, pela decisiva influência em pesquisar a

temática da Ditadura Civil-Militar. Foi por ti, meu caro, que percebi a desgastante e

gratificante prática da pesquisa solitária junto a arquivos empoeirados. Pelo estímulo e pela

amizade, muito obrigado.

A aluna e amiga Lorena Alves, pelas transcrições das entrevistas para que este texto

pudesse ser gestado, por ouvir atentamente as divagações teóricas e pela disponibilidade em

ajudar-me a correr contra o tempo. Sem tua paciente ajuda não seria possível obter méritos

nas análises das memórias pesquisadas. Por tudo, muito obrigado.

Aos colegas de trabalho Filipe da Silva Santos, Gean Silva Costa e Jesanias

Calderaro, pela incomensurável dedicação nas horas de reflexão de escrita, impressão,

encadernação dos textos provisórios e versão final desta dissertação. Este trabalho não teria

êxitos sem a bem humorada ajuda de todos. Por tudo isto, muito obrigado.

Aos funcionários – ou verdinhos – do Programa, pela sóbria dedicação, bom humor e

disciplina no exercício de suas funções para que as aulas transcorressem sem problemas e a

produção do conhecimento fluísse em sala sem transtornos.

Page 8: No Crepúsculo

17

Vivi ativamente e meus cabelos brancos demonstram isso; tenho coisas

importantes que fiz e vivi para poder recordar; as risadas que dei ficaram

gravadas nos sulcos profundos do meu rosto. Compreendi a importância da

liberdade que o envelhecimento traz ganhando assim o direito, como mulher,

inclusive, de ter opinião e até de estar errada.

(Dulce Rosa de Bacelar Rocque).

Sonho

Pervagam

pela minha mente

tênues ideias

do tempo

ido e vivido

- fugaz memória

do que fora (quem sabe?)

sem jamais ter sido.

(José Seráfico de Carvalho).

Page 9: No Crepúsculo

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 10

NARRADORES E NARRATIVAS 26

I PARTE – “DAÍ PARA FRENTE TUDO FOI CORRERIA E

ATROPELO. OS SOLDADOS ENTRARAM QUEBRANDO TUDO”. 34

1.1 Pedro Galvão de Lima 35

1.2 Ruy Antonio Barata 41

1.3 João de Jesus Paes Loureiro 49

1.4 José da Silva Seráfico de Assis Carvalho 57

II PARTE – “NÃO ME PRENDERAM, NÃO APANHEI E NÃO MUDEI

DE IDEIA”. 65

2.1 Alfredo Oliveira 66

2.2 André Avelino da Costa Nunes 72

2.3 Cláudio de Souza Barradas 83

2.4 Dulce Rosa de Bacelar Rocque 92

III PARTE – TÁTICAS E SENTIMENTOS DE RESISTÊNCIAS 102

CONSIDERAÇÕES FINAIS 145

DESCRIÇÃO DAS FONTES 151

Entrevistas

Pedro Galvão de Lima

Ruy Antonio Barata

João de Jesus Paes Loureiro

José da Silva Seráfico de Assis Carvalho

Alfredo Oliveira

Cláudio de Souza Barradas

Dulce Rosa de Bacelar Rocque

151

Jornais 151

Referências 152

Sites eletrônicos 155

Page 10: No Crepúsculo

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A feitura desta investigação está inserida ao rol de minhas necessidades políticas a

partir da particular experiência de ler “1964. Relatos subversivos: os estudantes e o Golpe

Civil-Militar no Pará”. Era um lançamento inovador para compreender a história da ditadura

no Pará sob a perspectiva das memórias de um grupo de estudantes à altura do Golpe Civil-

Militar. O texto bem escrito de Pedro Galvão naquela edição foi, provavelmente, o que mais

vincou meus juízos de valor.

Após aquela leitura minhas posturas políticas acerca da ditadura militar foram

abruptamente modificadas. Passei a frequentar fóruns de discussões via internet, com a

presença de inúmeros personagens que se afirmavam ali como protagonistas e antagonistas do

Golpe Civil-Militar e de todo o processo ditatorial. Busquei obras especializadas em sebos e

bibliotecas que pudessem nutrir minhas inquietações políticas e acadêmicas. Sem perceber, já

havia sido fisgado pela temática e a saída, mesmo que não a desejasse, já me era impossível.

Naquela ocasião, outras produções lançadas ao mercado editorial no mesmo ano

traziam à tona a temática da Ditadura Civil-Militar em esfera nacional. Dentre os principais,

destaco os trabalhos de Kushnir (2004), Fico (2004), Reis (2004), Motta (2004) e Ridenti

(2004). Por ser um ano emblemático para a temática ditatorial por conta dos 40 anos de Golpe

Civil-Militar, estas produções semearam perspicácias para pesquisas enviesadas com o

mesmo teor. Assim me percebi convidado a pesquisar mais sobre a seara. Entretanto, entre

todas aquelas obras faltava produções que melhor contemplassem a realidade amazônica.

Elio Gaspari, com dupla edição intitulada “A ditadura escancarada” e “A ditadura

envergonhada”, ambas em 2002, davam subsídio para compreender aquela época dentro de

novas perspectivas para alem do enquadramento meramente político ou econômico. Seu olhar

se direcionava para analises envolvendo sentimentos, em especial o uso intransigente da

violência e vergonha latente daqueles que perpetraram abusos de poder, respectivamente.

“O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004)”, lançado também em

2004, e organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, trouxe

talvez o maior fôlego para a pesquisa sub judice dos Estudos Culturais. As análises lançaram

mão de fontes pouco usuais para a tradição historiográfica, tais como de charges, músicas,

depoimentos, jornais. As várias possibilidades de encenar a memória (REIS: 2004) e as

múltiplas temporalidades na escrita sobre o tema da Ditadura Civil-Militar (DELGADO:

2004), caíram como luvas para encarnar o propósito deste trabalho.

Page 11: No Crepúsculo

20

Marcelo Ridenti, um dos autores de “O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois

(1964-2004)”, em 1993, havia lançado “O fantasma da revolução brasileira”, em alusão às

derrotas acumuladas pelas esquerdas brasileiras. Desde as músicas de protesto capitaneadas

por Chico Buarque e Caetano Veloso, até a Guerrilha do Araguaia, com as inúmeras mortes

no interior do Brasil, o autor discorreu sobre acertos, avanços e retrocessos da luta engajada

contra a Ditadura Civil-Militar. Entretanto, era o ano de lançamento daquele trabalho era

1993. A ditadura havia capitulado recentemente (1985), com eleições diretas para presidente

somente em 1989. Ou seja, sua pesquisa estava impregnada por ranços imediatistas que

exigiam mais pressa nas mudanças sociais e políticas do país. Este trabalho deve ser situado

no tempo-espaço para ser analisado.

Ao iniciar a pesquisa debrucei-me sobre a literatura especializada na Amazônia

Paraense. Somente naquele momento percebi o quanto a temática da Ditadura Militar em

nossa região ainda carece de maiores investimentos acadêmicos. Em honrosa exceção figura

“Chão de Promessas”, de Pere Petit (2003). É a principal obra sobre as trajetórias em

confronto com lutas pela terra, redemocratização e rumos políticos da Amazônia nos tempos

de exceção. Sua análise recai sobre os principais eventos governamentais causadores de

mudanças no quadro econômico, político e social da região desde os tempos do boom da

borracha até a Nova República (1995).

Outro trabalho é a dissertação de mestrado de Tony Leão da Costa intitulada “Música

do norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na formação da “MPB” no

Pará (anos 1960 e 1970)”, produzida no do Programa de Mestrado em História Social da

Amazônia, da Universidade Federal do Pará, em 2008. A pesquisa tangencia a temática

ditatorial de modo bastante engenhoso. Sob o artifício de compreender os percursos da música

produzida no período naquela década, Costa mergulha em censuras, decretos e artifícios

institucionais autoritários. Tem também o mérito de recorrer à História Oral enquanto método

interpretativo nas humanidades inovando na produção sobre a ditadura militar na Amazônia

Paraense ao apresentar vozes de “intelectuais” e “artistas musicais” antes marginalizados pela

produção historiográfica.

Carlos Eduardo dos Santos e Santos, Mestre em História pelo Programa de Pós-

Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, em 2011, com

o trabalho intitulado “Do Ponto de Vista da Caserna: Memórias do Cotidiano e Experiências

de Militares da Aeronáutica em Belém Durante o Regime Militar (1964-1985)”, também

adentra no rol de produções sobre a temática ditatorial. O trabalho prestigia atores sociais que,

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21

ao longo do processo de arbitrariedades, foram os únicos a falar: os próprios militares. Por

outro lado, tem o mérito de recorrer aos contemporâneos do período em tela.

Raquel Cunha, em Trabalho de Conclusão de Curso, enveredou por temática bastante

parecida com esta Dissertação. Com o título “Um olhar à cidade de Belém sob o Golpe de

1964: paisagens e memórias de estudantes e artistas”, de 2008, cinco personagens da época do

Golpe Civil-Militar foram entrevistados com enfoque antropológico. As pistas daquela

pesquisa apontaram para caminhos que busquei desvendar. Por exemplo, Paes Loureiro e o

padre teatrólogo Cláudio Barradas, entrevistados daquele trabalho, também estão aqui. Ainda

carrega o mérito de ser o primeiro trabalho a prestigiar a narrativa feminina naqueles tempos:

a professora Violeta Loureiro, na época do Golpe Civil-Militar era namorada do professor

Paes Loureiro.

De posse destas leituras, senti a necessidade de visibilizar experiências de outros

sujeitos capazes de produzir maior entendimento acerca do cotidiano conflituoso vivenciado

nos tempos de exceção na Amazônia Paraense. Optei em dar ouvidos aos testemunhos de

“sujeitos culturais” como porta-vozes daquele período. Este esboço foi produzido com o

auxílio de análises em jornais, revistas, livros, vídeos e entrevistas cujo cerne era os tempos

de exceção provocados pelo golpe e consequente Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964.

Neste sentido, “1964. Relatos subversivos”, por ser uma produção gestada a partir

das memórias de seus autores, foi a obra seminal para a pesquisa e, consequentemente, para a

urdidura desta escrita. Justamente por tratar-se de um livro de narrativas experimentadas em

tempos traumáticos, cujo cerne eram os jovens estudantes à época do Golpe Civil-Militar,

notei ser um belo mote para iniciar a escrita.

A partir disto, decidi que o rol de entrevistados para a feitura desta dissertação seria

composta por aqueles memorialistas. Assim o fiz por tratar-se de um ato de justiça com minha

própria consciência, em especial por lembrar que inúmeras passagens daquelas memórias me

levam às lágrimas sempre que folheava/folheio suas páginas. Pelo falecimento de um,

impossibilidade de comunicação e distância de residências de outros, novos narradores foram

incorporados. Abandonei a ideia de utilizar somente os memorialistas de “1964. Relatos

subversivos”. Desta forma, ficaram oito narradores para compor a argumentação a seguir. São

eles: Cláudio Barradas, José Seráfico de Carvalho, André Costa Nunes, Dulce Rosa, Pedro

Galvão de Lima, Alfredo Oliveira, Paes Loureiro e Ruy Antonio Barata.

Esse aspecto talvez já antecipe o teor desta dissertação juntamente com o título – No

Crepúsculo: Memórias Subversivas da Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense

(1964-85). O incipiente mergulho no conjunto de documentos orais e escritos permitiu-me

Page 13: No Crepúsculo

22

acionar zonas de sensibilidades adormecidas e despertar o desejo de luta contra atitudes e

posturas tidas como desprezíveis na condição humana. A temática da Ditadura Militar no

Brasil e, especialmente, na Amazônia Paraense, fez-me compreender o quão são caros os

estudos de temas sobre as lutas em torno do poder, liberdade, direitos humanos. Aqui reside a

contribuição desta dissertação para compreender as teias do Golpe Civil-Militar na Amazônia

Paraense.

No objetivo central desta dissertação surgiram três pontos específicos intimamente

imbricados. São nós górdios, cujos desates são imprescindíveis para os contornos finais deste

trabalho. Chegaram a estar nas previsões do projeto inicial da pesquisa, mas alguns foram

abandonados pela insuficiência de informações, outros se fortaleceram ao longo da trajetória

de leituras e pesquisa de campo. Adiante os detalharei.

Primeiro, é extremamente necessário reconhecer a impossibilidade de analisar o

cotidiano conflituoso da Amazônia Paraense sem antes selecionar pessoas representativas da

cultura paraense – denominados de “sujeitos culturais”, como adiante explanarei melhor sobre

esta categoria.

Após seleção criteriosa dos entrevistados, foi possível analisar as experiências

narradas por estes sujeitos culturais e, como consequência, desnudar o seu cotidiano em

relação ao regime à época do Golpe Civil-Militar. Junto a isso, mapeei o conjunto de

linguagens por eles construídas para lidar com os mecanismos de censura/opressão.

Segundo, feita a seleção dos sujeitos culturais a terem suas memórias analisadas,

pude interpretar o imaginário por eles produzido nas interfaces e tensões com o imaginário

hegemônico no contexto da ditadura na Amazônia Paraense.1 Ou seja, é preciso considerar a

heterogeneidade dos sujeitos selecionados para então perceber as tensões se construindo por

motivações diferenciadas para cada um deles. Implica afirmar as tensões, seu lugar social e

situações vividas com sensibilidades diferenciadas. Desta forma, é mister captar as estratégias

e diferentes mecanismos de silenciamentos, opressão, censura implementados pelo poder

militar na região amazônica para situar no tempo-espaço os sujeitos pesquisados.

A metodologia da História Oral foi privilegiada para explorar as narrativas

produzidas no corpo-a-corpo da pesquisa. Assim constatei censuras, perseguições políticas e

prisões como responsáveis por criar outras perspectivas para as inúmeras paisagens da capital

paraense. Paisagens que hoje remetem a um passado doloroso para Paes Loureiro, Pedro

Galvão de Lima e José Seráfico de Carvalho. Paralelamente, o poder público – corroborado

1 Sobre estudos do imaginário social no campo histórico, há uma significativa bibliografia. Entre eles é válido

citar: (PANTLAGEAN, 1993; BACZKO, 1985).

Page 14: No Crepúsculo

23

por setores da academia responsável pela produção/discussão do conhecimento – das décadas

posteriores ao Golpe Civil-Militar construiu significados turísticos ou com enfoque histórico

sem ênfase para o período ditatorial que assolou o Brasil por 20 anos.

Exemplo visível desse processo está na ressignificação de alguns patrimônios que

compõem o chamado Complexo Feliz Lusitânia. Especialmente o espaço hoje chamado “Casa

das Onze Janelas” que abriga o “Boteco das Onze” e um espaço de Exposição Permanente de

Arte Modernista Amazônica.2 Em 1964, aquele lugar foi a Quinta Companhia de Guardas

com reuniões do CMA (Comando Militar da Amazônia), além de calabouço para aprisionar e

deixar incomunicáveis os jovens estudantes acusados de “subversão”. O mesmo espaço foi

cenário das angústias do então Deputado Estadual Benedito Monteiro, comunista convicto,

local de prisão e torturas mentais. 3

Ou seja, junto aos mecanismos de opressão e censura do período da ditadura estão o

esquecimento e a negligência historiográfica causada pelo próprio poder público. No corpo

desta dissertação tangenciarei os meandros desta relação, articulando Ditadura Civil-Militar e

memórias. Com isso, pretende contribuir para que se fortaleçam as estratégias de divulgação

de memórias de dor para que o passado não se repita. A esse respeito é necessário mencionar

Beatriz Sarlo, quando debruçada sobre as memórias do holocausto, assinala: “Nunca se pode

saber tudo, nem nunca podemos nos resignar a um saber parcial e ao mesmo tempo inevitável

(como o de toda prática) e inimigo da memória” (1997, p. 42).

Com a História Oral, apreendi memórias sobre a temática da ditadura militar na

Amazônia Paraense, daí os caminhos da pesquisa tornaram-se menos herméticos. Como

vislumbrei acima, essa metodologia não é apenas uma técnica de entrevistas preocupada com

informações dadas pelos depoentes. É também o campo de significações de lembranças,

silêncios ou esquecimentos gestados no momento da entrevista.

2 A Quinta Companhia de Guardas funcionava onde hoje abriga a Casa das 11 Janelas e compõe o Complexo

Turístico Feliz Lusitânia. A Casa foi construída no século 18 como residência de Domingos da Costa Bacelar,

proprietário de engenho de açúcar. Em 1768, a casa foi adquirida pelo governo do Grão-Pará para abrigar o

Hospital Real. O projeto de adaptação é do arquiteto bolonhês José Antônio Landi. O hospital funcionou até

1870 e depois a casa passou a ter várias funções militares. Em 2001, o Governo do Estado do Pará assinou com o

Exército Brasileiro um convênio, alienando os terrenos da Casa das Onze Janelas e do Forte do Presépio em

favor do Estado. A Casa, como todo espaço inserido no processo histórico, serviu a diversas finalidade e funções

no decorrer dos tempos. Assim, ao refletir as atitudes do Poder Público sobre tal Patrimônio há clareza da

multiplicidade das dimensões que o mesmo assume na paisagem urbana e nas relações sociopolíticas nas quais

se insere. Apesar disto, penso como dever do Estado criar mecanismos de informação para que a sociedade fique

à par das historicidades e significados da paisagem e patrimônios que lhe pertencem. Inspirado em:

http://migre.me/6ab8U, acessado em 10.09.11 – às 15h22.

3 Ver Monteiro (1993). Na obra “Transtempo”, Monteiro argumenta sobre dúvidas, perguntas e incertezas

gestadas a partir de um completo desconhecimento do que acontecia durante o tempo que estava incomunicável

na prisão. Dedica inclusive um capítulo sobre esta temática pp. 64-70.

Page 15: No Crepúsculo

24

Tratei de por em prática ensinamentos da sabedoria dos que usam há largo tempo

essa metodologia, assim como o bom senso do saber ouvir. Destaco Alessandro Portelli

(1993; 1996; 1997a; 1997b; 2010), Paul Thompson (2002) e Alistair Thomson (1997, 2001)

como intelectuais desta vertente teórico-metodológica, conforme assinala Khoury (2010),

utilizados neste texto dissertativo. E por instigação dessas leituras, fiz a seguinte opção

metodológica: o esquema de perguntas produzido para cada entrevistado acabou não sendo

executado conforme o planejamento inicial; foi a partir da fala dos entrevistados que surgiam

as novas perguntas, sendo que em vários momentos limitei-me a sorrir, franzir a testa,

balançar a cabeça... Sempre sugerindo para o entrevistado seguir a narrativa sem sentir-se

preso a uma camisa de forças de um roteiro pré-estabelecido.

Quando foi possível uma segunda entrevista o depoente era rememorado dos pontos

tocados na entrevista anterior. Alguns aspectos que me interessavam maior aprofundamento

eram colocados no início da conversa para manter-me fiel ao ritmo do primeiro encontro.

Pretendi com isso não quebrar o ritmo das narrativas.

Pela experiência de pesquisa, acompanhamento, alerta e numerosas contribuições de

meu co-orientador, e boa dose de sensibilidade, acredito que esta técnica foi sumamente

produtiva para esta tecedura.

Para desenhar reflexões e provocar os trechos pinçados das entrevistas, jornais,

autores, a opção recaiu sobre a teoria interpretativa dos Estudos Culturais, em especial autores

como Stuart Hall (2003, 2006), Dennys Cuche (2002), Edouard Glissant (2005), Homi

Bhabha (2007), além das pesquisas produzidas por Pacheco (2009; 2009b; 2011) sobre a

Amazônia Marajoara em conexões com esta teoria interpretativa. Somando-se a estes,

Michael de Certeau (1997), contribuiu decisivamente na construção de significados das

práticas dos sujeitos pesquisados.

Ainda por sugestão dos Estudos Culturais, a pesquisa caminhou abstendo-se

propositadamente dos tradicionais manuais de História Política do Pará. Tal opção, longe de

negligenciar a importância de tais compêndios, pretendeu narrar experiências de outros

agentes históricos como forma de obter perspectivas inéditas acerca do cotidiano amazônico à

época do Golpe Civil-Militar.

O uso da História Oral está nesta dissertação não só por questões metodológicas, mas

por fazer emergir memórias há muito em “zonas de silêncio”.4 Logo, a escolha da História

4 Expressão arquitetada por Pacheco (2010) a partir da audição de relatos de mulheres marcadas em suas

infâncias por abusos sexuais que, por vergonha, autopreservação, luta por sustento, não denunciaram seus

algozes. Por essa razão, as memórias dessas experiências dolorosas não eram compartilhadas. A impossibilidade

Page 16: No Crepúsculo

25

Oral é uma opção política para justiça historiográfica ao propor sujeitos outrora sequer

mencionados pela escrita acadêmica. Há, contudo, uma necessária observação acerca da

relação entre sujeitos e zonas de silêncio. Os personagens contemplados nesta dissertação não

se submeteram à penumbra da escrita histórica por decisão própria. Se a produção acadêmica

não os vinculou à construção de astúcias de resistências durante o processo ditatorial, isso se

deve tão somente ao tradicionalismo historiográfico de não perceber novos sujeitos nas tramas

históricas. No caso dos atores aqui pesquisados são evidentes as estacas fincadas pelos

próprios para delimitar seus raios de ação. Produziram seguidamente ao longo dos anos

ditatoriais por meio de peças teatrais, músicas, poemas, artigos, cartas, panfletos, reuniões,

artigos e ações de repúdio aos autoritarismos. As táticas de sublevação os marcavam ainda

mais como subversivos e, portanto, construíram suas identidades sem que isso fosse

necessariamente algo a ser escondido. Afinal, como cheguei até eles se não fosse pelos

estardalhaços produzidos naqueles tempos?

Metodologicamente, esta escrita dissertativa, respondendo aos anseios deste

Mestrado multidisciplinar em Comunicação, Linguagens e Cultura, opções analíticas foram

construídas junto com a orientação, mas sempre permitindo a circulação de conceitos e

discussões cujos focos estavam para além das orientações sob a esteira dos Estudos Culturais.

Alargar os horizontes desta urdidura sem posturas monolíticas foi a tônica do trabalho.

Doravante, apresento as categorias construídas a partir desta postura. Estarão no corpo da

escrita sempre de modo relacional.

A categoria identidade, por exemplo, receberá o debate a partir de Hall (2003, 2006)

e Cuche (2002). Isso porque ambos discutem variadas possibilidades de compreensão do

fazer-se e trajetórias de homens e mulheres na contemporaneidade; e ao longo da pesquisa

constatei que sujeitos contíguos ao Golpe Civil-Militar fizeram questão de forjar elementos

constitutivos de suas identidades, ao mesmo tempo, sujeitos externos atribuíram elementos

outros para representar essas identidades. Isso ocorre porque esses agentes históricos operam

suas identidades sociais de acordo com suas atuações artísticas ou profissionais, mas sem

olvidar outros papéis construídos em igrejas, famílias, esquinas, cafés, círculos de amizade,

etc..

de retransmissão desses saberes a outras gerações ou a outros grupos sociais dá-se pelo simples fato de que

existem mecanismos de silenciamento e coerção por parte de grupos hegemônicos. Então, tais memórias são

produtos de relações de poder entre sujeitos que mediram força em algum tempo e lugar. Não estão,

necessariamente, no esquecimento. Esperam o momento oportuno para emergir, fazer-se ouvir e revelar-se ao

palco de ações protagonistas de histórias interditas, mas vividas. Como? Simplesmente permitindo-se narrar o

que viveram.

Page 17: No Crepúsculo

26

Diante deste quadro, para Hall e Cuche o conceito de identidade é controverso,

antagônico, movediço, efêmero, flexível, móvel... Adjetivos necessários para dar conta do

multifacetado universo de significações que constituem o estar no mundo dos sujeitos

culturais valorizados pela investigação. Cuche (2002), ao abordar as relações e diferenças

entre identidade e cultura, diz que:

Não se pode pura e simplesmente confundir as noções de cultura e de

identidade cultural ainda que as duas tenham uma grande ligação. Em última

instância, a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao passo que

as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura

que não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente.

A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade

remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em

oposições simbólicas. (Cuche, 2002, p. 176).

Assim, para Cuche (2002) as categorias existem separadamente, mas estão

vinculadas. Isso me instigou a pensar cultura e identidade amazônicas como fenômenos em

constante dinamismo. As identidades amazônicas, em especial a dos sujeitos culturais aqui

pesquisados, estão carregadas de “oposições simbólicas” que, por sua vez, causam “processos

inconscientes” junto à cultura da região. Assim como há oposição, a categoria produz laços de

pertencimento. Ao instigar esta reflexão, o texto de Cuche se fez também imprescindível para

colaborar e corroborar aspectos da discussão que pretendo travar.

Isso foi materializado nesta dissertação com a narrativa do teatrólogo Cláudio

Barradas (que hoje exerce funções de sacerdócio – é padre da Paróquia Cristo Ressuscitado,

no bairro da Marambaia, em Belém). As atividades de teatrólogo e padre teatrólogo Cláudio

Barradas, pela dicotomia em si destes papeis, provocam em Barradas identidades movediças.

Forçando-o a assumir papeis nem sempre acionados automaticamente, como se fossem uma

máquina programável. Por exemplo, o próprio Cláudio Barradas ao narrar sobre o fato de ser

chamado de “contraditório” por um repórter da RBA (Rede Brasil Amazônica de Televisão),

contou o seguinte episódio:

(...) O cabra veio me entrevistar e me pergunta: “Camisinha?” Aí eu falo

assim: “Queres a resposta do padre ou do ser humano? Se for do ser humano

eu digo: Usa. Se for do padre eu digo: Não”. Porque o padre é só soldado

raso, soldado não pensa, só obedece. Aí o cara disse: “Tu és contraditório”.

Eu disse: “É. Sou. Mas contraditória é a vida” (Cláudio Barradas, entrevista

em 13 e 23 de maio de 2011).

A fala de Barradas retoma Hall (2006) a respeito das contradições envolvendo a

categoria identidade, em especial o “jogo das identidades”. Significa dizer que Barradas, ao

Page 18: No Crepúsculo

27

sugerir o uso de preservativos no momento da relação sexual, assume papel de cidadão

consciente e preocupado com os riscos em contrair doenças ou evitar gravidez, caso não haja

prevenção e cuidados com o corpo. E, ao migrar sua postura para o papel de Padre da Igreja

Católica Apostólica Romana, tem ciência que esta instituição não autoriza práticas sexuais

fora do matrimônio, cuja finalidade não seja a reprodução; sendo assim, não cabe a

preocupação com prevenção de gravidez ou doenças, portanto o uso de preservativo é

cabalmente proibido. Neste sentido, o “jogo das identidades” descrito pelas reflexões de Hall

(2006) é encenado conscientemente por Barradas. O perfeito controle e aquiescência das suas

identidades permitem imersões e emersões sempre que lhe é conveniente. A movimentação

das identidades do padre-cidadão frente às vivências cotidianas é negociável e sempre

relacional.

Claudio Barradas fora selecionado para esta dissertação pela sua atuação junto ao

teatro no período pesquisado. Ou seja, trata-se de um sujeito com forte influência cênica. Com

a entrevista, revelava-se um sujeito em trânsitos identitários que, indubitavelmente, estarão no

cerne das análises desta pesquisa.

Para Hall (2003), a identidade está pontilhada por uma íntima relação com a cultura

popular. Como discuto e percebo os sujeitos culturais em permanente contato com a

construção da “cultura popular” na Amazônia Paraense, notei dificuldades para iniciar essa

discussão. Hall também já advertia sobre tal dificuldade ao afirmar: “tenho quase tanta

dificuldade com “popular” quanto tenho com “cultura”. Quando colocamos os dois termos

juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (Hall, 2003, p. 231).

Ao assumir o poder em 1964, os militares provocaram no Pará – como em todo o

Brasil – um palco de intervenções na cultura popular para controlar o imaginário da

população. Essa atitude de controlar corações e mentes por parte de governos despóticos,

aliás, é facilmente constatada em outros momentos da história recente do Brasil.5 No caso

paraense, censores passaram a compor um cotidiano de fiscalização e controle de teatrólogos,

músicos, poetas. Esses censores, sob o argumento da ordem, moral e bons costumes não

permitiam a publicação ou veiculação de ideias subversivas ao regime. Hall, mesmo

analisando relações entre cultura e poder na Europa, contribui para reflexões em terras

amazônicas.

5 Ver a fundação e objetivos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, no governo

golpista de Getúlio Vargas. A Fundação Getúlio Vargas, em seu Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea, traz importantes dados acerca das metodologias utilizadas pelo governos varguista para atingir

seus objetivos populistas juntos às massas. Disponível em http://migre.me/90WZG - acessado em 12 de abril de

2012, às 15h22min.

Page 19: No Crepúsculo

28

De um jeito ou de outro, o “povo” é frequentemente o objeto da “reforma”:

geralmente para seu próprio bem, é lógico – “e na melhor das intenções”.

Atualmente, compreendemos a luta e a resistência bem melhor do que a

reforma e a transformação (Hall, 2003, p. 232).

Esse enunciado acima permite refletir sobre o fato de que o papel dos censores,

respondendo a um projeto de poder dos governos militares, tinha a nítida intenção de “um

longo processo de ‘moralização’ das classes trabalhadoras, de ‘desmoralização’ dos pobres e

de ‘reeducação’ do povo” (Idem, p. 232). Ora, sob o discurso de “reeducação do povo”

estavam os interesses governamentais de silenciar sujeitos tidos como subversivos.

Isso, claro, não implica numa passividade por parte do povo diante de tal projeto de

poder. Afinal de contas, para Hall (Ibidem) a cultura “é o terreno sobre qual as transformações

são operadas” (Ibidem, p. 232). O teatrólogo Cláudio Barradas, ao narrar um exemplo da

forma como lidava com a censura, com risos e tom de sarcasmo, narra o seguinte:

Aí, depois nós viemos, uma peça política, um texto muito bom: “A ameaça”.

Passa-se no final na Cabanagem. Um sargento muito doido que anda pelo

interior caçando cabano. Aí chega a uma barraca onde só tem uma velha e a

filha dela. Ele insiste que elas esconderam cabano. Massacram a velha,

massacram a menina. No final eles matam a moça. Aí fica só a velha, a

moça... Eu faço a velha ficar cantando “liberdade, liberdade, abre as asas

sobre nós”. Um espetáculo lindo. Tá, tá, tá... (Claudio Barradas, entrevista

em maio de 2011).

O padre teatrólogo narra o episódio com enorme satisfação, euforia e,

principalmente, sarcasmo para denunciar sua sagacidade, de um lado; e falta de percepção das

ironias tramadas, da parte dos censores que o acompanhavam. Ao narrar especificamente este

fato, Barradas dá ênfase à liberdade sendo mostrada como resultado do embate cultural e

político entre o público massacrado e os sargentos muito doidos que massacravam jovens

meninas. É uma metáfora, sem dúvidas, para denunciar a situação vivida naquele momento no

Brasil. Sobre esta questão levantada pelo padre teatrólogo, Hall (2003) já advertia sobre esse

palco de conflitos e sobre o fato de que classes sociais e poder dominante estão imbricados

pela relação mútua nas lutas culturais. Fenômeno das lutas, aliás, que em momento algum

deixou de movimentar-se no período pesquisado.

Não existe um estrato “autêntico”, autônomo e isolado de cultura da classe

trabalhadora. A maioria das formas de recreação popular mais imediatas, por

exemplo, estão saturadas de imperialismo popular. Poderíamos esperar outra

coisa? (Hall, 2003, p. 234).

Page 20: No Crepúsculo

29

Ao articular Hall com a narrativa de Barradas, observo como lançou mão de seu

instrumento cultural – o teatro – para lidar com os mecanismos da censura. Os duplos

sentidos, os jogos com as palavras nas peças são apenas um exemplo de táticas de resistência.

Pelas entrevistas concedidas, descobri que além de usar peças para “dar recados” ao regime

ou ao público, Barradas também inseria palavras de baixo calão para escamotear suas

verdadeiras intenções políticas. Quando o censor ouvia tais palavras se concentrava nelas e

deixava passar as demais – justamente o que interessava aos interesses políticos de Barradas.

Criou táticas múltiplas para burlar a opressão.

Diante das táticas de resistência tão comuns em todos os sujeitos culturais desta

pesquisa, Michael de Certeau (1997) foi imprescindível para dar conta dessa análise. Por meio

de bilhetes, anotações em pés de páginas, palavrões em cenas teatrais, duplos sentidos em

versos e trovas, os dissidentes ao regime ditatorial conseguiram imprimir críticas à postura

ditatorial. Estes sujeitos, de certa forma sentindo-se agredidos pelo estado de censura e

violência, resistiam e criaram táticas algumas vezes sutis, outras vezes atabalhoadas,

consciente ou inconscientes. Surtindo efeitos – ou não – junto a outros grupos, os sujeitos

culturais conseguiram criar brechas dentro do regime de exceção. O fato é que diversas táticas

de resistência foram urdidas e postas em prática. Estarão do início ao fim desta dissertação e

Certeau é o teórico que melhor se adéqua para sustentar essas reflexões.

Outras duas categorias de análise estão presentes neste texto para discutir as

memórias em tempos de censura. Ambas foram cunhadas no decorrer das leituras e

investigação de campo. Obviamente, ao final da dissertação poderão ser questionadas, pois

foram gestadas sob o calor da empiria da pesquisa, mas certamente apresentam contribuição

para o debate sobre a ditadura em solo amazônico. São elas, sujeitos culturais e memórias de

dor.

Sujeitos culturais é a categoria utilizada para denominar agentes contemporâneos ao

Golpe Civil-Militar que de alguma forma criaram táticas de resistência ao regime.

Inicialmente, esse termo não estava prescrito no projeto de pesquisa ou nas sugestões da

orientação. Esses sujeitos, inicialmente, eram denominados como intelectuais que interferiram

no processo político e cultural da ditadura, cumprindo o papel de dissidentes ao regime. No

entanto, a cada momento em que as entrevistas iniciavam e a expressão era mencionada

rapidamente era rechaçada pelos entrevistados.

Assim ocorreu com os entrevistados Paes Loureiro, Pedro Galvão de Lima e Cláudio

Barradas. Entendi essa recusa como um problema a tornar-se perigoso para o êxito do

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30

trabalho. Seria difícil sustentar uma categoria de análise em que os sujeitos sociais

sinceramente não se reconheciam nela ou, por modéstia, alegavam não se reconhecer.

Com inspirações em Marilena Chauí a partir de uma conferência (que inspirou a

publicação de um texto entre jan./abr. de 1995) na USP para os funcionários públicos da

cidade de São Paulo, em dezembro de 1994. Naquele ano, Chauí atuava na gestão municipal e

estava envolta na mudança de mentalidade dos servidores para a invenção de uma nova

cultura política. Queria criar ações que permitissem aos funcionários públicos de São Paulo se

notar como servidores da sociedade, detentores de poder, intervenção e atitudes que, ao serem

postas em prática, estariam beneficiando a população paulistana. Não era isto que acontecia

na postura desses servidores. Agiam como detentores do estado e, portanto, livres de

quaisquer tipos de fiscalização.

Ora, a proposta de Chauí para os funcionários públicos de São Paulo se aproximava

da maneira que eu concebia os sujeitos da pesquisa no contexto amazônico. Daí veio a

inspiração para compreender os entrevistados selecionados para esta pesquisa como sujeitos

que punham suas artes, engajamentos, posturas ideológicas e táticas a serviço de um bem

coletivo.

Portanto, neste texto, sujeitos culturais são todos aqueles que de alguma forma

utilizaram o teatro, a poesia, a trova, a música, a literatura, o discurso político, ou quaisquer

outras linguagens possíveis de estarem a serviço da sociedade, numa atitude fundada não na

subserviência, mas na doação e postura de igualdade entre os cidadãos. E por agirem às

margens do poder ditatorial urdindo táticas diversas para burlar a ditadura, foram tachados de

subversivos, perigosos, comunistas, perigosos, vermelhos.6 Obviamente, com o passar das

últimas quatro décadas, sofreram transformações em suas identidades. Naquela altura, eram

estudantes recém-formados ou formandos, cuja perspectiva de futuro estava atravessada pelas

ações ditatoriais do novo regime. Cada um ruminou o passado conforme o repertório

particular e hoje são atores sociais bem diferentes daquilo que foram um dia.

Ao retomar o diálogo com os sujeitos da pesquisa houve ainda a rechaça à categoria

analítica denominada intelectual. Todos foram enfáticos em afirmar-se como “profissionais”

nas áreas em que atuam no mercado de trabalho. A postura diante do termo sujeitos culturais

foi de maior aceitabilidade quando eu comentava a maior abrangência desta nomenclatura.

Assim, optei pelo uso desta expressão por ter sido testada e aprovada na fase das entrevistas.

6 Preocupados com os sentidos que o esquecimento sobre os difíceis tempos de ditadura militar na Amazônia

Paraense poderiam produzir na atualidade, alguns sujeitos culturais, registraram em livros de memórias

publicados, percepções das experiências do passado pelos óculos do presente. Entre essas publicações, destacam-

se LOUREIRO (2011); NETTO (2003); OLIVEIRA (2010); SERÁFICO (2007, 2010).

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31

As memórias de dor é outra categoria cunhada a partir do calor das entrevistas.

Todos, sem exceção, mesmo com sorrisos ou queixos erguidos pelo orgulho como lidaram

com os tempos de autoritarismos, em vários momentos elevaram o tom da voz, cruzaram os

braços, franziram as testas, enrubesceram os rostos. Performances que denunciavam de

alguma maneira as memórias dolorosas por terem vivenciado momentos de medo, tensão,

raiva. Por enquanto, alguns exemplos: em 1964, durante os primeiros dias do Golpe Civil-

Militar, Paes Loureiro foi preso, torturado física e psicologicamente, transferido para prisão

no Rio de Janeiro sob risco de ser “suicidado” pelo DOPS (Delegacia de Ordem Política e

Social), que, como diz o nome, teoricamente teria única função de estabelecer e manter a

ordem, no entanto agia como instrumento de coerção e violência do Estado contra os

opositores do regime.

Na narrativa de Loureiro, há um expresso de ressentimento para com o regime e toda

a repercussão que isso causou à sua trajetória como poeta. O mesmo ocorre com as narrativas

do então teatrólogo Cláudio Barradas e de Pedro Galvão, formado no curso de Direito no

mesmo ano de 1964. Ambos trazem inscritas em suas trajetórias de vida as marcas nada

indeléveis das perseguições da ditadura em terras amazônicas. O primeiro foi várias vezes

censurado em suas peças, chegando a sofrer perseguição no ambiente de trabalho passando

dias sem que colega algum lhe dirigisse a palavra. O segundo foi preso sem nenhuma

alegação para sua prisão. Aflito pela falta de acusação formal, foi libertado pelo fato de

pertencer à reserva do Exército. Em 2004, passados 40 anos de sua prisão, Pedro Galvão foi

responsável direto pela seleção de depoentes e organização de textos para um livro intitulado

“1964: Relatos Subversivos – os estudantes e o Golpe Civil-Militar no Pará”. A ideia e

materialização do livro em si já demonstram um passado ainda presente na vida deste sujeito,

provavelmente com marcas de um ressentimento recalcado, como já dizia Nietsche

(ANSART, 2004).

Quanto ao problema inicial construído para esta pesquisa de mestrado, surgiram

questões para balizar a investigação. São elas: Como os tempos de censura foram

experenciados e interpretados pelos sujeitos culturais dissidentes ao governo militar? De que

maneira as múltiplas memórias e fazeres sociais se ressignificaram com as práticas dos grupos

dominantes? Quais foram/são as linguagens utilizadas pelos sujeitos sociais que

compartilhavam (ou não) dos tempos de silêncio?

Diante dessa problemática que iluminou a pesquisa de campo e o diálogo com o

campo teórico-metodológico, o texto dissertativo está dividido em três partes. Na I Parte,

intitulada “DAÍ PARA FRENTE TUDO FOI CORRERIA E ATROPELO. OS

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32

SOLDADOS ENTRARAM QUEBRANDO TUDO”, apresento Pedro Galvão de Lima,

Ruy Antonio Barata, João de Jesus Paes Loureiro e José da Silva Seráfico de Assis Carvalho.

Compõem esta etapa da escrita por serem aqueles sujeitos que vivenciaram – e narraram – a

nevrálgica experiência do cárcere. Seja na Quinta Companhia de Guardas ou no 2º Batalhão

da Polícia Militar, na Rua Gaspar Viana ou em São Paulo, caso de Ruy Antonio Barata, ou no

Rio de Janeiro, caso de Paes Loureiro. Os primeiros dias do abril de 1964 foram repletos de

prisões como medidas temerosas de resistência à “revolução” em curso.

Em geral, as detenções não passaram de 59 dias, prazo teoricamente “legal” para

aprisionar sem apresentar justificativas cabíveis. Nos primeiros dias daquele abril, as prisões

tinham caráter preventivo contra eventuais perigos comunistas que pudessem estar rondando a

capital paraense. E o foco era o movimento estudantil universitário. Assim se justifica a

invasão da UAP e consequente prisão de muitos daqueles estudantes.

Neste momento, apresento também as razões que me motivaram a optar pelos

sujeitos culturais elencados, suas trajetórias de vida, interpretações das experiências

compartilhadas em contato com os tempos de exceção. Cada um destes ocupava um lugar

social específico à época do Golpe Civil-Militar e, por ocasião da Ditadura Civil-Militar

instituída, tiveram suas trajetórias de vida borradas pela experiência dolorosa da prisão.

Assim, as narrativas acionam memórias de experiências a partir das perseguições e prisões

consideradas como divisores de águas para o fazer social de cada um.

Para os sujeitos culturais Pedro Galvão, Seráfico de Carvalho, Paes Loureiro e Ruy

Antonio Barata, o ponto de partida das memórias sobre os tempos de Ditadura Militar na

Amazônia Paraense, além das detenções, estão centrados em duas fatídicas experiências. A

primeira, em 30 de março de 1964, no desbaratamento do I SLARDES (I Seminário Latino

Americano de Reforma do Ensino Superior), na Faculdade de Odontologia, na Praça Batista

Campos. Na ocasião, um grupo de jovens armados de porretes e a Polícia Militar invadiram e

causaram uma briga generalizada provocando o desfecho precoce do evento.

A segunda experiência comum a todos os memorialistas deu-se dois dias depois, na

noite de 1º de abril. Com o Golpe civil-militar já assegurado no Rio de Janeiro e, em Belém,

Orlando Ramagem (General do CMA – Comando Militar da Amazônia) subsidiado pelo

Coronel Jarbas Passarinho, também assegurava o êxito da empreitada golpista em terras

amazônicas. Nesta mesma noite, a UAP (União Acadêmica Paraense) foi invadida pelas

Forças Armadas. Desta vez, todos os estudantes foram agredidos e detidos. Nesta investida do

Exército o estudante de Direito José Seráfico de Carvalho levou uma bofetada do Coronel

José Lopes de Oliveira – vulgo “Peixe-Agulha”, apelido dado em homenagem ao nariz

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adunco. Esta última violência que chegou às vias de descontrole do uso da força não escapou

incólume aos registros da memória.

As duas cenas, ao ser narrativizadas em diferentes tons e abordagens demonstram o

quão significativos foram os primeiros contatos dolorosos destes narradores com as prisões do

Golpe e Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense.

Na II Parte, intitulada “NÃO ME PRENDERAM, NÃO APANHEI E NÃO

MUDEI DE IDEIA”, destaco elementos que permitem conhecer as identidades dos sujeitos

que, apesar de vivenciar todas as dores do golpe e Ditadura Civil-Militar, não chegaram a

experimentar a prisão. São eles: Alfredo Oliveira, André Avelino da Costa Nunes, Cláudio de

Souza Barradas e Dulce Rosa de Bacelar Rocque. Apesar do cárcere não compor diretamente

suas experiências vividas, tais sujeitos apresentam memórias eivadas de pesarosas

recordações.

O subtítulo acima está inspirado no texto de André Costa Nunes, do livro de

memórias “1964. Relatos subversivos”. Julguei oportuna a escolha da frase para intitular a

segunda parte desta dissertação pelo fato de Nunes apresentar toda a carga negativa do que

havia sido a notícia do Golpe Civil-Militar, nos dias 1º e 02 de abril, quando ainda estava em

Santarém (PA), à serviço do Banco de Crédito da Borracha. Nunes se esforça para narrar a

fuga daquela cidade para Belém (PA). Por ser desconhecida era também perigosa para sua

integridade em dias de caça a comunistas e a capital, apesar de estar mais próxima da

vigilância ostensiva, era terreno conhecido e, portanto, com maiores facilidades de ação. O

texto foi narrado com tentativas de traços cômicos. A prosa flui facilmente da caneta de

Nunes. Os sorrisos durante a leitura acontecem em vários momentos. Por isso mesmo, pelo

esforço em transmitir uma ideia de tranquilidade, compreendi naquela escrita o medo (ou

“cagaço”, como prefere Nunes), ânsia por liberdade, sede de justiça, necessidade de expressão

política e cultural, como únicas chances para não ser preso. E foram estas também as

sensações compreendidas nas entrevistas dos outros três narradores que compõem esta parte.

Daí a escolha para tal subtítulo. Nenhum foi preso, nenhum apanhou, nenhum mudou de

ideia, mas todos estavam acorrentados ao mesmo valor simbólico do Golpe civil-militar.

Pari passu, apresento traços de suas identidades justificando-os como sujeitos

culturais. Suas escolhas políticas, com exceção do padre teatrólogo Cláudio Barradas,

recaíram sobre o Partido Comunista Brasileiro. Apesar disto, há fortes diferenças de percursos

trilhados.

Na III Parte, sob o título de TÁTICAS E SENTIMENTOS DE RESISTÊNCIAS,

dedico-me a mapear sentimentos evocados, colhidos, construídos e lembrados pelos sujeitos

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34

culturais ao longo do processo ditatorial. Sob a batuta metodológica e interpretativa da

História Oral, analisei os sentidos destas sensações captadas a partir das narrativas dos

entrevistados. Para que isto fosse possível, coloquei em prática uma técnica de entrevistas

com dois pressupostos básicos: primeiro, ao entrar em contato via e-mail ou telefone, já

adiantava meus interesses e situava o tema de pesquisa. Com isto, a segunda etapa da

entrevista se despia da camisa de força de um roteiro pré-estabelecido de perguntas, pois, pelo

primeiro contato, o entrevistado já sabia quais meus interesses naquela entrevista e,

concomitantemente, a memória dele já havia sido acionada para que os fatos a serem narrados

estivessem com textos previamente esboçados na memória para serem “contados”.

Com esta estratégia de captura de memórias vários sentimentos afloraram. Observei-

os a partir de testas franzidas, braços cruzados, pernas balançando, sorrisos, queixos erguidos,

peitos à frente, tom de voz alterada, corpos tesos, sisudez. De outra forma, analisei

performances e, assim, compreendi como os sentimentos presentes na memória se

materializavam por meio do corpo e língua. Mais: compreendi o golpe e Ditadura Civil-

Militar na Amazônia Paraense por um enfoque ainda não explorado pela academia regional.

Aí reside uma contribuição desta dissertação para nossa história.

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Narradores e Narrativas

Vai passar nessa avenida um samba popular / Cada paralelepípedo da

velha cidade essa noite vai se arrepiar / Ao lembrar que aqui passaram

sambas imortais / Que aqui sangraram pelos nossos pés / Que aqui

sambaram nossos ancestrais / Num tempo página infeliz da nossa história,

/ passagem desbotada na memória / Das nossas novas gerações / Dormia

a nossa pátria mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / Em

tenebrosas transações / Seus filhos erravam cegos pelo continente, /

levavam pedras feito penitentes / Erguendo estranhas catedrais (“Vai

Passar”, de Chico Buarque e Francis Hime, 1984)

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Os letristas Chico Buarque e Francis Hime bem tangenciaram o “tempo infeliz de

nossa história” ao mencionar a pátria subtraída de filhos por vagar cegos e errantes pelo

continente. Poeticamente, mas presos a um passado recente de censuras, exílios, autoexílios,

prisões, torturas, mortes, Buarque e Hime têm vincadas as recordações da Ditadura Civil-

Militar em suas trajetórias.

Na mesma esteira dos poetas, a expressão “longa noite” carrega a responsabilidade

de dar conta das penumbras e sofrimentos das memórias do período ditatorial que assolaram o

país desde 1964 até março de 1985. Neste momento da história brasileira, inúmeros

dissidentes políticos “desapareceram” da cena política e deixaram de ser incômodos para os

militares e civis apaniguados pelo regime. Segundo o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos

Políticos, há 376 mortos e “desaparecidos” no Brasil, desde 1964, sendo que cabe às famílias

o ônus da prova para que o Estado se sinta obrigado a investigar e punir os responsáveis por

tais mortes e desaparecimentos.7 A legislação no Brasil ainda não avançou nesta seara por

puro descompromisso dos legisladores, mesmo com a existência de organizações não

governamentais interessadas em fazer justiça ou, pelo menos, encontrar culpados.

Os depoentes desta dissertação, ao longo das décadas de Ditadura Civil-Militar

sabiam muito pouco a respeito dos excessos e autoritarismos de seu próprio tempo. Mesmo

assim, os rumores e experiências vividas na Amazônia Paraense eram suficientes para semear

medos e angústias quando se percebiam em situações de embate diante do poder instituído.

Ao mesmo tempo, não permaneceram inertes ao sabor dos acontecimentos. Estiveram

presentes em epicentros de atividades cujos cunhos direta, ou indiretamente, tensionaram as

relações de forças com o poder instituído pelos civis e militares adeptos ao golpe e à ditadura.

Diante disto, neste momento da dissertação trago à tona atores sociais que, na

condição de contemporâneos aos tempos de Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense

imprimiram atitudes, táticas, ardilezas em confronto com o poder político.

Dentre a vasta e crescente rede de sujeitos culturais emergentes das penumbras

apresentarei os mais representativos para esta análise sobre os tempos de censura e repressão

na Amazônia Paraense. O critério para pertencer a este rol foi a produção de artimanhas de

resistências não só naqueles fatídicos dias de abril de 1964, mas o conjunto de feitos ao longo

dos vinte anos de ditadura militar, bem como os vinte e oito anos posteriores ao final deste

7 Dentre os vários organismos não governamentais responsáveis por divulgar e denunciar listas de desaparecidos

políticos, destaca-se o Centro de Documentação Eremias Delizoicov e a Comissão de Familiares dos Mortos e

Desaparecidos Políticos. O mesmo disponibiliza nomes em ordem alfabética, data dos desaparecimentos e

acompanha os processos de investigação junto ao Ministério Público Federal. Disponível em

http://migre.me/905L3 - acessado em 10 de março de 2012, às 21h.

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37

período. Ou seja, são agentes históricos, cujas produções artísticas e intelectuais foram

vincadas para sempre pelas experiências vividas, durante os primeiros momentos do golpe e

regime civil-militar.

Estes sujeitos foram amealhados, principalmente, por sugestão da obra de memórias

“1964. Relatos Subversivos. Os estudantes e o golpe no Pará”, lançada em 2004, em Belém.

Com somente uma edição, todo o material rapidamente se esgotou das livrarias belemenses.

Naquela altura, um dos organizadores, Pedro Galvão de Lima, pretendia deixar em evidência

os quarenta anos de golpe. A julgar pela rápida venda de toda a tiragem, o assunto revelou-se

de interesse público.

Pela condição de professor de História, a temática já provocava em mim

sensibilidades que exigiam mais conhecimentos. Seduzido e já em campo para iniciar a

pesquisa desta dissertação, iniciei a lista de possíveis entrevistados. Optei pelo rol de

narradores do livro “1964. Relatos subversivos”. Assim, André Costa Nunes, Pedro Galvão de

Lima, José Seráfico de Carvalho, João de Jesus Paes Loureiro e Ruy Antônio Barata foram

entrevistados para esta escrita. Mas como em toda pesquisa de campo, tive dificuldades em

arrebanhar os demais memorialistas de “1964. Relatos subversivos”. Por exemplo, Ronaldo

Barata faleceu em 2008; já com Roberto Cortez e Isidoro Alves não pude fazer contato em

tempo hábil, mesmo com os esforços em mapear possíveis amigos que pudessem estabelecer

pontes para chegar até os mesmos.

Apesar destes contratempos, a pesquisa me oportunizou tomar conhecimento de

outros personagens dos tempos de Ditadura Civil-Militar, todos ansiosos por emergir para a

historicidade. Então, somando aos autores de “1964. Relatos subversivos”, selecionei Dulce

Rosa de Bacelar Rocque, Cláudio Barradas e Alfredo Oliveira para compor este texto.

Pedro Galvão, apesar da agenda sempre ocupada pelo ofício de publicitário foi, como

os demais entrevistados, bastante receptivo e simpático com a causa desta dissertação.

Recebeu-me em sua agência “Galvão Publicidade” com muita cortesia. Descobri que segue

“cometendo poemas” 8. Alguns engajados e bem escritos, outros, talvez segundo modéstia,

“sem grande senso estético”. De todo modo, sua presença nesta dissertação é necessária pela

importância construída desde os tempos em que foi Presidente da União Acadêmica Paraense

(1964), militante da Ação Popular e, consequentemente, cumpria o perfil de “comunista frio e

8 Pelo contato que tive com o pensamento de Pedro Galvão de Lima, depreendi que usou várias vezes esta

expressão para externar a ideia de poemas não como apenas joguetes de palavras, em arrumações de métricas e

rimas. Mas como fatos com fortes implicações no espírito de quem os escreve e lê. Portanto, “cometer poemas” é

influir diretamente nas atitudes e posturas de vida.

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38

calculista”, como foi acusado em interrogatório na Quinta Companhia das Guardas, em abril

de 1964.

Ruy Antonio Barata, médico residente na cidade de São Paulo, mesmo sendo um dos

memorialistas de “1964. Relatos subversivos”, não constava inicialmente na lista pelo fato de

morar em São Paulo, região distante da Amazônia Paraense. Seu depoimento insere-se nesta

dissertação por uma feliz coincidência. Visitou sua mãe, Senhora Norma Barata, em Belém,

no mês de agosto de 2011. Como dias antes eu havia localizado seu contato, tratei de informá-

lo sobre a existência da pesquisa sobre os tempos de exceção. Respondeu-me amistosamente e

com entusiasmo da possibilidade em ajudar-me na empreitada. Pela identidade calçada da

influência do pai (Ruy Paranatinga Barata) e avô (Alarico Barata), este sujeito imprimiu sua

participação ao movimento estudantil naqueles anos ditatoriais e, consequentemente, galgou

degraus na maturidade política e engajamento maior no processo de resistências. Concedeu-

me duas horas de relatos divididas em duas ensolaradas tardes na sala da residência de sua

mãe, no bairro do Umarizal, em Belém (PA).

Quanto a João de Jesus Paes Loureiro, sua presença se justifica por ter sido o

primeiro a sentir os tentáculos da repressão antes mesmo do dia 1º de abril, de 1964. Seu livro

de poema “Tarefa”, a ser lançado nos dias posteriores, teve a edição apreendida no dia 30 de

março de 1964. Sua primeira obra de porte não teve a chance de nascer porque foi cruelmente

abortada. As marcas desta violência estão sangrando ainda hoje. Este talvez seja o fato que o

diferencie dos demais narradores. Foi o mais eloquente em demonstrar suas memórias de dor

ao trazer à baila o local da prisão em abril de 1964. Junto com as palavras ditas, Paes Loureiro

foi o que mais se manifestou com a linguagem corporal. Franzia sua testa, balançava as

pernas, cruzava e descruzava os braços. A inquietação foi a tônica da performance, deixando

entrever rancores e ressentimentos ao tangenciar cenas ainda fortes em suas lembranças, tal

qual o momento em que o instiguei a pensar na Quinta Companhia das Guardas como o

espaço de recreação e lazer que ocupa hoje em dia ao compor o Complexo Turístico Feliz

Lusitânia. Em depoimentos a emissoras de TV, mencionou seu mal estar por não haver ali

menção ao fato de aquele espaço ter sido utilizado como masmorra para aprisionar estudantes

à época do regime.

Meses após as entrevistas percebi dois elementos para compreender aquela postura.

Primeiro, sua inexperiência política no momento do Golpe Civil-Militar. Com isso, as prisões

foram bem mais duras do que, por exemplo, foram para os mais politizados José Seráfico de

Carvalho e Ruy Antonio Barata (ambos do PCB). Segundo, atualmente tem como projeto

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39

político ser percebido na cena acadêmica como um militante que, apesar de tudo, é

sobrevivente daquela conjuntura.

Hoje, na condição de professor universitário e ex-secretário de Educação e Cultura

do Estado do Pará, lançou em 2011, um romance – seu primeiro trabalho que não tem a poesia

como epicentro criador – intitulado “Café Central. O tempo submerso nos espelhos”. Neste

livro traz suas recordações sobre seu cotidiano e rota de fuga quando se deparou com a

sensação de “medo de morrer” nas garras da ditadura.

O médico comunista Alfredo Oliveira, assim como Paes Loureiro, é de longe um dos

mais preocupados em não deixar adormecer as trajetórias de sujeitos resistentes aos

autoritarismos e histórias de lutas no estado do Pará. Foi elencado e entrevistado graças ao

auxílio luxuoso de André Avelino da Costa Nunes Netto. Não fosse a ajuda de Nunes Netto

ao ceder seu número de telefone fixo (não possui aparelho celular por ser avesso a algumas

facilidades da modernidade), este valioso memorialista não figuraria nesta investigação. A

importância de Alfredo Oliveira recai justamente pela imensa capacidade de iniciativa em

compor e registrar as memórias de sua vida e demais camaradas.

No livro de memórias “Cabanos & Camaradas”, lançado em 2010, Oliveira faz uma

cartografia das ações de todos os camaradas do Partido Comunista Brasileiro em terras

amazônicas, suas trajetórias de vida pessoal, número de filhos, nomes das esposas,

importâncias para as táticas de resistência frente à repressão, etc.. O depoimento foi gravado

em sua bela casa, na Avenida José Bonifácio, no bairro de São Braz, em Belém, no mês de

setembro. Na ocasião, recebi valiosos informes sobre datas, nomes, fatos e análises

particulares na perspectiva de um autodenominado ex-comunista ciente dos avanços e recuos

do PCB na Amazônia Paraense. Sua importância como informante factual é incomensurável

para esta escrita.

André Avelino da Costa Nunes Netto, o depoente que “não foi preso, não apanhou e

não mudou de ideia”, como ele próprio alardeia, tem sua narrativa em “Relatos subversivos”

como a mais distante de arremedos intelectuais. Nosso encontro para tratar desta dissertação

aconteceu nos arredores de Marituba, na região metropolitana de Belém. Ao entrevistá-lo,

compreendi o quanto é um sujeito movediço, vivo, repleto de hífens que o colocam e tiram de

identidades construídas em seu fazer histórico. Em duas tardes entrecortadas por chuva forte e

sol a pino, seus depoimentos foram descolados de cronômetros. O tempo empenhado naquela

atividade de ceder relatos pareceu ser mais prazeroso a Nunes Netto do que aos demais

depoentes.

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40

Num jogo de recordações e eventuais esquecimentos, discorreu sobre seu pai, sua

vida nos seringais de Altamira (PA), sobre a juventude tranquila e como passava o tempo

pelas matas e igarapés de sua infância. Saindo dos seringais e Altamira, mostrou como era

visto na condição de estudante interiorano na capital. Com esta narrativa, deu-me pistas para

mostrar-se nos trânsitos identitários. Até que, subitamente, retomou à temática da ditadura

militar. Foi então que compreendi sua astúcia na narrativa: desejava mostrar-se como sujeito

múltiplo, com atuações em palcos e públicos diversos, mas sempre amalgamado pela dor de

“não ter sido” o típico subversivo perigoso e perseguido pelos tentáculos da repressão.

José Seráfico de Carvalho é, sem sombra de dúvidas, o primeiro sujeito a ter sofrido

violência física por parte do Golpe Civil-Militar na Amazônia Paraense. Estava presente na

reunião da UAP, no dia 1º de abril de 1964, que discutia os rumos do movimento acadêmico

quanto às decisões seguintes relacionadas ao golpe em curso. Ao ter a sede estudantil invadida

pela Polícia Militar, José Seráfico foi esbofeteado pelo coronel José de Oliveira, ou “Peixe-

Agulha”. A cena de violência explícita foi recordada em inúmeras passagens do livro “1964.

Relatos subversivos" tornando aquele momento emblemático para o Golpe Civil-Militar.

Foi um dos estudantes a ser preso na Quinta Companhia de Guardas. Sofreu

violência psicológica, ameaças e, por isso, foi citado no rol de subversivos e ameaças à

segurança nacional. Com esta pecha negativa, os amigos se distanciaram, as oportunidades de

trabalho minguaram e Belém se tornou um espaço hostil para sua estada. Diante disto, foi

aconselhado pela amedrontada família a fugir para o estado do Amazonas. Assim o fez. Uma

vez em Manaus, foi fisgado pela mais doce das prisões. Casou-se, teve filhos, fincou raízes.

Chegou a ser professor universitário na Universidade Federal do Amazonas e, posteriormente,

reitor. Hoje, uma das salas daquela instituição recebe seu nome como forma de render-lhe

homenagem pelos préstimos à Educação daquele Estado.

Entretanto, mesmo tendo fincado estacas em Manaus (AM), sua família ainda vivia

na cidade de Belém (PA). Tornou-se um homem em trânsitos constantes pelos rios Negro e

Amazonas até chegar à capital paraense. As viagens eram sempre mediadas pelo medo da

ditadura e pelo amor à família. As voltas à cidade natal eram repletas de saudades, mas a dor

se fazia presente pelas experiências evocadas à memória em cada passeio por ruas, esquinas,

praças da capital paraense. Assim, sua presença nesta dissertação se justifica pelas memórias

vinculadas ao Golpe Civil-Militar.

Claudio Barradas, desde os anos 1950 exercia as funções de autor, diretor e ator

teatral. Somente nos anos 90 ordenou-se padre. Portanto, o trato como padre teatrólogo

Cláudio Barradas na ânsia de dar conta de suas identidades mais latentes. Realizei duas

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entrevistas com o mesmo. Ambas no mês de maio de 2011. Após muito custo para vencer a

barreira de suas desconfianças com entrevistadores, consegui sua anuência. Destilou bom

humor e picardia ao narrar sobre os tempos de enfrentamentos sutis com os censores. Em uma

conversa agradável, não houve preocupações quanto ao tempo.

Pela identidade de teatrólogo, ator e diretor, desde os anos de 1950 até os dias atuais,

foram-lhe possíveis mediações com regime militar a partir das agruras da censura, dos

pequenismos dos censores, das inúmeras e infundadas incursões burocráticas contra a arte

cênica. Mesmo não se alinhando com o pensamento de esquerda que grassava nos meios

universitários nos idos dos anos 1960, foi muitas vezes taxado de “subversivo mental” por

conta da seleção criteriosa dos textos críticos abordados nos palcos.

Em 2002 foi ordenado padre. Sua identidade de teatrólogo, contudo, permaneceu

alinhavada com este novo papel assumido por Barradas. Manteve o status de conceituado

diretor e ator, a ponto de receber uma homenagem rara para sujeitos ainda vivos: o Teatro

Universitário da Universidade Federal do Pará, em 19 de junho de 2009, recebeu o nome de

“Claudio Barradas”. Acomoda ainda a Escola de Dança formando assim um denso complexo

dedicado às artes cênicas na região. Está localizado no bairro do Umarizal, em Belém, em

espaço privilegiado da cidade. Por tudo isto e pelo discurso autorizado da Universidade

Federal do Pará, é possível inferir sobre a importância deste sujeito para o teatro amazônico

desde o início da década de 1960, atravessando a Ditadura Civil-Militar até os dias de hoje.

Dulce Rosa de Bacelar Rocque foi a última narradora a compor esta dissertação. Sua

presença tem dois vetores a serem considerados. Primeiro, o fato de ser mulher é bastante

plausível uma vez que nas escritas acadêmicas sobre os tempos de exceção (1964-85), em

especial a produção de Pere Petit (2003) e Tony Leão (2008), a narrativa feminina não é

privilegiada como fonte. Segundo, após o Golpe Civil-Militar Dulce Rosa agia por corredores

oficiais, festas, instituições, prisões, etc. para arrecadar finanças para o PCB, levar recados,

trocar informações. Sempre elegante pelas belas roupas e joias, cumpria o perfil de filha de

classe média, agindo sem levantar suspeitas e, consequentemente, sem ser taxada de

subversiva. Deste modo, foi responsável pela manutenção financeira e operacional do partido

naqueles primeiros momentos de instalação militar no Pará.

Por conta da exitosa atuação, dos préstimos à causa comunista, Dulce Rosa foi

convidada a complementar seus estudos na União Soviética. Aceitou prontamente e viajou em

1969. Após seus estudos, casou-se com um italiano comunista, constituiu família e fixou

residência na Itália até 2004. Neste período, enviando cartas a embaixadas e jornais, não se

eximiu na luta pela redemocratização do país de origem. Neste sentido, suas memórias são

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incomensuráveis para compreender o Golpe e Ditadura Civil-Militar a partir de uma

perspectiva ainda não experimentada pela academia.

Em todos os depoentes percebi projetos pessoais para tornar públicas suas posturas

políticas desde os tempos de ditadura. Assim, particularidades, que poderiam ser um

amontoado de desconexos retalhos amiúde, forjaram uma manta com fartas e confiáveis

costuras. Contiguamente, as memórias narradas e registradas em áudio e vídeo continham

significados valiosos para compreender as experiências desses sujeitos culturais sobre ações e

reações dos governantes paraenses ao longo do Golpe Civil-Militar. Esta consciência motivou

igualmente todos a me subsidiarem na empreitada desta dissertação.

Por questões de ordem didática para os leitores, utilizei o cárcere como elemento de

distinção entre todos. Divide-os em dois grupos utilizando as prisões de Pedro Galvão de

Lima, Ruy Antonio Barata, João de Jesus Paes Loureiro e José Seráfico de Carvalho. Assim,

apresento estes narradores na I PARTE – “DAÍ PARA FRENTE TUDO FOI CORRERIA

E ATROPELO. OS SOLDADOS ENTRARAM QUEBRANDO TUDO”. A frase é de

Pedro Galvão de Lima em alusão à invasão da UAP, no dia 1º de abril de 1964. Era o

primeiro contato dos narradores com o braço forte do Estado militarizado.

Quanto a Alfredo Oliveira, André Costa Nunes, Cláudio de Souza Barradas e Dulce

Rosa de Bacelar Rocque, compõem a II PARTE – “NÃO ME PRENDERAM, NÃO

APANHAEI E NÃO MUDEI DE IDEIA”. Inspirei-me em André Costa Nunes que, ao

iniciar sua narrativa em “1964. Relatos subversivos”, assim se define pelo fato de não ter sido

alcançado pelo braço ostensivo da prisão. Portanto, neste momento apresento os narradores

que não experimentaram a prisão naquela altura dos acontecimentos. Um adendo é necessário:

Alfredo Oliveira chegou a “sofrer breves detenções”, mas nada comparado aos quatro

narradores da I Parte.

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I PARTE

IDENTIFICANDO OS NARRADORES

As dores da prisão

Só conhece a dor de ser preso, quem já foi preso!

(João de Jesus Paes Loureiro)

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1.1 Pedro Galvão de Lima

Foi impedido de pronunciar o seu discurso, por pressão militar. Num gesto

de solidariedade, o paraninfo, Prof. Dr. Edgar Olintho Contente, recusou-se a

pronunciar o seu, o que viria a fazer somente na festa dos 25 anos de

formatura da turma. Com os caminhos profissionais bloqueados em Belém,

em janeiro de 1970 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde, até 1983,

trabalhou em grandes agências de publicidade. Em 1983 retornou a Belém e

fundou a Galvão Propaganda. É o profissional de criação paraense mais

premiado de todos os tempos, com prêmios nos Festivais de Cannes, Nova

Iorque, Londres, no Clio Awards e no FIAP – Festival Ibero-Americano de

la Publicidad, além das premiações brasileiras, como o Profissionais do Ano,

da Rede Globo, o Prêmio Cliente e o Voto Popular, o Galo de Gramado, o

Fest Rio e o Colunistas. Foi Presidente do Clube de Criação do Rio de

Janeiro (1978/79), Conselheiro do CONAR – Conselho Nacional de Auto-

Regulamentação Publicitária (1979/82), professor da Escola Superior de

Propaganda e Marketing (1976/79). Foi eleito Publicitário do Ano em 1988 e

em 2000 pelo júri do Prêmio Colunistas Norte/Nordeste, a mais tradicional

premiação da propaganda brasileira. É o atual Presidente da ABAP –

Associação Brasileira de Agências de Publicidade, Capítulo do Pará.

Publicou em 1985 a plaquete com o poema “Velho Pedro vai para casa” e,

em 2003, o livro “Nossos Primeiros 20 Anos / Nossos Últimos 20 Anos”.

Em 2008, o livro de poemas “Bissexto”. Membro Associado da Academia

Paraense de Ciências. 9

Ao iniciar uma narrativa, o narrador ordena suas memórias de modo a encadear um

processo lógico para o tempo presente. Assim, o passado pode dar conta de criar condições

mínimas de convivência com o momento da narrativa (THOMSON, 1997). De posse deste

9 A breve biografia de Pedro Galvão foi produzida em 2004 por ocasião do lançamento do livro “1964. Relatos

subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. A biografia de cada autor do livro aparece logo no final de cada

narrativa.

Pedro Galvão de Lima.

Foto: Jaime Cuéllar Velarde, em 25 de maio de 2011.

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ensinamento, entrevistei e li as memórias de Pedro Galvão, em “1964. Relatos subversivos”.

Constatei a necessidade de Galvão em deixar explícitas duas cenas ocorridas no ano de 1964,

justamente o desbaratamento do I SLARDES (Primeiro Seminário Latino Americano e

Democratização do Ensino Superior), por parte dos “lenços brancos”; e, a invasão da UAP,

por parte da Polícia Militar. Vejamos que cenas são estas.

A primeira começa com um insulto no auditório da Faculdade de Odontologia do

Pará. Junto com o insulto vieram socos, safanões, pancadas. Uma briga generalizada. Desta

forma truculenta estava encerrado o I SLARDES, sediado em Belém (PA), em 30 de março de

1964, com representantes de vários países das Américas. Aquela noite tivera início pomposo e

deveria ter honroso encerramento para a acadêmica amazônica em prol das discussões sobre a

temática do ensino superior de qualidade para o Brasil e toda a América Latina. Mas frases

gritadas a plenos pulmões, sem pudores e repletos de raiva e razão, destoavam da solenidade e

ocasião. Pelo menos na concepção política de Mickey Lobato – autor dos insultos, segundo o

trecho abaixo – e dos demais outros jovens que o seguiam com lenços brancos amarrados no

pescoço havia coerência naquela ação.

Mickey entrou berrando palavrões, interrompendo o discurso do

representante da Nicarágua, se esta miserável memória não me trai. O braço

do muchacho parou no ar, em meio a uma frase de efeito. Ele ficou

gaguejando algo como “em nombre de los pueblos latino-americanos”,

enquanto Mickey, Leonardo Lobato e outros rapazes – entre eles um garoto

de 17 anos que mais tarde passei a admirar, chamado Paulo Chaves

Fernandes – gritavam “vamos acabar com esta merda, bando de comunas

filhos da puta”. Lenços brancos no pescoço, para não serem confundidos

conosco pela PM, eles avançavam em direção à mesa onde, na posição mais

vulnerável, a mosca do alvo, eu presidia a sessão. E aí o pau quebrou

(GALVÃO, 2004, p. 21).

Naquela noite calorenta do inverno amazônico, os “lenços brancos”, como ficaram

conhecidos aqueles jovens por amarrar lenços brancos no pescoço, protagonizaram uma cena

inolvidável para a memória social dos jovens presentes naquele I SLARDES, em especial

para Galvão. Outrossim, os lenços não tinham a função de ornar, mas identificar os filhos de

fazendeiros do Marajó, conforme explica abaixo sobre o que seriam tais personagens:

Mas é bom dizer que a rapaziada da direita agiu também estimulada pelos

pais, apavorados com o fantasma do comunismo. Eram filhos de fazendeiros

do Marajó, os oligarcas de então, e suas fazendas, sem reforma agrária e sem

nada, entraram em decadência e empobrecimento, apesar ou por causa do

golpe que ajudaram a perpetrar (GALVÃO, 2004, p. 23).

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46

Então, quem eram os jovens estudantes protagonistas daquela cena? De um lado,

filhos e representantes de latifundiários marajoaras, temerosos aos ideais socialistas e

pertencentes a uma direita extremada; de outro, jovens universitários seduzidos por

sonhos/utopias de uma América livre, tal qual pregava Che Guevara logo após o sucesso da

Revolução Cubana. 10

A invasão, que era a materialização de um embate já existente nos corredores e salas

de aulas das Faculdades de Direito e Medicina entre os estudantes, deveria ter acontecido em

sincronia com a ação da Polícia Militar do Estado, cuja incumbência seria agredir e prender

aqueles que não tivessem lenços amarrados no pescoço. Por alguma feliz razão, os “lenços

brancos” invadiram antes do momento combinado evitando um choque com proporções

desastrosas caso a PM estivesse junto, conforme o trecho abaixo:

Poderia ter sido uma carnificina, alguém me contou, talvez exagerando,

alguns anos mais tarde. E só não o foi porque houve uma precipitação. Era

para ser uma ação sincronizada entre os invasores, filhos de fazendeiros em

sua maioria, arrebanhados e insuflados pelo radialista Avelino Henrique dos

Santos, e uma força da Polícia Militar do Estado. Por sorte, um daqueles

rapazes, o Mickey Lobato, esporeado pelos nervos, detonou a invasão alguns

minutos antes do tempo. A tropa só chegaria depois, quando já

conseguíramos serenar os ânimos (GALVÃO, 2004, p. 21).

Foi assim que uma reunião de universitários de vários cantos da América Latina

transformou-se numa grande arena de lutas que poderia ter trazido piores consequências caso

a invasão tivesse sido devidamente executada conforme o combinado com a PM. Mais do que

uma arena de lutas, o episódio passou a ser um trágico marco motivador das memórias de

Galvão envolvido naquela atmosfera de efervescência política na Amazônia Paraense.

Dois dias depois, aconteceu a segunda cena em evidência na narrativa de Galvão. O

fato que marcaria sua trajetória de vida e daria novos rumos para sua atuação sociopolítica.

Em 1º de abril daquele mesmo ano, a UAP (União Acadêmica Paraense) foi invadida em

decorrência da “ação pedagógica” para ensinar Belém sobre quem eram os novos mandatários

do poder. O fato fora urdido naquelas primeiras horas da madrugada de 1º de abril, à surdina.

Retrocedo um pouco antes de apresentar estas memórias de Galvão.

Tal iminência de Golpe Civil-Militar por parte de ideias comunistas era,

principalmente a partir de 1961, constantemente insuflada pela grande imprensa amazônica.

10 Cabe lembrar que a sedução por Che Guevara, Cuba, 1959, se limitava tão somente aos ideais de liberdade e

não implicava numa obediência às ações revolucionárias pelas armas. Ao longo da pesquisa de campo para

compor esta dissertação, constatei que nenhum dos entrevistados participou ou comungou da resistência pela via

armada.

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Neste sentido, cabe lembrar o estrondo causado pela Revolução Cubana, em 1959, seguida

dos apaixonados discursos guevaristas incitando jovens do mundo inteiro com possibilidades

de um mundo sem injustiças. Soma-se a declaração de Fidel Castro, em 1961, quanto ao

caráter político ideológico de Cuba: era uma nação Socialista11

. Portanto, o temor à

propagação de ideias revolucionárias comunistas era latente naquele início de década, assim

não se pode atribuir sentidos de pânico injustificado aos golpistas da direita brasileira em

1964.

É neste cenário que se insere Olympio Mourão Filho, Chefe da 4ª Divisão de

Infantaria de Juiz de Fora (MG), tinha ideias forjadas pelo dinamismo da Guerra Fria, com

tendência a apoiar ideais Capitalistas. Temia o Comunismo, mesmo sem entendê-lo à fundo.

Sua consciência agia de acordo com os discursos de Magalhães Pinto, governador de Minas

Gerais. Ou seja, veemente e severo nas posições antirreformistas. Portanto, era um

representante das Forças Armadas inclinado a combater o pensamento de vanguarda que se

instava nas Universidades e alguns setores do Governo Federal, em especial nos

posicionamentos do Presidente da República.

No entardecer do dia 31 de março de 1964, rumou com suas tropas em direção do

Rio de Janeiro. Visava combater as pretensões das Reformas de Base a serem implementadas

por João Goulart. Não agia sozinho, mas como porta-voz de uma expressiva parcela burguesa

e setores retrógrados da Igreja Católica. Ambos viam no Comunismo ameaça potencialmente

iminente. Isso explica a rápida adesão ao Golpe Civil-Militar não só de outros generais, mas

de setores da Igreja Católica e burguesia.

Naquele mesmo momento, as mais altas patentes das Forças Armadas da Amazônia

estavam reunidas na 8ª Região Militar, na Praça da Bandeira. Sob alegada homenagem pelo

aniversário do general Orlando Ramagem, comandante do CMA (Comando Militar da

Amazônia), estavam presentes os representantes da Marinha, Aeronáutica e Exército. Ao

centro das conversas reservadas, Jarbas Passarinho sussurrava frases curtas e secas. Talvez

fosse o local e momento de planejamento das ações a ser executadas nas horas seguintes.

Jarbas Passarinho foi quem intermediou conversa por radioamador entre Ramagem e o QG do

II Exército (SP), sob comando do General Amaury Kruel. Ramagem, pela manhã ainda era

reticente, mas a partir daquela conversa com um dos homens de confiança do esquema de

Jango, por volta das 15 horas do dia 1º de abril, aderiu ao Golpe Civil-Militar.

11 Ver Velarde (2005) no qual analiso a entrevista de Fidel Castro a Frei Betto, em 1961. Na ocasião, Fidel

direcionou os rumos políticos da ilha cubana para o socialismo. Esta atitude desmoronou a relação amigável

entre EUA e Cuba, iniciada em 1959.

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48

Naquele mesmo dia, o Coronel José Lopes de Oliveira – o Peixe-Agulha – recebeu

ordens de prender os “subversivos” que pudessem colocar em risco todo o aparato montado

desde o Centro-Sul até Belém. As cenas narradas pelo próprio Galvão revelam detalhes

grotescos de exagero

Nas janelas da frente da UAP fomos surpreendidos pela chegada

espaventosa da tropa, soldados avançando no marche-marche típico da

ordem unida militar, deitando nas calçadas e no asfalto onde posicionavam

os tripés de suas metralhadoras apontadas contra nós. Daí para frente tudo

foi correria e atropelo, a rapaziada escapando pelos fundos, galgando muros,

varando os quintais vizinhos. Uns poucos se esgueiraram pela porta da frente

e se confundiram com as pessoas na rua. Muitos ficaram encurralados nas

três primeiras salas da UAP (GALVÃO, 2004, p. 19). – grifo meu.

O exagero da ação militar em posicionar tripés de metralhadoras é descabido. Não

havia razões para acreditar numa postura também armada por parte dos estudantes que, tão

somente estavam na UAP munidos de formação intelectual e preocupação com os rumos da

legalidade. Afinal de contas, se em algum momento houve algum indício de reação armada

por parte dos estudantes da UAP nunca foi relatado por qualquer um dos militares à frente do

Golpe Civil-Militar, tampouco foi revelado por quaisquer dos narradores aqui pesquisados.

Desta feita, o uso do exagero na ação militar que tomaria naquela noite pode ser

compreendido como estratégia pedagógica engendrada por Jarbas Passarinho a ser aplicada

aos expectadores daquela triste cena. Passarinho, lançando mão do destempero do Coronel

José Lopes de Oliveira, estava dando mostras da nova situação política que o país iria

apresentar. Talvez naquela noite tenha sido ele um dos primeiros a dar-se conta do momento

histórico em curso.

No momento da invasão alguns elementos precisam ser detalhados. O primeiro deles

é a truculência da ação, conforme o trecho abaixo.

Os soldados entraram quebrando tudo. No comando, o coronel José Lopes de

Oliveira já entrou dando um tapa no rosto de José Seráfico de Carvalho, meu

colega na Faculdade de Direito. Rente a mim voavam pedaços da divisória

de madeira e vidro da minha sala, arrebentados por um soldado a coronhadas

de fuzil. Ergui uma das mãos, gritei “pare” e o soldado parou (GALVÃO,

2004, p. 19).

Se a ordem recebida pelo Coronel “Peixe-Agulha” era tão pura e simplesmente

prender as eventuais ameaças à nova ordem, era necessário entrar “quebrando tudo”? O tapa

no rosto do estudante de Direito, José Seráfico de Carvalho, foi consequência de autodefesa

em detrimento de algum ataque do estudante portando alguma arma? Não, é a resposta para as

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duas indagações. O próprio Galvão, em entrevista concedida em 24 de agosto de 2011, ao

rememorar aquela cena, é categórico em afirmar a atitude violenta como produto do

“destempero” e “descontrole” do Coronel Oliveira. A considerar o silêncio dos demais

narradores sobre este personagem em momentos posteriores ao Golpe Civil-Militar, é crível

que o Coronel Oliveira tenha entrado na história de todos os narradores como o pobre infeliz

destemperado que aparece em cena tão somente para ser um miserável na narrativa. Figurante

covarde a fazer-se presente nesta única lamentável cena. O pior de tudo, comprometido com

os atrasos dos quais o Brasil hoje ainda luta para se livrar, incluindo as injustiças.

Galvão, ao lembrar e selecionar as palavras, frases, expressões para narrar as duas

cenas ocorridas em 1964, age com a consciência que o tempo e a experiência de vida lhe

conferem. Teve sua trajetória de vida vincada pelos acontecimentos daqueles momentos e

justamente por isso lhe é inescapável a necessidade de narrar os dois fatos acima. Com isso,

não somente conta o que lhe aconteceu um dia, mas abre margens para outras interpretações

do que foram os primeiros dias de Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense.

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1.2 Ruy Antonio Barata

Médico, nascido em setembro de 1944, em Óbidos, no Pará. Filho de Ruy

Guilherme Paranatinga Barata e Norma Soares Barata. Formou-se na

faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará em 1968. No

período imediatamente após o golpe militar de 64, desempenhou papel de

liderança no movimento universitário paraense. Liderou o movimento de

ocupação da Faculdade de Medicina em 1968, a FUAP – Frente Unida de

Ação Permanente, criada para coordenar a atividade política e reivindicativa

do movimento acadêmico no momento de crepúsculo da UAP – União

Acadêmica Paraense. Realizou Residência Médica e Pós-Graduação Strictu

Sensu, na área de Nefrologia, na Escola Paulista de Medicina, com a tese

“Ação de Nor-Adrenalina sobre a Liberação da Renina em Rins de Ratos

Artificialmente Ferfundidos”. Foi o preceptor de residentes no Hospital São

Paulo – Escola Paulista de Medicina do ABC Paulista. É coordenador das

atividades assistencialista e de ensino em Nefrologia no Hospital Santa

Marcelina, em São Paulo. No período da ditadura militar foi preso duas

vezes em Belém e duas vezes na cidade de São Paulo, acusado de atividades

subversivas. No ano de 2001, montou em Belém a Clínica do Rim que se

dedica ao tratamento de pacientes renais.

A presença de Ruy Antonio Barata nesta dissertação é emblemática por várias

razões. Destaco duas. Primeiro, é filho do poeta Ruy Guilherme Paranatinga Barata,

destacado militante comunista, deputado estadual. Este contato com o “velho Ruy” conferiu-

lhe uma postura eivada pelos valores políticos do pai. Segundo, quando a influência paterna

foi posta à prova, destacou-se na luta pela redemocratização pela via democrática, recusando a

resistência armada por entender que tal atitude afastaria o PCB das massas. Em abril de 1964,

ainda estudante no segundo ano do Curso de Medicina, na Universidade Federal do Pará,

iniciou sua saga como líder estudantil em diversas ações de solidariedade aos camaradas

Ruy Antonio Barata

Foto: Jaime Cuéllar Velarde, em 19 de agosto de 2011.

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51

presos e, paralelamente, ações políticas de enfrentamento à ditadura, chegando a ser preso

quatro vezes.

Ao ler as memórias de Ruy Antonio Barata em “1964. Relatos subversivos” chamou-

me atenção o fato de ser ele o único que não concluiria o curso superior naquele fatídico ano

de 1964, concluiu somente em 1968. Em seguida, partiu para novos ares na sudeste do Brasil.

Morando em São Paulo por força do ofício, é nefrologista naquela capital, suas

vindas à Belém são raras. Por uma feliz coincidência, ou por providências de Clio, entre os

dias 19 e 22 de agosto de 2011, sob o argumento de rever a família, esteve de volta ao velho

palco político do início de sua jornada. E como dias antes eu havia estabelecido contato via e-

mail situando-o sobre os rumos e objetivos desta dissertação foi uma feliz e produtiva obra do

acaso. Neste clima de regozijo com as venturas da pesquisa de campo duas entrevistas foram

gentilmente cedidas justo em duas tardes dos dias 19 e 22 de agosto.

As entrevistas aconteceram por coincidir com uma de suas visitas à sua mãe em

Belém. Foram duas tardes ensolaradas e com típico calor modorrento na capital. Assim, tive a

honra de adentrar na casa onde Ruy Antonio Barata havia sido criado, na Avenida

Generalíssimo Deodoro, no bairro de Nazaré, Belém (PA).

Logo na primeira entrevista, Ruy Antonio Barata revelou-me que aquele ambiente da

entrevista – sala de estar, enfeites, sofás, móveis, quadros – era o mesmo desde os tempos dos

anos 1960. O ambiente havia sido testemunha de reuniões políticas, familiares, conversas

sobre os rumos do PCB na Amazônia. Os envolvidos naqueles colóquios eram, em geral,

Dalcídio Jurandir, Humberto Lopes, Jocelyn Brasil e outros próceres da intelectualidade

esquerdista amazônica. Não posso deixar de mencionar a incomensurável gratidão a Ruy

Antonio Barata por me permitir adentrar naquele “lugar de memória” (NORA, 1993). Talvez

aquela revelação fosse ingenuamente uma mera informação, talvez tivesse sido parte dos

propósitos do próprio Ruy Antonio Barata para dar outros sentidos à entrevista e minha

posterior análise dos dados coletados daquela entrevista.

Ao iniciar a conversa, contrariamente de outros narradores que me investigaram

acerca dos interesses particulares da dissertação, Ruy Antonio Barata foi logo “despejando”

informações, nomes, dados, circunstâncias. Fumando cigarros atrás de cigarros, aparentava

plena ciência dos efeitos políticos desta pesquisa para a compreensão do Golpe e Ditadura

Civil-Militar na Amazônia Paraense. Seu projeto pessoal naquela postura estava aceso como

provavelmente estiveram seus ânimos nos tempos de censura em Belém e São Paulo.

Ao longo daquela leitura, percebi o quanto algumas sensações estavam à flor da pele

na escrita de Ruy Antonio Barata. A primeira delas foi a ânsia em mostrar-se fiel para com as

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52

lutas que o “velho Ruy” vinha travando com o baratismo paraense.12

Tais embates na seara

política haviam colocado aquela família como arquirrival número um dos grupos da direita

conservadora.13

Magalhães Barata era conhecido adversário pela mão de ferro com que

governava o estado. Contrariar suas vontades era assinar uma declaração de guerra. O “velho

Ruy” não se furtava ao enfrentamento e, por consequência, Ruy Antonio Barata não ficara

imune àquele ambiente autoritário de perseguições, discussões, tramas, conchavos e,

principalmente, coragem para aceitar reveses dos circuitos de poder.

Assim, com o Golpe Civil-Militar e as estratégias adotadas pelos coronéis inseridos

na política amazônica pelo peso da farda foram a gota d’água que faltava para uma tomada de

decisão por parte de Ruy Antonio Barata. Tal atitude mudaria drasticamente toda sua

trajetória de vida, pois como ele próprio relata foi impossível permanecer inerte diante da

nova cena política pela qual passava o Brasil. Sobre os primeiros momentos no movimento

universitário, Ruy Antonio Barata relatou:

Em outubro de 1964 passei a integrar os quadros do PCB, recrutado pelo

estudante de economia Manoel Bosco de Almeida, responsável pelo setor

estudantil. O poeta Ruy Guilherme Paranatinga Barata, despojado de seus

empregos, assumiria a direção política do PCB no Pará até o fechamento

total da ditadura.

Os anos que se seguiram seriam marcados pelo ascenso do movimento

estudantil, no qual assumi papel de liderança e dirigente do PCB para o setor

universitário do Pará, até a edição do AI-5, quando me formei médico, em

dezembro de 1968, pela Universidade Federal do Pará (BARATA, 2004, p.

304).

Naquelas alturas, entre 1964-68, na fase em que os próprios militares ainda não

haviam endurecido (mais ainda) o regime, o “velho Ruy” já havia sido preso, libertado,

perseguido e já não mais gozava das prerrogativas de um “cidadão comum” naquele Estado

de exceções. Os novos mandatários na Amazônia o haviam marcado como “subversivo”,

“comunista”, “agitador”, dentre outros adjetivos sempre negativados.

E como os demais narradores de “1964. Relatos subversivos”, veio à tona da

memória, o desbaratamento do I SLARDES. A noite em que estudantes da América Latina

12 Joaquim de Magalhães Cardoso Barata foi interventor no Pará em 1930 até 1934. Com governo nitidamente

populista, aos moldes varguistas, iniciou várias cenas de autoritarismo. Tais atitudes cativaram admiradores e

muitos inimigos. Sua presença na cena política paraense é evidente desde 1930 até 1950-59, quando saiu por

conta de sua morte. Suas práticas no estilo de governar deu origem ao termo baratismo.

13 Jorge Abelém, empresário bem sucedido em Belém (PA), foi citado por André Costa Nunes como membro

convicto da direita. Entretanto, pelos financiamentos desinteressados às movimentações do PCB e pelas ideias

avançadas, é narrado como pertencente da “direita progressista”, diferente do pensamento provinciano de boa

parte das elites mencionadas neste texto.

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53

forma brindados pelo destempero dos também jovens “lenços brancos”. O primeiro contato de

Ruy Antonio Barata com a notícia daquela invasão por parte daqueles violentos rapazes

oriundos das oligarquias agrárias, foi por meio de uma conversa com sua irmã Maria Diva.

Não estava na cena fatídica que quase todos os narradores de “1964. Relatos subversivos”

lembraram ao iniciar suas memórias sobre o período de exceção na Amazônia Paraense. É

também o único depoente que se refere diretamente a este grupo como consequência de um

projeto ideológico doutrinado pela direita. Abaixo, permite maior entendimento ao narrar a

conversa com Maria Diva na noite de 30 de abril, de 1964, no dia do desbaratamento do

SLARDES.

- Mano, tu já sabes da maior? – perguntou minha irmã, visivelmente abalada.

- Estou completamente por fora, respondi.

- Os filhos dos fazendeiros do Marajó invadiram o SLARDES e foi o maior

quebra-pau.

Maria Diva estivera no seminário, com papai. Ela, na condição de membro

do departamento social da UAP, recepcionava os convidados, quando foi

avisada por uma colega da Faculdade de Engenharia que o local seria

invadido pela “direita” com o apoio de “soldados da Polícia Militar e da

Aeronáutica”... A informação era quente.

Em poucos minutos o recinto foi tomado pelo grupo de assalto. Jovens e

robustos rapazes, arregimentados entre os filhos da decadente nobreza

marajoara, transtornados pela raiva, exibiram conhecimento técnico passível

do orgulho de seu instrutor – um oficial de artilharia que faria carreira no

período autoritário que se anunciava.

- Parecia que estavam drogados! Os olhos injetados na face lívida pelo ódio

demonstravam que vinham preparados para arrebentar – relatou Maria Diva.

Munidos de porretes e enfeitados com lenços brancos promoveram um

espetáculo de barbárie, que até hoje deve envergonhá-los (BARATA, 2004,

p. 272-73). – grifos meus.

Pelos grifos é perceptível o quanto aquela cena, mesmo não experimentada in loco,

foi traumática e está em contínua encenação na memória de Ruy Antonio Barata. A invasão

do I SLARDES é narrada por todos os depoentes desta dissertação. Mas o único que percebeu

aquele episódio como fruto de “transtorno pela raiva” ou pelo ódio perceptível nas “faces

lívidas”, foi Ruy Antonio Barata. Não pretendo descartar tais sensações negativas nas atitudes

daqueles jovens de lenços brancos envoltos no pescoço. Afinal de contas, eram filhos de elites

agrárias em decadência econômica. Aviltar o SLARDES podia ter significados de defesa dos

status quo deles próprios e dos pais, como insinua Ruy Antonio Barata.

Todos os demais depoentes desta dissertação ao visitar os recônditos da memória

deram um significado comum à invasão do SLARDES: tratou-se de um episódio motivado

pela desesperança de pais e filhos das elites oligárquicas do Marajó que, ao perder

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patrimônios, atribuíam toda a culpa às tendências sindicalistas do governo de João Goulart.

Não pensa assim Ruy Antonio Barata. Sobre esta temática, lança mão de suas recordações de

um diálogo com o “velho Ruy”, acontecido na noite de 1º de abril de 1964, já com o Golpe

Civil-Militar em curso, ao tratar da invasão da União Acadêmica Paraense e prisão dos

estudantes.

Está na rua um golpe militar maquinado pelos America nos e pelos

reacionários que se sentem ameaçados de perder seus privilégios construídos

sobre a miséria que tu mesmo presencias todos os dias nos porões da Santa

Casa, onde aprendes a tua medicina (BARATA, 2004, p. 275). Grifos meus.

O mesmo diálogo entre pai e filho também mostra as primeiras impressões sobre o

Golpe Civil-Militar em curso. É uma concepção, tal qual pensava o “velho Ruy”, que

compreendia todos aqueles cenários dos últimos dias de março e início de abril como um

evento motivado pela conjuntura internacional. Ou seja, as culpas do desbaratamento do

SLARDES (30 de março) e invasão da UAP (1º de abril) eram do patrocínio do imperialismo

americano. Desta forma, tomando por base este dado, pude compreender que as “batalhas da

memória” (REIS, 2004), em constantes movimentos, estão intrinsecamente ligadas às

identidades construídas pelos sujeitos que dão significados aos eventos passados.

A tese do Golpe Civil-Militar como produto de uma conspiração não é nova.

Publicações no final dos anos 1970 e início de 80, em momentos coerentes com a Guerra Fria,

apontavam a CIA (Agência de Inteligência Americana) como importante agente estrangeiro

com interesses pelo fim da política iniciada por João Goulart, principalmente quando em

1962, criou imposições para empresas estrangeiras remeterem seus lucros para fora do

circuito financeiro nacional. Soma-se ainda o IPES (Instituto de Pesquisas Econômicas e

Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), como representantes dos

interesses imperialistas em terras brasileiras (DELGADO, 2004). O diálogo entre pai e filho

dá mostras, portanto, de fina sintonia com o pensamento urdido pelos intelectuais daquele

contexto. 14

A militância política por parte dos acadêmicos de Medicina, e demais cursos da

UFPA, não iniciou somente por ocasião do Golpe Civil-Militar, em 1964. Já havia

organização estudantil em pleno gozo de suas prerrogativas e estatutos. Nos corredores, entre

uma e outra aula, já se falava em Brech, Sartre, Marx, dentre outros. O Partido Comunista,

14

Além da “teoria conspiratória”, sugerida por Ruy Antonio Barata, Delgado (2004) ainda indica que foram

postos em circulação outros discursos para explicar o processo ditatorial, tais como: “interpretações

estruturalistas e funcionais”, “caráter preventivo da ação civil e militar” e “análises conjunturais de falta de

compromisso com a democracia”.

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55

assim como a Ação Popular e a Juventude Católica tinham fileiras de seguidores. Não

faltavam poetas engajados e atores ensaístas. Nos círculos universitários, as lutas por

melhorias educacionais estavam diariamente na pauta. As críticas – e apoios – ao projeto de

desenvolvimento, despejado no Brasil pelo Presidente Juscelino Kubitschek, pululavam na

Amazônia acadêmica.

Assim, não é descabido afirmar que os sujeitos envolvidos naquele movimento

acadêmico tinham experiências de vida que lhes possibilitavam formação política suficiente

para engajar-se em oposição ao Golpe Civil-Militar quando este acometeu o Brasil. O mesmo

raciocínio pode ser aplicado para justificar a presença de Ruy Antonio Barata nos quadros do

movimento universitário amazônico. Assim, para este sujeito, acrescento à formação política

todo o carinho, respeito, admiração nutrida pela figura do avô – Alarico Barata, advogado de

reputado lastro na defesa dos “mais fracos” –, e pelo “velho Ruy”. Estes fatores certamente

contaram sumamente para aceitar e buscar empenho no papel de liderança universitária.

Participar da luta estudantil foi um projeto de ajustes de contas contra os algozes de

seus amigos e das causas defendidas pelo “velho Ruy”? Esta questão surgiu quando vi a

determinação performática ao enfatizar cada palavra para “desmascarar” os inimigos políticos

do “velho Ruy". Assim, não se tratava de mera recusa ao projeto de governo implantado pelos

militares porque partia de um pensamento direitista retrógrado e avesso a avanços em setores

agrários, administrativos, etc. Mais do que isso, a postura encabeçadora junto ao movimento

acadêmico era reflexo da fidelidade aos valores familiares apreendidos do “velho Ruy” e de

dona Norma; sem descartar a formação intelectual a partir de autores com declínio para o

pensamento progressista, de esquerda, forjada pela biblioteca da família.

Ruy Antonio Barata naquele momento era um jovem convicto pelas necessidades de

mudanças na ordem social? Esta foi outra questão que se postou. No ano de 1964, já conhecia

as agruras das dependências clínicas do estado. A leitura da realidade médica na Santa Casa

de Misericórdia, no início do “túnel de mangueiras” da Avenida Generalíssimo Deodoro, no

bairro do Umarizal, em Belém, era de abandono e desleixo por parte do poder municipal,

estadual e federal, deixou entrever. Aquele ambiente o afetava a ponto de engajar-se numa

cruzada contra os militares cuja finalidade eram as reformas na área da saúde pública? Esta

resposta foi dada em depoimento contundente que não deixa dúvidas. Vejamos

Aos meus olhos de acadêmico, os infectos porões da Santa Casa eram a

manifestação mais grotesca da humilhação de seres humanos e da pobreza

abissal do Pará. Miseráveis indigentes purgavam aos cambulhões naquela

antecâmara do inferno. Deitavam-se em leitos enferrujados cobertos por

lençóis de morim ordinário e vestiam um impiedoso camisão do mesmo

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56

tecido amarrado nas costas por fitinhas de nastro. Eram portadores de

leishmaniose, blastomicose15

, tuberculose, impaludismo, desnutrição,

amebíase, giardíase, parasitoses diversas e outras patologias, de fácil

superação pela aplicação de medidas simples de saúde pública.

A falta de água tratada e mínimas condições sanitárias, determinavam

alarmantes índices de mortalidade infantil cujo símbolo era o desfile diário

pelas ruas da cidade de enormes carros fúnebres brancos envidraçados, à

maneira de redomas caprichosamente decoradas, para o enterro dos anjinhos.

O diagnóstico mais frequente na Santa Casa era Síndrome Anêmico

Parasitário, expressão cunhada pelos esculápios paraenses para designar uma

mistura de desnutrição proteica, redução dos desenvolvimentos físico-mental

e anemia produzida por verminose. Inadmissivelmente, não havia leite para

as crianças pobres. Restava-lhes matar a fome com mingau de carimã

(farinha de mandioca isenta de proteínas). Morriam aos borbotões: opados e

buchudos. E nasciam primitivamente sem cuidados médicos. Os versos do

poema “O Nativo” do velho Ruy aí cabiam como luva: “E nascem porque

nascer faz parte da emboscada” (BARATA, 2004, pp. 275-76). – grifo meu.

O depoimento acima é emblemático pela metáfora elaborada a partir dos “infectos

porões” vivenciados por ele e pelos doentes na Santa Casa de Misericórdia. Nesta construção

de Ruy Antonio Barata, é possível ver o Estado do Pará como representativo daquele espaço

fétido e em decomposição. A fala do depoente permite ainda vislumbrar a pobreza, péssimas

condições de vida e dificuldades de acesso ao exercício da cidadania para a maior parte da

população. Ao citar as doenças, Ruy se apressa em mostrar “parasitas” habitando e sugando a

vida dos doentes. Com isso, é bem provável que a narrativa tenha o interesse em perceber a

classe política da Amazônia Paraense não só como responsável pela má administração, mas

como causadora dos males que afligiam o estado.

Ruy Antonio Barata, no auge de sua indignação, analisa a cultura gastronômica

amazônica ao acusar os “mingaus de carimã” como responsáveis por uma sociedade “mal

nutrida”, “faminta”. Novamente é preciso adentrar nesta seara partindo da premissa de que o

depoente fala por metáforas médicas. Se assim nos propusermos a fazer, posso depreender

que as “proteínas ausentes” no mingau sejam as ideias, críticas, posturas políticas já

praticadas em outros circuitos culturais e, por estas bandas, ainda mal ensaiadas ou sequer

assinaladas nas práticas e discursos de nossas gentes.

O que faltava ao povo para melhor nutrir-se? Estavam famintos de quê? Penso que os

ouvidos atentos de Ruy Antonio Barata nas salas de reuniões – algumas secretas, outras não –

do “velho Ruy”, os olhos investigativos nos porões da Santa Casa de Misericórdia, nas

15 sf (blasto+micose) Med Doença produzida por Blastomicetes. B. brasileira, Med: infecção com Blastomyces

brasiliensis, que começa como úlcera nos tecidos bucais e se estende à cútis adjacente, às amígdalas, aos vasos

linfáticos gastrintestinais, ao fígado e ao baço; também chamada blastomicose sul-americana. Extraído de

http://www.dicio.com.br/blastomicose/ - acessado em 10.04.2012

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57

participações e audições de Conselhos Universitários – a ponto de encabeçar depois o

movimento de ocupação da UFPA, descrito na terceira parte desta dissertação –, são

prováveis direções a serem trilhadas para compreender o que este sujeito “medicaria” aos

“doentes e famintos”. Inegavelmente estava diante de mim um depoente ávido por mostrar

suas diversas facetas identitárias: médico, comunista e, acima de tudo, um insatisfeito cidadão

com os rumos administrativos da cidade e da região.

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1.3 João de Jesus Paes Loureiro

Nasceu em 1939, no Pará, em Abaetetuba, onde iniciou seus estudos na

escola pública. É professor de Estética na Universidade Federal do Pará.

Mestre em Teoria da Literatura e Semiologia da Cultura na Sorbonne, Paris,

França. A partir de 1983, esteve Secretário de Educação e Cultura de Belém,

Superintendente e criador da Fundação Cultura de Pará Tancredo Neves,

Secretário de Estado da Cultura e Presidente e criador do Instituto de Artes

do Pará. Expôs na X Bienal de São Paulo poemas visuais. Participou com

poema-objeto da mostra A Vanguarda Visual Brasileira – 50 anos depois da

Semana da Arte Moderna, organizada por Roberto Pontual, para a Galeria

Collectio / SP. Prêmio Nacional de Melhor Livro de Poesia, em 1984, pela

Associação Paulista de críticos de arte, com o livro Altar em Chamas. Suas

obras poéticas mais recentes são Cantares Amazônicos, Pentacantos,

Romances das Três Flautas – edição bilíngue, português e alemão – O Poeta

Wang Wei (699-759 a.d) na Visão de Sun Chian e João de Jesus Paes

Loureiro – edição bilíngue, chinês e português. Iluminações / Iluminaturas,

traduzido para o japonês por Kikuo Furuno e ilustrado por Tikashi

Fukushima – edição bilíngüe, japonês e português – publicados por Roswita

Kempf Editora / SP. Gesãnge dês Amazonas, edição alemã, pela Editora

DIA de Berlim, 1991. Cantares Amazônicos, edição italiana, L’Aquila,

1990. Estética da Arte, obra didática, Altar em Chamas e outros poemas, O

Ser Aberto e Cultura Amazônica – Uma Poética do Imaginário (Tese de

Doutoramento, publicada no Brasil, pela Cejup/Belém, Escrituras / SP, e em

Portugal, pela Íman Editora), A Poesia Como Encantaria da Linguagem,

editado pela Cejup, em 1998 / 99. O Azul e o Raro pela Violões da

Amazônia / PA, e Pássaro da Terra, pela Escrituras Editora / SP. Em 2001,

Obras Reunidas, pela Escrituras / SP, Prêmio Pine de Texto. Em 2002, Au-

delà Du méadre de ce fleuve (Além da curva daquele rio), pela Actes

Sud/France, edição em língua francesa, ainda sem publicação no Brasil. 16

16 A breve biografia de João de Jesus Paes Loureiro foi produzida em 2004 por ocasião do lançamento do livro

“1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. A biografia de cada autor do livro aparece logo no

final de cada narrativa. A omissão da informação do Doutorado em Sociologia da Cultura, obtido em Paris-

Sorbonne, França, em 1994, é de responsabilidade do próprio.

João de Jesus Paes Loureiro

Foto: Jaime Cuéllar Velarde, em 03 de março de 2011.

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Poeta, folclorista, ensaísta e dramaturgo. Esses são alguns dos adjetivos que se pode

atribuir a Paes Loureiro. Nascido em Abaetetuba, cidade paraense situada à margem do Rio

Tocantins, em 23 de Junho de 1939, cursou a Faculdade de Direito e a Faculdade de Letras,

Artes e Comunicação, na Universidade Federal do Pará. De 1964 até 1976, em decorrência de

sua poesia, militância política e ideias democráticas, foi perseguido e várias vezes preso pela

ditadura militar, sofrendo torturas, graves perseguições e privações de oportunidades

profissionais.

Este sujeito cultural inicia sua narrativa a partir de uma perda irreparável. Sua

trajetória de vida, sucesso acadêmico, viagens internacionais, publicações de suas obras em

diversos idiomas, cargos públicos ligados à Cultura no estado do Pará, casamento, círculo de

amizades... Tudo isto está vincado pela apreensão e destruição do livro “Tarefa” que seria

lançado em 30 de junho de 1964, em plena reunião do I SLARDES, com sessão de autógrafos

para o dia 03 de abril, no momento de encerramento do dito evento. O evento de sua prisão ao

ser narrado também é carregado de dor, medo, tensão nas memórias deste narrador. Então a

apreensão da edição do “Tarefa” e sua consequente prisão sob a acusação de “subversivo”

serão inicialmente pontuados como as cenas que mais carregam implicações para a trajetória

de vida.

Em depoimento prestado em 03 e 30 de março de 2011, Paes Loureiro apresenta as

razões que justificam o profundo pesar repousante sobre seus discursos por ocasião da

apreensão da edição do “Tarefa”.

Essa poesia própria da época. Uma poesia experimental, mas que tinha um

cunho social, político. Além dos poemas de temas líricos também. Esse tipo

de poesia contida no Tarefa não havia no Brasil. Havia os chamados poemas

engajados. Digamos assim, mais simples de cunho político. Mas um livro

inteiro com temas trabalhados formalmente, mas com conteúdo social,

político, não havia. Então eu suponho que seria um grande momento de

lançamento como autor. Até porque a UNE daria grande repercussão aos

livros que fossem editados dentro dessa linha. E o meu era o primeiro. Então

quer dizer a frustração que isso me deu. O impacto espiritual foi muito

grande e foi algo que eu acho que eu nunca perdi. Aquela dor de ter perdido

aquele primeiro livro. E tudo o que significava para mim, para época, para os

meus ideários e tudo mais (Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de

2011).

No início de 2011 busquei contatos que me aproximassem deste sujeito cultural.

Numa rápida varredura pela internet achei seu e-mail. Com o primeiro contato via e-mail ele

sugeriu o telefônico. Este fato me mostrou sua disponibilidade em ajudar um mestrando em

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60

fase inicial de pesquisa. Prontifiquei-me para aceitar qualquer sugestão dele, por isso não

houve contratempo quanto ao local ou horário: a primeira reunião fora marcada para o dia 03

de março, às 16 horas, em seu apartamento. Procurei ser pontual.

Adentrei na Av. Serzedelo Correa e avistei o Edifício Augusto Araújo, entrei. A cena

seguinte foi afortunada. O porteiro pediu-me um favor: que entregasse um pequeno embrulho

à esposa de Paes Loureiro, professora Violeta Refkalefsky Loureiro. Aquilo foi interessante,

pois iria prestar um “pequeno favor” à família Loureiro. “Quanta honra”, disse à senhora

Loureiro ao entregar o pequeno pacote. O casal sorriu gentilmente e, sem dar-me conta, já

havia quebrado a solenidade de invasão no espaço do “Outro”. O suor das mãos e o sorriso

nervoso estavam amenizados. O ritual da entrevista havia começado bem e o mérito deposito

à acessibilidade do casal Loureiro.

Ao fazer um breve warm-up17

com livros sobre a temática da Ditadura militar, o

professor Paes Loureiro pôs-se a discorrer ao longo de uma hora e trinta e sete minutos sem

que alguma pergunta fosse feita. Não aparentava pressa alguma e eu, de minha parte, comecei

a impacientar-me com tamanha despreocupação. Mais tarde, ao rever o vídeo da entrevista,

constatei que eu também estava sendo investigado por Paes Loureiro (PORTELLI, 1997). Um

homem gentil, educado e, estranhamente, aparentando inquietação. As pernas balançando, as

mãos cruzadas e o corpo inclinado para frente demonstravam apreensão.

A relação de “visão mútua nas relações sociais” e “igualdade de condições sociais”

haviam sido estabelecidas, por isso não se tratava de alguma barreira em conceder aquele

depoimento. Previamente havia me identificado de forma a ser reconhecido como um

historiador interessado em prestar contas com as lacunas historiográficas dos tempos de

exceção. Loureiro viu em mim um pesquisador ávido em conhecer a história recente de nosso

país por meio de suas memórias. Isso o colocava em posição de privilégio enquanto

informante e sujeito da história do país. Tu podes voltar outra vez. Até porque se tu me ligares

da outra vez eu vejo para ti esse material, disse Paes Loureiro, ao final da entrevista,

comprometendo-se a enriquecer a pesquisa com um material novo e necessário para mim. A

pesquisa, com essa frase, deixava de ser somente uma tarefa acadêmica para mim e o

entrevistado; ganhava outros contornos, tais como cumplicidade, cordialidade, estreitamento

17 Expressão saxônica que significa “aquecimento”. É uma técnica de entrevista sugerida pelo professor

orientador Agenor Sarraf Pacheco que consiste em preparar o ambiente da entrevista com o intuito de favorecer

o exercício de rememoração do entrevistado. Ao iniciar a entrevista levei alguns livros pertinentes a temática da

ditadura militar. Indaguei se conhecia algum. “Pouco leio ultimamente”, disse, mas deu atenção ao “Feliz ano-

velho”, de Marcelo Rubens Paiva. Tateou algumas páginas e disse que havia sido um marco na literatura, ao

contrário de “O que é isso, companheiro?”, de Fernando Gabeira, a quem chamou de oportunista.

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61

de interesses (PORTELLI, 1997). Então o que aquele corpo inquieto queria comunicar?

Aponto possibilidades.

À medida que Loureiro me falava sobre sua prisão, a tortura sofrida, seu medo de

morrer sob a tutela do DOPS, seus projetos de vida frustrados pela intolerância do regime, a

emoção tomava conta do ambiente. A narrativa provavelmente lidava com fantasmas que

rondavam o narrador há quarenta e sete anos. Aquela temática em tela o remetia a um tempo

de dor. Percebi ao final da entrevista, e mais tarde por meio de leituras sugeridas pela

orientação, que a inquietação, nervosismo, inquietude do corpo de Loureiro estavam

diretamente relacionada aos espectros presentes naquela sala.

O primeiro fantasma a fazer-se presente foi o livro “Tarefa”, de autoria do próprio

Paes Loureiro, que não pôde ser lançado na noite de 30 de março de 1964 por ocasião de uma

orquestrada invasão à sede da UAP (União Acadêmica Paraense). Naquela ocasião, a UAP

sediava uma reunião do SLARDES. Havia estudantes de diversos países da América latina.

Paes Loureiro, estudante de Direito, iria aproveitar o ensejo para lançar seu primeiro livro de

poemas, intitulado “Tarefa”. O entusiasmo em vislumbrar o lançamento de seu primeiro livro

veio à memória do depoente antes mesmo de narrar à invasão da UAP.

Tinha feito aqueles cartazinhos. Eu tinha levado um exemplar. Tinha dado

para um jornalista. E algum colega meu pegou lá para algum tipo de

divulgação. Tinha mandado para Abaetetuba, para minha família dois

exemplares. E fui para sessão do SLARDES, aqui na Batista Campos, na

antiga Faculdade de Odontologia levando um exemplar para dar pro Alonso

Rocha. O Alonso Rocha que já era um escritor. Eu já gostava muito dele.

Uma geração bem anterior a minha. É anterior ao Benedito Nunes.

Trabalhava no Banco de Londres nesse tempo e era líder do Sindicato dos

Bancários. Eu tinha dado para ele ler o livro antes da publicação. Para

discutir com ele. Tinha ficado entusiasmado. Incentivou a publicação. E eu

levei para ele e dei, autografei. Dei um exemplar para ele. (Paes Loureiro,

entrevista em 03 e 30 de março de 2011).

Entusiasmo é o adjetivo utilizado por Paes Loureiro para descrever aquele momento.

De fato, o depoimento não deixa dúvidas quanto à importância do evento para sua trajetória

como escritor, tanto que a família em Abaetetuba já havia recebido exemplar como prova dos

frutos de estar em estudos na capital do estado. O “líder do Sindicato dos Bancários”

referendava sua capacidade intelectual, citá-lo era um recurso de retórica. Assim como citar

Benedito Nunes, já entre os píncaros da intelectualidade amazônica ainda nos anos 60,

também era estratégia para fazer-se presente entre a elite daquele momento.

Depois de explicitar o entusiasmo pela produção, aceitação de alguns leitores de sua

confiança e provável lançamento do livro “Tarefa” que poderia ter mudado sua carreira

Page 53: No Crepúsculo

62

artística, outro fantasma veio à cena quando começou a narrar o episódio da invasão da UAP:

os famigerados “lenços brancos”.

Naquela noite lá no SLARDES nós fomos vítimas da agressão dos “lenços

brancos”. Que eram rapazes da chamada burguesia da época. Essa classe

média alta. E com muitos filhos de fazendeiros do Marajó. E que criaram

uma associação para enfrentar os esquerdistas e para ser identificados numa

hora de briga ou qualquer coisa. Ou quando chegasse a polícia com quem

eles estavam mancomunados. A polícia sabia em quem deveria baixar a

porrada e em quem não devia. Ou quem deviam prender. Então a

identificação deles era o lenço branco amarrado no pescoço. E a primeira vez

que ocorreu essa manifestação deles. Foi que entraram lá e entraram de pau.

Discutindo. Essa coisa toda. E a polícia quando entrou já sabia em quem

baixar o pau. E eu com o Alonso levamos uns empurrões lá, uns tapas lá. E

conseguimos sair (Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).

Curiosamente, mesmo tendo sido um momento doloroso – literalmente, pelos

safanões sofridos – a narrativa de Paes Loureiro é repleta de sorrisos e diversão ao narrar

àquela cena. Diante de uma cena narrada com tamanha dissonância, duas inferências são

necessárias. Primeiro, do bom humor com sorrisos e postura corporal positiva, não posso

depreender falta de importância para o momento de vida narrado. Obviamente, foi uma

recordação triste em sua trajetória de vida. Ao invés de uma pomposa homenagem pelo

lançamento de uma obra poética, Paes Loureiro levou safanões e teve de abandonar o lugar às

pressas para não ser surrado pelos “lenços brancos”. Então, apesar dos sorrisos, o simples fato

de lembrar sabendo que se trata de uma narrativa para ser cristalizada na escrita histórica já é

demonstração de um sujeito em lutas contra apagamento das suas imagens.

Segundo, o texto oralizado é o mesmo sempre quando a memória é acionada. Essa

mesma passagem de sua vida está sempre presente em programas de televisão na qual Paes

Loureiro é convidado. Em “1964. Relatos subversivos”, por exemplo, essa mesma cena

também é contada, mas as performances podem variar conforme as situações diversas que o

tempo presente e as circunstâncias podem exigir. Ou seja, no momento em que esta entrevista

se dava, o narrador se encontrava no ambiente tranquilo de sua casa, com o gato de estimação

pedindo, e recebendo, suas atenções. A esposa, Violeta Loureiro, vez ou outra atravessava a

espaçosa sala e voltava com água, petiscos, café. Portanto, por mais dolorosas que fossem

aquelas recordações, não se pode deixar de mensurar a importância e interferência do

ambiente para o desabrochar das lembranças. Desta forma, as performances expressam, assim

como todo documento histórico, a subjetividade implícita dos sujeitos históricos.

Em outro momento da entrevista, Paes Loureiro retomou ao mesmo fato. Desta vez,

o roteiro performático foi outro. O fato curioso é o tom solene e grave quando lembra de seu

Page 54: No Crepúsculo

63

entusiasmo e da capacidade em ser o pioneiro na atividade político-militante. Mas quando

aborda os tapas e safanões levados no momento da invasão da sede sorri divertidamente.

Retomou o tom grave na fala e no corpo ao abordar novamente a edição do livro

Toda a edição foi destruída pela Marinha. E por muito tempo nem eu tinha o

livro. Porque houve um fato para frente interessante. Mas pouca gente tinha.

Então isso me marcou muito. Isso me traumatizou muito. Porque era um

livro que era digamos assim, ele poderia ter sido um marco nessa poesia

brasileira da época (Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).

Aqui Paes Loureiro trabalha no campo das possibilidades. Ou seja, caso o livro

tivesse sido lançado dentro da normalidade ele poderia ter o reconhecimento nacional

enquanto escritor de uma poesia política. Paes Loureiro apostava no caráter ineditista de seu

trabalho, pois de fato entendia que sua poesia era “própria da época”, mas contava com um

elemento até então não explorado pelos demais artistas das letras.

Paes Loureiro tem a clara noção do que sua obra representava para aquele momento

histórico. No cenário nacional, Jânio Quadros havia renunciado e João Goulart, quase não

toma posse; diversas manifestações da sociedade civil (setores do catolicismo conservador,

em especial) faziam passeatas em prol de “Deus, Pátria e a Família pela Liberdade”, já em

oposição aos ideais de esquerda. 18

Assim, aponta o cunho político de seus escritos como divisor de águas entre ele e os

demais autores da época. Ou seja, seu engajamento não era somente artístico, mas tinha

também a militância diante de uma realidade que não lhe convinha ou desagradava. No

cenário paraense, mais manifestações de esquerda pululavam com o aumento de preços da

farinha e, em Capanema, era fundado o primeiro Sindicato Rural da Amazônia. De fato, eram

tempos de dicotomias também pela guerra fria que se avizinhava pela Revolução Cubana, de

1959 (VELARDE, 2005). Esse ambiente sociopolítico era muito fecundo a Paes Loureiro.

Outro ponto a ser dimensionado na fala deste depoente é que, tomando como verdade

o fato da memória individual ser uma expressão da coletividade, então é bem provável que a

teoria de pioneirismo naquele tipo de atividade poético-militante tivesse adesão de seus

contemporâneos.

Não tenho a pretensão de especular a verdade sobre tal pioneirismo, mas é necessário

enfatizar que a forma como Paes Loureiro pensa o “Tarefa” e seu engajamento poético-

18

No Pará, próceres como Ruy Paranatinga Barata e Alfredo Oliveira lutavam em favor dos rumos legais para

aquela situação nova. Defendiam a posse de João Goulart como única medida para manter o quadro de

expectativas democráticas. No cenário nacional, destacou-se a “cadeia da legalidade” liderada por Leonel

Brizola que foi, aliás, vitoriosa.

Page 55: No Crepúsculo

64

militante é, no mínimo, um anseio deste sujeito que, neste momento, lança mão da ocasião

desta dissertação para remediar a injustiça sofrida por ele. O fato deste anseio ser manifestado

com tamanha eloquência já é digno de nota e credibilidade para a pesquisa (PORTELLI,

1997a).

Por outro lado, não descarto a questão posta por Paes Loureiro acerca da

representatividade de seu trabalho para o cenário regional/nacional. Afinal de contas, na

ocasião do lançamento haveria participação efetiva da UNE (União Nacional de Estudantes)

no suporte logístico para o lançamento e divulgação da obra. Certamente, tudo isso daria ecos

fora da região norte para o livro, conforme narra:

Até porque a UNE daria grande repercussão aos livros que fossem editados

dentro dessa linha. E o meu era o primeiro. Então quer dizer a frustração que

isso me deu. O impacto espiritual foi muito grande e foi algo que eu acho

que eu nunca perdi. Aquela dor de ter perdido aquele primeiro livro. E tudo

o que significava para mim, para época, para os meus ideários e tudo mais.

(Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).

Além de dar-se conta da repercussão graças à intervenção da UNE, novamente Paes

Loureiro retomou a angústia de não poder publicar o “Tarefa”. Aliás, o depoente retomou

aquela “dor de ter perdido aquele livro” em torno de seis vezes ao longo da entrevista. Narrou

o episódio da dor com argumentos variados, mas manteve o mesmo teor argumentativo. A

repetição da narrativa tinha um significado implícito (PORTELLI, 2001). Pelas performances

de corpo e voz, Paes Loureiro assumia o papel de “professor” na entrevista.

A informação havia sido dada, mas pela repetição do enunciado parecia desejar que

eu internalizasse aquela informação tal qual os antigos professores faziam (ainda fazem) com

seus alunos. Curiosamente, o momento da invasão, das tapas e safanões, não tiveram a mesma

reiteração na entrevista. Conclui que Paes Loureiro revivia aquela cena repetidamente com o

objetivo de reconstituir-se enquanto sujeito. A ditadura havia subtraído não apenas um objeto

(livro), mas parte de sua história, sua própria vida, frustrando-o em como sujeito.

Na medida em que esse depoimento vinha à tona, aquele senhor sentado à minha

frente abordava a dor causada pela injustiça imposta pelo regime militar. Naquele momento

dei-me conta de que Paes Loureiro estava entre as penumbras da história (THOMPSON,

2002). Enquanto sujeito cultural tão recorrente nos círculos acadêmicos o sobrenome

Loureiro é bastante citado, mas o aspecto do sofrimento por não poder recordar uma

experiência não vivida era prova cabal de que aquele era um momento doloroso para meu

Page 56: No Crepúsculo

65

depoente. A partir desse momento, a fala de Paes Loureiro já semeava solidariedade. E é bem

provável que aquele discurso tivesse justamente essa intencionalidade.

Avançando na narrativa, o entrevistado voa nas lembranças e avança para os dias

posteriores a invasão da UAP. A sensação desagradável aumentava à medida que o Loureiro

passeava pelos corredores da memória e via a casa dos pais sendo invadida altas horas da

noite, vendo seu irmão caçula sendo jogado truculentamente da rede sob o subterfúgio de

estarem procurando o subversivo, sua irmã inexperiente e amedrontada pedindo “papel” que

autorizasse a busca. Isso tudo sendo dito em meios sorrisos sem vida e pernas agitadas. Não

só a linguagem verbal estava sendo exteriorizada, mas a linguagem do corpo se manifestava

eloquentemente (GLISSANT, 2005).

Como todo historiador afeito aos detalhes queria saber mais sobre essas memórias.

Mais sobre a dor e sobre quais táticas foram urdidas para aliviar essas feridas. Foi então que a

História contra o esquecimento, de Sarlo (1997), ajudou a perceber que a estratégia de luta de

Paes Loureiro era exatamente o fato de conceder aquela entrevista.

A relação entre memória e esquecimento pode-se objetivar num discurso,

mas, para que a relação exista, deve também existir o documento capaz de

dar à memória pelo menos a mesma força do esquecimento: o documento

que se imponha como pilar da memória e que a memória tende,

inevitavelmente, a rejeitar (SARLO, 1997, p. 42).

Assim sendo, a arma do subversivo Paes Loureiro era o relato por meio da Literatura

e sua postura como depoente. O documento oralizado e transformado em documento escrito

ainda é para a academia o discurso que mais legitima, seja pela tradição da academia, seja

pela tradição do documento escrito. Paes Loureiro sabe dessa premissa e habilmente soube

posicionar-se no campo de batalha. Mais do que conceder uma entrevista, estava em jogo toda

a ardilosa tática de resistência de sua obra poética. Naquele momento, Loureiro mais uma vez

agia sorrateira e inteligentemente desde quando aceitou ceder informações para a tecedura

desta dissertação, desta vez contra o esquecimento de sua história de vida. Exemplo

semelhante aos demais narradores desta urdidura.

Page 57: No Crepúsculo

66

1.4 José da Silva Seráfico de Assis Carvalho

Estava na sede de UAP, quando o Exército, coronel Peixe-agulha à frente,

invadiu a entidade universitária. Ganhou um tapa, desferido em meio a

palavrões do militar. Depois disso, perdeu um emprego conquistado em

concurso público (da SPVEA) e o emprego no Jornal do Dia. Obter novo

emprego em Belém não foi possível. Por isso, em agosto de 1966, viajou

para Manaus. Os quinze dias que passaria na capital amazonense duram até

hoje. Lá, ingressou no quadro docente da Universidade Federal do

Amazonas, desempenhou vários cargos públicos e atuou em empresas. Foi

Secretário Municipal de Administração de Manaus, diretor da Faculdade de

Estudos Sociais da Universidade Federal do Amazonas, além de ter ocupado

várias outras funções, acadêmicas e na administração pública. Hoje, é

aposentado pela Universidade e pelo Governo do Estado. E cuja Secretaria

de Fazenda pertenceu, após aprovação em concurso público. Além dos cinco

livros que escreveu, José Seráfico de Carvalho tem mais de mil artigos

publicados em jornais e revistas nacionais. Hoje, dirige a Fundação Djalma

Batista e é membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

da Presidência da República. Casado com a médica Maria da Graça, tem

dois filhos – Marcelo, doutorando em Sociologia na Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, e Gustavo, assessor técnico do Tribunal Regional

Federal da 1ª Região, com atuação em Brasília. 19

Por ter sido vítima de uma bofetada desferida pelo comandante “Peixe Agulha”,

quando a UAP foi invadida, em 1º de abril de 1964, interessei-me pela averiguação sobre a

identidade de José Seráfico de Carvalho. A cena, descrita em “1964. Relatos subversivos”, foi

a instigação que catapultou minha ânsia para conhecer academicamente as memórias deste

sujeito cultural à época do Golpe Civil-Militar.

19 A breve biografia de José Seráfico de Carvalho foi produzida em 2004 por ocasião do lançamento do livro

“1964. Relatos subversivos: os estudantes e o golpe no Pará”. A biografia de cada autor do livro aparece logo no

final de cada narrativa.

José da Silva Seráfico de Assis Carvalho

Foto: Jaime Cuéllar Velarde - Belém (PA), 07 de outubro de 2011.

Page 58: No Crepúsculo

67

Durante a pesquisa, confirmei aquela cena como o primeiro ato da violência dos

golpistas contra a sociedade civil. Uma dentre várias outras ocorridas nos anos seguintes. Era

preciso, todavia, perceber ações que o posicionasse dentre os sujeitos culturais previstas pela

metodologia.

José Seráfico de Carvalho, por ocasião da prisão sofrida em 1964, no ofício ao qual

havia dedicado suas atenções acadêmicas no curso de Direito não conseguia emprego para

obter o próprio sustento. Tampouco conseguiu rever seu emprego de noticiarista no jornal “O

Dia”. Havia passado cinquenta e nove dias preso. Tempo suficiente para que os novos

mandatários do poder impregnassem de medo sua readmissão. Por e-mail, adiantou-me todas

estas questões, dando destaque para a nova etapa de sua vida após aquela prisão.

A volta ao jornal acabou, quando nova ameaça do [comandante militar que

invadiu a UAP] “Peixe Agulha” forçou minha demissão. Restava-me

procurar o quê fazer. O vazio interior não demorou a ser preenchido, com o

emprego na Rádio Guajará, da qual me tornei noticiarista. Enquanto isso,

batia às portas da Justiça, magnificamente orientado pelo Dr. Alarico Barata.

Acabei por receber seis meses de salários, sem ter trabalhado, por objeção

dos dirigentes da então SPVEA. (José Seráfico de Carvalho, por e-mail, em

01 de outubro de 2011).

Novamente, o Coronel Peixe Agulha estava atravessado em sua trajetória. Isso o fez

esgueirar-se por outras brechas de trabalho obter seu sustento, mas sempre com o auxílio da

família, amigos e, principalmente, com camaradas já engajados na luta pela redemocratização

do país. Ainda não havia chegado o ano de 1968, com o famigerado AI-5, que fechou

quaisquer possibilidades de diálogos de civis descontentes com a ditadura instalada. Ainda

assim, na Belém provinciana dos anos 1960, os discursos raivosos de ataques à honra “dos

subversivos” eram constantes.

Quanto a isto, José Seráfico de Carvalho descreveu como “a pior sensação”. Não por

ter sido ele uma vítima do novo regime autoritário, mas pelas portas fechadas para as

oportunidades de levar “o Brasil a uma democracia plena, sem tanta desigualdade”. Com isto,

também “ia paro ralo a intenção de seguir carreira política”. Tais informações, vindas por e-

mail, eram instigantemente perturbadoras. A identidade narrada era de um sujeito cuja

sublimação estava despojada de valores materiais, conforme detalha abaixo:

A pior sensação, todavia, não esteve nos empregos perdidos, nem na prisão.

Mais que tudo, magoava-me a destruição de uma caminhada que,

certamente, levaria o Brasil a uma democracia plena, sem tanta

desigualdade.

(...)

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68

Pouco mais de dois anos após o golpe militar, busquei em Manaus as portas

que se fecharam na cidade onde nasci. Isso serve para começo? (José

Seráfico de Carvalho, por e-mail, em 01 de outubro de 2011).

A “destruição da caminhada” havia sido avassaladora. As prisões, censuras e as

pechas de subversivos haviam afastado amigos e possibilidades de empregos. O caso da

prisão de Paes Loureiro trouxe resultados similares. Vários colegas de faculdade, por

instrução das convicções políticas dos pais ou deles próprios, também se afastaram. Junto

com o distanciamento dissimulado dos amigos, outras dificuldades apareciam.

No caso de Paes Loureiro, a busca de refúgio se deu nas ilhas dos arredores de

Abaetetuba (PA), sua cidade natal. A saga desta fuga inicia no Café Central, na Av.

Presidente Vargas, no centro de Belém. Ali, sob a tutela do amigo “Pepe”, ficou dias trancado

no andar superior durante o dia e, durante a noite, descia para o “Café” e buscava no próprio

reflexo dos espelhos compreender e diferenciar imaginário e realidade. Talvez no início de

sua fuga para não ser preso novamente, “entorpecido pela bebida e os pesadelos, sempre

cercado de sonolentos espelhos molduras douradas e iluminuras foscas” tenha chegado às

mesmas constatações de José Seráfico de Carvalho: as portas de possibilidades em Belém

estava fechadas enquanto durasse o regime militar. 20

O ostracismo estava onde estivesse José Seráfico de Carvalho. Andar na cidade trazia

a aparente sensação de liberdade, mas estava sendo observado, vigiado e repudiado. Assim, a

saída do depoente foi enfiar-se num avião rumo a outro ambiente sociopolítico que pudesse

reunir condições de recomeçar sua empreitada rumo a um “Brasil com democracia plena, sem

tanta desigualdade”.

Em pouco tempo, todos os estudantes presos na invasão da UAP foram

estereotipados como ameaças ou perigosos para a segurança da nação. Ser subversivo havia

transformado José Seráfico de Carvalho em persona non grata dentro de Belém. O mesmo

ocorreu com todos os demais narradores desta dissertação, com exceção de Dulce Rosa. 21

Colegas de faculdade, amigos e alguns familiares não davam oportunidades de aproximação.

20 Ver o Loureiro (2011). Numa mescla de ficção e realidade, o autor aventura-se na estética romancista pela

primeira vez ao longo da carreira (sempre foi mais poeta). Em escrita que durou oito anos, lançou o romance

“Café Central” cuja capa é emblemática para compreender a identidade do narrador: espelhos refletindo sua

imagem em dúbia manifestação de realidade-imaginação. Passados 47 anos de sua prisão, o tema da Ditadura

Civil-Militar, apreensão do primeiro livro de poesias e prisão não lhe escaparam da memória e da trajetória

artística.

21 Dulce Rosa não chegou a ser presa por conta do Golpe Civil-Militar. Foi convidada a adentrar ao PCB dias

após o 1º de abril de 1964. O interesse para sua participação junto ao processo de resistência se dava pela

facilidade da mesma em circular pelos espaços da cidade sem ser percebida como agente da resistência

comunista.

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69

Assim como possíveis empregadores não deram margem para quaisquer oportunidades de

trabalho.

Neste processo de satanização à sua imagem, em 1966, uma viagem para Manaus

mudou os rumos de sua trajetória no Pará. A pedido de seu pai, foi a pretexto de acompanhar

uma parente em viagem de avião. Já em terras mais seguras para sua integridade física e longe

das empáfias dos militares de Belém, a família lhe solicitou que estendesse sua estada na

capital amazonense sob o argumento de buscar algum emprego. A família já havia decidido

afastá-lo do epicentro político de Belém para preservar sua segurança. Só tempos depois se

deu conta da atitude de proteção paterna.

“Escapei da prisão na Quinta Companhia de Guardas, mas fui aprisionado pela mais

doce das prisões”, me confessou quando estivemos em seu apartamento na Av. Nazaré, no

bairro de mesmo nome, na capital paraense. Conheceu a manauara Maria da Graça (hoje

médica), casou, constituiu família constituiu família. Lá, na capital amazonense, fixou

residência até os dias de hoje.

Diante do exposto, pela distância deste sujeito – estava na Amazônia Amazonense –

a entrevista com o mesmo era praticamente impossível. Eu não tinha como deslocar-me até

aquele estado para realizar a entrevista. Ainda assim, entrei em contato via e-mail. Apontei

minhas intenções de pesquisa, objetivos e importância para a historiografia amazônica.

Enquanto aguardava sua resposta, percebi vários problemas para a metodologia da História

Oral, uma delas era não poder contar com a análise das performances no decorrer das

recordações e emoções que pudesse vir à tona. Estava prestes a deixar de lado o depoimento

de José Seráfico de Carvalho justo por este detalhe.

Na resposta do e-mail, aquiesceu e presenteou-me com a surpresa de sua vinda até

Belém entre os dias 07 e 10 de outubro de 2011, por conta de sua devoção ao Círio de Nazaré.

Por conta de sua presença nesta capital, concedeu-me duas entrevistas, nos dia 07 e 09 de

outubro de 2011. Ambas na sacada do apartamento da família na Av. Nazaré. Estava pronta a

oportunidade para uma conversa tête à tête.

Ao dirigir-me até seu apartamento, sugestão de José Seráfico de Carvalho para as

entrevistas, constatei o fluxo maior do trânsito no bairro de Nazaré, em Belém. Era o mês de

outubro, em sua primeira quinzena. Neste período, a cidade é inundada de católicos,

especialmente, por conta da procissão em homenagem à Virgem de Nazaré. Naquela tarde, as

ruas estavam repletas de vendedores de flores, fitas, águas de cheiros, ervas exalantes,

brinquedos e demais suvenires pertinentes à festa religiosa. Sacra e profana, esta festa na

Amazônia Belemense é comparada ao Natal por conta do clima de confraternização de muitas

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70

famílias. As comidas típicas são vendidas nas ruas, mas é nas residências que concluem o

papel de reunir famílias. Assim, o pato no tucupi, maniçoba, vatapá e muita pimenta são

motivações para conversar, apresentar novidades, rever parentes e amigos.

Por tudo isso, o apartamento localizado bem próximo à Basílica de Nazaré, estava

em constantes movimentos de pessoas entrando e saindo. A entrevista, consequentemente, foi

entrecortada por longos abraços, sorrisos, saudações e muitos salamaleques tão típicos de

pessoas queridas se reencontrando. José Seráfico de Carvalho havia chegado de viagem,

assim como muitos outros primos e tios. Aquela gravação de memórias, ao invés de perder

pela falta de concentração no assunto único que me interessava, ganhou em sensações

positivas de bem-estar e profunda comunhão. Para completar, no primeiro encontro com José

Seráfico de Carvalho, eram quase 17 horas. Os sinos da Igreja repicaram anunciando o

horário e, por conta do entardecer e do badalar dos sinos, aconteceu um curioso sobrevoo de

periquitos bem próximo ao 14º andar daquele prédio. Esta foi a tônica daquele fim de tarde.

Antes daquele encontro, tratei de reler e mapear elementos em “1964. Relatos

subversivos” que enquadrasse José Seráfico de Carvalho no perfil de sujeito cultural. Naquela

leitura mais dedicada, pincei trechos para nortear a entrevista ainda a ser realizada. Era a

primeira vez que eu fazia aquilo com um narrador. Com os demais permiti a espontaneidade

das memórias.

Na ocasião, constatei que, ainda em 1964, adentrou nas fileiras do PCB paraense. Tal

decisão havia sido municiada pelo sonho em construir um Brasil “ideal” para aquele jovem

apaixonado pelos ideais revolucionários que pululavam na década de 1960 por ocasião do

sucesso da Revolução Cubana. Incorporou para si os valores disseminados por Che Guevara,

fato que inferi a partir do trecho abaixo:

Não tardou a que estivéssemos na Faculdade de Direito. Lugar que fizemos

crescer nossa empáfia e cultivamos a certeza de que o mundo nos pertencia.

Por isso, por ser coisa que nos apropriávamos, com ele tínhamos

responsabilidades, não apenas o desfrute das coisas boas que ele poderia

proporcionar. (...) Nada disso me impediu de ingressar no Partido Comunista

e, segundo sua orientação envolver-me sempre mais na luta pela construção

de um Brasil que 1964 abortou (Carvalho, 2004, p. 180). Grifos meus.

Pela entrada na agremiação comunista, percebi sua clara intenção para o confronto na

arena política. Há de ser considerado que o livro de memórias “1964. Relatos subversivos” foi

escrito em 2004, portanto, o narrador José Seráfico de Carvalho contou com criteriosa seleção

de fatos em sua memória acerca do passado de quarenta anos para estabelecer a escrita de seu

texto naquele relato memorialístico.

Page 62: No Crepúsculo

71

Igualmente, é preciso considerar que a perspicácia pelo engajamento político já havia

sido semeada pelo pai antes de experimentar os próprios desafios e embates. Não foi o único

narrador que confessou tal influência paterna, Ruy Antonio Barata também deixou entrever

sua entrada ao embate político em decorrência da admiração nutrida pelo pai e avô. Assim,

José Seráfico de Carvalho ao narrar a participação do “velho Seráphico” o faz com a doçura

típica dos filhos apaixonados pelos feitos dos pais.

Pois bem, de 54 em diante eu passei de tal modo a me interessar por política

que eu suspeito que quando o meu pai foi convidado para ser candidato a

vereador no Partido Social Democrático graças à empatia que ele

estabeleceu com Magalhães Barata e a confiança que aquele militar, que eu

considero que era um autoritário de esquerda, manifestou por ele terá sido a

minha a opinião que empurrou o meu pai para aquilo que parecia uma

aventura, eleger-se vereador. E ele se elegeu vereador (José Seráfico de

Carvalho, entrevista em 07 e 09 de outubro de 2011). Grifos meus.

Adentrar para a edilidade belemense é um troféu conquistado pelo “velho Seráphico”

nas urnas. Mas é como se fosse um mérito do filho, do admirador. O rosto assinala bem esse

orgulho quando ergue o queixo e eleva o tom de voz para dizer a última frase. Ao mencionar

enfaticamente o sucesso do pai ao eleger-se vereador, José Seráfico de Carvalho dá mostras

de não conseguir mais escapar da convocação à arena política. Portanto, o jovem José

Seráfico de Carvalho, que já respirava a política acalentada da Guerra Fria, foi influenciado

também pela sede política do pai. O depoente não tinha como manter-se alienado àquela

atmosfera de discussões e interesses locais e globais.

Ato contínuo, ao adentrar na Universidade Federal do Pará, engajou-se mais ainda

nos enfrentamentos e denúncias daquilo que julgava corromper as possibilidades de um

“mundo melhor e mais justo”.

Preferiu a via democrática para o enfrentamento. Atitude, aliás, recomendada pela

direção do PCB para todos os filiados. Assim, a opção pelos “tabloides” foi uma válvula de

escape para dar vazão aos projetos de um “mundo melhor e mais justo”. Com o pequeno

jornal da União Acadêmica, era possível denunciar empresários e políticos aliados ao IBAD

(Instituto Brasileiro de Ação Democrática), cujas práticas fossem espúrias, conforme sua

narrativa:

Com Dourado fui eleito assessor de imprensa e dividi com José Mariano

Klautau de Araújo a direção do Tabloide – UAP, que saiu em apenas quatro

edições. O suficiente para marcar uma época e desencadear a ira dos

opositores políticos, dentro e fora da Universidade. Não sem carradas de

razão. Como desejar que políticos financiados pelo IBAD (Instituto

Brasileiro de Ação Democrática), órgão sustentado por empresários e

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72

envolvido na preparação do golpe militar de 1964, aceitassem a denúncia

provada que divulgamos? Talvez ninguém suspeitasse de que jovens

universitários, de classe média a maioria, chegassem às informações que o

T-UAP divulgou. Pena que naquela manhã ensolarada em que o jornalzinho

agitou a vida da cidade, os financiados estivessem no pleno gozo dos

mandatos conquistados com a ajuda que considerávamos espúria (Nunes,

2004, p. 181). Grifos meus.

Assim como Ruy Antonio Barata, Seráfico vê o golpe como produto de conspiração

internacional. Daí se explica a “ira dos opositores”, como bem relatou. De fato, o jornal

impresso, por meio da organização de todo discurso, tem o estonteante poder de gerar

burburinhos inclusive com aqueles que não fossem letrados. Praças, janelas, botecos, salas

poderiam servir de espaços de divulgação de tais denúncias. Assim o objetivo daquele

tabloide cumpria sua função de denunciar.

Ainda sem conseguir modificar a estrutura social ou econômica, os articuladores do

T-UAP se orgulhavam da notoriedade alcançada pelos burburinhos causados. José Seráfico de

Carvalho estava entre os notáveis estudantes da Amazônia Paraense de 1964 que já pensavam

progressivamente e pretendiam desestruturar os tradicionais alicerces da sociedade patriarcal.

Criticar práticas espúrias poderia ser atitude inerente aos rompantes da jovem idade, mas

poderia uma mostra da identidade política construída pela presença do pai, o Sr. João

Seráphico. 22

A narrativa de José Seráfico de Carvalho em “1964. Relatos subversivos” é detalhada

quanto ao teor da matéria do T-UAP. Certamente, pretendia com o texto enfatizar sua postura

de sujeito disposto a transformar o mundo naquela efervescente década. Este detalhe, aliás, é

mencionado pelo próprio narrador, conforme detalha abaixo:

(...) Nem o número do cheque e o banco eram omitidos. Mesmo a data de

emissão estava com todas as letras no T-UAP. Mais nos enchera de orgulho

a repercussão de nossa ousadia, na Assembleia Legislativa. Pegados com a

boca na botija, restava aos comparados pelo IBAD lançar-nos infâmias e

ofensas, nenhuma delas, porém, nos afetou, valera a pena acordar mais cedo

e aumentar a rotineira agitação do Ver-o-Peso. (...) Madrugáramos para

anunciar à população quanto era enganada. Se os tempos eram efervescentes,

fervia em nós certo desejo de mudar o mundo – e era isso que estávamos

tentando. É certo que muitos, no caminho, perderam de vista esse ideal

(Nunes, 2004, p. 182).

22 João Seráphico de Assis Carvalho viveu quase nove décadas em Belém. Constituiu família com a Sra. Oneide,

com a qual teve nove filhos. Homem de convicções morais e intelectuais, João Seráphico conseguiu empreender

sua formação de caráter aos filhos. José Seráfico de Carvalho, o filho, era ardoroso observador dos costumes e

tradições seguidas pelo pai. Em 2010, pela editora Paka-Tatu, publicou biografia do pai, dando ênfase a estes

aspectos. Com esta atitude, posso inferir acerca da admiração nutrida pelo genitor. É possível também constatar

que a identidade de José Seráfico de Carvalho está intimamente atravessada pela formação política, mas,

principalmente, familiar.

Page 64: No Crepúsculo

73

Assim, não é de se admirar o sentimento de vingança que os tais empresários

denunciados pudessem nutrir contra os estudantes/jornalistas. E José Seráfico de Carvalho ao

invés de demonstrar temor, se gabava do feito. Convicto pela necessidade de emplacar

efetivas mudanças na estrutura social e político que o circundava, e o incomodava.

Se de um lado, o jornal impresso poderia servir como instrumento de “satanização do

termo comunista” 23

; por outro, poderia servir para debater e ampliar o debate acerca do

Socialismo no mundo. O estado autoritário, de posse desta certeza, promoveu intensas

campanhas para silenciar a imprensa paralela ao poder instituído.24

A artimanha de valer-se de

uma imprensa livre e comprometida com “a verdade” era utilizada por José Seráfico de

Carvalho e amigos. Sempre no intuito de “mudar o mundo”, conforme declarou abaixo:

Éramos, portanto, uma juventude interessada em mudar o mundo, mas só

isso. Animava-nos o desejo de ver emplacada a solidariedade ao invés da

competição. Cedo percebêramos a felicidade como o grande objetivo – e o

mais legítimo – da sociedade humana. Não nos agradava, por isso, ver

transportada para a vida social, onde o ser humano dá vazão às suas

potencialidades e constrói a cultura, a mesma lógica da cadeia alimentar que

mantém o mundo animal em equilíbrio. Se, na selva, a predação é essencial,

na sociedade dos homens ela não pode chegar a bons resultados (Nunes,

2004. p. 185) grifo meu.

A identidade de José Seráfico de Carvalho forjou-se por todos os ingredientes já

citados. A presença do pai na política já o precavia sobre as durezas que encontraria. Foi,

talvez, fundamental para que eu entendesse aquela postura de arrojo naquele momento de

crise na política brasileira.

Os predadores acima grifados eram os civis e militares ansiosos por silenciar

quaisquer tipos de oposições. E estes se manifestaram raivosamente a partir daquele

famigerado Golpe Civil-Militar em 1º de abril de 1964. Passados quarenta e oito anos daquele

momento, José Seráfico de Carvalho vivia ares democráticos, mas as lutas contra os

predadores ainda se fazem necessários. Ao longo das duas entrevistas concedidas em 07 e 09

de outubro de 2011, fez questão de enfatizar isso.

23 Ver (Velarde:2005), a respeito do uso dos jornais por parte das elites retrógradas na Amazônia para denunciar

eventuais sujeitos e ideias subversivas, em especial, àquelas ligadas à Revolução Cubana.

24 Ver Aquino (1999). Neste trabalho a autora discute as tênues relações entre práticas autoritárias e o livre

exercício da imprensa nos periódicos “O Estado de São Paulo” e o “Movimento”, estudo feito por uma década

após o AI-5, portanto entre 1968-78.

Page 65: No Crepúsculo

74

II PARTE

“NÃO ME PRENDERAM, NÃO APANHEI E NÃO

MUDEI DE IDEIA”

Esses tempos sobre os quais você escreve aqui, foram tempos crepusculares

e, para quem os viveu, apesar de tormentosos, que ótimo tê-los vivido. É

na dor e no sofrimento que o homem, em sabendo vivê-los, humaniza-se.

Caso de todos nós, seus entrevistados.

(Cláudio de Souza Barradas).

Page 66: No Crepúsculo

75

2.1 Alfredo Oliveira

Uma vasta teia de sujeitos culturais surgia a minha frente a cada entrevista. Os

entrevistados nunca deixaram de sugerir nomes imprescindíveis para a pesquisa. Uma nova

lista de personagens era gestada e se fazia bem maior do que aquela pensada nos primeiros

momentos da pesquisa. Isto foi salutar porque fazia crescer a ânsia em conhecer diferentes

perspectivas de memórias. Tais ânimos foram arrefecidos inúmeras vezes pela orientação da

pesquisa, sempre no intuito de verticalizar as análises.

Entretanto, tomei conhecimento de Alfredo Oliveira. André Nunes Netto foi quem

citou seu nome pela primeira vez e soube de sua importância como guardião da memória dos

rumos do Partido Comunista Brasileiro em terras amazônicas, antes e depois do Golpe Civil-

Militar. Por meio de uma busca na internet sobre as produções amazônicas em torno da

temática da ditadura militar na Amazônia Paraense obtive mais informações daquele nome.

Assim, tive contato com a obra intitulada “Cabanos & Camaradas”, publicada em 2010. A

partir daquelas informações preliminares, ter acesso às memórias de Alfredo Oliveira passou a

ser um dos passos necessários para esta escrita, pois sua obra continha relatos interessantes e,

alguns, inovadores para as memórias sobre os tempos de ditadura.

Com André Costa Nunes, membro do Partido Comunista nos tempos do Golpe Civil-

Militar de 1964 e companheiro de militância, obtive o contato de Alfredo Oliveira bem como

Alfredo Oliveira

Foto: Jaime Cuéllar Velarde – Belém (PA), 14 de setembro de 2011.

Page 67: No Crepúsculo

76

valiosas informações sobre sua trajetória política nos anos subsequentes ao Golpe Civil-

Militar. Estabeleci contato e expus as razões do meu interesse por uma entrevista. Os

argumentos que utilizava naquela apresentação estavam devidamente ensaiados para a

circunstância de ser perguntado sobre a razão de meu interesse em entrevistá-lo.

Apresentei meu nome e formação de historiador, o tema da pesquisa, agentes

históricos, temporalidade e objetivos esperados a partir das entrevistas com os sujeitos.

Rapidamente, deu-se conta da importância da estratégica oportunidade para suas memórias

com aquela entrevista. Marcou hora e local para nosso primeiro encontro.

Recebeu-me com muita cordialidade. Ele também, percebi após análise do vídeo da

entrevista, já tinha o texto pronto para ser narrado. Mais uma vez esta pesquisa estava

servindo como catapulta para outros projetos políticos individuais. Ciente que ao lançar mão

das ferramentas da História Oral há negociações nas entrevistas, procurei tirar proveito deste

processo em mão dupla que é a captura de memórias.

Na ocasião descobri algumas identidades de Alfredo Oliveira. Médico, compositor,

comunista, pai de família. Eram várias as atuações no palco da vida, portanto, uma miscelânea

identitária. Apesar das várias identidades assumidas era a vocação memorialística de Alfredo

Oliveira a mais interessante nesta investigação. É autor das obras O touro passa? (1981),

Belém, Belém (1983), Paranatinga (1984), A pedra verde (1986), Ruy Guilherme

Paranatinga Barata (1990), A partir da ilha (1991), Ritmos e cantares (1999), Almir Gabriel,

trajetória e pensamento (2002), Além dos deveres (2006), Carnaval Paraense (2006) e

Cabanos & Camaradas (2010). Ao final da entrevista fui presenteado com um exemplar

autografado da obra mais recente.

“O médico e escritor Alfredo Oliveira ficou conhecido nas letras paraenses por sua

vocação memorialística associada ao trabalho de pesquisa”, diz a orelha do caderno-livro de

memórias “Cabanos e Camaradas”, 2010, apresentando seu autor. A definição é

demasiadamente concisa, como seriam quaisquer outras definições para um sujeito cultural

cujas identidades foram vincadas pela ditadura militar na Amazônia Paraense. Em “Cabanos e

Camaradas”, Alfredo Oliveira discorre com eloquência acerca de fatos, nomes, sentimentos

evocados pelos tempos de censura.

Por esta razão e ciente da subjetividade das informações prestadas por conta do lugar

social e político deste narrador, elegi suas memórias como matéria prima nesta análise sobre

os prelúdios desta “triste página de nossa história”, como bem lembrou um poeta. Sua

trajetória política está imbricada com a trajetória de outro comunista: Humberto Lopes. Em

1959 foi arrebanhado para as fileiras do Partidão. Coube ao líder comunista Lopes a

Page 68: No Crepúsculo

77

responsabilidade de cooptar e treinar os melhores quadros da esquerda amazônica, dentre os

quais estava Alfredo Oliveira.

Horas após o Golpe Civil-Militar, Alfredo Oliveira recebeu orientação do PCB para

permanecer nas atividades de médico e manter afastamento das discussões políticas. O

Partidão precisava de um médico de confiança para dar assistência às famílias dos camaradas

presos; ao mesmo tempo, não poderia levantar suspeitas daquela atividade fosse mais do que

ação humanitária, mas também atividade política de um militante comunista decidido a

cumprir à risca suas obrigações com as determinações partidárias.

Assim, com seus préstimos profissionais, ajudou viúvas, órfãos, desempregados que

tivessem vínculos com a resistência democrática à ditadura dos militares no poder. Foi-lhe

incumbido o secreto papel de médico entranhado nas vísceras da sociedade belemense para,

por dentro das instituições nas quais era possível circular (hospitais, com corredores entupidos

de pessoas humildes), contribuir com a resistência pacífica. Esta atribuição tinha um sentido

político para o PCB, segundo a narrativa de Oliveira:

(...) e de 64 a 66 a tarefa principal do PCB era de tentar não se desarticular,

tentar manter o mínimo de articulação, o mínimo de aproximação entre seus

dirigentes que estavam soltos ou foragidos para poder se dedicar àquilo que

era o mais importante na época, que eram as tarefas de solidariedade. Tinha

gente presa, tinha gente sendo demitida. Então, de repente essas tarefas de

solidariedade passaram a ser uma contingência muito forte a ponto de nós

termos que dar prioridade a elas e não às ações políticas. Quer dizer, era

importante manter a sobrevivência das famílias, conseguir advogado para

quem estava preso, essa coisa toda. E aí aconteceu uma coisa que no meu

caso é específico porque foi praticamente somente comigo que isso

aconteceu. (OLIVEIRA, depoimento em 14 de setembro de 2011). – grifo

meu.

Há uma riqueza muito grande na informação de Oliveira, pois é o sujeito desta

pesquisa que abandona por completo o estereótipo de sujeito resistente ao Golpe Civil-Militar

por meio das táticas usualmente conhecidas e inova ao arquitetar ardilezas só possíveis

quando travestido pela identidade de médico. Ou seja, não fez poemas, não criou peças

teatrais, não compôs canções de protesto, não publicou manifestos. Pelo contrário, seguiu sua

rotina de exercício da Medicina junto aqueles mesmos que já vinha mantendo estreitos

contatos. Simultaneamente, criava laços de aproximação junto a sujeitos e/ou grupos ainda

distantes de seu conjunto de ideias. Cativar e seduzir adeptos para a causa comunista com

atitudes humanitárias foi a tática de Alfredo Oliveira para lidar com a censura e eventuais

espionagens. Deste modo, as “tarefas de solidariedade” ganharam novas roupagens. Eram

Page 69: No Crepúsculo

78

gestos políticos de aproximação com as massas e, ao mesmo tempo, suporte pedagógico de

subsídios às massas

Portanto, afastar-se das discussões públicas não foi necessariamente um alijamento

das lutas contra a Ditadura Civil-Militar. Sob orientação do PCB o médico Alfredo Oliveira

cumpria duplo papel. Primeiro, mantinha a coesão do Partido no Pará ao manter-se próximo

das massas, buscando advogados para camaradas e criando meios de sobrevivência para as

famílias desamparadas. Eis o conjunto de táticas do Partido para manter essa aproximação.

Segundo, seguia medicando conforme planejamento de sua carreira médica, mas mantendo a

postura de militante fiel às sugestões do PCB. Cumpria o papel de agente duplo.

Esta informação é sumamente necessária para compreender e desmistificar as

acusações de apatia do PCB diante da Ditadura militar. Ao contrário do que pudesse

aparentar, a invisibilidade voluntária foi uma tática extremamente eficaz para manter a coesão

em torno dos membros pecebistas. Ou, no mínimo, criaram-se vínculos de gratidão e

dependência contínua entre aqueles que recebiam algum tipo de ajuda e os solidários

camaradas que prestavam auxílio. Alfredo Oliveira explica melhor como funcionava essa

relação:

(...) até porque independente da assistência médica tinha o problema da

confiança, a pessoa podia estar foragido, podia estar escondido e você não

podia mandar um médico qualquer lá tratar a pessoa. De maneira que o

partido aqui deu prioridade absoluta para isso, então eu fiquei a partir de 66

mais ou menos, eu fiquei desobrigado de participar de reuniões, de coisas

que pudessem chamar a atenção da repressão sobre a minha pessoa e me

impedir de fazer o que era fundamental e só eu podia fazer que era dar

assistência médica aos companheiros, aquilo que a gente chamava de socorro

vermelho, né?! (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).

Assim, o socorro vermelho narrado por Alfredo Oliveira deixa de ser tão somente

uma atitude de préstimo médico e assume outras possibilidades de entendimento. Dentre tais

entendimentos ressalto a postura política enquanto sujeitos culturais que tais voluntários

assumiram. Exercer a prática médica, consultar, visitar, receitar, diagnosticar eram táticas

camufladas para aproximar-se das massas e semear as posturas de resistências tão necessárias

para aqueles tempos de censuras e agressões aos direitos civis. 25

25 Refiro-me aos Atos Institucionais criados para justificar medidas autoritárias. Foram 12 Atos, com destaque

para: a) AI-2 (1965) que acabou com o pluripartidarismo e criou o Bipartidarismo; pretendia silenciar os partidos

de oposição nas esferas da Câmara de Deputados e Senado Federais, colocando-os na ilegalidade; b) AI-5 (1968)

que chegou a determinar a suspensão dos Direitos Constitucionais do Cidadão, destacando-se a

institucionalização da Pena de Morte para casos de urgência e necessidade, segundo a lógica dos próprios

militares.

Page 70: No Crepúsculo

79

Em 1981, em momento de abertura “lenta, segura e gradual”, sob coordenação do

presidente militar João Batista de Oliveira Figueiredo, começou nova atividade política, desta

vez, como escritor. Era chegado o momento de deixar vir à tona suas dolorosas memórias dos

tempos de perseguições, prisões, censuras, mortes. Em 11 publicações tangenciando os

tempos de ditadura, sob diferentes verbetes e sempre embasadas em pesquisas documentais e

memorialísticas, assumiu sua faceta identitária de escritor. Ao longo de 21 anos de

experiência autoritária, acumulou cabedal para externar suas memórias por meio de obras

publicadas a partir da década de 1980, sempre com uma escrita de dedo em riste.

Era a testemunha ocular da história e, portanto, compreendia a importância de sua

narrativa para denunciar aquilo que entendia como injustiças do regime opressor. As gerações

futuras, em especial, sua própria geração e ele próprio lhe cobrariam sua condição de

comunista fiel aos seus ideais e a sua história.

Na entrevista concedida em 14 de setembro de 2011, em sua confortável sala na

Avenida José Bonifacio, no bairro de São Braz, Belém, Alfredo Oliveira assumiu-se como

“ex-comunista”. Após a criação do PPS, em 1992, o PCB foi refundado oficialmente em

1993, com Raimundo Jinkings à frente do processo local. Nesse PCB refundado, Alfredo

Oliveira continuou a atuar, até que a secção do Pará foi desativada em 2004. A partir deste

momento compreendeu, então que “além do desaparecimento organizativo, havia o problema

resultante de um esgotamento histórico de certos aspectos inerentes à visão anteriormente

defendida para a construção da sociedade socialista”. Portanto, sem concordar com as

diretrizes do novo partido, também não aceitou continuar filiado a uma perspectiva partidária

carente de atualização doutrinária à altura da luta pelo futuro do Socialismo. Alegou que o

novo partido estava “igualmente reduzida a um pequeno grupo nacional sem o mínimo poder

de ligação com as massas e apenas usando o nome do PCB em função de épocas eleitorais”.

Abaixo, fica clara a nova postura do Partidão em buscar atualização com os novos tempos

democráticos.

Além do avanço crescente das ideias e propostas renovadoras que os

principais dirigentes do Partido assumem publicamente e que se chocam

com a estrutura orgânica defasada, (...) É assim que a nova direção pecebista,

com amplo respaldo das direções estaduais, decide convocar o X Congresso,

extraordinário, para janeiro de 1992, em São Paulo, o qual dando seqüência

às profundas mudanças iniciadas, altera o nome e a sigla de Partido

Comunista Brasileiro – PCB para Partido Popular Socialista – PPS. Setenta e

dois por cento dos delegados escolhidos em todo o país chancelam nos

encontros preparatórios a decisão aprovada por 71% dos membros do

Diretório Nacional, quando definem a convocação do encontro

extraordinário. O nome PPS recebe 58% dos votos e o do Partido

Page 71: No Crepúsculo

80

Democrático de Esquerda – PDE alcança 38%. O PCB é o primeiro PC no

continente a mudar radicalmente sua política, sua estrutura orgânica e sua

simbologia (extraído de “A História do PCB-PPS”, disponível em

http://migre.me/5YXDX. - acessado em 23/10/2011, às 21h46.).

Essa guinada de postura do partido incomodou Alfredo Oliveira a ponto de

abandonar definitivamente a composição do PPS, mas se manter fiel aos ditames comunistas

que defendeu na mocidade. As razões para essa decisão não serão discutidas neste momento.

Por ora, me basta constatar que o apoio das novas fileiras nas votações internas para a

metamorfose do antigo PCB não foram digeridas pelo depoente.

O ambiente autoritário produzido no Brasil a partir de 1964 foi duro especialmente

para os sujeitos culturais cujas atuações exigiam o exercício pleno da liberdade; exigência

paradoxalmente inversa às aspirações políticas dos golpistas. Neste texto, optei pelas

memórias deste ex-comunista, relatadas por meio de entrevista e através de leitura do livro

“Cabanos e Camaradas” (2010). A decisão metodológica de privilegiar as memórias de um

ex-comunista implica numa opção política de alijamento da versão oficial dos militares, os

quais por muito tempo não permitiram outras narrativas acerca do período em tela.

Page 72: No Crepúsculo

81

2.2 André Avelino da Costa Nunes Neto

Nasceu em 10 de novembro de 1939, na Santa Casa de Misericórdia, em

Belém. Filho de Anfrísio da Costa Nunes e Francisca Gomes da Costa

Nunes. Com dois meses de idade chegou ao Seringal Paraia no rio Iriri,

município de Altamira, onde seus pais viviam, ele sergipano e ela cearense.

Soldados da borracha, como se dizia. Eram tempos de guerra. Fez o curso

primário no Grupo Escolar de Altamira, no Grupo Escolar Barão de Rio

Branco e no colégio Suíço-Brasileiro em Belém. Depois, o ginasial no

Colégio do Carmo, salesiano e Colégio Nossa Senhora de Nazaré, marista.

Cursou a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do

Pará, sem, entretanto concluí-la, por causa do golpe militar de 64. Militou

ativamente no Movimento Estudantil, como secundarista, na UESP – União

dos Estudantes Secundarista do Pará e, como universitário, na UAP – União

Acadêmica Paraense. Aos 17 anos de idade entrou para o Partido Comunista,

então, na clandestinidade, militou na Juventude Trabalhista do PTB, partido

que dava guarida aos candidatos comunistas, no Sindicato dos Bancários

(Banco de Crédito da Amazônia, onde foi perseguido pela ditadura),

delegado da CONTEC/CGT no Baixo Amazonas. Profissionalmente,

passados os primeiros tempos, tempos difíceis da ditadura, foi vendedor,

pequeno empresário e consultor de marketing. Casado há 45 nos com Maria

Esther Bentes da Costa Nunes é pai de 4 filhos, André, Fernando, Pedro e

Lafayette e, 8 netos. Hoje mora em Marituba, às margens do rio Uriboca,

onde tem um restaurante rural, ao qual deu o nome de Terra do Meio, em

homenagem àquela região do Vale do Xingu, que considera sua terra natal.

Ali, em Marituba, em um sítio na beira (nascente) do Rio Uriboca, onde tem

um restaurante rural, continua a plantar árvores, escrever livros, crônicas,

contos e causos, fazer licores e perfumes do mato. 26

O texto acima é um esboço autobiográfico escrito pelo próprio André Avelino da

Costa Nunes Netto, um dos memorialistas de “1964. Relatos subversivos”, publicado em

26 Breve autobiografia disponível em http://migre.me/6cAq6 - acessado em 03.03.2011 – às 21h23.

André Avelino da Costa Nunes Netto

Foto: Jaime Cuéllar Velarde – Belém (PA), 11 de setembro de 2011.

Page 73: No Crepúsculo

82

2004, por ocasião das comemorações dos 40 anos de Golpe Civil-Militar no estado do Pará. O

título de seu texto no livro é “Não me prenderam, não me bateram e não mudei de opinião”.

Ao ser indagado sobre a razão do título, respondeu-me que de fato não havia sido preso, que a

repressão não o colocara na cadeia e que nunca mudou de opinião sobre as ditaduras de modo

geral. Então, se não houve prisão e violência, é correto afirmar que não houve repressão? Suas

memórias, seu fazer social e, principalmente, a contundência de suas memórias são mostras

de que as agruras da Ditadura militar na Amazônia tiveram amálgamas de crueldade e

desfaçatez despejados sobre os sujeitos culturais que ousaram questionar o poder instituído

em 1964.

Cheguei a seu restaurante rural, nos arredores da cidade de Marituba no dia 11 de

setembro de 2011, manhã de domingo. Estava tranquilo quanto aos rumos daquela entrevista,

pois minha presença foi acolhida calorosamente quando estabeleci o primeiro contato com

André Nunes Netto. A boa recepção talvez tenha sido em decorrência do anúncio prévio sobre

a razão da visita naquela manhã. Havia dito sobre a importância do tema, de seu nome ter sido

citado na participação na resistência, da rala produção na historiografia regional sobre a

temática do golpe e regime civil-militar e, principalmente, da importância daquele momento

para a escrita de nossa história amazônica. Por tudo isso e pela elegância e jovialidade

daquele senhor, que o uso das bengalas em nada denunciavam as mais de 6 décadas de vida,

fui tratado com reverência.

Seria ingenuidade não constatar este momento como o ponto onde estavam fincadas

as estacas de uma delimitação mútua de territórios. Da minha parte e da dele, projetos

políticos distintos se tangenciavam naquela entrevista. Eu, mestrando em construção de

dados, bibliografias, teorias e metodologias. Ele, sujeito cultural consciente da importância de

sua narrativa para dar novos sentidos à sua trajetória, como personagem da esquerda

amazônica, como sujeito da história. A temática da Ditadura militar nos unia naquele

momento. Não podíamos desperdiçar a oportunidade que a História nos apresentava.

Meses antes daquela manhã de onze de setembro eu fizera um breve levantamento da

trajetória de meu depoente ao longo dos anos após 1964. Por ser um sujeito dissidente ao

regime e formado no Curso de Economia, da Universidade Federal do Pará, acreditei ser

possível “pescar” alguns artigos em jornais, prêmios, publicações, ou coisas do gênero para

mapeá-lo. Sem êxito. Seu nome inexistia no banco de dados do site CNPq (Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ou seja, não havia de fato

publicações científicas assinadas por aquele depoente.

Page 74: No Crepúsculo

83

Diante do estrondoso vazio, busquei novamente o livro de memórias “1964. Relatos

subversivos”, desfolhei os relatos até um derradeiro depoimento e deparei-me com uma

identidade bem mais sui generis que a dos demais atores desta dissertação. Aparentemente,

André Nunes havia iniciado sua emersão das brumas do silêncio aos sessenta anos. Apontarei

adiante ser este um engodo.

De fato, não havia produção acadêmica intelectual de sua autoria anterior aos

sessenta anos e isto estava atestado em depoimento no “1964. Relatos subversivos”.

Normalmente o editor, ou seja lá quem estiver encarregado de coordenar a

obra de um escritor, é quem deve escrever o currículo do próprio. Sempre na

terceira pessoa. Geralmente começa assim: Fulano ou, melhor ainda, o

professor fulano, curso essa ou aquela universidade, pós-graduou-se naquela

outra, e por aí vai. No meu caso, acho que não encontraram nada de tão

relevante e resolveram pedir minha colaboração. – André, manda o teu

currículo. Não disseram mais nada. (...) Isso é moleza. A minha vida inteira

passei escrevendo currículos para empregos e prestação de serviços. Basta

abrir a pasta “currículos” do computador e encontrar pelo menos uma dúzia

deles. Para todos os gostos. (...) Quando abri a tal pasta, caiu a ficha. Não era

nada disso. Só encontrei dados sobre minha vida pessoal de vendedor

(Nunes Netto, 2004, p. 243).

A auto-constatação de ausência de uma carreira acadêmica lhe fazia falta? As

palavras eleitas para apresentar-se ao público leitor de “1964. Relatos subversivos”

transmitiam um ar nostálgico por aquilo que não aconteceu. Afinal de contas, fora um

estudante do Curso de Economia no centro de referência intelectual da Amazônia, a UFPA.

Sua família detinha algumas posses no município de Altamira, por isso não se pode dizer que

cumpriu o papel de pobre estudante sem dotes financeiros ou intelectuais. Sua intenção ao

mostrar que “caiu a ficha” por não ser professor e/ou pós-graduado era condizente à

frustração de uma identidade que já havia sido assumido nos anos 1960. Nos tempos que fora

um filho de família abastada do interior do estado e estudante na capital do estado. Mas esta

não era a única faceta de André Nunes.

André Nunes sempre estivera em exílios. Em trânsito dentro de seu próprio mundo.

Num ir e vir a lugares que lhe exigiam assumir identidades condizentes com palcos e públicos

presentes (BHABHA, 1998). Foi assim que Nunes se mostrou quando iniciei a gravação de

nossa entrevista lancei a pergunta “quem era André Costa Nunes?”. Ouviu a proposta inicial e

respondeu calmamente, sem titubear:

Eu tive três personalidades. Diferentes. Três vidas paralelas, inclusive na

minha juventude. Eu tinha a minha turma do seringal que alguns sequer

conheciam Altamira. Outros tinham visto uma máquina de costura.

Page 75: No Crepúsculo

84

Liquidificador? esquece. Eu tinha minha turma do seringal. Turma boa,

ótima, de caçar, de... Do seringal. Eu tinha uma turma da cidade. Era uma

outra maneira de ver e tal. Levei tempo até ter uma bela turma. Até que eu

entrei no Partido Comunista. Então era uma turma ótima. E tinha minha

turma de Altamira. Que eu classificava turma do limbo, que as pessoas

nunca descreveram o que é uma sociedade duma cidade pequena. Nunca

ninguém se ateve a isso. Por exemplo, Altamira era isolada de tudo. Tinha

um barco gaiola por mês. E no mês que ele quebrava eram dois meses para

ele chegar lá. Levava 07 dias de Belém para o Porto de Vitória (do Xingu) e

essa turma de lá era a turma do Limbo. Porque era turma do limbo, porque

eles eram a classe média de lá. Os remediados. Eram os filhos dos

comerciantes, dos seringalistas, dos agricultores bem sucedidos, dos

funcionários do Banco da Amazônia, do Banco da Borracha, na época, do

Banco do Brasil, dos Correios, Federais, esse troço todinho aí. Essa moçada

era aquela que dormia a sesta. Depois da sesta tomava um banho e ia para

pracinha ou para calçada ou os mais novos, brincar de roda. Eles tinham um

pavor do rio Xingu, não tinham nenhuma intimidade com a mata e como em

toda cidadezinha é assim, eles eram os mauricinhos, como se diz hoje. E na

cidade [Belém] eles eram caipiras. Então eles estavam bem no meio. No

limbo. Eles ‘não eram’ (Nunes Netto, entrevista em 11 e 13 de setembro de

2011).

Homem simples, do seringal, filho de migrantes nordestinos. Esta era uma das

opções que Nunes gozava para apresentar-se. E sabia tirar proveito disso. Mas também soube

tirar proveito da condição de “remediado”, da turma “do limbo”, na cidade natal, em

Altamira. E, quando atuava em Belém, sabia fazer-se membro do Partido Comunista.

Ao longo de sua narrativa, André Nunes fez bem o jogo das identidades. Não

demonstrou sofrimento pela movência da identidade, pelo contrário, mostrou-se astuto para

tirar proveito das camuflagens oportunizadas. Bem mesclou/separou as identidades quando

lhe foi necessário para manter-se de pé, vivo, atuante, no front (HALL, 2006).

Desde os 17 anos, figurava entre os quadros do Partido Comunista em Belém. A

repressão sabia disso e, por este motivo, lhe conferiu status de “subversivo” digno de ser

perseguido pela precoce opção política e, mais tarde, com o AI-5, foi exonerado do cargo de

economista do Banco de Crédito da Amazônia. Passado este momento crítico fim de sua

carreira de bancário, precisou buscar novas fontes de renda. Rondou balcões na condição de

vendedor, montou uma pequena empresa de fabricação de brinquedos que, segundo ele, só

causava prejuízos, hoje é garçom e proprietário de um restaurante rural. Sua carreira

acadêmica foi destroçada pela repressão e sobre isso não mencionou palavra ao longo da

entrevista. Restaram-lhe as memórias e a destreza para produzir textos.

Andei publicando algumas crônicas e ensaios acadêmicos, chochos, sobre a

Amazônia, política e economia. Depois dos sessenta anos de idade, resolvi

ser escritor. Na vera. Em setembro de 2003 publiquei meu primeiro romance

Page 76: No Crepúsculo

85

– A Batalha do Riozinho do Anfrísio. Gostei muito e, sem cabotinismo,

recomendo. Como deu certo, peguei corda. Mais dois estão no prelo (Nunes

Netto, 2004, p. 244).

Aparentemente, como foi dito acima, houve um tardio despertar para o

enfrentamento ao regime militar e suas mazelas. Entretanto, este sujeito cultural agiu pelas

bordas ao longo da ditadura. Lançou mão de táticas bem escamoteadas para agir junto às

populações mais simples. Afinal de contas, tinha instrumentos, recursos e malícias para

infiltrar-se no cotidiano e vivências das populações das matas e rios sem parecer um estranho.

Poderia disseminar ideias, incutir opiniões, propagar sentimentos de indignação, semear

perspicácia.

Para agir pelas fimbrias e construir novos significados ao golpe e regime civil-militar

partia do princípio de que travestir-se de “intelectual” não ajudava muito naquele momento.

Assim, fez questão de criticar duramente aquela categoria muito aceita em meios acadêmicos

com o seguinte depoimento:

O termo intelectual é excludente dos companheiros! É um pouco recente a

banalização dessa classificação de intelectual. Sei lá, alguns anos atrás, meio

século atrás, não era exatamente pejorativa, mas não dizia muita coisa. Não

era. Era elitista. Quem faz cultura Latu Sensu não é pobre. Não vale

raciocinar como Bertold Brecht. Não vale raciocinar pela exceção. Quem faz

cultura, um bico de qualquer maneira, é a classe média. É a classe

privilegiada. Isso nas artes e na música... (Nunes Netto, entrevista em 11 e

13 de setembro de 2011).

Aqui, como em outros tantos momentos da entrevista, André Nunes sorri ao falar. O

corpo levemente inclinado para frente e o tom de voz suave davam mostras de um evidente

interesse pelo assunto do qual tratávamos. A certeza daquele enunciado de crítica profética

soava com tom professoral, mas com extrema cautela e carinho. Como se houvesse uma

tentativa, bastante sábia, em alicerçar-me para uma escrita da dissertação sem compromissos

com tons tradicionalistas. Por esta postura de André Costa Nunes, mantive-me em estado de

alerta para novos sinais corporais ao longo daquela entrevista.

Ao estabelecer analogia entre “produção cultural” e “privilégios”, André Nunes

percebia os riscos de um eventual distanciamento da identidade assumida nos tempos que o

seringal no Rio Iriri27

era seu palco de atuação. Caso se afastasse da identidade interiorana e

27 Um dos maiores afluentes da margem esquerda do Rio Xingu. No município de Altamira (PA), é a maior

expressão hidrográfica, com trechos não navegáveis por conta das pequenas corredeiras. Ao longo de suas

margens, os seringais ainda vigoram como meios de subsistência para os moradores. Além disso, a pesca

Page 77: No Crepúsculo

86

se aproximasse da “intelectualidade”, não teria como cooptar corações e mentes para seus

ideais esquerdistas. Tampouco queria distanciar-se da “turma do limbo”, ou dos amigos filhos

da classe média, em Altamira. Considerando as memórias de André Costa Nunes como

espaço de privilégios para os tempos de Ditadura Civil-Militar, é possível perceber a

severidade crítica aos ditos intelectuais. Vejamos que não se trata de somente uma crítica à

carga semântica do termo, mas à posição assumida e colocada no todo social. Assim, este

sujeito passa pela academia sem grandes propostas de transformações para os grupos que o

rodeiam por fora dos muros.

Talvez os vínculos com as identidades construídas entre cidade interiorana e

seringais tenham sido suficientemente fortes para que tivesse optado pela recusa em assumir-

se como estudante de esquerda do Curso de Economia e partidário do Partido Comunista

Brasileiro. Assumir-se assim, significava a não aproximação das classes sociais mais

humildes. Não foi a tática definida para atuar nos anos de repressão que seguiram ao Golpe

Civil-Militar.

Na ocasião do Golpe Civil-Militar, André Costa Nunes estava empregado no Banco

de Crédito da Borracha, em Santarém (PA). Dentre os narradores de “1964. Relatos

subversivos”, é o único que não estava na capital paraense. Já havia tido notícias do Golpe

Civil-Militar no dia 1º de abril, mas não levou à sério. Somente no dia 02 de abril, no dia

seguinte à invasão da UAP, percebeu tratar-se de uma ação com sérias implicações que

mudaria os rumos de sua vida. Assustou-se com os rumores de que a Polícia Militar e o Tiro

de Guerra estavam em seu encalço. Resolveu fugir. A primeira providência, depois de

arrumar os poucos pertences, foi livrar-se de todos os documentos, livros e outros impressos

comprometedores.

Naquela altura dos acontecimentos, passado o primeiro momento de susto, deu-se

conta do quanto era “pretensioso”. Não deveria temer a repressão militar uma vez que sua

identidade não atendia aos apelos preenchidos pelos ditos “subversivos”. Pelo contrário, não

era sindicalista, tampouco dirigente do PCB, nunca havia concluído a leitura de “O Capital”,

de Karl Marx, e não passava de um inofensivo bancário longe da capital. Ainda assim,

providenciou sua fuga de Santarém (PA) até Belém. Na capital paraense teria melhores

condições de locomoção e chances de esconder-se.

Desta feita, ao narrar sobre o itinerário de fuga da cidade de Santarém, por meio de

uma pequena embarcação fretada e capitaneada por um tal “Comandante Vasco”, aproveitou

comercial e esportiva também é paraticada por moradores e turistas. Na perspectiva de André Costa Nunes este

rio ganha dimensões para além da economia. Ali produziu palcos para explicar aspectos de suas identidades.

Page 78: No Crepúsculo

87

para mostrar eficácia da tática de aproximação e cooptação dos indivíduos mais afeitos à

identidade de homem acostumado com as entranhas dos rios e matas. Segundo André Costa

Nunes, depois de alguns dias a sós no barco com o Comandante Vasco, a certa altura, “já

estava politizado. Era esquerda radical, chamava-me de camarada e aos militares de gorilas.

Só ainda não aceitava esse negócio de reforma agrária.” (NUNES, 2004, p. 229). A narrativa

regada por bom humor, característica constante na postura narrativa, lembra que

Já perto, um farol potente iluminou tudo. Deu para divisar gente fardada na

proa do barco. Foi quando vi o Pedro, com extrema ligeireza, pulando para

trás de um tronco, com a espingarda na mão. Imediatamente saí de onde

estava, com as calças na mão, todo melado de merda, pedindo aos berros

para que ele se aquietasse. Pois bem, a lancha era mesmo esquisita, o pessoal

estava fardado, mas eram apenas mata-mosquitos de um desses órgãos de

combate à malária. Estavam sem óleo lubrificante, viram nosso barco e

vieram pedir um litro que desse para chegar a Santarém. Ainda nos deixaram

uma lata de bolacha e um pacote enorme de leite americano da Aliança Para

o Progresso. Passado o susto, ríamos à toa tomando banho à noite e na

chuva, ainda mais quando o Pedro lembrou que a espingarda não tinha

cartucho. Ele esquecera de comprar (Nunes Netto, 2004, p. 230).

O episódio é significativo e constante nas rodas de histórias de André Costa Nunes.

De um lado, revela o quanto havia sido eficiente seu poder de persuasão com as ideias de

oposição e crítica ao novo regime. Em contato com um homem simples, cujo cotidiano era o

rio Tapajós e afluentes, o Comandante Vasco conscientizou-se porque quem lhe falava era um

“igual”. Alguém que compartilhava das mesmas trajetórias, portanto, alguém de confiança.

De outro, o fato de André Nunes ter recebido solidariedade ao longo de sua fuga da

cidade de Santarém não implica necessariamente numa adesão aos mesmos ideais. É preciso

ser realista quanto ao fato de que a solidariedade se dá a partir de muito outros laços

estreitados nas relações de amizade, trabalho, compadrio, parentesco. Portanto, a ajuda,

dedicação e proteção do Comandante Vasco ao seu companheiro de viagem não pode ser

interpretada pura e simplesmente como um ato de “tomada de consciência marxista”

construída em tão poucos dias de conversas. Há elementos, posturas de vida, trajetórias,

cosmovisões políticas, que precisam ser conjecturadas. Por ora, não serão contempladas nesta

análise introdutória.

Aspecto sobre a identidade de André Nunes a ser salientado é sua condição de recusa

em admitir as nomenclaturas de “resistente”, “dissidente”, “guerrilheiro” ou “partisan”. Ao

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88

contrário de outros sujeitos que usufruem de Bolsas Ditadura28

, este entrevistado é enfático

ao recusar a pecha de “herói” no rol de características de sua identidade. Sobre esta temática,

assume uma postura de crítica à condição de heroi conforme amplia seu relato:

As pessoas se definiam guerrilheiros, resistentes, partisan, aí resumia a coisa

assim. Não me enquadro em nenhum desses quadros. Eu resisti muito pouco

[ao golpe] para ser um resistente, para ser um partisan. Não é por aí. Muito

menos um guerrilheiro. Eu era aquele cabocão chucro que veio estudar em

Belém. No meio desse curso, pintou o Golpe Militar. Eu fui aluno interno no

[Colégio] Salesiano, no Carmo e interno no Marista, no Colégio Nazaré, mas

sempre com aquela postura de cabocão, brigão, discriminado pelo pessoal da

cidade (Nunes Netto, entrevista em setembro 11 e 13 de setembro de 2011).

Nestes tempos em que as batalhas da memória (REIS, 2004) tendem a favorecer

aqueles “subversivos” que outrora já foram anti-herois, a atitude de André Nunes é digna de

nota. O depoente claramente optava por uma linha de ação que, não por coincidência, era

idêntica àquela traçada pelo Partido Comunista Brasileiro logo após o Golpe civil-militar de

64. Não tomaria armas, não adotaria posturas radicais. Enfrentaria a Ditadura Civil-Militar

pelos meios legais do jogo democrático. Sua entrada no Partido Comunista desde os 17 anos

certamente havia influenciado aquela postura ou, certamente, a rígida formação familiar de

migrantes nordestinos habituados a valorizar muito mais a honra também deveria ser

considerada nesta análise.

Ao mesmo tempo em que André Nunes se esgueira das pechas de “heroi”,

“divergente”, “resistente”, “partisan” há paralelo esforço em mostrar-se como “chucro”,

“garçom de restaurante” (de sua propriedade), “escritor tardio”. De posse destas posições foi

inevitável impor-me algumas reflexões: porque este sujeito foi convidado para escrever um

texto numa edição comemorativa dos 40 anos de Golpe Civil-Militar a partir da ótica dos

estudantes no Pará? Afinal de contas, naquela edição era preciso apresentar personagens

significativos para as trajetórias de resistência à Ditadura.

A metodologia desta pesquisa havia elegido sujeitos que houvessem produzido

culturalmente a serviço da coletividade amazônica. E o depoente, ao longo das duas

entrevistas concedidas no mês de outubro/2011 fazia questão de manter-se afastado dos

estereótipos da pesquisa. Então, o que André Costa Nunes desejava mostrar? Estas respostas

emergiram em duas cenas nada homeopáticas.

28 Ver críticas desferidas aos sujeitos que foram, em alguma instância, perseguidos pela repressão da Ditadura

Militar e com o fim do regime tiram proveito disso com ações indenizatórias milionárias contra o Estado. Sem

cair no mérito da questão de haver ou não razão para tais ações reparadoras, André Nunes recusa participação no

rol de resistentes e/ou merecedores da pecha de “herois”. Ver opinião sobre o tema em http://migre.me/6eFPB -

acessado em 12 de novembro de 2011, às 23h45min.

Page 80: No Crepúsculo

89

A primeira está ligada à crise financeira enfrentada tão logo aconteceu seu retorno

para Belém. Como se apresentou ao Banco de Crédito da Borracha ainda teve alguns dias para

obter meios de garantir sustento. Entretanto, sua presença ali no Banco era incômoda para

muitos adeptos do Golpe Civil-Militar. Descreveu assim seus primeiros momentos de crise

financeira:

Voltando aos primórdios de minha volta a Belém: na maior cara de pau,

apresentei-me ao Banco, para surpresa geral. Reaças alvoroçados e alguns

colegas trânsfugas, oportunistas, a toda hora tramavam minha demissão.

Foram dias de muita tensão e perseguição. Um diretor do Banco, depois

deputado federal, Camilo Montenegro Duarte, conseguiu segurar-me por

algum tempo, mas depois foi cassado com base no AI-5 e aconteceu o

inevitável (Nunes Netto, entrevistas em 11 e 13 de setembro de 2011).

Ser bancário na década de 1960, assim como hoje, era obter status de sucesso

profissional. Eram tempos de pouca mão de obra qualificada para o mercado financeiro, ainda

mais para a função de economista de um banco. As faculdades de ensino superior reduziam

sua presença à capital do estado, então o interior ficava desguarnecido da oferta de vagas.

Assim, dadas as condições econômicas de muitos, somente famílias relativamente abastadas

conseguiam manter a estada de seus filhos na capital. E a família de André Costa Nunes

preenchia tal quesito. Seu pai – o velho Anfrísio – era dono de boa parte da área rural de

Altamira, com gigantescas fazendas de gado e alguns seringais. Portanto, ser bancário do

Banco de Crédito da Borracha era consequência de firme projeto de investimento da família

para com André Costa Nunes.

Apesar disto, o narrador não se encaixava no perfil de membro da elite econômica

paraense. Pelo contrário, sua conduta de postar-se como servidor do bem comum fez com que

fosse recrutado para as hostes do PCB. Foi sua postura de fraternidade e completo alijamento

de bens materiais que mais chamou atenção das lideranças comunistas no Pará, quando ainda

cursava o antigo Segundo Grau. E assim se manteve ao deparar-se com o Golpe Civil-Militar

de 1964.

Tal postura de engajamento esquerdista e crítica ao Capitalismo desagradava os

colegas bancários. Ser visto ao lado de André Costa Nunes poderia comprometer a reputação.

Ser taxado de subversivo, como já estava demarcado o depoente, não era desejo de nenhum

membro da fina flor amazônica ou brasileira. Daí se explica a relativa virulência em relação à

sua presença no Banco de Crédito da Borracha dias após o Golpe Civil-Militar. E explica as

razões que levavam alguns colegas a tramar pela sua demissão, conforme narrou acima.

Page 81: No Crepúsculo

90

Naquele momento, portanto, seus nervos estavam à flor da pele. Amigos presos,

“convites” para depor às sete da manhã, mas só recebido tarde da noite, com poucos amigos já

que muitos lhes fecharam a cara e portas. Os namoros também foram grande problema

naqueles momentos, “deviam ser duplamente escondidos”, contou. Não foram tempos fáceis

para um jovem estudante, morador da capital em visitas constantes à cidade de Altamira e aos

seringais do pai. Sua estabilidade identitária, por mais intensos que fossem os trânsitos, foi

inteiramente tirada das zonas de conforto. E, para piorar, veio o AI-5 e a demissão do banco

(sem grandes explicações plausíveis, é bom mencionar).

André Nunes teve que reconstruir seu estilo de vida, trabalho, círculo de amizades.

Muitos dos velhos amigos estavam presos por atender o perfil de subversivos. Outros

simplesmente se afastaram por convicção ideológica ou pressão familiar. A formação

acadêmica também lhe foi cerceada. Abandonar as trajetórias já iniciadas e dar início a novas

partidas foi o grande desafio postado. Talvez tivesse sido um recomeço doloroso, mas

estavam postas novas condições para um sujeito já habituado em outros trânsitos identitários.

Inicialmente foi corretor de imóveis. Vendeu todos os imóveis na Rua Três de Maio,

de propriedade da “construtora Penna de Carvalho & Pinheiro de Souza. Ali acabou a

‘imobiliária’. Apesar do sucesso, nenhum outro construtor teria a coragem do doutor

Angenor”. Inevitável não constatar o ressentimento nesta passagem.

Em seguida, fez-se distribuidor de cimento para a cidade de Altamira por obra de

mais um favor “do camarada Albertino Santos”, gerente do Banco em Capanema. Aos poucos

obteve relativo sucesso, em especial pela ajuda de um caminhão baú de propriedade do seu

pai. Paralelamente, criou uma fabriqueta de brinquedos. Chamou-a Central Park, em um

americanismo provavelmente jocoso, já que se rotulava como comunista avesso aos louros do

capitalismo dos EUA.

Desta vez com um pouco mais de desenvoltura, mas sem lucros palpáveis, já que a

empresa se dedicava muito mais a empregar presos do Partido Comunista que iam sendo

libertos aos poucos. Em maio de 2009 criou um restaurante rural nos arredores de Marituba

(PA). Curiosamente, o restaurante é intitulado “rural”, com o nome de “Terra do Meio” em

alusão aos trânsitos da juventude. Nostalgia, saudosismo, passado ligado ao presente. As

memórias de André Costa Nunes estão ainda encenando as experiências vividas.

A segunda cena fica por conta das publicações na mais recente identidade de André

Nunes: romancista. No decorrer das entrevistas fui presenteado pelas publicações desta

empreitada. Ao folhear brevemente as páginas de “A agenda do velho comunista” (2005)

percebi a temática da ditadura militar. Lugares, nomes, amigos que se foram, camaradas do

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91

Partidão. Estão todos lá. Com “A batalha do riozinho do Anfrísio” (2003) há uma imersão nos

tempos de identidade indígena, cabocla, de tramas centradas e presenciadas por rios e

“riozinhos”.

Apresentados os aspectos seminais das identidades de André Costa Nunes e as cenas

que o credenciam a constar em quaisquer propostas historiográficas sobre a ditadura militar na

Amazônia Paraense, faltava o sentimento de culpa motivador para toda a trajetória de vida e

engajamento nos embates da memória em prol da esquerda. A frase abaixo não deixa dúvidas

desta crise identitária:

Durante muito tempo nutri inconscientemente um sentimento de culpa por

não haver sido preso. Muitos dos meus amigos o foram e eu não fui!

Como tive inveja da bofetada que o Seráfico levou do coronel José Lopes de

Oliveira!

Eu deveria estar no I SLARDES naquela “noite dos cristais”. Na UAP,

quando foi invadida (Nunes Netto, 2004, p. 242).

O que mais queria Nunes Netto? Não ter cumprido o estereótipo do “perigoso

subversivo” o afligia a ponto de nutrir “um sentimento de culpa” por não ter sido esbofeteado

pelo Coronel “Peixe-agulha”, isto ficou claro. Mas que razões estariam por trás de tal

sentimento? Talvez o fato de sua trajetória de vida ter sido sempre de pequeno empresário,

fato imperdoável para marxistas radicais que questionam a exploração da mão de obra em

detrimento da classe dominante. Talvez o fato de não ter sido um destacado “intelectual” da

cena amazônica possa ter causado recalques.

Pelas duas cenas descritas por Andre Nunes Netto há um turbilhão de sentimentos

diversos, múltiplos, moventes, mas fiéis às identidades assumidas. O seringueiro, o citadino, o

estudante de economia, o comunista, o perseguido e aquele que nada sofreu... Este

entrevistado revela estar envolto por muitas certezas, mas também inúmeros remorsos. Há um

sujeito ansioso para mostrar-se pelos textos literários, pelas narrativas prazerosas de serem

ouvidas, pelas memórias dos seringais da Altamira. Esta dissertação é uma chance.

Page 83: No Crepúsculo

92

2.3 Cláudio de Souza Barradas

As linguagens e possíveis críticas do teatro para com a realidade sociopolítica dos

anos 1960, em solo amazônico, interessavam-me incomensuravelmente para tecer esta

dissertação. Por isso mesmo fazia-se imprescindível entrevistar um diretor ou ator que tivesse

vivenciado os anos de ditadura a partir do Golpe Civil-Militar, em 1964. Foi com esta

premissa que Cláudio de Souza Barradas passou a elencar este texto uma vez que sua

importância como teatrólogo para as artes do cenário amazônico é notória no cenário artístico-

cultural de Belém.

Tal reconhecimento se dá por haver um discurso quase homogêneo por parte da

Universidade Federal do Pará que o coloca como sujeito de primeira grandeza na cena da

Amazônia Paraense chegando a homenageá-lo com uma sala de espetáculos em seu nome. É o

Teatro Universitário Cláudio Barradas29

, uma das melhores e bem aparelhadas salas,

localizada na Rua Jerônimo Pimentel, no bairro do Umarizal, em Belém.

29 É um complexo do Instituto de Artes Cênicas do Pará, da Universidade Federal do Pará, e é composto pelo

Teatro Universitário Cláudio Barradas, a Escola de Teatro e Dança e um centro de ensino, pesquisa e extensão

dedicado às artes cênicas e experiências estéticas. Foi inaugurado em 19 de junho de 2009 para atender uma

demanda de diversos grupos artísticos da região metropolitana e outras regiões do estado. Está situado em espaço

nobre da cidade, no bairro do Umarizal, em Belém (PA). Disponível em http://migre.me/7NiG1 - acessado em

04.02.12, às 11h30min.

Cláudio de Souza Barradas

Foto: Jaime Cuéllar Velarde – Belém (PA), 13 de maio de 2011

Page 84: No Crepúsculo

93

O primeiro contato com este sujeito se deu por informações de terceiros. Das

atividades cênicas, construiu fama de sujeito bem humorado, dinâmico e absorto no trabalho,

de opiniões controversas e, muitas vezes, polêmicas. Nutria também a fama de intolerante

com pessoas de “raciocínio curto”. Mais eloquente, todavia, foram os burburinhos causados

pela repentina guinada na carreira artística. A identidade do sujeito ligado ao teatro cedeu

espaço para outra faceta identitária bem distinta daquela experimentada até então: foi

ordenado sacerdote da Igreja Católica em 25 de janeiro de 1992. Atualmente, dirige a

paróquia de Jesus Ressuscitado, no bairro da Marambaia, em Belém (PA).

Dois papeis distintos no palco da vida de Barradas: padre e teatrólogo. Como discorrer

sobre Cláudio Barradas sem adentrar nas dicotomias provocadas por atividades tão distantes?

Diante desta questão sui generis, trilhei por suas memórias. Por meio de duas entrevistas,

obtive informações acerca de sua formação intelectual no bairro do Umarizal, ainda nos

primeiros nove ou dez anos de vida, passando pela breve estada no seminário. Observei ainda

um mergulho nas lembranças das atividades artísticas nos tablados belemenses – com

algumas viagens para outras capitais brasileiras, inclusive a cidade de Manizales, na

Colômbia – até a consagração da vida sacerdotal. Após os dois densos encontros, me atrevo a

afirmar que lidava com papeis imbricados, amalgamados, indissociáveis.

Por essa razão, no intento de dar conta destes complexos perfis identitários tão

distintos e, ao mesmo tempo, imbricados neste sujeito, doravante me refiro a Cláudio de

Souza Barradas como o “padre teatrólogo”.

Pela idade de 82 anos (nasceu em 04 de janeiro de 1930), na década de 1950, na flor

de sua juventude, tinha 20 anos. Era o período em que o teatro, mesmo existindo em grupos e

associações de bairros da cidade de Belém, já se manifestava na cena da cidade.

Os anos 1950 e os primeiros anos da década de 60 também foram palco dos prelúdios

do Golpe Civil-Militar de 196430

, portanto, coincidiam com as primeiras experiências de vida

do jovem Barradas. Tratei de buscar maiores informações sobre o padre teatrólogo neste

período por meio de pesquisas bibliográficas. Num primeiro momento, pouco encontrei.

Diante do aparente vazio de informações escritas, busquei dados junto a paroquianos

ou profissionais com algum contato junto ao padre teatrólogo. Com os paroquianos obtive a

30 Para entender mais sobre o processo de demonização do comunismo na política paraense/brasileira é preciso

remeter-se ao contexto da Guerra Fria e a posição que o Brasil ocupava naquele processo. Sobre as notícias de

jornais em circulação no Pará que, em larga escala, contribuíram para formar opiniões adversas ao socialismo.

Ler a monografia de Especialização em Ensino de História do Brasil, intitulada “O vermelho nas letras de

jornais: uma análise dos discursos anticomunistas na imprensa paraense (1961-64)”. O trabalho teve como

objetivo analisar manchetes de jornais postos em circulação na cidade de Belém nos primeiros anos da década de

1960 e que explicam parte do êxito e apoio das massas ao movimento golpista de 1964.

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94

informação vaga de seu contínuo contato com a produção nos palcos e a vibração de um ator

quando atuava no altar, durante as missas. Mas foi com o diretor de jornalismo da Rede

Nazaré, Marcos Valério Reis, que obtive informações mais concretas acerca da personalidade

de Cláudio Barradas.

Este informante foi valioso na medida em que, pela atuação como jornalista em

coberturas de missas e procissões transmitidas pela TV Nazaré, da Rede Nazaré de

Comunicação, canal 30, já havia estabelecido boa relação de trabalho e amizade com o padre

teatrólogo. Foi Marcos Valério Reis quem me informou apressadamente que o padre, já

calejado pelas inúmeras entrevistas concedidas para pesquisas acadêmicas e/ou jornalísticas,

estava intolerante com perguntas pouco inteligentes. Na ocasião, alertou-me para a

necessidade de traçar aspectos básicos da sua identidade. Ao traçar o primeiro esboço,

constatei que, em função da relação de amizade, os elogios citados não eram poucos, tais

como: astuto, inteligente, rápido, afetuoso. Também surgiram adjetivos pouco nobres, mas

ditos com extrema sutileza, tais como a impaciência com pessoas e atitudes “pouco

inteligentes”. Com estas informações preliminares à entrevista, o padre teatrólogo Cláudio

Barradas foi o único informante desta dissertação que teve uma identidade virtualmente

traçada antes do primeiro contato. Com os demais entrevistados não tive a oportunidade de

conhecer pessoas mais próximas antes das entrevistas.

Em maio de 2011, já de posse dos números de telefone da paróquia e

disponibilidades de tempo, tratei do primeiro contato para entrevistá-lo. Aconteceu por meio

de um telefonema à sua paróquia, no bairro da Marambaia, em Belém (PA). Sua secretária,

conhecendo os protocolos exigentes do padre teatrólogo, habilmente pediu um roteiro de

perguntas. Minha metodologia já havia dispensado tal estratégia de intervenção nas memórias,

mas como havia sido preparado31

não me recusei em enviar. “Por e-mail”, exigiu a secretaria,

demonstrando pouco espaço para uma entrevista na agenda do padre teatrólogo. Meses

depois, em conversas informais, compreendi aquela exigência para filtrar assuntos e pessoas

que fossem de interesse e domínio do pároco. “Não converso nem dou entrevistas sobre coisas

que não sei. Quando tomei ciência das perguntas vi que ali tinha coisa que já tinha me

metido”, disse-me com relação ao questionário que versava sobre Ditadura Civil-Militar e

teatro. A precaução era necessária para não permitir sua imagem em situações que lhe

causassem embaraço intelectual, principalmente.

31 O roteiro de perguntas foi pensado na fase inicial desta pesquisa, mas foi rapidamente abandonado porque a

metodologia de análise das entrevistas seguiram outro rumo. Ao invés de um questionário fixo de perguntas,

optei por deixar os entrevistados livres do roteiro pré-estabelecido. Assim, só receberam o tema central como

mola propulsora de memórias e ficaram à vontade para externar suas lembranças, fatos, frases, lugares.

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95

No caso deste memorialista, foi o único a solicitar com antecedência o roteiro das

perguntas naquela entrevista. Já nos primeiros momentos da entrevista o próprio padre

teatrólogo abandonou o questionário. Aquela atitude de baixar a guarda, conforme sugeria

Portelli (1997), indicava que fui investigado pelo entrevistado e havia sido aprovado para

estar ali. A partir deste momento de permissão de Cláudio Barradas o padre assumia

constantemente o papel de teatrólogo: encenava o corpo e voz de acordo com as situações que

fatos e personagens da memória exigiam.

Aqui é necessário enfatizar que pela minha condição de ser um estranho à zona de

conforto de todos os entrevistados, tive a permanente preocupação de olhar nos olhos e

permitir ser analisado. Com esta postura, pretendi – e creio ter obtido êxito – não permitir

dúvidas quanto a minha honesta pretensão de aprender e colocar a pesquisa à disposição de

um bem comum: a valorização de sujeitos culturais antes negligenciados pela escrita histórica.

Com Cláudio Barradas esta postura foi mais enfática.

Vencida esta mais difícil fase de aproximação, por volta das 20 horas do dia 13 de

maio de 2011, a tranquilidade passou a preencher-me. Havia tempo para mapear o ambiente

daquele encontro. O lugar, escolhido por ele, já lhe conferia mais estabilidade dentro de sua

zona de conforto. Era uma sala com mesa para 08 lugares, estante com muitos livros, fotos de

santos. Estava bem próxima ao escritório paroquial. Onde o padre teatrólogo despachava sua

agenda diária. O ambiente de nossa entrevista, naquele horário, também abrigava reuniões de

outras pessoas ligadas a apostolados, comissões, etc. Assim, a todo instante passavam pessoas

se despedindo, acenando, falando algo. Aos poucos, a sisudez da entrevista começava a

desanuviar mais ainda.

A segunda e última entrevista foi concedida dez dias depois, novamente à noite, no

dia 23 de maio de 2011. Desta vez, o compromisso de seguir o questionário sequer foi

mencionado. Agora, como alertou Portelli (1997), eu próprio havia sido alvo de análise por

parte do padre teatrólogo e, consequentemente, já gozava de certa confiança de sua parte. Essa

certeza aumentou a partir de um curioso fato naquela noite de 23 de maio. Meu telefone tocou

tão logo começamos a sentar na mesma sala e mesa da entrevista anterior. Por respeito à

presença do padre teatrólogo, não atendi e avisei que era o amigo Marcos Valério. O padre

teatrólogo, num rompante me tomou o aparelho de celular, atendeu e começou uma animada

conversa. Ria e se divertia com o interlocutor. Entre risos, avisava que estava concedendo

uma entrevista para mim e o convidou a participar da conversa.

Narro este fato com o intuito de mostrar a dissipação da barreira inicial dos primeiros

contatos com quaisquer tipos de entrevistados. O padre teatrólogo não tratava aquele

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96

momento como uma situação de desconfiança e, consequentemente, deixava os arredios

cuidados e resistências fora daquela conversa, como ele havia se referido à entrevista.

Obviamente, eu havia ganhado sua empatia. E vice-versa.

Quando o Golpe Civil-Militar foi brutalmente imposto à sociedade brasileira, em

abril de 1964, Cláudio Barradas já era um experiente sujeito da cena belemense. Havia

iniciado cedo o exercício de seus dotes artísticos e, portanto, lidar com imprevistos e atropelos

não era algo de todo novo em sua vida. Sobre a construção dessa experiência de vida no

cenário artístico, o padre teatrólogo narra o bairro do Umarizal como um dos fortes elementos

para sua veia artística pois

(...) eu nasci num bairro, naquela época, altamente artístico, o bairro do

Umarizal. Onde, quando em junho havia pássaros e bois e em dezembro

pastorinhas, ou seja, havia o teatro popular feito do povo para o povo. No

Pará tinha isso, uma coisa rara no Brasil. Em junho, pássaros e bois e em

dezembro pastorinhas. Em garoto, eu frequentei esses negócios aí. Eu nasci

numa rua... Hoje a casa que eu nasci é um salão de beleza, Nilce

Cabeleireiro, quando eu nasci era um barracão de zinco, então para mim era

poético ter vivido ali. (Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de

maio de 2011 - Grifo meu).

Segundo a narrativa, as influências culturais do bairro foram responsáveis pelas

tendências “poéticas” do padre teatrólogo. As memórias externadas apontam “pássaros, bois e

pastorinhas” proporcionando a feitura de um teatro autóctone. Ou seja, atribui à produção em

âmbito público responsabilidades para com as vivências domésticas. Daí é possível

depreender a imbricação das práticas cotidianas vindas das ruas do bairro do Umarizal em

consonância com a educação do lar. Nas memórias de Barradas é como se o espaço público-

urbano de Belém, nos idos dos anos 1930-50, fosse extensão ou complemento do espaço

familiar. E vice-versa.

Trilhando pelas memórias do padre teatrólogo, vão surgindo os sujeitos responsáveis

pela sua formação artística. Ao contrário de muitos que atribuem sua formação aos pais ou

outro membro da família, o padre teatrólogo me surpreendeu ao imputar à antiga patroa de

sua mãe as influências artísticas. “Dona Florzinha”, pianista do cinema Moderno, assume o

papel de mentora na medida em que quebra com o estigma de patroa e redimensiona sua

atuação junto ao filho da governanta.

Depois, depois que eu nasci nos mudamos de lá, minha mãe... Porque minha

mãe era governanta da dona dessa casa que era uma viúva e tenho muita

influência artística dessa senhora. Era Margarida Costa de Carvalho, mais

conhecida como Dona Florzinha, ela era pianista e ela tocava no cinema

Moderno, que nesse tempo era cinema mudo, e eu ia com ela, eu era o... E

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apesar de eu não ser o neto verdadeiro, eu era filho da governanta da casa

dela, mas ela me tratava como “o neto”. Os netos dela chegavam lá,

sentavam, não falavam nada e eu mandava na casa. Então, ela me levava, ela

tocava no cinema moderno, debaixo da tela ficava um piano. Ela sentada lá e

eu do lado dela (Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio

de 2011).

O padre teatrólogo ao ser incitado sobre as memórias de sua infância não consegue

fazê-lo sem mencionar a importância da antiga patroa. Mesmo atribuindo sua formação a

outros fatores, como a produção de “pássaros, bois e pastorinhas” feitos no bairro do

Umarizal, dá maior relevo à participação de Dona Florzinha em sua vida, pois “pela década de

40 eu tava metido no seminário e nem sabia de nada do que acontecia aqui, eu entrei em 43 e

saí em 50, nem sabia... Na década de 35 até 42 é que eu tive esse envolvimento porque eu ia

com essa senhora”, completa Barradas. Ou seja, sua formação intelectual se deve muito mais

ao envolvimento afetivo com a ex-patroa de sua mãe, que chegava a tratá-lo como “o neto”,

do que a educação e formação de padres, ao longo de sua estada no seminário. Sobre este

período, adiante detalharei.

Mesmo indiretamente, sua narrativa segue atribuindo a Dona Florzinha parte de sua

formação. Quando aborda sua inclinação para o teatro, lembra do amante de Dona Florzinha

que fora gerente do Cinema Moderno, no qual ela própria chegou a trabalhar como diretora

musical, tocando piano. Sobre a importância do cinema em sua formação, assim narra:

Então, eu tive muita vivência teatral quando garoto e, sobretudo experiência

estética cinematográfica, além do que depois eu vi todos os grandes filmes

mais de quarenta vezes que já se fizeram e aí ponto. Portanto, a minha

influência veio do cinema, não tenho influência na unidade de tempo, nem

de lugar, só na de ação (Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de

maio de 2011).

Assim, com muita clareza, as memórias de Barradas reencenam a infância para dar

conta da identidade artística forjada na incipiência de sua vida. O projeto de exteriorizar a

presença da diretora musical do Cinema Moderno, a relação desta com o gerente, as

facilidades para ingressar nas salas de apresentações, permite-me inferir a existência de um

roteiro didaticamente enumerado para corroborar a densa e longa experiência.

Outro fato a ser registrado é a ênfase na repetição de audições visualizações de um

filme. Pelo tom de voz e pelo sorriso de satisfação, aquela atividade não era motivo de

cansaço para o padre teatrólogo Barradas. A postura corporal, com os braços estendidos sobre

a mesa e o sorriso no olhar estampado no rosto eram constantes nestes momentos da

entrevista. Assim, é possível inferir que a repetição não era sinônima de estafa ou

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98

aborrecimento mesmo porque em seus relatos havia uma alternância de suas idas às sessões

de cinema com as visitas às Casas de Espetáculos, no Largo de Nazaré, em Belém.

Em consonância à influência cinematográfica, Barradas começou bem cedo suas

experiências no palco. Ainda na Escola Externato Misto Santa Luzia já ensaiava suas

primeiras experiências de palco, conforme detalhou

Então, eu comecei a fazer teatro na escola primária, havia um corredor

enorme, nesse corredor, no final de cada semestre faziam, armavam um

estradozinho e os alunos faziam espetáculos, então, eu participei desses

espetáculos. A primeira vez que eu entrei no palco eu fazia “Os anõezinhos

da montanha”, eu era um dos sete anões e logo, tinha uma escada, eu sempre

fui muito desajeitado herdei do meu pai, eu não sou nada prático, quando eu

entrei no palco eu caí e entrei de quatro, o povo já riu da minha entrada, a

minha primeira entrada foi de quatro e não era para entrar de quatro. A

música era essa: “os anõezinhos da montanha, tra lá lá, tra la lá, passam a

vida bem contente tra La lá tra La lá” tu já viste que eu tenho uma boa

memória, eu fiz isso com dez anos ou sete, oito eu estou com oitenta e um,

então entrei...outro, outro eram esquetes, coisas pequeninas outra era as sete

cores, eu era o lápis roxo, naquela época a roupa toda era feita de papel

crepom, eu acho que hoje nem se usa mais papel crepom, eu tava todo de

roxo eu dizia, eu só falava assim: “Eu, o roxo, tenho a cor das violetas”

(Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio de 2011).

O fato de chegar a recordar a música cantada há cerca de 70 anos é mais do que

nostalgia pelos tempos áureos, tampouco está reencenando passagens de vida que lhe

trouxeram prazer. Ao enfatizar a habilidade em memorizar textos, como o enunciado da frase,

metricamente construída e a melodia musical, pretende enfatizar a excelência domínio sobre a

atividade teatral. O padre teatrólogo, ao exibir sua memória pródiga com os detalhes do ritmo

da música e do material utilizado pretendia dar mostras da longa experiência no meio teatral.

Novamente, este momento da narrativa apresentava um sujeito com sorriso aberto e o tórax

avançando, entrecortando as frases. Esta postura revelava que aquela entrevista era espaço

para reencenar gratas memórias.

Retomando ao lugar do Seminário em seu barro cultural, Barradas o situa ainda nas

séries iniciais do Primeiro Grau. Longe desta guinada de vida pudesse tê-lo afastá-lo dos

palcos, sua narrativa aponta a direção inversa, pois os “padres Salesianos gostavam muito de

teatro”, contou. Assim, os palcos ganham sua vida desde a tenra idade, sem hiatos, até os dias

atuais.

Sobre sua permanência junto aos padres, entretanto, há um misto de satisfação e

secura. Ao abordar a rala interação com as primeiras notícias sobre o Golpe Civil-Militar, em

1964, Barradas é enfático em justificar sua tênue participação no processo de resistência “por

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99

ser desligado da política”, mas principalmente pela sua estada no Seminário. Na fala abaixo

há uma ordem sequencial para explicar sua participação política nos primeiros dias daquele

abril de 1964.

Só que como eu te digo, eu era um cara, um sujeito desligado de política.

Inclusive eu me sentia mal pelo seguinte, meu irmão, eu entrei para

seminário garoto, com 13 anos. Garoto de subúrbio, portanto, garoto todo

inocente e fiquei lá até uns vinte. Fiquei oito anos lá, enclausurado. Só

fazendo estudar e rezar. Estudando o dia todo e só saíamos no fim do ano

dez dias para ficar em casa. E como eu gosto muito de estudo, solidão e de

ler. Eu só ficava dois dias em casa e voltava para seminário. E durante a

semana, se saía para passear na quinta-feira, era todo mundo em fila de braço

cruzado andando, eu ficava. Então por exemplo, eu saía às quintas feiras

para passeio, com esse barulho do Ver-o-Peso, eu me sentia mal com essa

confusão. Além do que sou solitário, sou caseiro, não gosto de viajar. As

minhas viagens são mentais e por leitura. Aí, portanto, eu tava meio... Nunca

pertencia a grupo nenhum. Eu me sentia até mal. Gostaria de ter marchado

no dia cinco, dia sete. Nunca marchei na minha vida. Porque eu era

seminarista. Então eu me achava assim um fulano fora da sociedade

(Cláudio de Souza Barradas, entrevista em 13 e 23 de maio de 2011). Grifos

meus.

A primeira frase grifada acima (eu era um cara, um sujeito desligado de política) é

dita com uma parada abrupta no sorriso. O rosto se retraiu. De pronto percebi tratar-se de uma

irritação por conta do desejo de ter tido um envolvimento maior nas tramas políticas de 1964.

Afinal de contas, aquele período foi farto de movimentos da juventude em luta contra as

censuras do regime militar. Ter ficado de fora do processo de lutas, em sua análise no

momento da entrevista, pode ser que constitua uma lacuna dolorosa em sua vida.

Entretanto, ao narrar sobre o período de oito anos em clausura, seu corpo deita sobre

a cadeira. Estufa o peito, eleva o tom de voz, dando mostras de orgulho por ter realizado um

estágio pródigo em sua vida intelectual. O fato de ter passado oito anos debruçado em leituras

o faz um sujeito diferenciado na cena cultural. No momento da frase Fiquei oito anos lá,

enclausurado. Só fazendo estudar e rezar, o queixo é erguido. Como um enxadrista que dá o

último lance no tabuleiro, seu sorriso é de satisfação. Estudar e rezar são como recompensas

pelos anos de clausura.

No último trecho grifado, nunca pertencia a grupo nenhum. Eu me sentia até mal.

Gostaria de ter marchado no dia cinco, dia sete. Nunca marchei na minha vida. Porque eu

era seminarista. Então eu me achava assim um fulano fora da sociedade, retoma o tom de

lamúria pelo alto preço das recompensas. O tórax volta à posição alinhada com o resto do

corpo. O queixo se abaixo até quase tocar o peito e a impressão de altivez se esvai. Esta

postura corporal me deixa entrever a reclusão como dolorosa, mas como motivo de

Page 91: No Crepúsculo

100

sublimação. Suas memórias por algo não vivido são nitidamente marcadas por um breve

sentimento de culpa. É bem provável que esta alternância de sentimentos lhe cause alguma

dor, digno de ser aqui enfatizado como uma das marcas/facetas de sua identidade.

Com este conjunto de depoimentos sobre sua penetração no mundo das artes, o padre

teatrólogo deseja afirmar-se com portador de uma sólida educação pautada no que havia de

melhor na cena cultural da cidade de Belém. Tal afirmativa é ancorada por depoimento

idêntico feito ao “Programa Ribalta: Cláudio Barradas – Memória do Teatro e da Dança no

Pará”, filmado em 2009 e transformado em DVD, por ocasião da inauguração do Teatro

Universitário Cláudio Barradas. A impressão sobre o discurso da entrevista em 23 de maio de

2011 se repete ao assistir ao DVD. Ou seja, com poucas variantes, percebi um texto pré-

concebido e pronto para ser declamado sobre a influência do bairro do Umarizal, dos

“pássaros, bois e pastorinhas de dezembro”, o piano e programas culturais oportunizados por

Dona Florzinha, as repetidas sessões de filmes no Cinema Moderno e as visitas às Salas de

Espetáculos, no Largo de Nazaré.

O discurso sobre sua identidade foi organizado, planejado e executado por Barradas

para dar conta de uma agenda que também o coloca na excelência da cena teatral da região

amazônica. Ao contrário disto ser um problema, constato que há uma busca em pôr em

diapasão as narrativas da memória com a fama conferida pelos discursos oficiais. E vice

versa, uma vez que os discursos oficiais são produzidos por pessoas de seu circuito e não há

desejo em fazer ruir a imagem construída.

Por esta razão, o padre teatrólogo Cláudio de Souza Barradas consta no rol de

entrevistados desta dissertação. Por cumprir o papel de sujeito cultural que, logo após a

deflagração do Golpe Civil-Militar, em 1964, não cessou suas atividades teatrais. Assim, a

crítica e postura de questionamento à ordem vigente foram sutilmente manifestas em favor do

processo de redemocratização do país.

Page 92: No Crepúsculo

101

2.4 Dulce Rosa de Bacelar Rocque

No momento da gestação deste texto, o Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque

(UFAC), na condição de Examinador do texto de Qualificação da dissertação, incitou-me a

buscar uma escrita cuja participação feminina não estivesse invisibilizada pela visão

falocêntrica há muito tempo presente na historiografia tradicional. A observação de

Albuquerque permitiu-me avançar em perspectivas ainda não pensadas para esta arquitetura

textual. Afinal de contas, o papel ativo de mulheres em movimentos políticos na Belém dos

anos 1960 não era algo improvável, pelo contrário, seria perfeitamente plausível tal presença.

Cabia à pesquisa identificá-la.

As narrativas desta pesquisa e demais produções acadêmicas da região Amazônica

sobre ditadura não mencionavam tal presença, por isso, fez-se necessário investigar mais

sobre o viés que se apresentava naquele momento. Assim, imbuído pelo propósito de

encontrar a participação de mulheres no processo de resistência ao golpe e Ditadura Civil-

Militar, de 1964, iniciei telefonemas aos entrevistados e varredura pela rede mundial de

computadores. Ao enveredar nesta nova pesquisa, recorri novamente aos maiores expoentes

Dulce Rosa de Bacelar Rocque

Foto: acervo pessoal de Dulce Rosa – Itália/Bologna – sem data informada

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102

da produção sobre o período. Assim, adensei a leitura sobre Alfredo Oliveira (2010), Pere

Petit (2003), Tony Leão da Costa (2008) e Raquel Cunha (2008). 32

Seguindo a investigação em edições on-line de jornais, encontrei uma entrevista

sobre uma mulher chamada Dulce Rosa de Bacelar Roque saída do Brasil em 1969 por conta

do Golpe Civil-Militar. A matéria fora publicada pelo jornal O Liberal, em 04 de janeiro de

2009 e versava sobre seu retorno ao Brasil em 2004. Dizia ainda sobre sua formação

acadêmica no Brasil (havia cursado a Faculdade de Ciências Econômicas, pela Ufpa), na

extinta União Soviética (ali estudou Economia Política) e na Itália, na cidade de Bolonha

(nesta cidade cursou Economia e Comércio, fez pós-graduação em Programação Econômica

do Território, além de Direito Público).

Este achado da pesquisa havia se concretizado em poucas horas de pesquisa. Daí,

sem titubear, cheguei a pensar não haver problemas para rastrear outras personagens e ampliar

a sugestão dada por Albuquerque no momento da Qualificação. Ledo engano. As dificuldades

para encontrar outras mulheres dispostas a indagar suas memórias acerca dos tempos

ditatoriais foram muitas. A professora Violeta Loureiro, já havia figurado na monografia de

Raquel Cunha, mas estava em viagem no exterior. Ao mesmo tempo, novas personagens se

fizeram impossíveis para compor este texto. Portanto, Dulce Rosa de modo bastante corajoso

irá figurar nesta escrita como a representante feminina que não se opôs a hastear a bandeira

feminina no conjunto de astúcias para combater a Ditadura Civil-Militar. 33

32 Alfredo Oliveira, em trabalho de memórias pessoais, intitulado “Cabanos e Camaradas”, publicado em 2010,

versa sobre o Golpe Civil-Militar e destaca os mais relevantes personagens do Partido Comunista Brasileiro, ao

longo do século XX. Este memorialista, na condição de médico, tem o honroso papel de mencionar a

participação de mulheres junto aos maridos, bem como na ação direta de embates contra a ditadura militar.

Chega inclusive, por feliz coincidência, a destacar a importância do papel de Dulce Rosa na luta junto ao PCB

contra a Ditadura Civil-Militar. A esta companheira do partidão dedicou duas páginas.

i. Pere Petit, com “Chão de Promessas – elites políticas e econômicas no estado do Pará pós 1964”, lançado

em 2003, não chegou a mensurar a atuação feminina no período posterior ao Golpe Civil-Militar, em

1964. Cabe ressaltar que este autor carrega a importância de ser a principal referência acadêmica sobre o

período em tela.

i. Tony Leão da Costa, em dissertação de Mestrado, em 2008, cujo enfoque em História Social da

Amazônia, sob o título “Música do Norte: intelectuais, artistas populares, tradição e modernidade na

formação da MPB” no Pará (anos 1960 e 1970), tem o honroso mérito de desvencilhar-se do olhar

puramente político e economicista. Sua análise recai especificamente sobre a relação musical com os

acontecimentos pós 1964 no Pará.

ii. Raquel Cunha, em monografia de conclusão de curso, em Ciências Sociais/antropologia, no ano de 2008,

sob o título “Um olhar à cidade de Belém sob o golpe de 1964: paisagens e memórias de estudantes e

artistas”. Cunha apresenta, dentre outras, a narrativa da Prof.ª Dr.ª Violeta Refkalefsky Loureiro

(Socióloga/UFPA). É o primeiro trabalho de pesquisa sob a temática da ditadura e metodologia da

História Oral que retirou a ação feminina da invisibilidade histórica.

33 No lançamento do livro “Bússolas”, de José Seráfico de Carvalho, em maio de 2012, havia dezenas de amigas

do nobre autor e contemporâneas ao Golpe Civil-Militar. A maioria era de colegas de faculdade. Portanto,

haviam presenciado ou “ouvido dizer” sobre as prisões e angústias do colega Seráfico. Ao buscar contato com as

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103

Em um telefonema para André Costa Nunes obtive êxito para o primeiro contato com

aquela possível narradora. Forneceu endereço, e-mail, contato telefônico, nomes dos pais,

irmão. A surpresa diante daquele rol de informações tão claras chegou a assustar-me.

Explicou que ambos eram amigos desde os tempos de Faculdade de Economia, ainda em

1964, daí a facilidade em divulgar informações tão ricas.

Ao telefonar para tratar da possibilidade em conceder uma entrevista para a pesquisa

de memórias sobre a ditadura militar na Amazônia Paraense, Dulce Rosa foi prontamente

acessível. Como se conceder entrevistas fosse parte de seu cotidiano, aquiesceu. Ao longo do

telefonema foi muito amável e tratou-me como trata a um velho amigo. Por fim, marcamos

duas entrevistas ainda por telefone: 28 de dezembro de 2011 e 07 de janeiro de 2012.

Dulce Rosa recebeu-me em sua casa no bairro da Cidade Velha, em Belém (PA).

Local bastante aprazível e diferenciado no espaço urbano da capital paraense. No trajeto, fui

constatando aspectos diferenciais daquele bairro e, principalmente, da privilegiada localização

da casa. Foi construída bem à diagonal da Igreja do Carmo e do tradicional Colégio do

Carmo. À frente, a Praça do Carmo, com suas mangueiras frondosas de frutos pela temporada

própria do mês de dezembro. Meninos brincando na praça davam um ar bucólico à cena. Os

casarões antigos, cuja arquitetura obedece à tradição portuguesa, estavam mal cuidados,

inertes no tempo, à espera de reformas emergenciais, mas ainda com o glamour dos tempos

áureos dos louros da borracha para as elites belemenses do início do XX.

No mês de dezembro, em Belém, as chuvas são constantes, então havia um ar de

frescor na tarde, um cheiro de chuva que acabou de cair. Todo o ambiente é muito

diferenciado do restante da cidade. Por isso, por todo este estranhamento, ao chegar até a

frente da casa, onde a entrevistada já estava em pé esperando, tratei de parabenizá-la pela bela

localização do lar. Sua resposta foi um doce sorriso que me fez brincar com seu nome tão

logo entrei na sala: “Dulce, doce, Rosa, flor... Vai dar para criar um bom título”, lhe disse

com o intuito de enviesar uma entrevista com todos os rigores necessários previstos pela

metodologia, mas sem formalidades ou sisudez. Novamente sorriu. Com isso percebi tratar-se

de uma mulher com excelente senso de humor.

Dulce Rosa foi sentando e começando a falar sem que eu tivesse tempo de ligar e

posicionar a filmadora ou explicasse novamente os intentos da pesquisa. Sobre a temática da

mesmas, a recusa foi imediata. Aconselharam-me, inclusive a “deixar aquilo de lado, pois havia sido tudo tão

chato”. Outras, fechavam-se em couraças não permitindo sequer avanços nas perguntas sobre aqueles tempos.

Conclui, para aliviar minhas inquietações acerca daquelas recusas, que o papel feminino dos anos 1960, para a

maioria, excluía o envolvimento em questões políticas. O “tempo da mulher”, por ser ainda uma sociedade

falocêntrica, devia ser voltado para “questões do lar” ou “do trabalho”.

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104

minha presença ali só havíamos falado por telefone dias antes. Pareceu-me que já havia sido

informada sobre a importância desta dissertação, assim como aspectos de minha pessoa pelo

amigo comum que intermediou nosso encontro: André Costa Nunes.

Nos momentos iniciais de sua fala eu estava preocupado em encontrar o fio condutor

que a justificasse na dissertação como sujeito cultural das táticas de resistências no Golpe

Civil-Militar. Isso ocorreu sem que eu a incitasse por meio de intervenção direta ou

indiretamente. Conforme já mencionei, a metodologia desta dissertação tem como diferencial

ausentar-se de um roteiro específico ou comum de perguntas a serem feitas aos entrevistados.

Desta forma, livre para selecionar quais memórias lhes fosse mais convenientes operar

naquelas circunstâncias da vida, Dulce Rosa aflorou recordações sobre os primeiros dias do

golpe e prisões.

Digamos que veio o golpe, eu acho que é mais importante falar esta ocasião

aí, quando aconteceu o golpe, no primeiro dia de aula, no dia 02 de abril

depois do golpe estava tudo muito estranho na faculdade, metade dos alunos

tinha desaparecido, porque mesmo se tu não eras comunista tu tinha feito já

atividade ou tu era da AP (Ação Popular) ou tu era católico paraticante,

também fazias política, estava muito estranho tudo, não. Os colegas tinham

desaparecido e tinham se escondido e durante muito tempo ficaram

escondidos. Pouco a pouco começaram a voltar, mas alguns foram presos.

Foram presos até mesmo no dia primeiro, no dia dois [de abril] porque

quando se descobriu que era verdadeiramente um golpe as pessoas

começaram a tentar se esconder e a fugir, mas ainda saiam pelas ruas, então

alguns foram presos aqui pela [rua]16 de novembro (Dulce Rosa Bacelar

Rocque, entrevista concedida em 28/dez./2011). Grifos meus.

Esse dado, de que os alunos tinham desaparecido da faculdade, é novo dentre as

informações fornecidas pelos narradores. Em “1964. Relatos Subversivos”, por exemplo,

estão as memórias do primeiro dia do Golpe Civil-Militar. Ou seja, trata das prisões de

estudantes presentes na reunião da UAP, na noite do dia 1º de abril daquele ano de 1964, em

Belém (PA). Curiosamente, mesmo parecendo óbvio que os estudantes estivessem retraídos e

receosos de novas prisões, ainda não havia narrativas sobre esse momento específico de pós-

golpe vivenciado pelos estudantes em Belém. Dulce Rosa, diferenciando-se, traz à tona o

segundo dia daquele momento.

Ao desvelar esse episódio, a entrevistada o faz com as mãos em constantes

movimentos de apertar um objeto inexistente. Sua voz suave não condiz com a movimentação

rápida das mãos. Um aparente nervosismo é visível. Corpo, voz e gestos, nessa convivência e

interação com Dulce Rosa, transformam-se em textos complexos e contraditórios de leitura. A

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105

metodologia da História Oral, quando explorada para além de seus dados objetivos, permite

alcançar sentidos da rede que costura a vida humana.

Os olhos, janelas d’alma, como diz o velho ditado popular, a todo instante buscavam

o teto como em uma tentativa de esquadrinhar e não deixar passar detalhes. Mas o olhar

sempre levantado para o teto também me pareceu apreensão em buscar as palavras com a

cautela necessária para uma narrativa com responsabilidade em não criar réus. Talvez estas

lembranças não lhes fossem confortáveis. Ou a movimentação rápida das mãos fosse causada

pelo desconforto de relatar fatos vividos a um interlocutor ainda pouco familiar.

Apesar da palavra medo não ter sido mencionada neste momento da narrativa, foi

esse o termo que Dulce Rosa buscou não dizer para explicar tais ausências de estudantes a

partir do segundo dia do Golpe Civil-Militar. Neste momento iniciei pesquisa que abordasse o

medo enquanto categoria presente nas pesquisas sobre ditadura. Dividi as leituras para este

texto em dois planos: de um lado, a produção do eixo sul-sudeste, por ser

hegemônica/consistente no mercado editorial; de outro, a produção amazônica paraense

publicada pela Universidade Federal do Pará, também hegemônica no que se refere à

pesquisa.

Na produção acadêmica do eixo sul-sudeste sobre a luta política do movimento

estudantil contra a ditadura militar, Valle (2008) faz questão em apontar os principais

episódios da intensa luta política travada entre estes dois grupos. Entretanto, não consta em

sua análise o medo dos estudantes “livres” quanto às prisões executadas no primeiro dia de

ditadura (1º de abril de 1964). Pelo contrário, sua pesquisa enfatiza os estudantes como

sujeitos “coadjuvantes” na cena política ao tomar para si as rédeas de ação e intervenção

diante das estratégias autoritárias dos militares.

Na produção acadêmica da Amazônia Paraense, quatro pesquisadores merecem

ênfase: Peñarrocha (2003), Costa (2008) e Cunha (2008), ambos tampouco mencionam o

medo como espectro presente no lado estudantil no embate contra a ditadura. Oliveira (2010),

por outro lado, com seu livro de memórias intitulado “Cabanos e Camaradas”, é uma rara

exceção na análise. Este último, apesar de também não mencionar o medo enquanto categoria

analítica para explicar a fuga, faz uma bela explanação acerca do tema. Segundo este autor, a

fuga era tática de ação determinada pela alta cúpula do Partido Comunista. O PCB preferia

um militante solto a um heroi preso ou morto, explicou ao longo de sua obra. Assim, para este

memorialista a prisão não configurava consequência do binômio “medo-coragem”, mas

implicava em “perda-continuidade” de quadros para a resistência.

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106

Em todo caso, a identidade dos estudantes paraenses em 1964 nas lembranças

narradas por Dulce Rosa, mostra os estudantes despidos de bravatas. O que se apresentava

naquele momento era o caráter humano do medo intuindo o perigo. Busquei a todo custo, no

intuito de construir bustos de heroísmo, perceber nas palavras de minha interlocutora, as

ausências no campus como um gesto de sagacidade por parte dos estudantes diante de um

adversário mais bem equipado e numeroso. Entretanto, sua gesticulação corporal e entonação

da voz mostraram-me estudantes como jovens, imaturos, perdidos diante daquela inédita cena

de prisões e, portanto, com medo diante do cenário desconhecido. Ou seja, Dulce Rosa

apresentou-me uma faceta do movimento estudantil desprovida de atos heroicos, mas repleta

de sinceridade.

A narrativa é coerente com o momento de entrada de Dulce Rosa na militância

política. Diferente dos demais narradores já atuantes em movimentos de embate antes de

1964, sua entrada no ativismo político só teve início depois de deflagrado o Golpe Civil-

Militar. Sobre esse tema, alertou-me para o fato de haver diversos grupamentos políticos na

faculdade que já imprimiam discussões acerca de ideais de governo, educação, filosofias de

vida, etc.. Eram a Ação Popular, o Partido Comunista Brasileiro e a Juventude Católica, sendo

o PCB a organização mais numerosa. Ela, entretanto, não pertencia a nenhum destes grupos e

por isso sobre sua pessoa não tinham informação substancial justamente pelo fato de não atuar

na política estudantil antes de adentrar na faculdade. Assim, quando sondada para ser

cooptada por algum desses grupamentos pouco ou nada encontravam, conforme ela mesma

relata:

Eu, com certeza, eles [grupos de esquerda] não tinham nenhuma informação,

eu vinha do [colégio] Paes de Carvalho, mas eu nunca tinha feito nenhum

tipo de atividade. Sempre por questões de educação familiar, “não, isso não é

coisa de mulher. Não senhora, não vai para reunião nenhuma, porque

mulher, moça de família não anda sozinha de noite e tal” (Dulce Rosa

Bacelar Rocque, entrevista concedida em 28/dez./2011).

São duas revelações importantes no mesmo enunciado. Primeiro, dá pistas de sua

entrada na atuação da política estudantil somente depois do Golpe Civil-Militar, em 1964, fato

que abordarei mais adiante. Segundo, Dulce Rosa aponta para outra faceta amazônica nos idos

da década de 1960: o patriarcalismo vigente na Amazônia Paraense. E num efeito cascata, ela

compreende a atuação feminina com pífia atuação nas esquerdas paraenses justamente pelo

conservadorismo patriarcal da sociedade belemense.

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É bem verdade que se pode compreender as tramas da resistência à Ditadura Civil-

Militar sob a égide do falocentrismo político. Entretanto, é preciso considerar que a

participação política ou engajamento à dissidência – independente de gênero – não se dá

somente nas esferas das discussões partidárias. Por meio da “cultura” – tal qual a concebe

Bhabha (2007) – é possível alargar o horizonte das perspectivas do que seja engajamento em

quaisquer causas que sejam.

No caso da Ditadura Civil-Militar, a participação de outros sujeitos e,

principalmente, do protagonismo feminino fica evidente com Oliveira (2010). Este

memorialista já alertava para tal envolvimento das mulheres durante aqueles tempos

autoritários. Com a sensibilidade à flor da pele, este memorialista deu conta das esposas dos

comunistas, seus camaradas de militância.

Conheci, no entanto, exemplos de compreensão e solidariedade de mulheres

que enfrentavam todos os tipos de dificuldades sem reclamar dos maridos

comunistas. Levavam marmitas para as prisões, apreendiam a encarar os

policiais com altivez, andavam atrás de advogados para defendê-los.

Recordo algumas criaturas dessa estirpe: Gilvanete, a mulher do dirigente

Humberto Lopes; Maria, a mulher do arrumador Luciano Amaral;

Conceição, a mulher do comerciário Francisco Nascimento; Isa, a mulher do

bancário Raimundo Jinkings; Norma, a mulher do poeta Ruy Paranatinga

Barata. Representavam exemplos que conheci de perto. Nenhuma das citadas

era militantes comunistas (OLIVEIRA, 2010, p. 563).

Desta forma, Dulce Rosa tem o mérito de constar neste trabalho por meio de sua

coragem e audácia em adentrar ao Partido Comunista Brasileiro e participar diretamente no

cumprimento das tarefas político-partidárias. No entanto, outras mulheres, pela ação

cotidiana, poderiam tranquilamente estar arroladas ao seu lado mesmo que não estivessem

filiadas a quaisquer partidos.

Retomando ao fato do ingresso tardio no processo de engajamento político, ou seja, a

entrada de Dulce Rosa no Partido Comunista, somente após a deflagração do Golpe Civil-

Militar, em 1964, veja o que revelou sobre o fato de ser mulher e não pertencer a antigos

quadros de grupamentos políticos de esquerda conferiram algumas facilidades:

Então foi aí que o partido se aproximou mais de mim. Eu não era conhecida

em nenhuma parte como uma que agisse politicamente ou que fizesse

política, então eles [membros do PCB] se aproximaram de mim e

perguntaram se eu podia ir onde hoje é [a Casa das] Onze Janelas. Ali na

Quinta Companhia de Guardas, porque um dos nossos colegas Mário Matos

Brito de Albuquerque, um cearense que estava aqui, era nosso colega de

faculdade e era tenente nesse quartel. Então, se eu podia ir lá falar com ele e

ver quem é que estava lá preso. Eu fui, era fácil para mim. Ele tinha sido

Page 99: No Crepúsculo

108

meu namorado, mesmo se a história já tinha acabado eu cheguei lá, mandei

chamá-lo, ele veio. Eu fiz a pergunta que eu queria saber, “quem é que tá aí

dentro e tal?...” (Dulce Rosa Bacelar Rocque, entrevista concedida em

28/dez./2011). Grifos meus.

Novamente analisarei dois aspectos da narrativa. Primeiro, em relação ao fato de ser

a própria Dulce Rosa uma desconhecida no cenário político de Belém, cabe lembrar as

campanhas anticomunistas existentes no Brasil naqueles primeiros anos da década de 1960.

As “Marchas pela Família”, em nome de Deus e da Liberdade grassavam em várias capitais.

Belém não ficou imune a este ambiente hostil. Em narrativa de Ruy Antonio Barata34

, por

exemplo, quando se refere às prisões sofridas pelo pai35

pelo simples fato de ser

declaradamente um comunista, narrou que a ordem dos comandantes da Polícia Militar

paraense era “prenda os de sempre”. Em clara alusão a ser a família Barata renomadamente

conhecida por ser comunista/subversiva, portanto, sempre era alvo de prisões.

Além disso, lembrando o macro cenário político brasileiro, destaca-se o fato da força

das classes médias. Já haviam influenciado a capitulação de Jânio Quadros, em agosto de

1961 e andavam irritadas com o governo de João Goulart (1961-64). Os altos índices

inflacionários, o não alinhamento do presidente Jango com a batuta norte-americana e o

preconceito comunista era somado à tônica dos discursos conservadores daquele momento.

Assim, Dulce Rosa, ao selecionar e evidenciar na narrativa o fato de não ser conhecida por

atuações políticas, aponta para a necessidade do anonimato daqueles dias como vital para a

sobrevivência.

Segundo, Dulce Rosa aponta a premissa de ser mulher para facilitar sua entrada na

Quinta Companhia de Guardas. Não só isso, o fato do tenente já ter sido um antigo namorado

contribuiu mais ainda para tal feito. Com isso, é evidente o projeto de querer mostrar-se e ser

percebida como um quadro diferenciado nas táticas de enfrentamento daquele momento. Ser

mulher em Belém, nos anos 1960, filha de uma funcionária pública e vinda da conservadora

Escola Estadual Paes de Carvalho era a equação suficiente para preencher o estereótipo de

alguém completamente alijado do mundo político. Com isso, estava concretizado o disfarce

perfeito para outras atuações de Dulce Rosa dentro das estruturas políticas do PCB: bastava

ser coerente com o papel que a vigilância social esperava de ser mulher.

34 Entrevista concedida em 26 de agosto de 2011.

35 Ruy Antonio Barata é filho do deputado Ruy Paranatinga Barata, renomado partidário do PCB desde a década

de 1930 e alvo de inúmeras perseguições por conta de sua postura socialista.

Page 100: No Crepúsculo

109

Em seguida, outro episódio solidifica a atuação de Dulce Rosa junto ao Partidão.

Desta vez, poucos dias depois do Golpe Civil-Militar, foi solicitada para atuar em benefício

do PCB. Era a segunda vez a ser acionada e não titubeou, conforme narra:

Então, o Partido veio novamente falar comigo e pediu se eu podia ir na

[prisão da rua] Gaspar Viana procurar uma determinada pessoa, que

infelizmente eu não lembro que me parece fosse o responsável de finanças

aqui de Belém e, mas sabe depois do golpe ninguém tava preparado para

isso, nem a polícia, nem o exército, nem ninguém. Então ninguém sabia se

comportar nos primeiros dias. Quando eu cheguei lá eu disse: “- Olha eu

queria falar com fulano de tal”, que era um preso, ele disse: “- Tá, espere aí”.

Mandou-me entrar numa sala e foi chamar o fulano que eu estava

procurando (Dulce Rosa Bacelar Rocque, entrevista concedida em 28 de

dezembro de 2011). Grifos meus.

O Quartel do 2º Batalhão da Polícia Militar, situado à Rua Gaspar Viana, era

considerado o local para presos políticos mais perigosos. Após o Golpe Civil-Militar não era

nada prudente para os quadros de esquerda circular pelas ruas da cidade à luz do dia, muito

menos dirigir-se até o 2º BPM. Por isso, a escolha do PCB para ser Dulce Rosa a pessoa

responsável para reorganizar as finanças do Partido foi estratégica. Novamente, o fato de ser

desconhecida pela direita e pelos militares facilitou aquela tarefa.

Quanto ao fato de ser prontamente atendida na pelo guarda responsável, é preciso

levar em conta a observação da própria narradora. Os grupos de direita, nem de esquerda,

sabiam como agir naqueles primeiros momentos de ditadura. Aliás, é bom que se diga, não

havia a clareza de tratar-se de uma ditadura em curso. Daí a facilidade em adentrar prisões e

conversar reservadamente com os presos.

Com esta fala, o semblante carrega mais tranquilidade em relação ao momento inicial

da entrevista em que apertava um objeto inexistente em suas mãos. Já passam de seis minutos

desde o início da entrevista e por isso os estudos dela em relação a minha pessoa já talvez já

tivessem estabelecido mais confiança. Antes de começar a gravação do vídeo eu havia

retomado o assunto de minha visita (memórias sobre o golpe e a Ditadura Civil-Militar, em

1964). E tão logo avisei que estava ligando a câmara ela disparou o gatilho das memórias

sobre os anos 1960. É de supor que houvesse mais tranquilidade, até mesmo o movimento das

mãos apertando algo inexistente já não mais acontecia. O tom da voz também estava mais

sereno e em ritmo mais sereno. Então, no momento de expor o diálogo entre ela e o soldado

há um breve sorriso de quem soube tirar benefício da prerrogativa de ser mulher.

Com o desfecho exitoso desta segunda empreitada de Dulce Rosa à serviço do PCB,

sua entrada no partido, mesmo sem a tão usual “ficha de filiação”, estava praticamente selada.

Page 101: No Crepúsculo

110

Afinal, nas duas vezes em que foi solicitada, duas vezes houve êxito sem quaisquer

problemas. Aparentemente, naquele momento Dulce Rosa não havia se dado conta da

importância daqueles breves e pequenos favores em prol do PCB. Isto se depreende a partir

do convite feito pelo comunista Roberto Brasil para seu ingresso no partido a partir da

seguinte conversa:

Passou-se pouco tempo, o [Roberto] Brasil, que era um dos ativistas do

partido, voltou de novo à faculdade e soube dessa história (que o partido

tinha me utilizado em duas ocasiões), então ele veio me perguntar se eu não

queria entrar para o partido e eu disse que “não”, “que eu acreditava em

Deus”, na ocasião eu era protestante da Igreja Presbiteriana (Dulce Rosa

Bacelar Rocque, entrevista concedida em 28 de dezembro de 2011).

Ou seja, o fato de haver sido útil em duas oportunidades para o PCB ainda não era

motivo suficiente para sentir-se do quadro efetivo do partido. Mas como sua presença

manteve-se constante junto aos partidários era inevitável ficar alheia aos acontecimentos

havidos nas reuniões. Mesmo não tendo envolvimento direto, os fatos e demais decisões eram

comunicados. Isso culminou com um anúncio seco por parte do amigo Roberto Brasil: “Olha

Dulce, o partido comunista não tem carteirinha, portanto para nós tu já estás dentro”.

Se os tempos de controle às atividades subversivas haviam chegado, então a

identidade de jovem estudante e filha de família de classe média preenchia perfeitamente o

disfarce para ações secretas do Partidão. Assim, Dulce Rosa construiu os primeiros momentos

de sua história de vida ligada ao PCB e, consequentemente, ao processo de resistências por

meio de táticas para desvencilhar o país dos militares. Após esse momento, partir para outras

atividades foi questão de agenda do partido. Dulce Rosa de Bacelar Rocque passou a ser

efetivamente uma comunista a serviço do processo de lutas de redemocratização do país.

Page 102: No Crepúsculo

111

III PARTE

TÁTICAS E SENTIMENTOS DE RESISTÊNCIAS

(...) Ou seja, a memória e o esquecimento aqui

também só existem sob os olhares da história,

investindo-se na reconstrução de novas

identidades, a partir de um critério utilitário-

político. “Toda memória, seja ela ‘individual’,

‘coletiva’ ou ‘histórica’, é uma memória para

qualquer coisa, e não se pode ignorar esta

finalidade política (no sentido amplo do termo).”

(SEIXAS: 2004, p. 42).

Page 103: No Crepúsculo

112

A violência institucional contra as liberdades individuais foi engendrada a partir de

uma política de Estado que não hesitou em mostrar-se forte ou parecer antipática à opinião

pública. Esta última, aliás, nunca foi claramente conhecida ou divulgada pelos meios

midiáticos. O alardeado “milagre econômico”, no início dos anos 1970, o advento da televisão

em cores, as transmissões da Copa do Mundo de Futebol de 1970 e 1974, o sucesso brasileiro

nos gramados, as telenovelas, a jovem guarda (capitaneada por Roberto e Erasmo Carlos),

tudo isto serviu de subterfúgio para não mostrar as posturas contrárias à Ditadura Civil-

Militar.

Outro aspecto a ser mencionado são os fortes aparatos de censura existentes externa e

internamente nas empresas jornalísticas. A censura enquanto mecanismo de controle social,

por exemplo, é mencionada em diversos trabalhos, tais como: Mariani (1998), Berg (2002),

Martins e Luca (2006), Silva (2010), Aquino (1999) e Orlandi (1997). Destaco para esta

análise Mariani (1998), Kushnir (2004) e Aquino (1999).

Aquino (1999), assim como Kushnir (2004), é enfática em denunciar as posturas

acovardadas dos empresários da imprensa. Ambas põem em circulação a categoria “censura

prévia” como estratégia de manutenção de privilégios junto ao governo militar. Com esta

postura, censurando os próprios editoriais sem esperar pela intervenção do órgão oficial,

muitos jornais conseguiram obter favores ao longo dos 20 anos de Ditadura Civil-Militar. E

ainda hoje sustentam suas audiências e leitores colhidos desde os tempos de conivência com o

regime.

Mariani (1998), valendo-se dos rigores da Análise do Discurso, percebe ao longo do

período ditatorial, por meio de jornais, uma série de silenciamentos (alguns forçados, outros

sagazmente de propósito), no que diz respeito à trajetória do PCB no país. Assim, Mariani

aponta um importante aspecto a ser mencionado neste momento: nem sempre o leitor (e/ou

não leitor) percebe o discurso jornalístico enquanto modus operandi de manutenção do poder.

Significa dizer que as empresas jornalísticas mencionavam somente aquilo que fosse

agradável ou interessante ao regime por meio de matérias eivadas de preconceitos contra o

comunismo ou quem fosse atrelado a este ideário. Com raras e honrosas exceções, a trajetória

do PCB nos jornais de grande circulação no país satanizavam posturas de esquerda. O grande

público, repito, sem grandes chances de reação.

As análises em torno da censura e discursos jornalísticos explicam como os discursos

da mídia foram responsáveis, em larga medida, pelos depoimentos dolorosos de José Seráfico

de Carvalho, André Costa Nunes, Ruy Antonio Barata e Alfredo Oliveira. Estes foram os

depoentes que deixaram entrever todo o cenário de repressão da ordem institucional. O padre

Page 104: No Crepúsculo

113

teatrólogo Cláudio Barradas, por estar neutro nas posturas partidárias, ora sofria, ora era

privilegiado, por adotar tal atitude. Dulce Rosa e Pedro Galvão de Lima, mesmo tendo

migrado para a URSS/Itália e Rio de Janeiro, respectivamente, também sofreram com os

discursos uniformizados da direita no poder. E Paes Loureiro, nem sempre buscando uma

postura esquerdista, mas sempre inconformado com a violência, repressão e censura, era

criminalizado de ameaça vermelha.

Neste ambiente hostil, os narradores produziram suas ações de diálogo com o poder

institucionalizado e outros círculos de atuação. Produziram poesias, peças teatrais, enviaram

cartas, medicaram, sofreram. Nenhum deles se alijou do dever imputado por eles mesmos

quanto à obrigação de lutar, por meios democráticos, com perspicácias e malícias, contra a

Ditadura Civil-Militar instalada desde o famigerado 1º de abril de 1964.

Terminadas as entrevistas, passava ao segundo passo: transcrever os áudios e analisar

as performances da língua e do corpo. O objetivo desta atitude era mapear e analisar

sentimentos que pudessem ser manifestados ao longo da entrevista. Neste sentido, Pacheco

(2006) bem ensina como o pesquisador de memórias pode lançar mão da produção

iconográfica como suporte para catapultar memórias de entrevistados. De outra forma, o texto

imagético pode acompanhar o roteiro temático da entrevista e, ao ser mostrado ao narrador, é

possível que dispositivos de lembranças sejam acionados e remetam a outras perspectivas e

construções de narrativas36

.

Utilizei este esquema metodológico fazendo uma inversão. Parti da premissa de que

os corpos dos entrevistados pudessem produzir em minhas análises outras imagens em

movimentos, uma espécie de performance visual, diferentes daquelas que o discurso oralizado

provocava. Assim, ao rever os vídeos dos entrevistados procurei compreender os corpos,

enquanto suportes da cultura, construindo textos imagéticos e, concomitantemente, os

confrontava com os textos oralizados.

Se esta metodologia de análise tem problemas pelo caráter da incipiência, por outro

lado, é uma possibilidade necessária quando estão em jogo memórias há muito marginalizadas

e não exploradas pelos circuitos oficiais da produção historiográfica. Há de ser considerado o

tempo transcorrido desde o golpe até o presente momento. Ou seja, em geral os

36 O uso da imagem enquanto parte de uma possibilidade metodológica foi ampliada em recente publicação na

Revista Ensaio Geral, da Universidade Federal do Pará, por Pacheco (2011). Neste artigo o pesquisador explora

iconografias e memórias orais, sejam de quaisquer segmentos sociais, como patrimônios socioculturais que

devem ser preservados e valorizados. Ultrapassando a noção tradicional e restrita de patrimônio, Pacheco

preocupa-se com o patrimônio afetivamente produzido pelos agentes históricos.

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114

contemporâneos ao abril de 1964 já ultrapassaram a barreira das seis décadas. Assim, é mister

pôr em circulação possibilidades de análise que estes sujeitos possam apresentar.

De posse deste método, a partir das entrevistas fichei temáticas dos entrevistados e

mapeei sentimentos demonstrados pela corporeidade. Como resultado a Perplexidade, o

Orgulho, o Medo, o Ressentimento, a Esperança e a Superação são os sentimentos mais

perceptíveis nas narrativas.

Todos os narradores de alguma maneira deixaram mais que registros de memórias.

Causaram algum tipo de ensinamento para uma postura de vida mais equilibrada, menos

caótica e mais humana. Essa inferência faz lembrar Antonacci (2006, p. 18-19), quando

assinala:

Esta é uma das perspectivas mais promissoras em torno das metodologias de

História Oral em trabalhos com memórias. O ato de socializar com outros

seus sofrimentos e empenhos, como que construindo avaliações de vida,

desvenda o que ainda podem conseguir fazer. Ou seja, compartilhar

memórias pode significar reavivar sonhos e esperanças. Para osseguir sem

deixarem-se perder pelo desespero ou mesmo mortes antecipadas. O fogo

das emoções revividas reacende esperanças de vida.

Paes Loureiro, por exemplo, intelectual com títulos e publicações na França, foi o

primeiro entrevistado. Naquela altura do mês de maio de 2011, ao investigar seu currículo,

senti a densidade e consistência da carreira acadêmica construída desde o fatídico 30 de abril

de 1964, quando a primeira edição do “Tarefa” foi bruscamente sacada do mercado. Assim,

com o primeiro contato em sua confortável sala de estar no apartamento da Av. Serzedelo

Correa, levei comigo uma leve preocupação na relação de poder que pudesse ser travada

naquela ocasião. Ao invés de deparar-me com um altivo intelectual no alto de seus títulos

honoríficos fui recebido – e servido – pelo casal Loureiro como um homem igual a mim, no

sentido mais sociológico da palavra. Naquele momento recebia uma lição de humildade tão

necessária nestes tempos de fogueiras das vaidades academicistas. A mesma lição, é

necessário mencionar, foi impressa por todos os depoentes por meio de sugestões de possíveis

entrevistados, abraços, desejos de boa sorte, acenos de despedida, afetos no olhar.

O dia 1º de abril de 1964 foi testemunha de dois lamentáveis acontecimentos nas

memórias dos narradores: o golpe e a invasão da UAP. Foi o fatídico dia desencadeador do

processo de recordações dolorosas sobre a Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense.

Absolutamente todos os entrevistados mencionaram aquele momento como representativo nos

momentos futuros de suas vidas. Ruy Antonio Barata não chegou a ser preso naquela noite

pelo simples fato de não pertencer à UAP, entretanto, era acadêmico de Medicina e já se

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115

compreendia como estudante. Assim, aquela noite pode ser considerada o início de uma longa

noite para a história dos estudantes no Pará, pois durou até 15 de março de 1985.

Naquela ocasião, o estudante de Direito José Seráfico de Carvalho, era um dos mais

preocupados com os rumos políticos do país deflagrados pela ação de Olympio Mourão. Sua

presença naquela reunião extraordinária da UAP, na antiga Rua São Jerônimo [hoje é a Av.

José Malcher], assim como todos os presentes, tinha por finalidade contribuir com soluções

emergenciais a serem tomadas pelo movimento universitário no dia seguinte. Ao longo

daquela tarde já haviam preparado panfletos, que foram apreendidos por sinal, telefonado para

o 8º Comando Militar da Amazônia, buscavam apoios legais para impedir no Pará o avanço

golpista. Estavam com os nervos à flor da pele. Os próprios militares deveriam estar atônitos

com a avalanche de acontecimentos. O dia havia sido angustiante e cansativo para todos.

Estavam reunidos no pequeno ambiente da UAP vários universitários, dentre eles,

Paes Loureiro, José Seráfico de Carvalho, Pedro Galvão de Lima. Não sabiam que do lado de

fora, um grupamento fortemente armado de soldados havia recebido ordens para dar fim

àquela reunião. Fortemente armados, comandantes e soldados estavam com pistolas em punho

e metralhadoras assentadas no chão apontando para possíveis rotas de fuga. O prédio da UAP

estava cercado. A operação, coordenada pelo Coronel “Peixe-Agulha”, não tinha mais como

retroceder.

Com a ordem de “avançar”, de repente a reunião foi invadida. A porta foi derrubada

e vários estrondos de móveis e objetos caindo se seguiram. Após o susto inicial veio o instinto

de sobrevivência, os estudantes começaram a correr espavoridos em várias direções. José

Seráfico de Carvalho correu em direção à porta. Por desatino de Clio, deu de encontro com o

agulhético Coronel. Foi recebido com uma forte bofetada.

Todos os depoentes citaram aquele fato e nas palavras selecionadas para descrever

aquela cena está presente a perplexidade. Não pelo ato violento em si, mas por compreender a

atitude partindo da premissa que o Poder estava institucionalizado nas ações de pessoas

representativas da república. O gesto arbitrário não seria punido por mais que fossem feitas

queixas e denúncias, afinal de contas, atitude do Coronel “Peixe-agulha” era porta-voz do

novo projeto político no Brasil e da Amazônia Paraense.

André Nunes Netto por mais que não fizesse parte daquela cena foi eivado pelas

repercussões do episódio. Tanto que no final de sua narrativa em “Relatos” aborda o quanto

sentiu inveja de Seráfico de Carvalho por ter sido contemplado pela bofetada da violência

institucionalizada.

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116

De forma muito louvável, é bom mencionar, o Ódio e a Mágoa não estiveram

presentes em nenhum momento das entrevistas. A princípio, busquei tais sentimentos quando

revisei as entrevistas, por mais que eu me esforçasse para localizar tais pequenezas de espírito

não obtive êxito. Senti-me culpado por tentar induzir os dados construídos pela pesquisa para

fazer desta dissertação um ajuste de contas de minha revolta com o golpe e regime civil-

militar. Buscando a honestidade como requisito da escrita acadêmica, curiosamente, também

me senti bastante aliviado e confortável por ter dedicado momentos de vida junto a homens

maduros na idade e no espírito. Talvez aí, no momento de explicitar tais atributos positivos

dos narradores, resida o tão desejado acerto com o passado tão doloroso e caro à memória de

homens e mulheres que ousaram desafiar o autoritarismo.

Partindo da premissa de que corpos são portadores de cultura, aceitei o desafio de

analisar o texto das narrativas em confronto com as performances. Assim, gestos e expressões

faciais podem ajudar a revelar sentimentos ainda não prestigiados pela escrita da História.

Este exercício complexo está ancorado na proposta de inversão da metodologia

sugerida por Pacheco (2006) quando utiliza o recurso imagético para ajudar seus

entrevistados na difícil tarefa de “lembrar” de experiências vividas que, em muitos casos,

insistem em ser esquecidas. É um recurso que acompanha o roteiro da entrevista e, neste

sentido, age como mola propulsora para acionar recordações já experimentadas.

De posse deste ardil, ao rever as filmagens das entrevistas mapeei sentimentos que,

em consonância com as narrativas orais. De imediato, ao contrastar a oralidade com as

performances, destaquei os sentimentos de Orgulhos, Perplexidades, Orgulhos, Medos,

Ressentimentos/Tolerâncias e Esperanças.

O Golpe Civil-Militar, em 1964, e a consequente instalação da ditadura, foram

extremamente negativos para o exercício das liberdades individuais, políticas e expressões

artísticas. Sob o aval de amplos setores civil, a política de estado instituída no Brasil foi

construindo estratégias cujo cerne era o cerceamento das ações e posturas mais críticas.

Entretanto, isso não significou ruptura na produção dos sujeitos culturais que compõem esta

escrita. Os sujeitos dissidentes ao regime sempre estiveram atentos à possibilidade de atuar

pelas frestas das imposições governamentais. A produção de ações portadoras de teor

contestatório passou por um crivo no momento de sua gestação no sentido de tornar-se menos

visíveis aos olhos da censura institucional. Existiu por meio do teatro, poesia, músicas ou

simplesmente em atitudes diárias de insatisfação para com determinadas posturas autoritárias.

Um segundo aspecto a ser indicado neste momento aponta para a metodologia das

entrevistas que compõem esta escrita. Conforme já detalhei anteriormente, além de registrar a

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117

oralidade em áudio e vídeos, estive atento às performances dos corpos dos narradores. Esta

atitude foi permanente ao longo das análises das transcrições por entender a linguagem oral

não açambarcando todas as formas de comunicação. Oralidades e corpo atuam em simbiose

indicando outras possibilidades de compreensão da memória narrada acerca da história vivida

(GLISSANT: 2003). De posse desta postura metodológica, pude compreender o Golpe Civil-

Militar e do regime por um prisma de inúmeras possibilidades de sentimentos brotados a

partir das memórias narradas. Orgulhos, ressentimentos, medos, traumas, esperanças, foram

captados ao longo das entrevistas. Neste momento, tratarei de expor e analisar alguns.

Em diversas passagens das narrativas, o fato de ter criado inúmeras formas para

driblar os autoritarismos foi motivo de sorrisos, algumas gargalhadas, peitos à frente, queixos

erguidos denotando emoções orgulhosas, outras vezes pesarosas, acerca daqueles tempos.

Estive atento também à entonação da voz para perceber sentimentos de vitórias e derrotas

diante do adversário mais forte. Assim, diversos sentimentos presentes nas ações de

dissidentes por meio de textos escritos, narrados e performáticos, mesmo que em momentos

esporádicos, estarão contemplados doravante.

Desta feita, Paes Loureiro, ao narrar sobre a cerimônia de formatura do curso de

Bacharel em Direito, em 1965, dentre várias sensações manifestas pelas memórias sobre o

episódio da censura, se orgulha por ter contribuído para um fato inusitado dentro do regime de

exceção. Fora responsável por um fato, no mínimo, inusitado na história do autoritarismo

militar: foi um orador sem discurso na cerimônia de formatura.

Cabe lembrar a pompa que normalmente rodeava – e ainda rodeia – as cerimônias de

formatura de nível superior. Trata-se de uma efeméride nas vidas dos formandos. Parentes,

amigos, professores sentem-se prestigiados pela conquista do nível superior alcançado. O

ambiente cultural naquela Belém do ano de 1965 ainda respirava o romantismo da década de

ouro (1950). Havia um compreensível clima de euforia naqueles últimos dias de sala de aula.

Tal sensação de vitória se deve pelo fato de – ainda – vivermos em um país cujas

universidades não figuram dentre as possibilidades palpáveis para boa parte dos brasileiros.

Para Paes Loureiro, vindo de Abaetetuba (PA), cidade ribeirinha, por mais que houvesse

posses, o curso de Direito materializava uma aspiração não só dele, mas da família e

sociedade que o rodeava.

O próprio bacharelado em Direito também recebia – e ainda recebe – uma aura de

glamour, afinal, os bacharéis ainda recebem o tratamento de “doutores” das leis. Assim,

aquela formação conferia ao depoente status diferenciado em Belém e Abaetetuba. Soma-se a

isto, a dedicação do narrador em produzir um livro cujos textos estavam engajados na poética

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118

e na política, inaugurando para a Amazônia Paraense uma proposta inédita de produção. Ser

escritor já era por si só um mérito de poucos; alcançar patamares de reconhecimento em

escala nacional pelo trabalho com as palavras gerava uma ansiedade bastante compreensível.

Diante disto, não é estranha a expectativa diante da cerimônia de formatura, do

lançamento do livro “Tarefa”, da festa seguinte à formatura, dos cochichos e conversas em

circuitos acadêmicos – ou não – para coroar todo o êxito de Paes Loureiro e demais

envolvidos naquelas efusivas conquistas.

Considerando este cenário, Paes Loureiro narra sobre a primeira edição do livro de

poemas “Tarefa”. Já havia sido apreendida e destruída pela Polícia Militar ainda na noite de

30 de março de 1964 – antes do Golpe Civil-Militar – e, dias mais tarde, fora preso pelo novo

poder instituído. Paes Loureiro estava marcado pelos grupos direitistas civis e militares em

Belém: desde o momento da apreensão do “Tarefa”, passou a ser abertamente combatido

como perigoso, comunista, subversivo.

No ano de 1965, quando estava prestes a concluir o Curso de Direito, a informação

de que a turma o havia escolhido como orador vazou para conhecimento público. A situação

se fez embaraçosa por envolver interesses políticos para além da compreensão dos jovens

estudantes daquele momento.

Por um lado, a Ditadura Civil-Militar ainda não apresentara todas suas facetas

autoritárias, por isso o Conselho Universitário da Faculdade de Direito e setores da sociedade

civil ainda acreditavam na defesa de livre arbítrio daquela turma de acadêmicos. Escolher o

orador, mesmo que desagradasse setores mais reacionários da sociedade, ainda era cogitado

como algo dentro da legalidade, sem ônus para a imagem dos cargos daqueles que

gerenciavam aquela faculdade ou o conservadorismo das famílias de muitos alunos. Por outro,

algumas famílias, cujos filhos eram colegas de Paes Loureiro, estava francamente apoiando o

novo governo.

Além das famílias mais reacionárias, o novo governo já defendia a mordaça como

instrumento de diálogo para os perigosos subversivos que ameaçassem a soberania da pátria e

da família brasileira. Basta lembrar do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda

(DIP), criado em 1939, pelo governo autoritário de Getulio Vargas. Este havia semeado o

espectro da censura nos tempos republicanos, mas o Império, na figura das Regências também

já havia instituído a censura no jornal “O Paraense”, capitaneado por Batista Campos e Felipe

Patroni.

Assim, tomando por base a censura averiguada nos tempos de Ditadura Civil-Militar

pós 1964, é possível constatá-la como um instrumento repressor para garantir a condição sine

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119

qua non dos grupos mais conservadores. Desta forma, também é possível entender os medos

por detrás da escolha de Paes Loureiro como orador cujo papel social ameaçava a ordem

pretendida. Afinal de contas, já havia sido preso, apontado como comunista, ameaçador,

subversivo. Por tudo isto, sua identidade já se sinalizava como símbolo de subversão.

Assim, dentre sorrisos, para explicar episódio de impasse quanto à autorização para

que ele fosse o orador da turma, Paes Loureiro narrou sobre a convocação e reunião do

Conselho Universitário da Faculdade de Direito que, em reunião extraordinária, decidiu sobre

a questão. Apesar da situação constrangedora e autoritária, Paes Loureiro ao narrar o episódio

dá mostras de orgulho e satisfação. Vejamos:

(...) Nossa turma foi toda convocada também. Então nós ficávamos na nossa

turma. Na nossa sala de aula. O Conselho Universitário reunido na sala do

Conselho. Como o Conselho Universitário tinha certa solenidade. Agora a

universidade abandonou um pouco isso. Até com, agora, com a criação das

[instituições] particulares. O Conselho Universitário se reunia de beca, né?

De beca e tudo. Era uma coisa meio solene. Uma coisa de embate. A nossa

turma dizia que eu seria mantido enquanto orador. E o Conselho queria

arrumar uma maneira... Mas o Conselho não tinha como argumentar porque

aquilo estava sendo uma violência ao direito. Como é que uma Faculdade de

Direito, o Conselho de uma Faculdade de Direito, não é isso? Iria corroborar

uma violência contra o direito? Então esse era o Conselho. Até que houve

um acordo que era o seguinte: eu seria mantido como orador. Mas não leria o

discurso (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de

2011).

Ao dizer a frase “mas não leria o discurso”, Paes Loureiro gargalhou fartamente. A

partir deste momento de sua narrativa, o sorriso se fez presente até o final deste episódio da

solenidade de formatura. Obviamente, conforme mencionei anteriormente, em 1964, na

condição de estudante de Direito já havia sido preso e espancado por conta de sua atividade

poética e por suposto envolvimento subversivo junto ao movimento estudantil. Assim, seus

sorrisos ao narrar mais essa situação vexatória é uma brecha construída pelo discurso da

memória para amenizar as dores das experiências vividas. Mas há outro dado a ser

considerado, talvez o mais interessante em sua narrativa: manter-se como orador e não ler o

discurso era também uma conquista no enfrentamento com a ditadura. Afinal de contas, ao

ficar calado na condição de orador de uma turma do Curso de Direito construía um estrondoso

factoide para a memória da ditadura. Esta percepção está claramente evidenciada no trecho

abaixo:

Seria chamado um orador e tudo mais, mas não leria. E o Clóvis Malcher,

que era o paraninfo da turma, nosso professor disse então que em

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120

solidariedade a turma e a mim também não pronunciaria o discurso dele.

Ora, criou-se uma situação histórica além da circunstância. Que pela

primeira vez na história do Brasil um orador da Faculdade de Direito não

falava. Era um orador sem fala. Um orador sem discurso. Transformaram, na

verdade, o fato num fato histórico (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista

em 03 e 30 de março de 2011). Grifos meus.

Pelo trecho grifado, Paes Loureiro dá mostras de um sujeito consciente das ações

executadas no campo de confrontos. É bem verdade que esta interpretação dos fatos, motivo

de risos, só é possível nos dias atuais. Na época, talvez não houvesse a picardia suficiente para

ser capaz de rir daquela situação. O sarcasmo daqueles sorrisos só era viável graças ao

relativo distanciamento temporal para poder analisar a situação em outras perspectivas. Em

todo caso, aquela cerimônia de formatura promovida pela Universidade Federal do Pará,

instituição mantida pelo Executivo Federal, serviu para dar visibilidade aos primeiros

estrondos no campo das denúncias daquele primeiro ano do Golpe Civil-Militar. Se os novos

senhores do poder desejavam impor seus projetos políticos, conseguiram. Mas também é

possível que o fato fosse motivo de antipatia por parte daqueles que estiveram atentos à

celeuma do orador do Curso de Direito da turma de 1965. Uma conquista de Paes Loureiro

entrincheirado no front por 20 anos.

Outro episódio narrado com entusiasmo pelo professor e poeta Paes Loureiro, diz

respeito não à uma ação produzida por ele, mas por simpatizantes com sua trajetória de vida

ou postura política. Um ano antes, no dia 30 de abril, portanto antes do Golpe Civil-Militar,

setores reacionários – dentre eles, alguns militares, especialmente Jarbas Passarinho37

respiravam um ambiente de conspiração golpista por parte das esquerdas. Talvez por conta da

guerra fria, o pensamento esquerdista grassava nos movimentos estudantis em Belém. Por

outro lado, as ideias fascistas também ganhavam espaço entre alguns governantes, setores da

Igreja e políticos da região. Sobre essa questão, Ruy A. Barata externou seu ponto de vista

alegando que isso não passava de “paranoia” por parte da direita. 38

Mesmo com a suposta existência (ou inexistência) de um clima de golpismo por

parte das esquerdas, os militares da Amazônia Paraense estavam intranquilos com o

37 Nesta perspectiva, Petit (2003) e Alfredo Oliveira (2010) deixam entrever Jarbas Passarinho enquanto militar

visionário, à frente nos movimentos de 31 de março e 1º de abril de 1964. O narrador Ruy Antônio Barata, em

entrevista concedida em 14 de setembro de 2011, acidamente, se apressou em externar sua opinião sobre Jarbas

Passarinho na ação do movimento golpista: também compartilha da opinião de Petit e Oliveira.

38 Cabe lembrar que Ruy Antonio Barata era filho do poeta e deputado do PCB, Ruy Paranatinga Barata. Em sua

casa, na sala de estar, eram comuns as discussões políticas sobre os rumos políticos do Socialismo no Brasil,

URSS, China e Cuba, além de críticas ao modelo capitalista vigente no Brasil. Segundo entrevista em 14 de

setembro de 2011, Ruy A. Barata afirma jamais ter presenciado conversas cujo teor fosse um movimento

golpista por parte das esquerdas sobre o governo de Jânio Quadros ou João Goulart.

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121

lançamento de um livro de poemas intitulado “Tarefa”, de autoria de Paes Loureiro. Era um

livro de vanguarda, segundo depoimento do autor. Seu teor era vincado por uma trajetória a

partir do movimento estudantil paraense. O Departamento de Arte Popular, coordenado pelo

próprio Paes Loureiro dentro da União Acadêmica Paraense, talvez fosse visto como ato de

subversão pelos reacionários paraenses. Vejamos a narrativa:

(...) aqui na União Acadêmica Paraense, eu tinha criado, coordenado a

criação do Departamento de Arte Popular. Que tinha outro nome mas era a

mesma finalidade do CPC (Centro Popular de Cultura). Uma coisa curiosa.

Por isso que nós entrosamos muito essas duas coisas. E o meu livro Tarefa

foi selecionado para ser publicado nessa programação. E o lançamento dele

seria no terceiro dia, mais ou menos. No dia 3 de abril, em pleno Seminário

Latino Americano pela Reforma Universitária: o SLARDES. Então quando

foi no dia do lançamento. Eu tinha recebido isso na véspera, os livros. Como

eu morava na casa do estudante, os pacotes dos livros foram para sede da

UAP porque seria lançado logo depois. Estava dentro da programação do

SLARDES (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de

2011).

Conforme já foi exposto, o lançamento do livro “Tarefa” não chegou a acontecer no

momento previsto. Paes Loureiro relata a cena com profundo pesar e indignação. Neste

momento da narrativa, e em todas as demais vezes que retomou o assunto, seus braços

gesticulavam mais do que o normal aparentando, ora nervosismo, ora indignação. As pernas

balançando insistentemente, a voz em tom elevado, confirmavam os sentimentos dolorosos

por recordar tão lamentável passagem em sua história.

Entretanto, mesmo num momento tão doloroso, as memórias do narrador conseguem

perceber um tracejo a ser lembrado com um esboço de sorriso. Acontece que a apreensão

daquela edição não foi suficiente para impedir o lançamento da obra. Passados vinte e cinco

anos, uma grata surpresa havia sido destinada para o rol de experiências daquele narrador: o

“Tarefa” de súbito chegou novamente até suas mãos por meio de ato corajoso da mãe de um

antigo colega de faculdade. Vejamos como narra o episódio:

Eu morava aqui na [Avenida] Conselheiro Furtado. Claro, eu estava casado.

Casei ainda na década de 1960. Em 1966, por aí. Então morava na

Conselheiro. E 25 anos depois eu nem estava ligado na época. Recebemos

um pacote em casa como se viesse pelo correio. Esse pacote tinha um

exemplar do [livro] “Tarefa” com a capa toda roída pela umidade. E um

bilhete não assinado da mãe de um colega meu que, na época a semelhança

do que muitas mães fizeram, muitas famílias faziam, escondiam os livros.

Uma forma era embrulhar o livro bem e enterrar. Foi o que ela fez no

quintal. Houve pessoas que assim, com mais medo, queimavam os livros.

Todo mundo sabia que invadiam as casas. Como fizeram comigo em

Abaetetuba em minha casa, e tal. Então ela dizia que ficava temerosa que

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122

fosse encontrado o livro por causa do filho dela, que ela temia que fosse

preso. Tinha reunido alguns livros que podiam ser perigosos e tinha

enterrado (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de

2011).

Diante das memórias daquela insólita cena recordada por Paes Loureiro, dois

aspectos merecem destaque para justificar a postura corporal do queixo erguido e tom de voz

altivo, denotando alegria pelo fato de ter novamente a edição do “Tarefa”.

Primeiro, na narrativa é visível a sensação de vitória, consequentemente orgulho, por

ter em suas mãos aquele exemplar que fora confiscado no fatídico 1964. Os exemplares

deveriam estar totalmente destruídos dias antes de sua divulgação para o grande público. Se,

de um lado, a apreensão e destruição daquela edição havia se tornado símbolo da violência

que viria nos anos seguintes, de outro, aquele exemplar desgastado pelo tempo passava a

simbolizar a vitória das destrezas e artimanhas sobre o autoritarismo do golpe e regime civil-

militar. Cabe lembrar que a edição foi apreendida no dia 30 de março, no desbaratamento do I

SLARDES, na Faculdade de Odontologia, na Praça Batista Campos. Assim, passados 25

anos, mesmo sendo impossível acionar mecanismos para olvidar as dores registradas naquelas

páginas da vida de Paes Loureiro, ainda seria possível cumprir esta etapa da carreira de

escritor: (re) lançar o primeiro exemplar da carreira de escritor. E assim aconteceu. Por

iniciativa de sua esposa, senhora Violeta Loureiro, o “Tarefa” ganhou edição fac simile como

presente de aniversário para o escritor e poeta Paes Loureiro.

Porque quando, nesse mesmo ano, a Violeta mais amigos meus. E eles

fizeram versão fac similar com o Jorge falando, que era dono de uma

gráfica. E era já amigo nosso aquela altura. E fizeram uma surpresa para

mim. E claro, convidaram mais gente. Eu vi muitos amigos em casa. Eu

achei meio estranho aquilo e fiquei na minha. Quando deu certa hora me

chamaram, e tudo mais, e foi a surpresa: uma versão fac similar do livro com

um prefácio que a Violeta escreveu contando a história do livro (João de

Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).

Inolvidavelmente, Paes Loureiro narra tal episódio com imensa alegria. O sorriso não

é tão largo, mas com a convicção de sentir naquela atitude da esposa a realização de um

sonho. Ao mesmo tempo, o tom de voz se acalmou. Tornou-se sereno o suficiente para

transmitir aquela notícia sem permitir-se transbordar de euforia. No entanto, não pude deixar

de perceber que ao narrar aquele fato Paes Loureiro estava demarcando um avanço nas fileiras

do adversário. Ainda que tardiamente, lançar o “Tarefa” significava atropelar o autoritarismo

outorgado sobre ele no fatídico 30 de março de 1964.

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123

Segundo, com o ato autoritário da apreensão e destruição do “Tarefa” a estafe militar

pretendia dar uma lição para completa dominação sobre o tecido cultural amazônico. O desejo

daquele gesto autoritário era silenciar por completo quaisquer manifestações de pensamento

libertário. A julgar pela aparente apatia de muito estudantes universitários e famílias convictas

de ideologias direitistas/conservadoras, pode-se pensar num eventual êxito da prática raivosa

de apreender livros. Atitude mais comum foi a queima e destruição total dos livros, quaisquer

livros, que “pudessem depor contra a lealdade à nação brasileira”. Assim, livros cujos autores

pudessem ser interpretados como subversivos, foram queimados, conforme narrou Paes

Loureiro em diversas passagens das duas entrevistas concedidas. O objetivo era sempre livrar-

se de provas que pudessem depor contra si em caso de alguma invasão nos domicílios.

Mas houve quem ousasse não aceitar. Apesar das metralhadoras, cavalaria e soldados

ameaçadores, houve quem ousasse a desobediência. O exemplar do “Tarefa” desgastado e

corroído pelo tempo nas mãos de Paes Loureiro carregava ares emblemáticos para os novos

tempos democráticos.

Nem todas as táticas de resistência, é necessário admitir, foram urdidas para derrubar

a ditadura ou combater às atitudes governamentais. Muitas vezes, buscavam demarcar a

soberania sobre o próprio terreno, sem necessariamente adentrar na arena de embates políticos

de enfrentamentos diretos. Para as mães é possível que, ao não destruir os livros, como se

esperava que todas as famílias assim o fizessem, estivessem respeitando e demonstrando amor

aos ideais dos filhos. Não se tratava de adentrar no mérito do conflito político ideológico

existente naquele momento por conta da Guerra Fria. Neste sentido, posso inferir que o livro

“Tarefa” fosse resultado de uma atitude corajosa da esfera política daqueles anos. Mas

também, e isso é necessário especular, poderia ser tão somente fruto de um ato materno.

Ainda assim, ao demarcar tais espaços ainda na década de 1960 deveria ser

inevitável a sensação do binômio medo-orgulho por parte dos “infratores” por se permitirem

avançar sobre o limiar do autoritarismo imposto pelos golpistas ou mesmo sobre imposições

de setores mais conservadores da sociedade civil. Assim como era também inevitável à

memória selecionar e explicitar tal sentimento no momento da entrevista concedida pelo

próprio Paes Loureiro. Mesmo passadas quatro décadas do Golpe Civil-Militar, evidenciar tal

binômio de medo-orgulho era a opção política daquela narrativa.

Neste meio raio de raciocínio, Ruy Antonio Barata é categórico ao afirmar-se como

sujeito orgulhoso pelos simples feitos de demarcar seu espaço enquanto comunista da

sociedade belemense desde os tempos de sua juventude. Orgulho, inclusive que se entende até

os dias de hoje quando conclamado a expor seu ponto de vista neste assunto. Seguindo os

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124

ensinamentos de Sarlo (1997, 2005), tratei de instigar os entrevistados com temáticas que

pudessem buscar minúcias nas memórias. Desta forma, quando entrevistava Ruy Antonio

Barata abordei suas memórias acerca do pai, as prisões sofridas, os estereótipos negativos

atribuídos quando o comunista Ruy Paranatinga Barata estava no enfrentamento com o

baratismo e, depois, com a Ditadura Civil-Militar. Ao invés de esquivar-se ou denotar alguma

preocupação com o tema, narra o seguinte:

Tinha uma série de cassados. Figuras importantes do humanismo na cidade

se rebelaram. Agora, os jornais se enchiam na época. Eu lembro quando meu

pai foi preso: O cartorário da fé pública, comunista, foi preso. Desse

tamanho. A nossa cara nos colégios [quando os colegas apontavam]: Olha o

pai daquele cara é comunista. Comunista é um bicho feio. E nós dizíamos:

comunista é muito mais importante que vocês. Nós sabíamos a importância

de ser comunista. Tínhamos orgulho de sê-lo. Tinha orgulho de sê-lo. Não

comunista soviético. Essa coisa assim. Mas tudo aquilo que vinha em si de

uma sociedade de mais oportunidades, mais igualitária. Por exemplo, a luta

pela terra. (...) Sensações eram de orgulho. Primeira coisa. De orgulho. De

você enfrentar o mais forte, poderoso. Segunda coisa, eu era estudante da

Faculdade de Medicina. Era um homem muito bem sucedido, do ponto de

vista do meu momento pessoal. Tinha prestado vestibular, tinha passado em

12º lugar de uma faculdade. Era um aluno privilegiado. A minha irmã tinha

acabado de se formar em Direito. Ela formou-se em 65 e foi presa em 66. E

nós tínhamos um avô que era muito corajoso. Chamava-se Alarico Barata. Já

estamos habituados a enfrentar o Magalhães Barata (Ruy Antonio Barata,

entrevista concedida em 19 e 22 de agosto de 2011).

Ruy Antonio Barata não hesita em demonstrar-se como membro de um seleto grupo.

Em sua narrativa, não atribui para si o rótulo de “grupo de comunistas perseguidos

politicamente”, mas como “figuras importantes do humanismo na cidade que se rebelaram”.

Talvez pela severa educação de sua mãe, senhora Norma Barata. Talvez pela admiração

nutrida ao seu avô, o advogado Alarico Barata tantas vezes mencionado e comparado ao

famoso jurista Sobral Pinto. Talvez pelo respeito às ideias defendidas pela família, em

especial do “velho Ruy”. O fato é que Ruy Antonio Barata narra o episódio acima com

tamanha ênfase que se fez impensável esta escrita dissertativa sem a análise do orgulho

externado enquanto categoria analítica para compreender o Golpe Civil-Militar e a ditadura na

Amazônia Paraense.

Ser comunista assumia uma faceta identitária que Ruy Antonio Barata construiu

desde os tenros momentos de alteridade política. Mais do que uma opção política, a narrativa

coloca a identidade comunista como uma postura de vida em prol da coletividade. Desta

forma, a opção partidária política entranhada à formação familiar construída pela admiração

aos pais e avô fazendo funcionaram como ebulidores de sua identidade.

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125

O orgulho de ser comunista, ter sido preso, ver o pai cassado em seus direitos

políticos, tudo isso era maior do que a estabilidade econômica da família ou do fato de ter

sido aprovado no concorrido vestibular de Medicina, da Ufpa. Longe de tudo isso significar

uma mácula em sua história, a memória captura e põe em evidência essas experiências vividas

para construir uma identidade digna de nota e alinhada com o orgulho para que assim, e

somente assim, Ruy Antonio Barata pudesse conviver com este passado tantas vezes

doloroso. Assim, ao ser indagado novamente sobre as prisões que havia passado, ou de seu

pai, a mesma sensação causada pelo queixo erguido e o peito estufado foi mantida. Seguiu

com a mesma performance ao longo de toda a entrevista com a mesma postura de altivez,

inclusive para narrar sobre as prisões sofridas por alguns membros da família Barata e por ele

mesmo. Sobre o episódio de sua detenção, narra da seguinte forma:

Na Polícia Federal eu fui preso porque quando houve o AI-5 não havia mais

brecha para nenhum tipo de movimento político e nós tínhamos ocupado a

Faculdade [de Medicina] por sessenta dias. E saímos com movimentos

vitoriosos. Foi a primeira vez que nós ocupamos uma Faculdade. E a

Faculdade de Medicina era o centro da atividade política porque ela tinha o

maior número de estudantes, tinha 600 estudantes, tinha uma liderança

aguerrida. Eu fui presidente da fundação... da Comissão de Ocupação (Ruy

Antonio Barata, entrevista concedida em 19 e 22 de agosto de 2011).

Novamente vem à tona a altivez por estar diante de um evento protagonizado por

uma “liderança aguerrida” de “600 estudantes” da Faculdade de Medicina, cuja atividade

política era o “centro do movimento estudantil”. O fato de ser preso pela Polícia federal torna-

se minúsculo uma vez que a causa defendida em prol da imensa coletividade era mais nobre

que os arroubos autoritários. Por isso, ao contrário do que seria para outro sujeito em situação

similar, neste trecho da entrevista, ao citar a prisão, é concomitante com um tom acima do

comum. Senta-se mais à frente do velho sofá da sala de estar e o peito salta à frente. Assim, o

narrador externaliza toda a grandeza de sua atitude. Portanto, ao narrar este episódio com

tamanha eloquência, faz questão de registrar-se dentro de um projeto de protagonismo

histórico na temática da ditadura militar na Amazônia Paraense.

Neste sentido, Paes Loureiro se assemelha a Ruy Antonio Barata. O professor poeta,

ao narrar sobre as dificuldades para ingressar no mercado de trabalho precisou impor-se

corajosamente, segundo inferências a partir da narrativa, diante dos infortúnios criados pelos

tentáculos da ditadura. Ao concluir o curso de Direito encontrou poucas oportunidades de

trabalho em Belém. Tal fato, aliás, não foi incomum naqueles tempos de censuras e exclusões

do mercado de trabalho. É preciso lembrar que seu nome fora marcado com a pecha de

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126

subversivo na política regional e, portanto, os empresários ou outros empregadores não

tinham interesse em relacionar-se com tal predicado tão nocivo para a imagem dos negócios.

Não pensava conforme a maior parte do empresariado belemense a freira diretora do

Colégio Santo Antônio. Deu-lhe emprego dois anos após a formatura do Curso de Direito,

mas para lecionar Literatura Portuguesa, primeiro, depois, Brasileira. Apesar de ser uma

escola tradicional e frequentada pela elite paraense, aquela diretora (cujo nome não foi citado

por Paes Loureiro) ousou ir de encontro à exclusão social imposta ao bacharel. Paes Loureiro,

por conta de tal atitude dentre outras, à chama de “uma diretora excepcional como educadora

e como cabeça mesmo”. Muito embora a licenciatura não fosse parte do projeto de sua área de

atuação, a sala de aula era um emprego cuja função colocava aquele dito subversivo na vitrine

da sociedade. Fato que lhe conferia a desconfiança de diversos setores civis-militares e,

obviamente, vigilância dissimulada.

Algum tempo depois de já lecionar no Colégio Santo Antonio, os professores

precisaram alinhavar os estudos acadêmicos com as funções exercidas. E lá foi Paes Loureiro

prestar vestibular para o curso de Letras, na Ufpa. Foi aprovado, cursou e habilitou-se para

seguir sua trajetória de professor. De posse deste diploma viu-se apto a prestar concursos

públicos, como de fato o fez. Foi aprovado tão logo tentou os concursos propostos em editais

federais.

Mesmo sendo aprovado honrosamente em duas cátedras, em primeiro lugar em

ambas, a censura e vigilância ainda pairavam sobre Paes Loureiro. Por causa disso, não foi

admitida sua posse em nenhuma das duas cátedras. A pecha de subversivo pela poesia

inovadora, as prisões e, principalmente, sua atuação diante do Colégio Santo Antonio eram

vistos como atitudes desafiadoras aos senhores do poder na região, fossem eles civis ou

militares.

Abaixo, Paes Loureiro começa a dar mostras que nem sempre o regime obteve êxito

nos projetos autoritários. Segundo a narrativa abaixo, a identidade de professor dedicado,

intenso nas aulas e honesto com seus princípios começara a surtir efeitos junto à sociedade e

ao governo, pois:

Os alunos começaram a se organizar fazer uma greve para minha entrada.

(...). Foi quando o Damião Coelho de Souza que tinha sido meu professor na

Faculdade de Direito, professor de Introdução a Filosofia do Direito, ficou

muito meu amigo. Ele gostava muito de mim. Acompanhava minha vida de

estudante, vida literária. E depois também manteve assim, e eu por ele, a

admiração que eu sentia por ele. Ele me ligou e disse se eu me importava

que ele intercedesse por mim na universidade. Ele disse: Se você entrar na

universidade por força de um movimento como esse, você vai ficar marcado

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lá dentro. Na primeira oportunidade, quer dizer a ditadura ainda estava,

então vamos ver o que a gente fadiga isso. Eu disse: Olha não tenho nenhum

interesse de brigar. Quero entrar, fazer valer meu direito de entrar. E ele

articulou. Falou com não sei quem. Falou com o MEC, falou com o reitor. E

o reitor me chamou com ele presente, inclusive, disse que eu ia lecionar. Foi

engraçado porque parecia um teste, porque eu fiquei seis meses sem ser

contratado. Aquela coisa de experimentar. Passado os seis meses eles

contrataram (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de

2011).

Foi a partir do trecho acima que a narrativa de Paes Loureiro abandonou o discurso

performático de vítima daquele regime. As frases passaram a ser entrecortadas por risos, o

rubor na testa acalmou-se. Este momento da narrativa foi, sem sombra de dúvidas, o primeiro

momento daquela tarde que o professor permitira-se relaxar o tórax. O corpo deixou-se cair

sobre o sofá espaçoso da sua sala de estar. As pernas deixaram de balançar agitadamente e a

voz ganhou um tom abaixo dos momentos de nervosismo. A razão para a mudança de

discurso corporal deu-se, dentre outras, por que o próprio Paes Loureiro percebeu-se como

vitorioso no embate de forças junto aos governantes que o impediam de tomar posse. E esse

trecho foi lentamente a ser pinçado na memória para ser mostrado ao vídeo e entrevistador.

Ser disputado pelos alunos, que queriam seu ingresso na universidade, e pelo

professor de Direito, que havia se tornado amigo, ganhava um caráter emblemático de sua

carreira no magistério. Mais do que isso, considerando o corpo como portador de um discurso

vencedor, aquele fato era o ponto alto de sua trajetória na arena de disputas com o poder

executivo estadual. Na narrativa, Paes Loureiro não havia sido empossado por carregar o

status de subversivo. Ao converter favoravelmente a situação e permanecer com a pecha era o

mesmo que adentrar pela porta da frente na cova do inimigo: a universidade regida pelo

governo federal, cujos reitores eram indicados pelos generais.

Ao concluir este trecho de sua narrativa, Paes Loureiro apresenta um desabafo,

também em tom de conquista orgulhosa por conta dos labirintos de sua trajetória de vida. A

partir de todos os momentos de perseguições e sofrimentos por conta do Golpe Civil-Militar e

da ditadura, o professor poeta antecipa as intenções desta escrita dissertativa. Incita-me a

pensar as recordações acerca do Golpe Civil-Militar e ditadura para fazer inferências e

analogias a partir da “emoção e reflexão teórica”, conforme detalha abaixa:

Então veja bem, todos esses fatores reunidos tinham que me dar uma marca

muito forte. Tanto na minha memória, na minha emoção, como na minha

reflexão teórica. E no meu desejo de poder relatar sempre isso para que

nunca mais uma situação como essas tenha chance de retornar para o país.

Eu acho uma obrigação nossa de mostrar isso. Aí os acontecimentos pessoais

servem para uma interpretação social, histórica e psicológica. Por isso que eu

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não evito com relação a isso porque eu acho que as pessoas têm que saber

(João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de março de 2011).

Mais uma vez Paes Loureiro explicita o orgulho por dar importância à sua narrativa

enquanto sujeito cultural nos tempos de ditadura militar. Primeiro, sua identidade em

diferentes espaços de atuação o fizeram fundamental para pensar a temática em tela a partir de

outros olhares. Seja enquanto poeta, acadêmico de Direito, prisioneiro, professor, cidadão,

suas posturas nos primeiros momentos antes do Golpe Civil-Militar e ao longo da ditadura o

colocaram em evidência sob a pecha de subversivo. Segundo, no jogo de entre – vistas e

percepção do jogo das identidades, Paes Loureiro compreendeu a importância de sua narrativa

pinçando da memória vivida para a historicização do Golpe Civil-Militar e ditadura. Por

compreender seu lugar social e político na História, o professor não hesita em mostrar-se

satisfeito com os rumos de seu depoimento na situação de entrevista e, consequentemente,

mantém a altivez que os grandes vultos provavelmente tivessem.

Passo seguinte, ao ser questionado sobre as táticas utilizadas na época para driblar os

rigores da censura ou outros tipos de autoritarismos, o professor trouxe uma informação

bastante pertinente para a atuação dos jornalistas. Vejamos:

Havia mil artimanhas. Houve um boicote, então ninguém sabia. E mesmo

durante muito tempo depois não sabia o que estava acontecendo. Você tinha

o jornal e o que saía no jornal era controlado pelo sistema de censura. Quer

dizer, os jornalistas encontraram uma maneira que eu acho genial. Duas

maneiras que eu acho geniais para poder contornar isso. A primeira, quando

proibiam uma notícia na primeira página ou qualquer outro lugar em lugar

da notícia eles colocavam uma receita de bolo ou de comida. Que era para as

pessoas estranhassem aquilo. Ao invés de colocar uma notícia para disfarçar

a coisa, não. Que era para as pessoas poderem estranhar aquilo. E para as

redações dos jornais a maneira era o linotipo. Aquela máquina que recebe

o... Então que eles faziam? Uma notícia proibida. Eles mandavam a notícia a

seguir é proibida, não pode ser publicada, etc. atenção para isso, mas

passava a notícia. Depois da notícia, novamente avisava esta notícia não

pode ser publicada por ordem do Serviço Nacional de Informações. Passava.

Então de boca em boca, né? Foi quando a oralidade colaborou com a

imprensa escrita, né? (João de Jesus Paes Loureiro, entrevista em 03 e 30 de

março de 2011).

Ao mencionar a importância da oralidade, Paes Loureiro é eficiente mais uma vez

para esta tecedura. De fato, os jornais sofreram censuras diversas ao longo do período

ditatorial. As demissões de jornalistas, substituições de editores, infiltração de policiais para

assumir as funções daqueles profissionais da imprensa que fossem possibilidades de

problemas para o regime. Os “novos” propagadores de notícias agiam como verdadeiros “cães

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de guarda” para dar sustentabilidade às novas e velhas oligarquias compactuadoras do Golpe

Civil-Militar (KUSHNIR: 2004). Entretanto, nem sempre os tentáculos do autoritarismo

garantiam a isenção de críticas. Páginas em branco na capa, receitas gastronômicas, tarjas

pretas sobre matérias censuradas compunham o métier de sujeitos culturais infiltrados nos

jornais, como bem lembrou Paes Loureiro e assinalava Kushnir. Eram táticas para chamar a

atenção do grande público que alguma coisa estava acontecendo e estava sendo escamoteada.

Na mesma trilha de Paes Loureiro e Ruy Antonio Barata, o teatro amazônico

paraense presente nesta argumentação por meio do padre teatrólogo Cláudio Barradas também

conseguiu fazer-se notar enquanto forte instrumento de crítica ao regime. O padre teatrólogo,

em depoimento sobre as táticas utilizadas nos palcos para fazer oposição ou denunciar

mazelas sociais, foi bastante elucidativo ao narrar como lançou mão de personagens,

monólogos, diálogos, cenários e toda gama de linguagens teatrais para fazer-se presente no

cotidiano político do país, em especial, da cidade de Belém. Nas diversas passagens de sua

narrativa, a ardileza/destreza estiveram presentes nas táticas da linguagem em suas produções

artísticas para escapulir/driblar a censura.

Este narrador evocou inúmeras sensações ao longo das duas entrevistas concedidas

no mês de maio de 2011. Foi excluído de círculos sociais por conta da opção de adentrar ao

Seminário e estabelecer-se um rígido cotidiano religioso. Assim, pouco se envolveu/cultivou

grupos de amigos. Pela trajetória de vida, nos primeiros momentos de sua vida de seminarista

recluso, sentiu raiva, medo, alegrias. No início dos anos 1950, sua vida sofreu uma

significativa guinada: abandonou a reclusão do seminário e aceitou novos desafios para sua

vida. Foi a partir desta reviravolta, com a maior liberdade, passou a atuar artisticamente junto

aos palcos. Doravante, o orgulho foi pinçado de alguns trechos e a partir daí podemos

compreender estratégias e táticas urdidas ao longo da Ditadura Civil-Militar na Amazônia

Paraense.

Ao iniciar a entrevista, Cláudio Barradas partiu para um solo em torno das memórias

sobre os primeiros tempos de suas incursões pelos palcos. Infelizmente, os primeiros anos de

suas atuações teatrais coincidiram com o fatídico Golpe Civil-Militar, em 1964. Assim, as

primeiras recordações de Cláudio Barradas nas atuações teatrais estão ligadas à censura e

imposições diversas por parte dos militares ancorados no poder. Cabe lembrar que o golpe foi

civil e militar, ou seja, setores da sociedade civil também viam com desconfiança os textos

politizados do alemão Bertold Brech. Desta feita, a censura sofrida pelo teatro paraense vinha

de duas frentes: aquela temerosa que só se compreende ao lembrarmos do advento da guerra

fria e, outra, se considerarmos a sociedade provinciana com pensamento conservador, em

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130

defesa de valores que julgavam necessários para a manutenção de seus status quo, conforme

narra o próprio padre teatrólogo:

As outras artes no Pará me parecem assim... Mas o teatro... Porque o teatro

era feito por jovens. Como te disse, o jovem que não for revoltado não é

jovem. Que não quer mudar esse mundo, mesmo que não mude nem o nariz

dele. Então o teatro ia, além do que, todo mundo tava descobrindo Brecht.

Teatro político. Discussão de problemas (Cláudio Barradas, entrevista

concedida em 13 e 23 de maio de 2011).

Assim, na esteira dos orgulhosos pelos feitos nos tablados amazônicos, o padre

teatrólogo Cláudio Barradas é categórico ao afirmar a linguagem teatral como forte

instrumento de denúncia social, política e econômica ao regime militar porque era feito por

jovens. Cabe lembrar que nem sempre as peças tinham por objetivo questionar ou criticar a

ditadura ou seus sujeitos, mas tão somente trazer à tona temas universais, como a miséria,

tristeza, maldade, paixões, etc. Assim, o teor crítico dos textos era inevitável em qualquer

tempo histórico e não somente aos tempos de autoritarismo instalados pelo Golpe Civil-

Militar, pós 1964.

O grupo que compunha a classe artística do teatro, segundo o padre teatrólogo, tinha

a característica da “revolta” nas identidades de seus componentes. Pelo sorriso contínuo e

constante impostação de voz, como se estivesse no palco, narra sobre a importância destes

personagens dando ênfase para o fato de serem não somente pessoas com pouca idade, mas

por serem dotados de um salutar desejo de transformar. Com isso, longe de dar um conteúdo

pejorativo à expressão “revolta”, pretende incorporar a este adjetivo a característica de

personagens revolucionários, tão necessários para a crítica e mudanças naquilo que está

alicerçado em valores conservadores. Para Barradas, os jovens orgulhosamente assumiriam a

vanguarda revolucionária dos necessários personagens para o processo de crítica ao regime.

Quando incitei a memória do padre teatrólogo nas possíveis táticas da linguagem

teatral contra a censura, as passagens e exemplos de situações inusitadas, engraçadas e bem

humoradas foram inúmeros na narrativa. Todas as situações externadas envolviam orgulhos

dentre outras sensações tão comuns em expressões artísticas. Para o padre teatrólogo, a

riqueza da linguagem teatral no embate com a censura dava largas margens de vitória para a

criatividade. Assim, diante dos inúmeros exemplos disponibilizados pela narrativa da

entrevista, para esta escrita contemplei apenas os casos mais significativos da narrativa do

padre teatrólogo, apesar de existirem outros tantos exemplos que poderiam facilmente

direcionar esta dissertação para outras riquíssimas análises.

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131

No que se refere à criatividade para desvencilhar-se da censura, Cláudio Barradas

orgulha-se por ter saído exitosamente de todas as “confusões” em que se meteu. Assim, no

primeiro exemplo que sua memória conseguiu selecionar, conseguiu afastar-se de algum

ressentimento com relação aos censores que tanto o incomodaram e, surpreendentemente,

narrou com relativa simpatia as recordações que nutria de todos, até dos mais fervorosos

defensores dos tais “bons costumes”.

Nesta seara dos orgulhos nas atuações contra o regime ou com relação aos eventuais

problemas de liberdade de expressão, ao ser questionado sobre o enfrentamento direto que o

teatro pudesse ter provocado, Cláudio Barradas lembra de um caso citado como o primeiro

confronto com uma censora chamada “dona Selma”. Esta o visitou no palco de ensaios para

exercer a função de censora e era conhecida por ser implacável no seu ofício. Naquela altura

do ano de 1967 ainda não havia acontecido o famigerado Ato Institucional nº 5, por isso ainda

restava relativa liberdade para abordar temas universais aplicáveis à realidade ditatorial

brasileira. No depoimento do padre teatrólogo, por exemplo, era possível fazer

(...) Crítica à política brasileira, mas sem falar nela, isso eu fiz em 67. Era

um espetáculo grego. Um texto grego do século V a.C chama-se Antígone

ou Antígona. É um dos textos mais belos de todos os tempos. Se eu tivesse

que escolher dez textos, eu escolheria esse (Cláudio Barradas, entrevista

concedida em 13 e 23 de maio de 2011).

O texto grego do século V a.C, de autoria de Sófocles,39

por ser “um dos mais belos

de todos os tempos” atendia aos apelos artísticos, mas também políticos pelo qual passava o

Brasil. O governo de Castello Branco (1964-67) prometia entregar a presidência a um civil. O

próprio vice-presidente, aliás, era o civil Pedro Aleixo. Entretanto, neste mandato começaram

as edições dos primeiros Atos Institucionais. Apesar do Congresso Nacional ainda estar em

funcionamento, o modelo de governo recém-instalado já mostrava suas primeiras facetas

autoritárias.

No Pará, por exemplo, os estudantes presos no momento do Golpe Civil-Militar já

estavam marcados e alijados de quaisquer tratamentos de isonomia perante o governo. Para

compreender esta afirmativa, basta contextualizar os eventos políticos que influenciaram a

produção teatral daquele momento. Alacid Nunes havia sido eleito prefeito de Belém em 1964

sem quaisquer vestígios de participação popular. Foi alçado à condição de chefe executivo do

município mais importante da região amazônica por decisão pressionada da Assembleia

Legislativa do Pará. Depois, foi favorecido a chegar à condição de governador em duas

39 Ver análise do texto de Sófocles em http://migre.me/8NOoT - acessado em 23 de abril de 2012, às 17h43min.

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ocasiões (1966-71 e 1979-83). O favorecimento se deu pela criação do sistema bipartidarista

de eleições, prisões e cassações dos quadros de esquerda. As eleições paraenses eram um jogo

de cartas marcadas em que um ou outro candidato não representava grandes críticas ao regime

ditatorial.

O outro expoente da política regional, por exemplo, foi Jarbas Passarinho. Acreano

baseado na 8ª Região Militar conseguiu fazer-se presente nos momentos cruciais do Golpe

Civil-Militar. Pelas estratégias ardilosas, foi eleito governador pela Assembleia Legislativa.

Após este feito, três vezes foi eleito senador. Chegou também ao cargo de Ministro do

Trabalho e Previdência Social do General Costa e Silva, entre 1967-69. Mais tarde, a linha-

dura do General Médici o alçou a condição de Ministro da Educação e Cultura (1970-73). E

no último governo ditatorial (do também General João Batista Figueiredo) foi Ministro da

Previdência e Assistência Social, entre 1983-85.

Jarbas Passarinho foi um dos inquiridores dos estudantes presos na invasão da UAP

assim como Alacid Nunes. Este último, estranhamente frequentava a Faculdade de Economia

dias antes do Golpe Civil-Militar, segundo depoimento de Dulce Rosa de Bacelar Rocque.

Ambos são, inevitavelmente, personagens citados por todos os depoentes desta análise como

equivalentes ao despotismo militar em solo amazônico.

Assim, diante do cenário de autoritarismo que envolvia o cotidiano do padre

teatrólogo, não é de se estranhar inspirações críticas a tal ambiente. A produção teatral não

poderia ficar imune e, ao narrar sobre a montagem do cenário para a peça “Antígona”,

Cláudio Barradas lembra sobre a organização do cenário. Pretendia expor uma faixa com

conteúdo subversivo ao final do espetáculo. De modo bem didático em suas memórias, relata

da seguinte maneira:

(...) E assim acaba a peça. Eu queria criticar o regime militar. Mas eu fiz o

que? A peça se passa na Grécia. Aí, como começa o espetáculo? É um grupo

de trabalhadores que está discutindo sobre liberdade. Eles usavam macacões.

E tinham nas mãos instrumentos de trabalho. (...). Aí começa a contar a

história. Eles se transformam em trabalhadores e personagens da peça.

Agora, o Creonte, usava roupa grega, mas no manto, a suástica nazista.

Porque toda ditadura, para mim, é nazista. Agora, no final do palco, de novo

tem o... Eu pedi lá no fundo do palco, lá no espaço tinha um busto de

mulher, de gesso, belíssimo, que eu mandei colocar. E aqui, descia, uma

grande folha marrom e nela pregado os recortes de jornal da época. Uma

delas dizia: “e os militares?”. Aí no lado, é que eu coloquei o que eu te disse

“as luzes se apagaram na verdadeira Grécia”. Onde está “velha Grécia”, leia-

se “o Brasil”... “Não desanime a democracia vencerá”. Porque tem uma

coisa, quando a gente faz espetáculo assim, o ditador é burro. Ele não vê que

estão falando dele, mas o povo sabe (Cláudio Barradas, entrevista concedida

em 13 e 23 de maio de 2011).

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Para o padre teatrólogo, algumas questões estão claramente postas. A primeira vai

exatamente ao encontro da pregação dos partidos de esquerda naqueles tempos de guerra fria.

Os personagens não estão simplesmente discutindo o conceito liberdade de um ponto de vista

filosófico, mas se assumem enquanto “trabalhadores”. Ou seja, assumem a identidade

esperada pela prerrogativa mínima para uma revolução socialista na perspectiva marxista

operada pelos movimentos estudantis amazônicos. Curiosamente, o padre teatrólogo já havia

mencionado em diversas passagens de sua narrativa o ralo envolvimento com a política

partidária, mas neste momento, sem agitar bandeiras, chega a tangenciar a máxima da

revolução a partir da organização proletária.

Em seguida, Cláudio Barradas dá mostras de sua postura política em relação ao

nazismo e os máximos chefes executivos que o cercam. Ao estabelecer analogia entre Creonte

e os governantes brasileiros daquele momento político, dá a Alacid da Silva Nunes

(governador paraense entre 1966-71) e Costa e Silva (presidente da república entre 1967-69)

os epítetos de autoritários, contraditórios, medrosos e toda a gama de pejorativas qualidades,

tais como o grego Creonte. 40

Neste momento, a narrativa é entrecortada pelo rosto teso, alternado por sorrisos de

deboche em relação à reencenação. Ao estabelecer um nexo com a sugestão marxista de

revolução, Cláudio Barradas inconscientemente destila sua ácida crítica aos militares. O rosto

é teso, sério. A voz, apesar de em tom sempre sereno, é altiva, como se estivesse

representando para uma plateia. Sua atitude de posicionar personagens gregos travestidos de

“trabalhadores” é repleta de investida política de denúncia e incentivo em prol da causa

trabalhista. Ao mencionar Creonte e o nazismo, o sorriso é largo. O peito à frente dá mostras

de um orgulho pela perspicácia em situar o nazismo num patamar de comparação com um

personagem representativo do medo e covardia disfarçados pelo autoritarismo.

Sabendo da crítica perspicazmente posta pela frase na faixa e conhecedor da dureza

da censora “Dona Selma”, o padre teatrólogo ao ser visitado para fins de fiscalização tratou

logo de apagar as luzes do palco e dificultar a fiscalização. Ao narrar a atitude de esperteza

para com a censora, o padre teatrólogo estufa novamente o peito e sorri fartamente como

quem sabe o que estaria por vir na narrativa. A censora, entretanto, ao perceber as luzes

apagadas, retrucou: “Não seu Barradas, mantenha a luz acesa. Tire!”. Segundo o padre

40 Ver sobre a índole contraditória e autoritária do personagem Creonte, em Sófocles, em http://migre.me/8Ogja -

acessado em 23/04/2012 - às 11h22min.

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teatrólogo, “Dona Selma” apontava para a faixa. Não havia adiantado a tentativa de burlar a

inteligência da censora.

Cláudio Barradas apontava, gesticulava, impostava a voz para deixar claro o

autoritarismo da censora ao tratar com ele. A narrativa, a partir deste momento, foi todo um

jogo de encenações: passou a reencenar aquele momento vivido interpretando a si próprio e a

“Dona Selma”.

- “Dona Selma, posso cobrir tudo isso com um X?”. Dando a entender humildade na

fala para convencer a censora de que nada de político havia por detrás daquela intenção tão

tênue.

- “Pode”, com força e ar de desprezo. Mudando a entonação da voz para dar a

entender que seria uma resposta feminina, de Dona Selma, portanto.

- “Pois agora mesmo, na sua presença”. Em movimentos largos, com os braços, o

padre teatrólogo mostra como marcou as faixas com um X com uma caneta vermelha. O

sorriso largo permanece quando se assumia como protagonista daquele momento de suma

esperteza. O objetivo era deixar a frase, mas com o X da censura e em tinta vermelha. “E o

pessoal vai querer subir para ver [o que o X pretendia esconder]”, explicou o padre teatrólogo.

Assim, o efeito de denúncia da censura estaria óbvio para o público presente no espetáculo.

Com este jogo de variação de tom de voz e encenação de humildade, Cláudio

Barradas insere-se na condição de sujeito cultural em pleno uso de táticas teatrais para

denunciar o autoritarismo da cena política do país. Ao narrar aquele episódio, o padre

teatrólogo não só acionava a memória sobre os tempos de ditadura, mas articulava o conjunto

de língua e corpo para demonstrar como diversas possibilidades eram urdidas a partir das

linguagens artísticas.

Com aquela atitude de esperteza, Cláudio Barradas conseguiu seu intento: a peça foi

autorizada a estrear. “Pode estrear. Vou para [o balneário de] Mosqueiro. E segunda-feira

cedo você passa lá comigo para eu lhe dar a autorização”, disse-lhe a censora. Acontece que

momentos antes daquela conversa entre o teatrólogo e a censora, um fotógrafo do jornal A

Província do Pará estivera no local e havia fotografado o cartaz, ainda sem o X proibitivo. E

publicou no sábado. Tal episódio era foi suficiente para gerar um desgaste na relação de

confiança entre a Censura e o Teatro amazônico. Naqueles tempos de caça às bruxas, Cláudio

Barradas iria sofrer sérias consequências, tais como ser enquadrado pela Lei de Segurança

Nacional. E assim foi. Ao pegar o jornal com aquela frase estampada na capa da Província do

Pará, o padre teatrólogo partiu em direção ao escritório de Dona Selma. Levou consigo o livro

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“A experiência grega”, como numa tentativa de portar um escudo que o protegesse das cenas

seguintes.

Quando chegou ao local onde estava dona Selma, na Polícia Federal, no bairro de

São Braz, ouviu uma mão teclando com rapidez. “Thá, thá, tchá”, onamatopeizou a máquina

de escrever. O padre teatrólogo fez questão de mostrar a força do ruído causado pelas teclas e

a rapidez dos dedos da datilógrafa. “Ê Seu Barradas, é você?! Já estava esperando. Viu esse

barulho da máquina? Sou eu enquadrando você na Lei de Segurança Nacional porque você

me de-so-be-de-ceu”. A narrativa faz ênfase em soletrar a desobediência como numa tentativa

de deixar clara a autoridade e o respeito que dona Selma esperava receber por conta do cargo

exercido.

Ser censora em tempos de ditadura era o mesmo que desprezar quaisquer

possibilidades de direitos por parte dos demais cidadãos, afinal, no exercício daquela função,

zelava pela segurança da nação. “Eu mandei tirar aquele negócio e você não tirou”, continuou

o padre teatrólogo com tom de voz de deboche pela frase arrogante dita pela censora.

A Polícia Federal tinha uma sede toda feita de ferro, segundo Cláudio Barradas. E

fez questão em enfatizar o material da construção. Talvez desejasse deixar evidente a força e

dureza daquele lugar e das pessoas que compunham o ambiente da censura. Assim, a arma

para atuar contra tamanha força e dureza deveria ser a astúcia. E assim foi. Sempre imitando o

tom de voz para mostrar a fala da censora, o padre teatrólogo se prontificou a ser novamente

inspecionado, colocando-se à disposição para ir junto. Dona Selma aquiesceu. Deu nova

oportunidade para não enquadrar o jovem diretor. Ao contar isso, o narrador sorri

divertidamente pela astúcia como conseguiu desvencilhar-se da situação que parecia

irremediável. Acompanhado de dois agentes federais, foi até o SESI apanhar a chave e não a

encontraram. Barradas teve voz de prisão decretada. A paciência se esgotava rapidamente

quando aqueles sujeitos, em nome da defesa nacional, não obtinham imediatas respostas para

seus desejos. Fazia parte da política de estado. Seguiu argumentando até conseguir nova

chance. Foram até sua casa, a chave não abriu, pulou o muro, entrou por detrás do teatro e

abriu as portas.

“Viu?”, disse Barradas ao mostrar o X sobre a frase dita subversiva. O tom de

satisfação e alívio foram marcados com um sorriso no momento da encenação. Mostrava aos

dois agentes federais que não era subversivo e não se eximia da obediência irrestrita aos

donos do poder. O tom de voz dando a entender a submissão aos agentes da lei foi

devidamente enfatizado para demonstrar o quanto aqueles senhores gostavam de adulação.

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A atitude de obediência e submissão era credencial necessária para fazer-se notar

como sujeito pacífico e assim obter permissão para seguir sua trajetória de crítico ao regime.

A atitude deu certo: “Você é um heroi. Um romântico. Continue a fazer o teatro como você

faz, mas não nos dê trabalho”, ouviu de dona Selma.

Toda a cena encenada por Cláudio Barradas, aparte de ser um monólogo digno de

aplausos, foi pinçada dos arquivos da memória e narrada de tal maneira com a

intencionalidade de exemplificar as táticas urdidas pela experiência teatral para driblar os

arbítrios autoritários dos censores. Portanto, foi graças a ações como esta de Cláudio Barradas

que o teatro conseguiu sobreviver sem patrocínios e com patrulhamento ideológico, muitas

vezes incoerente.

Na mesma linha de altivez descrita por Cláudio Barradas para descrever a autonomia

amazônica, Ruy Antonio Barata também é bastante enfático. Na opinião deste narrador, a

Amazônia tinha um projeto eficiente de soberania que foi interrompido pelo Golpe Civil-

Militar. Com extremo didatismo, Ruy Antonio Barata exprime sua satisfação ao externar o

ambiente cultural e político gestado no Pará. Segundo ele:

Ou seja, o militar brasileiro quando chegava a um grau de estado maior ia

para Europa. E aí, com o pós guerra e a hegemonia americana todos os

militares passaram a seguir a formação no Fort Leavenworth, nos Estados

Unidos. E o novo momento de hegemonia acontece depois que os EUA

ganham a dianteira do mundo. Eles treinam os militares brasileiros para um

projeto de, digamos assim, para um projeto menor, projeto subalterno.

América do Sul, tendo conflito com conceito de guerra fria que emergiu no

pós guerra, passa a ser o quintal dos americanos. E essa elite que se cria nos

militares estava há muito tempo que aderiu no pós guerra. Esse partido

chamava-se UDN – União Democrática Nacional – cuja cabeça fundamental

chamava-se Carlos Frederico Werneck de Lacerda, ou Carlos Lacerda. Então

Lacerda foi o pai e a mãe de 61 e 64. Porque 64 foi o golpe militar. Toda

essa gente estava na UDN. Quem fundou a UDN? Era o brigadeiro Eduardo

Gomes. Foi o fundador da UDN. Foi candidato duas vezes a presidente da

república. Uma em 45, que ele perde para o Dutra. E outra, em 1950, que ele

perde para Getúlio. Esse grupo militar nunca perdoou o projeto de

desenvolvimento autóctone e autônomo e, principalmente, anti-latifundiário.

Isso tudo estava aqui dentro do Pará. Aqui não era brincadeira de se dizer

assim: “O Pará, coitadinho, só tinha aquele bando de estudantezinho,

burrinho, que gostava de cantar no meio da rua, que jogava pedra nos

militares, nos cavalarianos, que queriam fazer revolução.” Não. Tinha um

projeto de autonomia da Amazônia. Tinha um projeto de transformar a

Amazônia (Ruy Antonio Barata, entrevista concedida em 19 e 22 de agosto

de 2011).

A conclusão do enunciado acima não deixa dúvidas quanto ao caráter político

amadurecido por parte das esquerdas amazônicas. Ou pelo menos era esta a interpretação

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137

dada por Ruy Antonio Barata e aqueles que o circundavam. A respeito disto, há uma

discussão bastante eloquente sobre a identidade regional versus identidade do Brasil, em

especial com Barbosa (2010). Este nos diz sobre o problema do “enjeitamento” sofrido pela

região amazônica, em especial o Pará, por parte das regiões ditas “mais avançadas” (sul e

sudeste), ao longo de todo o Império e boa parte da República. Os regionalismos, norteados

pelas tradições, foram a tônica para traçar indeléveis diferenças com as demais regiões do

país. Paralelamente, Barbosa menciona velhos projetos políticos e econômicos de setores

amazônicos para engajar-se ao cenário nacional sem, contudo, grandes eficácias. Neste

sentido, é bem provável que o pensamento de Ruy Antonio Barata esteja inserido no rol de

projetos pensados por Barbosa (2010).

Na mesma esteira de experiências em projetos políticos, Ruy Antonio Barata segue

dando mostras de articulação e coragem para enfrentamentos na arena política. Acerca disto,

lembra as histórias contadas pelo avô, o advogado Alarico Barata, na cidade de Óbidos, no

baixo Amazonas (oeste do Pará), sobre embates violentos. A narrativa, para melhor ser

ilustrada, é contada com requintes literários. Assim versou sobre a temática:

Estava calejado. Na luta política. Diferentemente do movimento estudantil.

O movimento estudantil era um movimento de meninos, jovens, etc. Nós,

quando, na minha casa em Óbidos. Lá em Óbidos, eu nasci em Óbidos,

quando eu fui visitar depois de 10 anos, meu avô mostrou os buracos que ele

guardava na parede. Buraco de bala. Os capangas do Barata mandavam atirar

à noite. Então era uma luta tão primitiva quanto era uma luta dos cangaceiros

do Graciliano Ramos ou de Jorge Amado. Então para nós... Aquilo ali... Nós

já nascemos nesse berço de enfrentamento de regimes tão autoritários (Ruy

Antonio Barata, entrevista concedida em 19 e 22 de agosto de 2011).

“Já nascemos nesse berço de enfrentamento de regimes tão autoritários”, diz Ruy

Antonio Barata com a altivez típica de uma estátua de bronze nas praças públicas. Com o

rosto impávido e orgulhoso, o narrador destila rancor – salutarmente – às práticas autoritárias

conhecidas no estado desde os anos 1930 com o início do baratismo. Sem querer adentrar no

mérito da veracidade dos “buracos feitos à bala” na casa de Alarico Barata, nem pretender

averiguações acerca do caráter criminoso do eventual mandante – o interventor Magalhães

Barata –, é inevitável recordar acerca das memórias herdadas por Ruy Antonio Barata. O fato

de externar a violência sofrida pela família ainda em Óbidos é tão relevante quanto deixar

claro que tal memória é oriunda nas recordações do avô.

A performance de Ruy Antonio Barata está para além do tom de voz ou atividade

corporal. Não posso negar o quanto aquele trecho do depoimento me impressionava. A

vibração da narrativa de Ruy me deixou, em diversas passagens, impressionado pela forma

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didática, mas também pela identidade do magrelo sujeito montado em seu pangaré, munido

tão somente de coragem e ousadia em querer transformar o mundo em um lugar melhor

habitável. Os moinhos de vento intransponíveis não eram somente o autoritarismo dos

governantes que se revezaram na região amazônica, mas o cruel apoio de setores poderosos da

sociedade civil. Ruy Antonio Barata lutava contra estes moinhos. Estar ali, ouvindo aquela

narrativa, me orgulhava.

Dias antes, em entrevista com Pedro Galvão, já havia experimentado a mesma

emoção de haver escolhido este tema de memórias com sujeitos culturais que experienciaram

os tempos ditatoriais na Amazônia Paraense. Quando o questionei sobre eventuais

arrependimentos ou aprendizados sobre as experiências com a Ditadura Civil-Militar, ouvi

sua resposta desprovida de sentimentos inseguros.

Para mim o aprendizado, o maior aprendizado que a gente pode ter tido com

a ditadura foi o valor da liberdade. O valor da liberdade. Por quê? Porque

nós lutávamos, nós reivindicávamos os valores, pelo valor da liberdade. Nós

lutávamos contra a censura. Nós defendíamos a liberdade de opinião para ser

contra a ditadura. Eu não posso depois disso honestamente ser a favor de

uma ditadura de esquerda. Eu não posso. Todo regime que restringir a

liberdade. Todo regime que censurar. Todo regime que não permitir uma

liberdade criativa. Da cultura, da área da literatura, na área de cinema, na

área de teatro, seja de esquerda, seja de direita. Ou seja, eu tenho que me

respeitar. Eu tenho que respeitar o que eu disse para sair da ditadura, para ser

contra a ditadura, com a volta do estado de direito. Toda aquela luta, eu não

posso trair aquilo. Não posso mais trair aquilo. Aquilo impregnou na minha

vida. Ou eu não acredito mais nesses valores, como liberdade. Para mim é

uma questão fundamental essa. Mas ao mesmo tempo eu entendo que a

questão social é muito importante (Pedro Galvão de Lima, entrevista em 25

de maio e 24 de agosto de 2011).

Pedro Galvão se dizia “impregnado” pelos ideais defendidos desde os tempos de

golpe e Ditadura Civil-Militar. Assim como os demais narradores desta dissertação, o trecho

acima é recheado de orgulho pela experiência vivida, mesmo com os reveses sofridos (perda

de oportunidades de trabalho, amigos se distanciando, prisões sofridas) há diversas passagens

na narrativa com posturas de altivez por ter pertencido ao seleto grupo que ousou enfrentar a

ditadura pela via democrática. Assim como Pedro, outros narraram o mesmo teor. Entretanto,

o trecho acima pinçado vem na mesma esteira de orgulho pela tradição de enfrentamento, tal

como Ruy Antonio Barata.

Os ideais de liberdade, tão aclamados por Pedro Galvão, também estiveram na tônica

dos demais narradores. O orgulho por terem se envolvido na defesa deste bem maior dos

estados democráticos foi loquazmente posto em evidência por todos, ora sutis, ora com

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139

ênfase. Evidentemente, é preciso relativizar esta categoria. Os conceitos estão sempre

sofrendo reformulações no decorrer dos tempos, assim é com a “liberdade”. Isto, é bom frisar,

não invalida as táticas de subversão, muito menos os orgulhos decorrentes de tais práticas.

Nem todos os narradores vinham da tradição dos enfrentamentos. O poeta Paes

Loureiro quando narra um episódio da Polícia Militar revistando a casa de seus pais, em

Abaetetuba, deixa clara sua distância do perfil de sujeito revolucionário nos moldes

guevaristas.

Vejamos que logo após a apreensão da edição do “Tarefa”, em 30 de março de 1964,

aconteceu o Golpe Civil-Militar. Paes Loureiro foi um dos presos naquele entrevero após a

invasão da UAP, em 1º de abril do mesmo ano. E, numa ânsia de controlar corações e mentes

do “novo país”, os militares também iniciaram caça às ideias dos perigosos subversivos. Ou

seja, por iniciativa de Orlando Ramagem ou Jarbas Passarinho, ambos controlando a 8ª

Região Militar da Amazônia, os livros dos estudantes começaram a ser apreendidos

estivessem onde quer que seja. O objetivo daquela dantesca atitude era dar cabo a quaisquer

possibilidades de investiduras ideológicas que pudessem ameaçar os rumos da “revolução”

em curso. Assim, imbuídos da nobre missão de salvar o país da subversão, uma corveta de

guerra, aparelhada para tal, aportou no cais de Abaetetuba. Rumaram para a casa dos pais de

Paes Loureiro. Quando chegaram, a ordem era encontrar livros com ideias de esquerda. Ao

adentrarem na casa, chegaram até a biblioteca. Paes Loureiro narra o seguinte episódio:

E um fato engraçado é que... Os livros caindo. Derrubaram mesmo aquela

biblioteca que eu tinha lá. Tinha livros meus, mas também tinha do meu pai.

E de repente caiu. Tinha um exemplar da bíblia que arrancou. O miolo

arrancou da capa. E havia um exemplar do “Capital”, do [Karl] Marx. Então

minha irmã pegou e fez o seguinte: pegou o “Capital” e enviou dentro da

capa da bíblia. (...) Aí [o soldado] viu aquela coisa da bíblia pegou mas não

abriu. [Disse:] “Veja só um comunista lendo a bíblia” (João de Jesus Paes

Loureiro, entrevista concedida em 03 e 30 de março de 2011).

A cena, contada entre risos, é emblemática para demonstrar que nem todos os

sujeitos culturais desta dissertação estavam aparelhados por ideologias marxistas sólidas. Ao

mesmo tempo, o fato mostra a tradição da qual vinha Paes Loureiro. Não era do embate

político, isto deixou claro em vários outros momentos. Era filho de uma família ribeirinha,

acostumada muito mais com o comércio de regatões pelas ilhas do que do confronto. Mas os

risos talvez sejam os mais contundentes para demonstrar o quanto estava alijado das disputas

políticas. Ser interpretado pelo militar que revistava a casa como um marxista cristão era

motivo de risos pela contradição aparente de como soava aquilo em tempos de Guerra Fria.

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Entretanto, o fato de ter na mesma estante um exemplar bíblico e de Karl Marx demonstram o

quanto era, no mínimo, heterogênea sua formação política. Ao dar-se conta do que narrava,

sorria. Foi um dos raros momentos da entrevista que se permitiu relaxar com todas aquelas

memórias.

Outro sentimento apreendido na cena dos livros esparramados na biblioteca foi o

ressentimento. A violência desferida sobre as estantes atingiam em cheio a austeridade da

família Loureiro. Não se tratava somente de uma invasão em busca de livros subversivos, mas

de uma arbitrariedade contra a soberania de um lar.

Neste jaez, a narrativa de Paes Loureiro se aproxima do médico comunista Alfredo

Oliveira. Ao entrevistar este segundo narrador, notei que se manteve no mesmo discurso

performático. O corpo do médico respondia a uma educação formal, quase religiosa. Quase

não movia pernas e braços para sinalizar sensações de nervosismo, cansaço pelo calor ou

alegrias. Então foi preciso rever o áudio da entrevista para capturar variações no tom de voz.

Assim, e só assim, depreendi momentos de ironia, irritação e inúmeras passagens de

ressentimentos com o Golpe Civil-Militar provocado em 1964. Sentimentos bem próximos

daqueles que Paes Loureiro evocava.

Alfredo Oliveira tem um currículo invejável na produção de trabalhos de memória

acerca de um dos personagens mais elementares da esquerda brasileira: Ruy Paranatinga

Barata. Seu trabalho sobre o poeta e político, intitulado “Ruy Guilherme Paranatinga Barata”,

publicado em 1990, chegou a ser temática das leituras obrigatórias de vestibulares durante os

anos 1990. Recentemente, no início do ano de 2012, o jornal Diário do Pará fez uma

promoção junto aos leitores para distribuir a obra O Touro Passa?, de 1981, em evento de

grande tiragem se considerarmos este periódico com alcance para além do estado do Pará.

Além da identidade de autor consagrado, Alfredo Oliveira também assume-se como um dos

compositores musicais mais gravados no cenário nacional. Nomes como Fafá de Belém, Leila

Pinheiro, Jane Duboc, Fátima Guedes, Verônica Sabino, Zé Renato, Neguinho da Beija-Flor,

estão entre os intérpretes que já repercutiram suas letras românticas. Dentre os regionais, teve

parcerias e interpretações com Nilson Chaves, Marco André Costa Nunes, Paulo André Costa

Nunes Barata, Vital Lima, Nazaré Pereira, dentre outros. Nenhuma delas, entretanto, com

engajamento político. Médico por formação acadêmica e comunista por opção política,

Alfredo Oliveira é um dos narradores desta dissertação que guarda a maior porção de

ressentimentos ao lembrar a Ditadura Civil-Militar na Amazônia Paraense. Em sua opinião, a

historiografia ou a grande imprensa não trataram os movimentos de esquerda e suas devidas

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141

historicidades com o devido lugar na história. Assim, a entrevista cedida para esta dissertação

pode ser compreendida como ferramenta de luta, de sua causa.

No mesmo sentido, deixou entrever logo no início de sua fala que seu livro de

memórias, lançado em 2010, intitulado “Cabanos & Camaradas”, por exemplo, é uma das

raras e honrosas publicações que prestigia a memória de homens que lutaram pelo processo de

redemocratização da nação.

A entrevista aconteceu na espaçosa sala de estar de sua casa. Pela tarde quente do

verão amazônico dois ventiladores foram acionados para minimizar o mormaço. Estávamos

em setembro, mês com poucas chuvas na região, e por isso mesmo o ar seco e abafado

estiveram presentes no trabalho de recordar cenas distantes há mais de quarenta anos. Ainda

assim, a importância ao seus livro de memórias foi logo ressaltada como uma atividade para

além do papel de médico. Disse ser uma “tarefa partidária” a atividade de lembrar e registrar,

conforme narra abaixo:

Olha, nesse meu livro, esse meu livro era uma dessas... Até certo ponto uma

tarefa partidária também porque pessoas do partido, algumas a maioria já

está morta só tem um vivo, tá lá em Santos, aliás tem dois vivos mas um eu

não... eles me diziam: “- Alfredo...” Que a nossa história não estava

registrada em lugar nenhum. Primeiro porque a imprensa, o jornal

normalmente não publicava nada só publicava o que era para esculhambar,

para distorcer, segundo o que nós produzíamos não tinha como ser

publicado, razão pela qual eu escrevia (...) do Ruy [Paranatinga] Barata

(Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).

Os primeiros lampejos de ressentimentos começam em direção a academia

amazônica em não expor às luzes da cientificidade o devido lugar sociopolítico dos quadros

da esquerda na região. Obviamente, sua cisma recai sobre a imprensa censurada ao longo da

ditadura, quando os tempos de censura prévia e autocensura dos editores era prática comum

no Brasil. Mas sua fala também sinaliza os tempos livre da censura. Atualmente, apesar de

termos pesquisas substanciais, a pesquisa na academia amazônica acerca das memórias sobre

o regime é pouco numerosa, conforme expus na introdução desta dissertação.

Exemplo de lacuna nas pesquisas acadêmicas, a solidariedade ou ajuda humanitária

empreendida pelos quadros do PCB amazônico não foram contemplados pela pesquisa

amazônica. O médico Alfredo Oliveira, em depoimento firme, bem atribui ao partido sua

postura humanitária ao longo dos 21 anos de Ditadura Civil-Militar, conforme narra abaixo:

Atendi os companheiros como médico não apenas por ser um médico, mas

também uma tarefa de solidariedade que me foi atribuída pelo PCB e que

isso é uma coisa que me honra profundamente, segundo, participei da linha

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142

do PCB em relação a luta contra a ditadura através da resistência

democrática, o PCB lutou contra a ditadura através do processo de

resistência democrática. Um deles foi transformar o MDB numa frente

política contra a ditadura. Então, a minha participação durante a ditadura foi

essa, trabalhar como médico dando assistência a companheiros que

precisavam de atendimento médico e não tinham de onde tirar esse

atendimento (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).

Em outras passagens, Alfredo Oliveira informou sobre a ajuda médica dada a feridos

ou sujeitos perseguidos pelo regime que podiam ser presos ao adentrar em hospitais públicos.

Afinal, as cidades estavam fortemente vigiadas sob o argumento do “iminente perigo

comunista” que rondava a nação. Belém não escapava a tal esquema de segurança. Então, em

várias situações havia doenças ou ferimentos que careciam de cuidados clínicos. Era o médico

Alfredo Oliveira quem atuava nestes casos. Em outros momentos muito comuns naqueles

tempos de dificuldades, viúvas, órfãos, desempregados, buscavam ajuda de alimentos junto ao

comunista. Todos eram também ajudados pelo depoente. Com dinheiro, conversas amigáveis,

indicações para conseguir trabalho, repetidamente o prestígio e boa vontade do médico vinha

à tona.

A preocupação em deixar clara essa postura voltou a ser repetida outras vezes com

maior ou menor veemência. Destaquei o trecho abaixo pela intensidade e didatismo da frase.

Desta vez, deixou clara o quanto aquela atitude estava amalgamada entre a decisão da

identidade do ser humano e do médico comunista fiel às diretrizes do PCB.

(...) não era só uma tarefa humanitária, ela era humanitária sim porque era

um atendimento médico prestado a alguém que estava doente e estava

precisando desse atendimento, mas era também uma tarefa política porque

ela visava dar apoio a um cidadão que estava escondido, foragido,

desempregado tava sendo perseguido pela ditadura, então ela era também

uma tarefa política, por isso mesmo que a gente chama de socorro vermelho,

socorro vermelho, socorro comunista (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de

setembro de 2011).

O depoimento acima aponta em duas direções. Primeiro, a opção pela

redemocratização sem uso de armas. A via pacífica foi a escolha do PCB para atuar na arena

de enfrentamentos. Cabe lembrar que dos quadros do PCB vieram Pedro Pomar e João

Amazonas, paraenses, ambos fundadores do PCdoB e árduos defensores da resistência

armada. Tal postura radical não foi aceita pelo PCB como método de enfrentamento. Então,

aliar-se a quadros emedebistas não foi algo estranho ou doloroso para as convicções de

comunistas históricos em Belém. Era a saída mais viável, segundo Alfredo Oliveira, para

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ajudar o país. Segundo, a tarefa de solidariedade citada na narrativa é uma dupla decisão: do

próprio Alfredo Oliveira, na condição de médico; e, do partido.

Tal informação acerca das tarefas de solidariedade é contundente para desmistificar

a índole criminosa das identidades dos sujeitos tidos como ameaças para a nação.

Considerando como verdadeira sua atuação junto aos desprovidos paraense, é preciso colocar

no devido lugar da história o PCB e seus dirigentes. É bem provável que outros sujeitos,

pertencentes ou não a partidos políticos, tivessem ações humanitárias no rol de suas

atividades. Entretanto, não há registros de outro partido político tomando para si tal atribuição

de “cuidar”.

A atitude de Alfredo Oliveira em explicitar as ações humanitárias é emblemática. O

fez incisivamente após reclamar da negligência com relação às memórias de sujeitos dos

tempos de Ditadura Civil-Militar. Além do discurso organizado cautelosamente para narrar

suas memórias é possível inferir sobre a existência de um projeto de fazer-se presente na cena

historiográfica da região. E não esperou de braços cruzados pela boa vontade de

pesquisadores acadêmicos.

No que se refere às perplexidades causadas pelo cunho pedagógico aplicado pelos

militares durante o processo de Golpe Civil-Militar, especificamente no dia 1º de abril de

1964, José Seráfico de Carvalho é, sem sombra de dúvidas, o narrador com mais clareza nas

recordações daquele momento específico. Morando em Manaus desde 1966, praticamente não

havia como entrevistar este sujeito. Mas como estamos em tempos de velocidades rápidas,

graças à rede mundial de computadores, busquei contato pelo correio eletrônico. E foi por e-

mail que estabeleci o primeiro contato. Desta forma, Seráfico forneceu-me preciosas

informações para compreender o que aconteceu ao longo do fatídico 1º de abril.

Segundo José Seráfico, a sede da UAP estava movimentada naquela manhã e tarde

do dia 1º de abril de 1964. Os estudantes – e toda a sociedade paraense, incluindo militares –

estavam ouvindo diversos rumores das ações movidas pela iniciativa de Olympio Mourão. As

notícias do Golpe Civil-Militar estavam ventiladas aos quatro cantos de toda a região

metropolitana de Belém. Por isso, os estudantes universitários divulgavam arduamente o

manifesto escrito pelo próprio Seráfico no qual defendia a legalidade e dando “não” ao

golpismo. Tudo caminharia nos mesmos moldes do que a experiência havia mostrado no caso

da “Campanha da Legalidade”, movida por Brizola, no episódio da posse de João Goulart.

O manifesto havia sido redigido por um pedido feito a José Seráfico pelo Presidente

da UAP, o estudante de Direito Pedro Galvão de Lima. Entretanto, um fato piorou ainda mais

os ânimos dos estudantes. A gráfica Sagrada Família, que confeccionava o manifesto, havia

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avisado sobre o confiscado de todo o material por uma alta patente da 8ª Região Militar: o

Major Moura. Tal notícia, como não poderia deixar de ser, asseverou os nervos de todos os

estudantes. É válido lembrar que dois dias antes, no dia 30 de março, a edição do “Tarefa”, de

Paes Loureiro havia sido apreendida e destruída pela Marinha do Brasil. Este fato ainda não

havia sido digerido pelos jovens universitários. Os acadêmicos de Direito, colegas do autor,

então, eram os mais exaltados. Mais uma apreensão aflorava ainda mais os nervos.

A recomendação da gráfica Sagrada Família foi que os estudantes buscassem contato

com o Major Moura para pedir explicações sobre o fato em curso. Assim o fez Seráfico,

apoiado por Pedro Galvão, sempre junto nas ações tomadas. Por telefone, argumentou sobre o

caráter ilegal daquela atitude. Ouviu do Major Moura, com uma calma desconfortante, que

fosse até a 8ª Região Militar para compreender melhor o que estava acontecendo. Ponto

crucial da narrativa, descrita da seguinte maneira:

Naquele momento, o gerente da gráfica Sagrada Família, que era na rua

Independência então, hoje Magalhães Barata disse que dispunha do telefone

do Major Moura, que eu ligasse para ele. E eu disse, ao telefone, ao Major

Moura, porque tentei falar com ele, que ele estava desrespeitando o Chefe

das Forças Armadas, o Chefe Constitucional das Forças Armadas, que o

errado era ele e não nós que defendíamos a manutenção. E ele então, com

muita cortesia, me pediu para visitar o Comando da Região. Eu, obviamente,

seria “Daniel entrar na toca dos leões”. Então, o que fizemos nós? Optamos

por eu redigir novo manifesto e voltamos a sede da União Acadêmica

Paraense (José Seráfico de Carvalho, entrevistas em 07 e 09 de outubro de

2011).

A atitude de José Seráfico foi de ordem prática. Era preciso arregaçar as mangas e

tratar de efetivar aquilo que o movimento estudantil julgou ser a saída mais lógica: redigir

outro documento e tratar de distribuir entre os transeuntes próximos à sede da UAP. Não

sabiam os estudantes que não lhes restava tempo para ações mais ousadas como ocorrera no

episódio com Brizola. Em uma jogada desesperada, mas de otimismo, foram buscar junto ao

general Orlando Ramagem algum apoio de ordem institucional.

O tempo que houve entre esses episódios e a invasão sofrida pela UAP só

bastou para fazermos novo manifesto, distribuirmos à população que passava

nos ônibus, passava na rua em frente à União Acadêmica e depois irmos

visitar o general Orlando Ramagem, na casa em que ele morava na Rua

Doutor Moraes e voltarmos depois daquele encontro e que notamos o

general muito, digamos assim, muito tartamudeante, muito hesitante e

realmente não sabíamos na verdade se ele ia honrar o compromisso de

defender aquele que o havia nomeado ou se ao contrário, como afinal

aconteceu ocorrendo, tinha traído (José Seráfico de Carvalho, entrevistas em

07 e 09 de outubro de 2011).

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A postura reticente do general Ramagem já antecipava as cenas seguintes. A leitura

de José Seráfico acerca do comportamento “tartamudeante” do general fora precisa. De fato,

ao captar a insegurança de Ramagem, Seráfico antevia não ser este o sujeito a tomar frente da

cena política nos anos seguintes na Amazônia Paraense. Seriam Jarbas Passarinho, em

especial, entremeando o poder com Alacid Nunes. As duas principais lideranças da situação.

Nas entrevistas com Alfredo Oliveira e Ruy Antonio Barata a mesma informação foi dada.

Tivessem buscado o tenente Jarbas Passarinho para maiores esclarecimentos sobre a

apreensão do material na gráfica, sairiam de lá com a certeza de que o Golpe Civil-Militar era

irreversível naquela altura. Enquanto buscavam respostas com Orlando Ramagem outras

ações estavam sendo arquitetadas para o êxito do golpe. Naquele exato momento, o Coronel

Peixe Agulha já havia recebido ordens para desbaratar qualquer reunião tão logo chegasse a

noite. E ao anoitecer, as tropas tomaram conta da antiga Rua São Jerônimo. Assestaram

metralhadoras no chão, cercaram pelos fundos a sede da UAP, arrombaram aos chutes porta,

talvez estivesse só encostada, invadiram truculentamente. Destruíram o pequeno palco – ou

“teatrinho”, como chamou carinhosamente Pedro Galvão. Jogaram papeis pelo ar, estantes ao

chão, mimeógrafos e aparelhos de som empastelados.

Tinham o olhar de seres enfurecidos, descreveu Ruy Antonio Barata, já distante

alguns anos depois da cena que não presenciou. E então aconteceu a cena drástica descrita por

todos os narradores de “1964. Relatos subversivos”: José Seráfico de Carvalho, por estar

próximo da porta de entrada da UAP, foi esbofeteado pelo comandante “Peixe-Agulha”. A

partir da informação daquele gesto violento, mencionei a bofetada desferida e levantei

algumas questões para que fossem comentadas quando estivéssemos frente a frente em

Belém, nos dias 09 e 12 de outubro. Lancei-lhe as seguintes questões: quais foram suas

sensações ao vivenciar esse fato? Houve desejo de vingança pessoal ou nos dias seguintes se

tratava de uma luta com causa maior (a liberdade e retomada da democracia) e a bofetada foi

esquecida? Aliás, esse fato existe em suas memórias, quais imagens desse acontecimento

estavam guardadas e o que eles representam ainda hoje?

Esperava que se manifestasse quando chegasse até Belém. Entretanto, qual não foi

minha surpresa ao deparar-me com uma resposta minutos após haver enviado as questões

acima. Dias depois, na entrevista concedida no apartamento da Av. Nazaré, em Belém,

preferiu pouco assentar-se nesta temática. Portanto, optei por declinar-me em seu depoimento

dado por e-mail:

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146

(...) desde que levei a bofetada, ocupava toda minha atenção a ansiedade por

avisar os familiares dos que estavam comigo na sede da UAP e não tinham

um pai às proximidades dos acontecimentos. Eu o tinha, e por isso fui

socorrido. Quanto à bofetada em si, ela me pareceu apenas um despropósito

de quem se esconde atrás da culatra de uma arma de fogo. Doeram-me mais

aos ouvidos as palavras de baixo calão que o oficial pronunciou, ao

esbofetear-me (José Seráfico de Carvalho, por e-mail em 1º de setembro de

2011).

A resposta foi demasiadamente curta diante das expectativas que eu alimentara desde

o início da pesquisa de campo. Mas elucidativa, por apresentar várias possibilidades de

análise para aquele aparente desvio de assunto. A agressão física não fora esquecida, conclui.

Afinal, a rapidez de sua resposta e os diversos relatos no livro “1964. Relatos subversivos”

deixavam evidente o quanto aquele tema ainda latejava nas memórias. Seráfico apontava para

o orgulho ferido pelas palavras de baixo calão desferidas junto com o bofetão. É provável que

doessem mais, realmente. Afinal, eram tempos de acusações infundadas de “perigosos”,

“comunistas”, “vermelhos”, “ameaças”, além de ofensas de ataque à honra e integridades das

famílias.

Aliás, acusações infundadas foram, em dois depoimentos, as principais reclamações

ao longo dos interrogatórios vivenciados ao longo das prisões. Pedro Galvão de Lima, em

entrevista no dia 25 de maio de 2011, sobre ser acusado ao longo do interrogatório da prisão

ocorrida no dia do Golpe Civil-Militar, lembra de ser chamado de “comunista frio e

calculista” quando negava todas as acusações de golpismo por parte das esquerdas estudantis.

E negava por ter plena ciência da diferença entre ser comunista e ser membro da Ação

Popular, uma vertente composta de quadros expressivos que muito se assemelhava à

Juventude Universitária Católica. Por essência, a Igreja Católica não coadunava seus

pensamentos com o marxismo dos idos dos anos 1950-60. Este se declarava ateu e, portanto,

feria os preceitos cristãos.

Não se nega aqui, e isso é necessário mencionar, que dentre os quadros da AP e JUC

houvesse sujeitos com leituras e convergências para o marxismo daquela época. Ao mesmo

tempo, sobre este jaez, Ruy Antonio Barata não deixa dúvidas quanto à clara diferenciação

entre PCB, de um lado e, de outro, AP e JUC. Segundo este narrador, “os padres odiavam

comunistas porque não gostavam das ideias deles, mas porque eram materialistas, desde a

guerra civil espanhola”.

Na mesma esteira dos grupos de esquerda que compunham a Universidade Federal

do Pará no início dos anos 1960, Dulce Rosa é mais detalhista quanto à composição política

dos estudantes daquele momento. Segundo esta narradora, apesar de outros segmentos

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políticos, três grandes grupos principais se revezavam no ápice dos acontecimentos e

discussões políticas: PCB, AP e JUC. Vejamos como detalhou a questão:

Digo comunista porque existiam também outros dois agrupamentos: Ação

Popular e a Federação dos Estudantes... É a Juventude Católica. Então,

digamos que os que lutavam naquela ocasião, o golpe ainda não tinha

acontecido, por um algo diferente no Brasil era o Partido Comunista, e que

tinham representantes nas universidades, era o Partido Comunista, Ação

Popular e a Juventude Católica. Na Faculdade de Economia era mais forte o

Partido Comunista (Dulce Rosa de Bacelar Rocque, entrevistas concedidas

em 26 de dezembro de 2011 e 07 de janeiro de 2012).

Considerando como verdade a composição política daquele momento na UFPA,

Pedro Galvão, da Ação Popular, tinha razão em negar as acusações de “comunista

subversivo”. Tais acusações, se fossem direcionadas a Ruy Antonio Barata, declaradamente

comunista, tivessem outro peso e merecessem destaque nesta dissertação.

Neste sentido, Ruy Antonio Barata detalha com estrema eloquência e didática acerca

da conjuntura política das forças e lideranças na Amazônia Paraense após 1964. Segundo este

narrador, o Golpe Civil-Militar foi responsável por uma nova e inédita formatação política no

estado. Vejamos:

Então quem escreve sobre 1964 para cima, achando que é uma revolução de

estudantes, aparentemente está certo. Porque foi a única força que sobrou do

que todas as forças organizadas do Pará foram liquidadas. Como é que ela

teve um ascenso no Pará? No Pará, o Partido Comunista teve uma força

muito importante porque ela incorporou inúmeros intelectuais, inclusive a

aliança com João de Jesus Paes Loureiro, que não era do Partido Comunista,

mas era ligado ao Partido Trotskista. Eu acho que umas três ou quatro

pessoas ligadas aos trotskistas e ele, João de Jesus, era uma delas. João de

Jesus, aos 19 anos, estudava aqui nessa casa e declamava seus poemas. O

primeiro livro dele chamado “Tarefa”. Foi lançado pela União Acadêmica

Paraense, da qual o Pedro [Galvão de Lima] foi o último presidente na

legalidade. Na mão dos estudantes sobraram as bandeiras liberestárias no

Pará. Então de 1964 a 68, o movimento político se caracterizou no estado do

Pará por uma coisa. Pela ausência de lideranças institucionais, pela

interventoria dos chamados conspiradores de 64 (Ruy Antonio Barata,

entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).

O depoimento acima, conforme já foi mencionado, é dito com extrema tranquilidade.

Entretanto, é preciso frisar o ar sisudo e compenetrado de Ruy Antonio Barata ao lembrar

deste fato. Justo ele que, em vários momentos havia se identificado como filho de um dos

mais renomados comunistas paraenses – o deputado Ruy Paranatinga – e neto do renomado

advogado de causas populares – o bacharel em Direito Alarico Barata, deveria ter lembrado

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com profundo pesar a ausência de lideranças institucionais na resistência à Ditadura Civil-

Militar.

Ruy Antonio Barata ao aparentar mais sisudez do que de costume ao lembrar da

ausência de lideranças, explicou mais tarde aquele comportamento mais rígido que seu corpo

manifestava. Lembrou do camarada Humberto Lopes, do PCB paraense, e sua importância

junto ao governo estadual de Aurélio do Carmo. Para descrever este sujeito, passou a utilizar

gestos largos. A voz ganhou outra entonação e finalmente disparou:

Humberto Lopes era comunista. Humberto Lopes era um cara que era um

capa preta [liderança política] e vivia clandestinamente no Pará, mas que ele

tinha tanta importância na história, que é isso que eu queria chegar com

você. Tinha tanta importância, era um homem que se integrou. Falava com

Aurélio do Carmo. Ele falava com todas as pessoas que tinham importância.

Vou te dar um dado que era importante. No dia que houve a renúncia do

Jânio, aí volto para cadeia da legalidade que eu tava falando, perguntaram

para o governador do estado em que lado ele estava. Se estava do lado da

legalidade ou se estava do lado dos militares e o Aurélio, corajosamente

disse que estava ao lado da legalidade e lutava pela posse de João Goulart. O

Aurélio nessa ocasião pensava que o Partido tinha o domínio das massas,

porque já tinha feito algumas greves, no movimento estudantil, tinha o

domínio do movimento operário. Os petroleiros aqui eram muito fortes.

Tinha o movimento dos bancários que era muito forte. Tinha o movimento

dos arrumadores do cais que era muito forte. E o Aurélio tinha a falsa

impressão que no momento que houvesse intervenção do Pará, os

comunistas poderiam reagir junto com ele. Sabe o que ele fez? Mandou

buscar os três líderes do Partido Comunista lá no Palácio (Ruy Antonio

Barata, entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).

A narrativa é eficiente em deixar clara a importância do PCB junto ao movimento

operário no estado. É claro que é necessário relativizar tal depoimento uma vez que o próprio

Ruy Antonio Barata era membro do PCB e, em memórias cujo epicentro é o próprio narrador,

são comuns os exageros. Entretanto, o fato do próprio Aurélio do Carmo chegar a convocar

reuniões oficiais e fechadas com os principais quadros comunistas denota a força política

daquele partido naquele momento.

O comunista Alfredo Oliveira também dá pistas sobre a importância dos camaradas e

o que representavam como ameaças para o novo regime. Ao ser incitado sobre a violência

presenciada ao longo dos anos 1960-70, recordou do colega comunista Jaime Miranda. O

depoimento ajuda a compreender e ratificar o depoimento de Ruy Antonio Barata. Segundo a

narrativa de Alfredo Oliveira, há uma clara denúncia de crime paraticado por parte dos

militares temerosos em perder o status quo conquistado pela força das baionetas.

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Pois bem, o Jaime Miranda no início, não sei se nos anos 70 isso está no meu

livro não consigo guardar tudo de cabeça, o Jaime Miranda foi preso e na

prisão ele apareceu com um câncer na laringe, um câncer terrível, ele lutou

para ter uma licença para fazer um tratamento de saúde no Rio de Janeiro,

foi solto e aí ele, apesar da clandestinidade daquela situação difícil do

partido ele foi mandado para União Soviética para fazer o tratamento melhor

e lá ele foi tratado foi operado, melhorou bastante, foi mandado de volta pro

Brasil. Quando ele chegou no Brasil ele estava na casa, estava no Rio de

Janeiro na casa de uma irmã, em trânsito para voltar para Alagoas quando

ele foi localizado pela ditadura, foi localizado pela ditadura e agora se sabe o

que aconteceu com ele. Ele chegou num dia, no dia seguinte ele saiu para

fazer uma compara e nunca mais voltou para casa, sumiu. Agora se sabe, no

princípio pensavam que ele tinha sido jogado de um avião no mar, mas agora

não, está comprovado inclusive aquele Helio Gaspari que escreveu muito,

escreveu sobre isso, está no meu livro já baseado nessa última obra “A

Comissão da verdade” que diz que na verdade ele não foi jogado do avião

não, foi levado preso para São Paulo torturado até a morte, o cara com

câncer, e que lutava pela resistência democrática, você entende um negócio

desses?! (Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011).

A considerar como verdadeiras as leituras e interpretações de Alfredo Oliveira acerca

das pesquisas de Hélio Gaspari, nota-se o nítido propósito dos militares em livrar-se das

lideranças pensantes que compunham a luta pela redemocratização do país. Também

corrobora as ideias defendidas por Ruy Antonio Barata no que se refere à importância que os

governantes creditavam aos comunistas.

Provavelmente, a grande repercussão que o PCB nutria aos jovens daquele momento

se deva ao fato do sucesso da Revolução Cubana em 1959. Naqueles tempos de hostilidades

entre regimes políticos – Socialismo versus Capitalismo –, o imaginário dos jovens

universitários talvez desejasse o esplendor do romantismo revolucionário irradiado por Che

Guevara e Fidel Castro, conforme o próprio Ruy Antonio Barata admite.

Nos admirávamos Che e Fidel, e todo mundo lia os livros do Jean-Paul

Sartre. O livro de Jean-Paul Sartre que todo mundo admirava chamava-se

“Um furacão sobre Cuba”. Foi um livro clássico que andou na mão de tudo

que é estudante. Então se criou uma elite e um grupo de estudantes de

esquerda. Como é que esse grupo de esquerda se dividia,? Um lado era

aliado dos comunistas. O outro lado era aliado da Igreja progressista que se

formava. A Igreja progressista que se formava vinha no bojo de João Paulo

II? Não. Como é que chamava? João XXIII. João XXIII era um papa que

escreveu a Encíclica Magistra, pregando o diálogo entre comunistas e

cristãos porque achava que comunistas e cristãos tinham muito a ver (Ruy

Antonio Barata, entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).

Assim, com o apoio ideológico do papa João XXIII, muitos católicos se atreviam a

folhear – ou fingir ler – manuais da esquerda política, O Capital, de Karl Marx era um dos

exemplares que mais estavam difundidos nas mãos dos estudantes, apontou Ruy Antonio

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150

Barata em outro momento. No trecho acima, indicou o existencialismo sartreano como leitura

comum entre os acadêmicos. Para acabar de completar, no mesmo depoimento, Ruy indicou a

existência de dois padres bastante influentes entre a mocidade de Belém.

(...) eram adeptos dessa opção, chamava-se padre Diomar; o outro chamava-

se padre Raul. Esses dois padres tinham uma liderança efetiva sobre os

jovens. Entre eles, não só aqueles que eram ligados a JUC e AP, mas todos

aqueles que eram simpatizantes desse grupo chamava-se de grupão. Eram

grupos de esquerda, mas de uma esquerda heroica. Ou seja, estavam

extremamente influenciados pelas posições do Che e do Fidel (Ruy Antonio

Barata, entrevista em 19 e 22 de agosto de 2011).

Então, retomando a composição política existente na UFPA nos idos de 1960-70, a

partir de três narradores é possível notar a forte presença de grupos de esquerda que, mesmo

com diferenças – ou variações – ideológicas, encontravam pontos de convergência bastante

sintomáticos para uniões em momentos de crise (como foi o episódio do golpe e Ditadura

Civil-Militar).

Quando foi deflagrado o Golpe Civil-Militar, em 1964, houve um misto de satisfação

e incertezas quanto ao futuro. Nem esquerdas, nem direitas, conheciam os próximos

acontecimentos políticos da nação. Assim, nos dois primeiros anos de ditadura eram comuns

constatar atitudes que buscassem tão somente a autoafirmação ideológica. Ou seja, militares

empenhando-se ao máximo em repreender o “perigo vermelho”, de um lado; de outro, grupos

de esquerda já arquitetando atividades subversivas. Significa dizer que os dois lados se

entrincheiraram e passaram a atuar em razão da obrigação de agredir o outro. 41

Neste cenário de guerra, as esquerdas menos aparelhadas e pegas de surpresa pelo

repente do golpe não tiveram forças suficientes para organizar-se efetivamente à altura das

direitas. Então por mais que houvesse esforços para equilibrar o embate, os aparelhos de

Estado sob poder dos militares tendiam a minar os quadros da resistência. No caso da

Amazônia Paraense, o caos foi atenuado pela ação imediata e desprendida do então jovem

médico Alfredo Oliveira.

A solidariedade foi a tônica de sua atuação em prol dos prisioneiros de guerra, sendo

necessárias ações que articulassem a própria sobrevivência do PCB enquanto célula de ação.

Assim,

41 É o caso das inúmeras prisões contra estudantes da UAP, em especial o caso de João de Jesus Paes Loureiro,

que chegou a ser transferido para o Dops do Rio de Janeiro, de um lado; de outro, ver as atividades

desempenhadas pelo grupo do PCB no qual se inseria Dulce Rosa.

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151

(...) de 64 a 66 a tarefa principal do PCB era de tentar não se desarticular,

tentar manter o mínimo de articulação, o mínimo de aproximação entre seus

dirigentes que estavam soltos ou foragidos para poder se dedicar àquilo que

era o mais importante na época que eram as tarefas de solidariedade, tinha

gente presa, tinha gente sendo demitida. Então, de repente essa tarefa de

solidariedade passou a ser uma contingência muito forte a ponto de nós

termos que dar prioridade a ela e não às ações políticas (Alfredo Oliveira,

depoimento em 14 de setembro de 2011).

Com este depoimento, Alfredo Oliveira aflora sua identidade de médico e faz jus ao

juramento de Hipócrates. Prestar socorro ou, ser solidário, como optou dizer no depoimento,

não estava na agenda de todos os pecebistas, é bom que se diga. Mas para ele, a atuação na

prestação de socorro aos companheiros (ou não) fazia parte de sua premissa de comunista e

médico. Os papeis se fundem na agenda cotidiana de Alfredo Oliveira. Outros quadros do

PCB, em detrimento das adversidades impostas pela ordem ditatorial de perseguição aos

subversivos, a investiram ainda mais neste tipo de atividades “política”42

; outros, uma

pequena parte, conforme deixa entrever o narrador, abandonaram a cruzada. Mas para este

narrador as tarefas de solidariedade estavam na ordem do dia e assim permaneceu por dez

anos. Um ato de entrega em prol de uma causa que lhe foi cara.

A partir de 1964, inúmeros militantes das esquerdas ou simpatizantes quando presos,

perdiam seus empregos e dificilmente os recuperavam. Ser um dos presos por conta da

suspeita de ser subversivo incluía o sujeito na lista negra da sociedade. Era como passar para

o limbo social. Oportunidades de empregos se fechavam, amigos passavam a evitá-los,

familiares discriminavam. Pelo lado patronal, o simples ato de conversar com estes sujeitos

poderia ser atividade de vigilância e punição, empregar em sua empresa, loja ou coisa similar,

era incorrer no risco de sofrer averiguações e eventuais prisões. Por essa razão, com o Golpe

Civil-Militar, aumentou o número de pessoas carentes de ajuda médica, econômica e social.

Neste contexto de dificuldades econômicas, é válido salientar que o Sistema Único

de Saúde não existia nos moldes que existe hoje, assim, diante dos tempos de perseguições,

prisões, desempregos e desesperos, Alfredo Oliveira, com a sensibilidade de poucos, narra o

seguinte:

(...) quer dizer, era importante manter a sobrevivência das famílias,

conseguir advogado para quem estava preso, essa coisa toda. E aí aconteceu

uma coisa que no meu caso é específico porque foi praticamente somente

comigo que isso aconteceu. Eu passei a ter uma função específica que durou

praticamente até 78, até quase o fim da ditadura militar. (...) Então de

42 André Costa Nunes, por exemplo, empreendeu diversas outras atividades econômicas, chegando a empregar

vários amigos que haviam sido presos e passavam por dificuldades.

Page 143: No Crepúsculo

152

repente com pessoas desempregadas, sem recursos para o tratamento, a

minha participação para poder dar um pouco de atendimento médico para

essas pessoas passou a ser vital, até porque independente da assistência

médica tinha o problema da confiança, o camarada poderia estar foragido,

escondido, não se podia mandar um médico qualquer lá tratar o companheiro

(Alfredo Oliveira, depoimento em 14 de setembro de 2011).

O interessante na narrativa de Alfredo Oliveira é a frase foi praticamente somente

comigo que isso aconteceu. Sua narrativa mostra o ato de abrir mão da militância política para

dedicar-se ao sacerdócio da ajuda humanitária. Dá um tom de uma “fatalidade”, um caminho

sem volta. Como se a decisão de prestar solidariedade fosse um passo irreversível. A verdade

é que esta atitude sendo posta em prática se trata de uma decisão humanitária, própria de

indivíduos superiores, heroicos. Não era uma decisão fatídica ou simplesmente um

determinação do Partido, mas uma postura de vida diante das adversidades vividas pelos

companheiros. É bom mencionar, Alfredo Oliveira não expõe tais memórias lamuriosamente.

Pelo contrário, o diz como altivez em tom de voz acima do normal. Quase uma ode

declamada.

No momento deste trecho da narrativa, Alfredo Oliveira é firme nas palavras. O

semblante é sereno, apesar das pernas estarem o tempo todo balançando, aparentando

inquietação com as imagens que lhe vinham à mente. E como estas expressões corporais

podem emitir sinais falsos... Aquela era uma tarde quente. Alfredo Oliveira já havia solicitado

dois ventiladores a uma pessoa que estava em sua casa. Ainda assim, o tempo abafado exigia

que estivéssemos ventilando o corpo. Portanto, em momento nenhum da entrevista pude

perceber tensão, nervosismo ou apreensão por conta de alguma memória. Pelo contrário, a

calma foi a tônica de seu depoimento ao longo de aproximadamente uma hora em que estive

ali.

Quanto à política partidária da parte do PCB, houve uma adequação para atender o

perfil da personalidade de Alfredo Oliveira. Sobre esta questão, pesquisei sobre a ajuda

humanitária ou “socorro vermelho” de pecebistas a companheiros em dificuldades. Encontrei

registros na historiografia a partir da postura de advogados em relação aos presos políticos43

,

mas não observei médicos na mesma atitude. Talvez existam, mas a historiografia ainda não

os alcançou. Sobre à determinação partidária para a ajuda humanitária, Alfredo Oliveira narra

que

43 Ver depoimento de Ruy Antonio Barata com relação ao seu avô, Alarico Barata.

Page 144: No Crepúsculo

153

(...) o Partido aqui deu prioridade absoluta para isso, então eu fiquei a partir

de 66 mais ou menos, eu fiquei desobrigado de participar de reuniões, de

coisas que pudessem chamar a atenção da repressão sobre a minha pessoa e

me impedir de fazer o que era fundamental e só eu podia fazer que era dar

assistência médica aos companheiros, aquilo que a gente chamava de socorro

vermelho, né?! (Alfredo Oliveira, depoimento em setembro de 2011).

Assim, de modo bastante sui generis Alfredo Oliveira ensina que o processo de lutas

contra a ditadura não está balizado tão somente no binômio maniqueísta há muito difundido

pela escrita histórica. Preenchendo o perfil de sujeito cultural proposto no início deste texto,

este narrador coloca-se às margens do processo. Não por alijamento político imposto pelo

regime, pelo contrário, foi uma decisão humanitária de dar sobrevida aos feridos e

cambaleantes daqueles que lutaram em prol da redemocratização da nação em solo amazônico

paraense.

Não, não é bem assim, não é uma tarefa política. A solidariedade é

solidariedade, é uma questão humanitária, a solidariedade é uma questão

humanitária complexa porque envolve também, quer dizer, ela é uma coisa

complexa. A solidariedade ela não é só uma... Não, ela é uma coisa

complexa, ela envolve uma série de aspectos e de tarefas. Veja bem, é muito

diferente... Agora, ela é diferente de uma solidariedade por caridade, é igual?

A solidariedade do partido é igual a caridade que você faz dando dinheiro

para uma pessoa ou a caridade da santa casa? Não. Por quê? Porque ela tem

um nível de compreensão diferente, ela tem um nível de compreensão

diferente, você tá entendendo?! Você não está ali por caridade, por pena. A

caridade é a pena que você tem de alguém. Você não faz essas tarefas de

solidariedade feitas pelo partido, não eram caritativas nem por pena, sabe?!

Faziam parte da formação do comunista, humanitária e política porque as

duas coisas não se separam. Você tem a formação humanitária ao lado da

formação política, as duas se juntam você tá entendendo?! (Alfredo Oliveira,

depoimento em 14 de setembro de 2011).

A explicação política para a atuação da solidariedade enquanto método de ação do

PCB é reduzir demasiadamente a atitude de Alfredo Oliveira. A ajuda humanitária partidária,

a solidariedade e “ser comunista” eram posturas amalgamadas na identidade deste sujeito.

Assim, conquistar quadros e mantê-los a salvo era uma tática para conquistar corações e

mentes das massas para, em seguida, atingir o ambiente necessário para a luta em prol da

redemocratização do país.

Page 145: No Crepúsculo

154

CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Escorraçado, amordaçado e acovardado deixou o poder como imperativo da

legítima vontade popular o sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos

comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história

brasileira já registrou, o Sr. João Goulart passa outra vez à história, agora também

como um dos grandes covardes que ela já conheceu.

Temos o direito de dizer tudo isso do Sr. João Goulart porque não lhe

racionamos os adjetivos certos, por mais contundentes que fossem, na hora em que

êle dominava o poder, e posava de líder todo-poderoso da Nação. Como não nos

intimidamos na hora em que Jango e os comunistas estavam por cima e amargamos

até cadeia, não precisamos nem fazer a demagogia da generosidade. Mesmo porque

não pode haver generosidade nem contemplação com canalhas. E Jango, Jurema,

Assis Brasil, Arraes, Dagoberto, Darcy Ribeiro, Waldir Pires e toda a quadrilha que

assaltou o poder não passam de canalhas.

E além de canalhas, covardes. E além de covardes, cínicos. E além de cínicos,

pusilânimes. E além de pusilânimes, desonestos. Bravatearam, fingiram-se machões,

disseram que fariam isto e aquilo, mas aos primeiros tiros saíram correndo

espavoridos e ainda estão correndo até agora. Alguns, como Aragão, como Assis

Brasil, como Crisanto de Figueiredo, como Arraes, como Cunha Melo, como todo o

rebotalho comunista, não serão encontrados tão cedo. (...)

Nunca se viu homens tão incapazes, tão desonestos e tão covardes. Agora que o

País se livrou do fantasma da comunização podemos repetir o que vínhamos dizendo

exaustivamente: todo comunista é covarde e mau caráter. Os episódios de agora

vieram provar que estávamos cobertos de razão. (...)

O Povo brasileiro lavou a alma. O Carnaval que se comemorou ontem em plena

chuva só poderia mesmo ter sido feito por um povo que estava precisando dessa

desforra que lhe era devida precisamente há 30 meses. O povo que comemorou

ontem a queda de Jango foi o mesmo que votou contra êle em 1960 e foi traído pela

renúncia de Jânio. A comemoração de hoje é pois uma revanche e uma recuperação.

Precisamos agora de organizar o mais ràpidamente possível o nôvo govêrno, pois

os aproveitadores de sempre já cerram fileiras em tôrno dos cargos, já se apresentam

como os heróis de uma batalha que não travaram. Junto com a organização do nôvo

govêrno temos que providenciar, também urgentemente, para que os direitos

políticos dos que foram ontem legitimamente banidos pelo povo, sejam cassados

para sempre. (...)

Não se trata de vingança, nem estamos aqui defendendo o esquartejamento dos

derrotados. Mas quando o destino do País está em jôgo, quando se trata de decidir da

sorte dos que queriam comunizar o País, não podemos ser generosos ou

sentimentais. Para os civis, cassação dos direitos políticos. Para os militares como

Assis Brasil, Crisanto, Cunha Melo, Napoleão Nobre, Castor da Nóbrega e para

todos os comuno-carreiristas das Fôrças Armadas, o caminho é um só e inevitável: a

reforma pura e simples. Não falavam tanto em reforma? Pois apliquemos a fórmula

a êles.

Enfim, começa hoje uma nova era para o Brasil. Confiemos no espírito público

dos homens que salvaram a democracia brasileira, e no discernimento e

superioridade com que o marechal Dutra se conduzirá nos próximos 22 meses."

(Tribuna da Imprensa, 2 de abril de 1964).

Nos fins da década de 1950, o PCB e demais agremiações de esquerda estavam

discutindo os caminhos a percorrer para conduzir o país ao Socialismo. Defendiam o

acirramento das lutas contra o imperialismo norte-americano e até contra a ordem feudal (sic)

ainda existente. Os discursos reformistas, subsidiados por grupos camponeses organizados em

Ligas, pretendiam a reforma agrária com urgência. Outros, alinhavados com Jango, desejavam

Page 146: No Crepúsculo

155

o fim das remessas de lucros para fora do país, a nacionalização de grandes capitais

exploradores. Estudantes pretendiam a reforma e democratização do ensino superior.

O Pará não estava imune a este ambiente, contraditório, mas sempre necessário. Por

aqui também pulularam grupos cujos debates eram também acalorados. O movimento

estudantil estava alinhavado com o partido político que melhor representava esta vanguarda: o

PCB. Somava-se a este um forte grupo ligado à Igreja Católica, JUC, e outro, mais envolvido

com o movimento estudantil nacional, a Ação Popular (AP). O movimento estudantil era

pulsante no início dos anos 1960. Organizados em grêmios ou Centros e Diretórios

Acadêmicos, os estudantes produziam tabloides, como o T-UAP dirigido por José Seráfico de

Carvalho. Denunciavam corruptos. Anunciavam novos tempos. Semeavam esperanças e se

alimentavam de sonhos revolucionários.

Sem deixar de mencionar grupos e projetos com influência trotskista e outros

independentes, havia, nos dizeres de Ruy Antonio Barata, um “projeto de autonomia”

amazônica no Pará. Esta efervescência política agigantou-se com a posse de João Goulart na

presidência do Brasil. No Pará, o governador Aurélio do Carmo, sempre aberto ao diálogo e

expansivo na busca de apoio político, permitia-se dialogar no interior do Palácio de Governo

com comunistas, inclusive. Paralelamente, uma grande campanha de demonização do

socialismo movia-se por meio de empresas midiáticas, ações organizadas ou isoladas também

agiam no sentido de brecar a todo custo as expansões esquerdistas. Basta lembrar o

desbaratamento do SLARDES por parte dos “lenços brancos” na noite de 30 de março de

1964. Temiam pelas propriedades privadas, ameaça ao sistema capitalista e, principalmente,

pela manutenção do status quo.

Nem as notícias das centenas de mortes por parte do governo da URSS arrefeceram

os exaltados ânimos de uma mobilização socialista no Brasil. Jovens eram arrebanhados todos

os dias para os quadros de esquerda. E na Amazônia Paraense, o ambiente global se

reproduzia com tentáculos próprios.

Neste cenário aconteceu o Golpe Civil-Militar em 1º de abril de 1964. A UAP foi

invadida, estudantes presos, incomunicabilidade na prisão da Gaspar Viana e 5ª Companhia

de Guardas, torturas psicológicas. Atos Institucionais prevendo o bipartidarismo (AI-2) e o

fim das liberdades individuais (AI-5) sepultaram as mobilizações democráticas. Aos

dissidentes do regime, se queriam engajamento democrático em lutas contrárias ao projeto

ditatorial, lhes restava a atuação pelas margens. Com manobras militares todo o rumo das

vidas daqueles sujeitos havia sofrido drástica mudança. Compreender aquele momento era

crucial para a sobrevivência na nova conjuntura.

Page 147: No Crepúsculo

156

Entre o ambiente de preocupação pelas prisões efetuadas na noite do dia 1º de abril

de 1964 e os rompantes revolucionários de não fugir diante da ameaça, os narradores desta

tecedura amanheceram no dia 2 de abril com a certeza de que o dia anterior seria inolvidável e

ponto de partida para novos tempos. O texto raivoso da Tribuna da Imprensa circulou no país

inteiro, e no Pará teve ecos principalmente com a Folha do Norte. Expressava bem o projeto

político dos grupos civis-militares reacionários no Brasil. Em seu âmago, toda a eiva e revolta

que antagonizava com as bandeiras reformistas erguidas por Jango. Os “pusilânimes

covardes”, como enfatiza a Tribuna, haviam sido devidamente “derrotados” e prestes a sofrer

esquartejamento de suas imagens. E assim foi.

Nos dias e anos seguintes ao Golpe Civil-Militar, dezenas de outras matérias foram

publicadas com teor tão ou mais rancoroso que o texto da Tribuna. Os narradores deste

trabalho, com variantes bem próximas, tiveram que conviver com horrorosas acusações

propagadas a respeito da índole e caráter. Vale reforçar que, e isso valia para todos os quadros

esquerdistas, as ofensas proferidas atingiam qualquer sujeito portador de visões políticas

progressistas naquele momento. Para os grupos reacionários que assumiam o poder,

“comunistas” eram todos os críticos daquele modelo de desenvolvimento imposto pela ordem

burguesa, patriarcal, coronelista. Assim, a imprensa midiática agia como porta voz de um

projeto das elites aristocráticas do campo e cidade no Brasil dos anos 1960.

Todos, sem exceção, tiveram suas vidas radicalmente transformadas. As matérias

jornalísticas, dedos em riste, comentários burlescos ao caminhar pelas ruas, passaram a fazer

parte da cena cotidiana deles. Por conta disto, as marcas de remorsos, sofrimentos,

ressentimentos, esperanças, orgulhos, altivez, estão nas narrativas, trejeitos e performances de

todos.

Paes Loureiro, por exemplo, foi um dos que sofreram com a prisão apreensão do

“Tarefa”, a prisão na 5ª Companhia de Guardas e, principalmente, o risco de morte pelo

DOPS no Rio de Janeiro. Carrega traumas até hoje. Não era sujeito da lida e tradição política,

como bem enfatizou nas entrevistas concedidas. Dulce Rosa sofreu mais com a própria

ausência do país do que com as matérias pejorativas, mas mesmo fora do Brasil nunca deixou

a luta pela redemocratização. André Costa Nunes, por meio de identidades alinhavadas com

seringais e espaços urbanos, ziguezagueava entre um empreendimento e outro em busca de

sobrevivência para camaradas do partidão. Sempre acusado de “chucro” e comunista ao

mesmo tempo. Pari passu, Cláudio Barradas, nas cochias e palcos do SESI, ora gargalhava

das confusões armadas junto aos censores, ora se preocupava com a possibilidade de ver-se

enquadrado pela Lei de Segurança Nacional. Nas entrevistas, não deixou entrever rancores,

Page 148: No Crepúsculo

157

mas fechou o sorriso ao lembrar da relação traumática com a censura. No caso do padre

teatrólogo Cláudio Barradas, suas fugas para não entrar em rota de colisão com o projeto de

poder civil-militar estavam nos palcos e textos encenados/adaptados.

Pedro Galvão de Lima e José Seráfico de Carvalho tiveram que conviver com o

espectro das prisões e violências psicológicas ao longo de 59 dias trancafiados na 5ª

Companhia de Guardas. Lideravam a UAP e o T-UAP, respectivamente. Arcaram alto custo

pelo engajamento estudantil, sem demonstrar arrependimentos. Assim aconteceu também com

Ruy Antonio Barata, mas este estava mais habituado com os traquejos políticos apreendidos

com o “velho Ruy”. As matérias veiculadas pela Tribuna da Imprensa lhe serviam de

ferramentas para seguir lutando em prol do Socialismo. Por fim, Alfredo Oliveira, ao afastar-

se estrategicamente do partido, mesmo sendo pouco assediado pelo autoritarismo paraense,

sofreu nos bastidores dos hospitais públicos vendo o sofrimento e mazelas dos mais pobres

impostas pelo estado. As acusações feitas por jornais lhes chegavam aos olhos e ouvidos, mas

sua atuação estava para além das discussões partidárias. Era um homem dedicado ao ato mais

sublime de um ser humano naqueles tempos de medos e prisões: mostrar o amor

cotidianamente por meio de ações voluntariosas de solidariedade.

Entretanto, apesar das dificuldades impostas pelo novo regime, em momento algum

se ausentaram do embate. A maior parte das vezes, os dissidentes reagiram. Construíram

artimanhas pequenas, mas engenhosas para demarcar posições. Produzindo peças teatrais com

dúbios sentidos, enviando cartas a consulados e jornais, seja cometendo poemas

aparentemente inocentes, estes atores entraram no palco de lutas com ações sagazes o

suficiente para fazer-se notar na cena. E sofrer as consequências destes atos quando flagrados

pelos olhares atentos da repressão.

Se tais ações os colocaram às margens durante a Ditadura Civil-Militar no Pará, por

outro lado, em tempos democráticos estão na ordem do dia em diversas entrevistas, rodas de

conversas, palestras, com a temática da Ditadura Civil-Militar. Apesar da longa demora, com

algumas dissertações de mestrado envolvendo memórias nos tempos ditatoriais, estes mesmos

sujeitos saem de zonas de silêncio nas quais foram enfurnados por 20 anos de ditadura.

O clima de tensão em decorrência das matérias jornalísticas, prisões, fugas,

interrogatórios, cesuras, ainda está latente nas seleções de cenas narradas pela memória. E

assim encontram refúgio, passados quarenta e oito anos do 1º de abril de 1964, para seus

sentimentos. Narrar foi, para todos, um grande parazer. Construí vínculos de amizade o

suficiente para, ao reencontrá-los, ganhar afetuosos abraços e apertos de mão. Nas vezes que

isto aconteceu, senti-me honrado.

Page 149: No Crepúsculo

158

O que movia minha admiração e consequente parazer em receber atenção de tais

distintos sujeitos estava claro para mim. Eu fui, e sempre serei, admirador da nobre arte de

perseverar em ideais de transformação de nossa realidade para condições menos injustas de

relação entre sapiens-sapiens. Todos eles se posicionaram e conseguiram mostrar identidades

com nobres valores. A questão, entretanto, era outra: o que os movia a direcionar tamanha

atenção a mim? Seriam as descomprometidas etiquetas da boa educação tão somente.

Obviamente não descarto esta possibilidade. Mas é preciso adentrar em outra questão para

entender melhor esta última inquietação desta dissertação.

Sarlo (1997) ajudar a desanuviar esta questão ao indagar sobre a existência dos

resíduos do passado fazendo-se notar no tempo presente. Pois, sobre este jaez, afirmo

categoricamente que por meio de derrotas seguidas de derrotas, todos os narradores chegaram

à vitórias. Percebi, buscando detalhes de suas experiências de vida, o quanto sofreram por

defender seus sonhos. Assim, com quedas e sofrimentos, deram visibilidades e transformaram

em axiomas seus discursos e práticas externadas nos últimos 50 ou 60 anos de vida.

Conseguiram, pelas trilhas democráticas, impor seus projetos de vida como verdades.

Para constatar a anuência obtida pelos narradores em tela basta ver as numerosas

petições públicas de ONGs e mobilizações populares pedindo a abertura dos inquéritos

militares, o julgamento e punição aos torturadores e assassinos do regime. Outro exemplo

reside nos mandatos presidenciais dos últimos vinte anos. Todos, desde Fernando Henrique

Cardoso (1994-2002), Luis Ignácio Lula da Silva (2002-2010), até Dilma Rousseff (2010-

2014), foram vítimas de alguma maneira da Ditadura Civil-Militar. A última, inclusive,

chegou a ser torturada fisicamente e seu algoz hoje enfrenta a Justiça para explicar-se. Os

criminosos de 1964, como acusava a Tribuna, são os herois de hoje.

Assim, é provável que os narradores ao dedicar atenção a minha pessoa estejam

ainda em plenas “batalhas da memória” (REIS, 2004). Concedendo entrevistas cuja temática

envolve o passado vincado pela dor, estão operando com identidades sabiamente arquitetadas

para dar vazão a seus projetos de emersão. Ou, nos dizeres de Sarlo (1997), valem-se da

memória e narrativas históricas como ferramentas contra o esquecimento. Esta dissertação,

portanto, é mais um ardiloso instrumento destes sujeitos que não pararam de semear

perspicácias.

Page 150: No Crepúsculo

159

Olympio Mourão Filho, portanto, na condição de militar, não era o único

representante da aventura que mergulhou a democracia brasileira numa noite de vinte anos

(1964-85).44

Daí se justifica a tese do golpe ser de caráter civil e militar.

Por fim, além das narrativas, todos ainda operam com recordações tênues, fugazes,

idas e, acima de tudo, com um bonito sonho de lutas, com grandes lições de amor e cidadania.

Foram sentimentos, paixões, medos recalques, angústias, orgulhos... Mesclados em

depoimentos agitados/calmos e nervosos/serenos. Em simbiose; ao mesmo tempo. Transmitir

a experiência vivida por meio de sorrisos, pernas balançando, tensões faciais e toda sorte de

performances do corpo e da voz são formas de compreender e explicar o golpe e a Ditadura

Civil-Militar. Não me acanho de tentar!

44 Em pesquisa com jornais de circulação na Amazônia Paraense, nos primeiros três anos da década de 1960,

antes do Golpe, portanto, junto à seção de Jornais/Obras Raras, da Fundação Tancredo Neves – Centur, constatei

discursos jornalísticos com satanização do termo “Comunismo”. As matérias versavam sobre o “Perigo

Vermelho”, “Cubanização”, “Avanço Comunista” e outras expressões que instigavam os leitores da região a

pensar esse regime sócio-político-econômico como um inimigo a ser combatido. O papel do bispo Dom Alberto

Ramos no processo de caça aos padres com ideais comunistas infiltrados nas fileiras da Igreja também é descrito

no mesmo trabalho. Sobre a ação dos jornais em circulação na Amazônia Paraense nas vésperas do Golpe Militar

ver: (VELARDE, 2005).

Page 151: No Crepúsculo

160

DESCRIÇÃO DAS FONTES

1. Entrevistas

1.1 Pedro Galvão de Lima, entrevistas em 25 de maio e 24 de agosto de 2011.

Idade: 72 anos Nascimento: 28. Mar. 1940 Naturalidade: Belém (PA)

1.2 Ruy Antonio Barata, entrevistas em 19 e 22 de agosto de 2011.

Idade: 65 anos Nascimento: 07. Set. 1946 Naturalidade: Óbidos (PA)

1.3 João de Jesus Paes Loureiro, entrevistas em 03 e 30 de março de 2011.

Idade: 73 anos Nascimento: 23. Jun.1939 Naturalidade: Abaetetuba (PA)

1.4 Alfredo Oliveira, entrevista em 14 de setembro de 2011.

Idade: 77 anos Nascimento: 14. Jun. 1935 Naturalidade: Belém (PA)

1.5 André Avelino da Costa Nunes Netto, entrevistas em 11 e 13 de setembro de 2011.

Idade: 72 anos Nascimento: 10. Nov.1939 Naturalidade: Belém (PA)

1.6 Cláudio Barradas, entrevistas em 13 e 23 de maio de 2011.

Idade: 82 anos Nascimento: 04. Jan.1930 Naturalidade: Belém (PA)

1.7 Dulce Rosa Rocque Bacelar, entrevistas em 28 de dezembro 2011 e 07 de janeiro

2012.

Idade: 68 anos Nascimento: 10. Dez.1943 Naturalidade: Belém (PA)

1.8 José da Silva Seráfico de Assis Carvalho, entrevista em 07 e 09 de outubro de 2011.

Idade: 70 anos Nascimento: 23. Abr. 1942 Naturalidade: Belém (PA)

Jornais pesquisados

1.1 A Província do Pará, 08.07.1964.

1.2 A Província do Pará, 25.08.1965.

1.3 A Província do Pará, 29.08.1965.

1.4 A Província do Pará, 27.02.1966.

1.5 A Província do Pará, 01.03.1966.

1.6 A Província do Pará, 02.03.1966.

Page 152: No Crepúsculo

161

1.7 A Província do Pará, 13.03.1966.

1.8 A Província do Pará, 10.06.1967.

1.9 A Província do Pará, 08.12.1980.

1.10 Folha Vespertina, 10.11.1965

1.11 Folha Vespertina, 26.11.1966

1.12 O Estado do Pará, 18.10.1976.

1.13 O Estado do Pará, 19.11.1978.

1.14 Tribuna da Imprensa, 02.04.1964

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