No Mundo Maior (psicografia Chico Xavier - espírito André Luiz).pdf

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  • Francisco Cndido Xavier

    No Mundo Maior

    5o livro da Coleo A Vida no Mundo Espiritual

    Ditado pelo Esprito Andr Luiz

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA DEPARTAMENTO EDITORIAL

    Rua Souza Valente, 17 20941-040 - Rio - RJ - Brasil

    http://www.febnet.org.br/

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    Coleo A Vida no Mundo Espiritual

    01 - Nosso Lar 02 - Os Mensageiros 03 - Missionrios da Luz 04 - Obreiros da Vida Eterna 05 - No Mundo Maior 06 - Libertao 07 - Entre a Terra e o Cu 08 - Nos Domnios da Mediunidade 09 - Ao e Reao 10 - Evoluo em Dois Mundos 11 - Mecanismos da Mediunidade 12 - Sexo e Destino 13 - E a Vida Continua...

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    ndice Na jornada evolutiva .................................................................... 4 1 Entre dois planos ...................................................................... 8 2 A preleo de Eusbio............................................................ 19 3 A Casa Mental........................................................................ 32 4 Estudando o crebro ............................................................... 44 5 O poder do amor..................................................................... 59 6 Amparo fraternal .................................................................... 74 7 Processo redentor ................................................................... 88 8 No Santurio da Alma .......................................................... 101 9 Mediunidade......................................................................... 115 10 Dolorosa perda ................................................................... 131 11 Sexo ................................................................................... 145 12 Estranha enfermidade ......................................................... 159 13 Psicose afetiva.................................................................... 170 14 Medida salvadora ............................................................... 181 15 Apelo cristo ...................................................................... 189 16 Alienados mentais .............................................................. 199 17 No limiar das cavernas ....................................................... 208 18 Velha afeio...................................................................... 217 19 Reaproximao................................................................... 225 20 No lar de Cipriana .............................................................. 234

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    Na jornada evolutiva

    Dos quatro cantos da Terra diariamente partem viajores hu-manos, aos milhares, demandando o pas da Morte. Vo-se de ilustres centros da cultura europia, de tumulturias cidades ame-ricanas, de velhos crculos asiticos, de speros climas africanos. Procedem das metrpoles, das vilas, dos campos ...

    Raros viveram nos montes da sublimao, vinculados aos de-veres nobilitantes. A maioria constitui-se de menores de esprito, em luta pela outorga de ttulos que lhes exaltem a personalidade. No chegaram a ser homens completos. Atravessaram o mare magnum da humanidade em contnua experimentao. Muita vez, acomodaram-se com os vcios de toda a sorte, demorando voluntariamente nos trilhos da insensatez. Apesar disso, porm, quase sempre se atribuam a indbita condio de eleitos da Providncia; e, cristalizados em tal suposio, aplicavam a justi-a ao prximo, sem se compenetrarem das prprias faltas, espe-rando um paraso de graas para si e um inferno de intrmino tormento para os outros. Quando perdidos nos intrincados mean-dros do materialismo cego, fiavam, sem justificativa, que no tmulo se lhes encerraria a memria; e, se filiados a escolas reli-giosas, raros excetuados, contavam, levianos e inconseqentes, com privilgios que jamais nada fizeram por merecer.

    Onde albergar a estranha e infinita caravana? Como designar a mesma estao de destino a viajantes de cultura, posio e ba-gagem to diversas?

    Perante a Suprema Justia, o malgache e o ingls fruem dos mesmos direitos. Provavelmente, porm, estaro distanciados entre si, pela conduta individual, diante da Lei Divina, que distin-gue, invariavelmente, a virtude e o crime, o trabalho e a ociosida-de, a verdade e a simulao, a boa vontade e a indiferena. Da

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    contnua peregrinao do sepulcro, participam, todavia, santos e malfeitores, homens diligentes e homens preguiosos.

    Como avaliar por bitola nica recipientes heterogneos? Con-siderando, porm, nossa origem comum, no somos todos filhos do mesmo Pai? E por que motivo fulminar com inapelvel conde-nao os delinqentes, se o dicionrio divino inscreve a letras de logo as palavras regenerao, amor e misericrdia? Deter-minaria o Senhor o cultivo compulsrio da esperana entre as criaturas, ao passo que Ele mesmo, de Sua parte, desesperaria? Glorificaria a boa vontade, entre os homens, e conservar-se-ia no crcere escuro da negao? O selvagem que haja eliminado os semelhantes, a flechadas, teria recebido no mundo as mesmas oportunidades de aprender que felicitam o europeu superciviliza-do, que extermina o prximo metralhadora? Estariam ambos preparados ao ingresso definitivo no paraso de bem-aventurana infindvel to somente pelo batismo simblico ou graas a tardio arrependimento no leito de morte?

    A lgica e o bom-senso nem sempre se compadecem com ar-gumentos teolgicos imutveis. A vida nunca interrompe ativida-des naturais, por imposio de dogmas estatudos de artifcio. E, se mera obra de arte humana, cujo termo a bolorenta placidez dos museus, exige a pacincia de anos para ser empreendida e realizada, que dizer da obra sublime do aperfeioamento da alma, destinada a glrias imarcescveis?

    Vrios companheiros de ideal estranham a cooperao de Andr Luiz, que nos tece informaes sobre alguns setores das esferas mais prximas ao comum dos mortais.

    Iludidos na teoria do menor esforo, inexistente nos crculos elevados, contavam com preeminncia pessoal, sem nenhum testemunho de servio e distantes do trabalho digno, em um cu de gozos contemplativos, exuberante de conforto melfico. Prefe-ririam a despreocupao das galerias, em beatitude permanente,

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    onde a grandeza divina se limitaria a prodigiosos espetculos, cujos nmeros mais surpreendentes estariam a cargo dos Espritos Superiores, convertidos em jograis de vestidura brilhante.

    A misso de Andr Luiz , porm, a de revelar os tesouros de que somos herdeiros felizes na Eternidade, riquezas imperecveis; em cuja posse jamais entraremos sem a indispensvel aquisio de Sabedoria e de Amor.

    Para isto, no lidamos em milagrosos laboratrios de felici-dade improvisada, onde se adquiram dotes de vil preo e ordin-rias asas de cera. Somos filhos de Deus, em crescimento. Seja nos campos de foras condensadas, quais os da luta fsica, seja nas esferas de energias sutis, quais as do plano superior, os ascenden-tes que nos presidem os destinos so de ordem evolutiva, pura e simples, com indefectvel justia a seguirmos de perto, claridade gloriosa e compassiva do Divino Amor.

    A morte a ningum propiciar passaporte gratuito para a ven-tura celeste. Nunca promover compulsoriamente homens a anjos. Cada criatura transpor essa aduana da eternidade com a exclusi-va bagagem do que houver semeado e aprender que a ordem e a hierarquia, a paz do trabalho edificante, so caractersticos imut-veis da Lei, em toda parte.

    Ningum, depois do sepulcro, gozar de um descanso a que no tenha feito jus, porque o Reino do Senhor no vem com aparncias externas.

    Os companheiros que compreendem, na experincia humana, a escada sublime, cujos degraus h que vencer a preo de suor, com o proveito das bnos celestiais, dentro da prtica incessante do bem, no se surpreendero com as narrativas do mensageiro interessado no servir por amor. Sabem eles que no teriam recebi-do o dom da vida para matar o tempo, nem a ddiva da f para confundir os semelhantes, absorvidos, que se acham, na execuo dos Divinos Desgnios. Todavia, aos crentes do favoritismo,

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    presos teia de velhas iluses, ainda quando se apresentem com os mais respeitveis ttulos, as afirmativas do emissrio fraternal provocaro descontentamento e perplexidade.

    natural; porm, cada lavrador respira o ar do campo que es-colheu.

    Para todos, contudo, exoramos a bno do Eterno: tanto para eles, quanto para ns.

    EMMANUEL

    Pedro Leopoldo, 25 de maro de 1947.

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    1 Entre dois planos

    Esplendia o luar, revestindo os ngulos da paisagem de inten-sa luz. Maravilhosos cmulos a Oeste, espraiados no horizonte, semelhavam-se a castelos de espuma lctea, perdidos no imenso azul; confinando com a amplido, o quadro terrestre contrastava com o doce encantamento do alto, deixando entrever a vasta plancie, recamada de arvoredo em pesado verde-escuro. Ao Sul, caprichosos cirros reclinavam-se do Cu sobre a Terra, simboli-zando adornos de gaze esvoaante; evoquei, nesse momento, a juventude da Humanidade encarnada, perguntando a mim mesmo se aquelas bandas alvas do firmamento no seriam faixas celesti-ais, a protegerem o repouso do educandrio terrestre.

    A solido imponente do plenilnio infundia-me quase terror pela melancolia de sua majestosa e indizvel beleza.

    A idia de Deus envolvia-me o pensamento, arrancando-me notas de respeito e gratido, que eu, entretanto, no chegava a emitir. Em plena casa da noite, rendia culto de amor ao Eterno, que lhe criara os fundamentos sublimes de silncio e de paz, em refrigrio das almas encarnadas na Crosta da Terra.

    O luminoso disco lunar irradiava, destarte, maravilhosas su-gestes. Aos seus reflexos, iniciara-se a evoluo terrena e nume-rosas civilizaes haviam modificado o curso das experincias humanas. Aquela mesma lmpada suspensa clareara o caminho dos seres primitivos, conduzira os passos dos conquistadores, norteara a jornada dos santos. Testemunha impassvel, observara a fundao de cidades suntuosas, acompanhando-lhes a prosperida-de e a decadncia; contemplara as incessantes renovaes da geografia poltica do mundo; brilhara sobre a testa coroada dos prncipes e sobre o cajado de misrrimos pastores; presenciava,

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    todos os dias, h longos milnios, o nascimento e a morte de milhes de seres. Sua augusta serenidade refletia a paz divina. C em baixo, desencarnados e encarnados, possuidores de relativa inteligncia, podamos proceder a experimentos, reparar estradas, contrair compromissos ou edificar virtudes, entre a esperana e a inquietao, aprendendo e recapitulando sempre; mas a Lua, solitria e alvinitente, trazia-nos a idia da tranqilidade inexpug-nvel da Divina Lei.

    A regio do encontro est prxima. A palavra do Assistente Calderaro interrompeu-me a medita-

    o. O aviso fazia-me sentir o trabalho, a responsabilidade; lem-

    brava, sobretudo, que no me encontrava s. No viajvamos, ambos, sem objetivo. Em breves minutos, partilharamos os trabalhos do Instrutor

    Eusbio, abnegado paladino do amor cristo, em servio de aux-lio a companheiros necessitados.

    Eusbio dedicara-se, de h muito, ao ministrio do socorro espiritual, com vastssimos crditos em nosso plano. Renunciara a posies de realce e adiara sublimes realizaes, consagrando-se inteiramente aos famintos de luz. Superintendia prestigiosa orga-nizao de assistncia em zona intermediria, atendendo a estu-dantes relativamente espiritualizados, pois ainda jungidos ao crculo carnal, e a discpulos recm-libertos do campo fsico.

    A enorme instituio, a que dedicava direo fulgurante, re-gurgitava de almas situadas entre as esferas inferiores e as superi-ores, gente com imensido de problemas e de indagaes de toda a espcie, a requerer-lhe pacincia e sabedoria; entretanto, o indefesso missionrio, mau grado ao constante acmulo de servi-os complexos, encontrava tempo para descer semanalmente Crosta Planetria, satisfazendo interesses imediatos de aprendizes

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    que se candidatavam ao discipulado, sem recursos de elevao para vir ao encontro de seu verbo iluminado, na sede superior.

    No o conhecia pessoalmente. Calderaro, porm, recebia-lhe a orientao, de conformidade com o quadro hierrquico, e a ele se referira com o entusiasmo do subordinado que se liga ao chefe, guardando o amor acima da obedincia.

    O Assistente, a seu turno, prestava servio ativo na prpria Crosta da Terra, a atender, de modo direto, aos irmos encarna-dos. Especializara-se na cincia do socorro espiritual, naquela que, entre os estudiosos do mundo, poderamos chamar psiquia-tria iluminada, setor de realizaes que h muito tempo me sedu-zia.

    Dispondo de uma semana sem obrigaes definidas, dentre os encargos que me diziam respeito, solicitei ingresso na turma de adestramento, da qual se fizera Calderaro eminente orientador, tendo-me ele aceito com a gentileza caracterstica dos legtimos missionrios do bem e propondo-se conduzir-me carinhosamente. Encontrava-se em oportunidade favorvel aos meus propsitos de aprender, pois a equipe de preparao, que lhe recebia ensinamen-tos, excursionava em outra regio, a labutar em atividades edifi-cantes; vista disso, poderia dispensar-me toda a ateno, auxili-ando-me os desejos.

    Os casos que lhe eram atinentes, explicou-me solcito, no apresentavam continuidade substancial: desdobravam-se; consti-tuam obra de improviso, obedeciam ao inopinado das ordens de servio ou das situaes. Noutros campos de ao, fazia-se im-prescindvel o roteiro, previstas as condies e as circunstncias. No quadro de responsabilidades, porm, que lhe estavam afetas, diferiam as normas; importava acompanhar os problemas, quais imprevistas manifestaes da prpria vida. Em virtude de tais flutuaes, no traava, a rigor, programas quanto a particularida-des. Executava os deveres que lhe competiam, onde, como e

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    quando determinassem os desgnios superiores. O escopo funda-mental da tarefa circunscrevia-se ao socorro imediato aos infeli-zes, evitando-se, quanto possvel, a loucura, o suicdio e os ex-tremos desastres morais. Para isto, o missionrio atuante era compelido a conhecer profundamente o jogo das foras psquicas, com acendrado devotamento ao bem do prximo. Calderaro, neste particular, no deixava perceber qualquer dvida. A bondade espontnea lhe era indcio da virtude e a inquebrantvel serenida-de revelava-lhe a sabedoria.

    No lhe gozava o convvio desde muitos dias. Abraara-o na vspera pela primeira vez; bastou, no entanto, um minuto de sintonia, para que se estabelecesse entre ns sadia intimidade. Embora lhe reconhecesse a sobriedade verbal, desde o momento do nosso encontro permutvamos impresses como velhos ami-gos.

    Seguindo-lhe, pois, os passos, afetuosamente, de alma edifi-cada na fraternidade e na confiana, vi-me a reduzida distncia de extenso parque, em plena natureza terrestre.

    Em torno, rvores robustas, de copas farfalhantes, alinhavam-se, maneira de sentinelas adrede postadas para velar-nos pelos servios.

    O vento passava cantando, em surdina; no recinto iluminado de claridades inacessveis faculdade receptiva do olhar humano, aglomeravam-se algumas centenas de companheiros, temporaria-mente afastados do corpo fsico pela fora liberativa do sono.

    Amigos de nossa esfera atendiam-nos com desvelo, mostran-do interesse afetivo, prazer de servir e santa pacincia. Reparei que muitos se mantinham de p; outros, contudo, se acomodavam nas protuberncias do solo alcatifado de relva macia, em palestra grave e respeitosa.

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    Ambientando-me para aquela hora de extrema beleza espiri-tual, Calderaro avisou-me:

    Na reunio de hoje o Instrutor Eusbio receber estudantes do espiritualismo, em suas correntes diversas, que se candidatam aos servios de vanguarda.

    Oh! exclamei, curioso No se trata, pois, de assemblia, que agrupe indivduos filiados indiscriminadamente s escolas da f?

    O Assistente esclareceu, de pronto: A medida no seria aconselhvel no crculo de nossa espe-

    cialidade. O Instrutor afeioou-se ao apostolado de assistncia a criaturas encarnadas e a recm-libertas da zona fsica, em particu-lar, precisando aproveitar o tempo com as horas de preleo, para o mximo de aproveitamento. A heterogeneidade de princpios em centenas de indivduos, cada qual com sua opinio, obrigaria a digresses difusas, acarretando condenveis desperdcios de opor-tunidades.

    Fixou a multido demoradamente, e acrescentou: Temos aqui, em clculo aproximado, mil e duzentas pesso-

    as. Deste nmero oitenta per cento se constituem de aprendizes dos templos espiritualistas, em seus ramos diversos, ainda inaptos aos grandes vos do conhecimento, conquanto nutram fervorosas aspiraes de colaborao no Plano Divino. So companheiros de elevado potencial de virtudes. Exemplificam a boa vontade, exer-citam-se na iluminao interior atravs de esforo louvvel; con-tudo, ainda no criaram o cerne da confiana para uso prprio. Tremem ante as tempestades naturais do caminho e hesitam no crculo das provas necessrias ao enriquecimento da alma, exigin-do de ns particular cuidado, pois que, pelos seus testemunhos de diligncia na obra espiritualizante, so os futuros instrumentos para os servios da frente. Apesar da claridade que lhes assinala

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    as diretrizes, ainda padecem desarmonias e angstias, que lhes ameaam o equilbrio incipiente. No lhes falece, porm, a assis-tncia precisa. Instituies de restaurao de foras abrem-lhes as portas acolhedoras em nossas esferas de ao. A libertao pelo sono o recurso imediato de nossas manifestaes de amparo fraterno. A princpio, recebem-nos a influncia inconscientemen-te; em seguida, porm, fortalecem a mente. devagarinho, gravan-do-nos o concurso na memria, apresentando idias, alvitres, sugestes, pareceres e inspiraes beneficentes e salvadoras, atravs de recordaes imprecisas.

    Fez breve pausa e concluiu: Os demais so colaboradores de nosso plano em tarefa de

    auxlio. A organizao dos trabalhos era digna de sincera admirao.

    Estvamos num campo substancialmente terrestre. A atmosfera, impregnada de aromas que o vento espargia em torno, recordava-me o lar na Terra, contornado de seu jardim, em noite clida.

    Que teria eu realizado no mundo fsico se recebesse, em outro tempo, aquela bendita oportunidade de iluminao? Aquele pu-nhado de mortais, sob os raios da Lua, afigurou-se-me assemblia de privilegiados, favorecidos por celestes numes. Milhes de homens e mulheres a dormir em cidades prximas, algemados aos interesses imediatos e ansiando a permuta das mais vis sensaes, nem de longe suspeitariam a existncia daquela original aglome-rao de candidatos luz ntima, convocados preparao inten-siva para incurses mais longas e eficientes na espiritualidade superior. Teriam a noo do sublime ensejo que lhes aprazia? Aproveitariam a ddiva com suficiente compreenso dos valores eternos? Marchariam desassombrados para a frente, ou estaciona-riam ao contacto dos primeiros bices, no esforo iluminativo?

    Calderaro percebeu-me as silenciosas perquiries e acres-centou:

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    Nossa comunidade de trabalho se dedica, essencialmente, manifestao do equilbrio. No ignoras que a codificao do plano mental das criaturas ningum jamais a impe: fruto de tempo, de esforo, de evoluo; e o edifcio da sociedade humana, em o atual momento do mundo, vem sendo abalado nos prprios alicerces, compelindo imenso nmero de pessoas a imprevistas renovaes. Certo, no te surpreenders se eu disser que, em face do surto da inteligncia moderna, que embate na paralisia do sentimento, periclita a razo. O progresso material atordoa a alma do homem desatento. Grandes massas, h sculos, permanecem distanciadas da luz espiritual. A civilizao puramente cientfica um Saturno devorador e a humanidade de agora se defronta com implacveis exigncias de acelerado crescer mental. Da o agravo de nossas obrigaes no setor da assistncia. As necessidades de preparao do esprito intensificam-se em ritmo assustador.

    Nesse instante, alcanamos a multido pacfica. Meu interlocutor sorriu, frisando: O acaso no opera prodgios. Qualquer realizao h que

    planejar, atacar, por a termo. Para que o homem fsico se converta em homem espiritual, o milagre exige muita colaborao de nossa parte.

    Lanou-me olhar significativo e concluiu: As asas sublimes da alma eterna no se expandem nos aca-

    nhados escaninhos de uma chocadeira. H que trabalhar, brunir, sofrer.

    Nesse momento, aproximou-se algum dirigindo-nos a pala-vra: era um solcito companheiro, informando-nos que Eusbio penetrara o recinto. Efetivamente, em salincia prxima, compa-recia o missionrio, ladeado por seis assessores, todos envoltos em halos de intensa luz.

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    O abnegado orientador no exibia os traos de venervel se-nectude com que em geral imaginamos os apstolos das revela-es divinas; mostrava-se-nos com a figura dos homens robustos, em plena madureza espiritual; os olhos escuros e tranqilos pare-ciam fontes de imenso poder magntico. Contemplava-nos sorri-dente, qual simples colega.

    A presena dele impusera, porm, respeitoso silencio. Cessa-ram todas as conversaes que aqui e ali se entretinham e, ante os fios de luz que os trabalhadores de nosso plano teciam em derre-dor, isolando-nos de qualquer assdio eventual das foras inferio-res, apenas o vento calmo erguia a voz, sussurrando algo de belo e misterioso folhagem.

    Sentamo-nos todos, escuta, enquanto o Instrutor se manti-nha de p; observando-o, quase frente a frente, eu podia agora apreciar-lhe a figura majestosa, respirando segurana e beleza. Do rosto imperturbvel, a bondade e a compreenso, a tolerncia e a doura irradiavam simpatia inexcedvel. A tnica ampla, de tom verde-claro, emitia esmeraldinas cintilaes. Aquela vigorosa personalidade infundia venerao e carinho, confiana e paz.

    Consolidada a quietude no ambiente, elevou a destra para o Alto e orou com inflexo comovedora:

    Senhor da Vida, Abenoa-nos o propsito De penetrar o caminho da Luz!... Somos Teus filhos, Ainda escravos de crculos restritos, Mas a sede do Infinito Dilacera-nos os vus do ser. Herdeiros da imortalidade,

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    Buscamos-Te as fontes eternas Esperando, confiantes, em Tua misericrdia. De ns mesmos, Senhor, nada podemos. Sem Ti, somos frondes decepadas Que o fogo da experincia Tortura ou transforma... Unidos, no entanto, ao Teu Amor, Somos condicionadores gloriosos De Tua Criao interminvel. Somos alguns milhares Neste campo terrestre; E, antes de tudo, Louvamos-Te a grandeza Que no nos oprime a pequenez... Dilata-nos a percepo diante da vida, Abre-nos os olhos Enevoados pelo sono da iluso Para que divisemos Tua glria sem fim!... Desperta-nos docemente o ouvido, A fim de percebermos o cntico De tua sublime eternidade. Abenoa as sementes de sabedoria Que os teus mensageiros esparziram No campo de nossas almas; Fecunda-nos o solo interior, Para que os divinos germens no peream. Sabemos, Pai, Que o suor do trabalho

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    E a lgrima da redeno Constituem adubo generoso florao de nossas sementeiras; Todavia, Sem Tua bno, O suor elanguesce E a lgrima desespera... Sem Tua mo compassiva, Os vermes das paixes E as tempestades de nossos vcios Podem arruinar-nos a lavoura incipiente. Acorda-nos, Senhor da Vida, Para a luz das oportunidades presentes; Para que os atritos da luta no as inutilizem, Guia-nos os ps para o supremo bem; Reveste-nos o corao Com a Tua serenidade paternal, Robustecendo-nos a resistncia! Poderoso Senhor, Ampara-nos a fragilidade, Corrige-nos os erros, Esclarece-nos a ignorncia, Acolhe-nos em Teu amoroso regao. Cumpram-se, Pai Amado, Os Teus desgnios soberanos, Agora e sempre. Assim seja.

    Finda a comovente rogativa, o orientador baixou os olhos ne-

    voados de pranto e ento vi, dominado de jbilo, que da incog-

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    noscvel altura uma claridade diferente caa sobre ns, em jorros cristalinos.

    Partculas semelhantes a prata eterizada choviam no recinto, infiltrando-se nas razes das rvores mais prximas, l fora.

    Ignoto encantamento fizera-se em minhalma. Ao contacto dos eflvios divinos, reparei que minhas foras gradualmente serenavam, em receptividade maravilhosa. Em torno, pairavam as mesmas notas de alegria e de beleza, pois a calma e a ventura transpareciam de todos os rostos, voltados, extticos, para o Ins-trutor, em redor do qual se mostravam mais intensas as ondas de luz celeste.

    Sublime felicidade inundava-me todo o ser, mergulhara-me em indefinvel banho de energias renovadoras.

    Meus olhos foram impotentes para conter as lgrimas felizes que as formosas cintilaes me destilavam das fontes ocultas do esprito. E, antes que o nobre mentor retomasse a palavra, agrade-ci em silncio a resposta do Cu, reconhecendo na prece, mais uma vez, no s a manifestao da reverncia religiosa, seno tambm o recurso de acesso aos inesgotveis mananciais do Divi-no Poder.

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    2 A preleo de Eusbio

    Ereto, incendido o trax de suave luz, falou o Instrutor, co-movedoramente:

    Dirigimo-nos a vs, irmos, que tendes, por enquanto, en-sejo de aprender na bendita escola carnal.

    Tangidos pela necessidade, na sede de cincia ou na angstia do amor que transpe abismos, vencestes pesadas fronteiras vibra-trias, encontrando-vos na estaca zero do caminho diferente que se vos antolha. Enquanto vossa organizao fisiolgica repousa a distncia, exercitando-se para a morte, vossas almas quase libertas partilham conosco a fraternidade e a esperana, adestrando facul-dades e sentimentos para a verdadeira vida.

    Naturalmente, no podereis guardar plena recordao desta hora, em retomando o envoltrio carnal, em virtude da deficincia do crebro, incapaz de suportar a carga de duas vidas simultneas; a lembrana de nosso entendimento persistir, contudo, no fundo de vosso ser, orientando-vos as tendncias superiores para o terre-no da elevao e abrindo-vos a porta intuitiva para que vos assista nosso pensamento fraternal.

    O orador fez breve pausa, fixando-nos o olhar calmo e lcido, e, sob a leve e incessante chuva de raios argnteos, continuou:

    Enfastiados das repetidas sensaes no plano grosseiro da existncia, intentais pisar outros domnios. Buscais a novidade, o conforto desconhecido, a soluo de torturantes enigmas; todavia, no olvideis que a chama do prprio corao, convertido em santurio de claridade divina, a nica lmpada capaz de iluminar o mistrio espiritual, em nossa marcha pela senda redentora e evolutiva. Ao lado de cada homem e de cada mulher, no mundo,

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    permanece viva a Vontade de Deus, relativamente aos deveres que lhes cumprem. Cada qual tem sua frente o servio que lhe compete, como cada dia traz consigo possibilidades especiais de realizao no bem. O Universo enquadra-se na ordem absoluta. Aves livres em limitados cus, interferimos no plano divino, criando para ns prises e liames, libertao e enriquecimento. Insta, pois, nos adaptemos ao equilbrio divino, atendendo fun-o insulada que nos cabe, em plena colmia da vida.

    Desde quando fazemos e desfazemos, terminamos e recome-amos, empreendemos a viagem reparadora e regressamos, per-plexos, para o reincio? Somos, no palco da Crosta planetria, os mesmos atores do drama evolutivo. Cada milnio ato breve, cada sculo um cenrio veloz. Utilizando corpos sagrados, per-demos, entretanto, quais despreocupadas crianas, entretidas apenas em jogos infantis, o ensejo santificante da existncia; destarte, fazemo-nos rprobos das leis soberanas, que nos enre-dam aos escombros da morte, como nufragos piratas por muito tempo indignos do retorno s lides do mar. Enquanto milhes de almas desfrutam bons ensejos de emenda e reajustamento, de novo entregues ao esforo regenerativo nas cidades terrestres, milhes de outras deploram a prpria derrota, perdidas no atro recesso da desiluso e do padecimento.

    No nos reportamos aqui aos missionrios hericos que su-portam as sangrentas feridas dos testemunhos angustiosos, por esprito de renncia e de amor, de solidariedade e de sacrifcio; so luzes provisoriamente apartadas da Luz Divina e que voltam ao domiclio celeste, como o trabalhador fiel regressa ao lar, finda a cotidiana tarefa.

    Referimo-nos s bastas multides de almas indecisas, presas da ingratido e da dvida, da fraqueza e da dissipao, almas formadas luz da razo, mas escravizadas tirania do instinto.

    E num rasgo de humildade crist, Eusbio continuou:

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    Falamos de todos ns, viajores que extravagamos no de-serto da prpria negao; de ns, pssaros de asas partidas, que tentamos voar ao ninho da liberdade e da paz, e que, no entanto, ainda nos debatemos no chavascal dos prazeres de nfima estofa. Porque no represar o curso das paixes corrosivas que nos flage-lam o esprito? Porque no sofrear o mpeto da animalidade, em que nos comprazemos, desde os primeiros laivos de raciocnio? Sempre o terrvel dualismo da luz e das trevas, da compaixo e da perversidade, da inteligncia e do impulso bestial. Estudamos a cincia da espiritualidade consoladora desde os primrdios da razo e, todavia, desde as pocas mais remotas, consagramo-nos ao aviltamento e ao morticnio.

    Cantvamos hinos de louvor com Krishna, aprendendo o conceito da imortalidade da alma, sombra das rvores augustas que aspiram aos cimos do Himalaia, e descamos, logo depois, ao vale do Ganges, matando e destruindo para gozar e possuir. Sole-trvamos o amor universal com Sidarta Gautama e perseguamos os semelhantes, em aliana com os guerreiros cingaleses e hindus. Fomos herdeiros da Sabedoria, nos tempos distantes da Esfinge, e, no entanto, da reverncia aos mistrios da iniciao, passvamos hostilidade sanguissedenta, nas margens do Nilo. Acompanhando a arca simblica dos hebreus, reiteradas vezes lamos os manda-mentos de Jeov, contidos nos rolos sagrados, e, desatentos, os esquecamos, ao primeiro clangor de guerra aos filisteus. Chor-vamos de comoo religiosa em Atenas e assassinvamos nossos irmos em Esparta. Admirvamos Pitgoras, o filsofo, e segua-mos Alexandre, o conquistador. Em Roma, conduzamos oferen-das valiosas aos deuses, nos maravilhosos santurios, exaltando a virtude, para desembainhar as armas, minutos depois, no trio dos templos, disseminando a morte e entronizando o crime; escreva-mos formosas sentenas de respeito vida, com Marco Aurlio, e ordenvamos a matana de pessoas limpas de culpa e teis sociedade. Com Jesus, o Divino Crucificado, nossa atitude no

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    tem sido diferente. Sobre os despojos dos mrtires, imolados nos circos, vertemos rios de sangue em vindita cruel, armando foguei-ras do sectarismo religioso. Suportamos administradores arbitr-rios e ignominiosos, de Nero a Diocleciano, porque tnhamos fome de poder, e quando Constantino nos abriu as portas da do-minao poltica, convertemo-nos de servos aparentemente fiis ao Evangelho em criminosos rbitros do mundo. Pouco a pouco esquecemos os cegos de Jeric, os paralticos de Jerusalm, as crianas do Tiberades, os pescadores de Cafarnaum, para afagar as testas coroadas dos triunfadores, embora soubssemos que os vencedores da Terra no podem fugir peregrinao ao sepulcro. Tornou-se a idia do Reino de Deus fantasia de ingnuos, pois no largvamos o lado direito dos prncipes, sequiosos de fastgio mundano. Ainda hoje, decorridos quase vinte sculos sobre a cruz do Salvador, benzemos baionetas e canhes, metralhadoras e tanques de assalto, em nome do Pai Magnnimo, que faz refulgir o sol da misericrdia sobre os justos e sobre os injustos.

    por esta razo que nossos celeiros de luz permanecem va-zios. O vendaval das paixes fulminantes de homens e de povos passa ululante, de um a outro plo, a semear maus pressgios.

    At quando seremos gnios demolidores e perversos? Ao in-vs de servos leais do Senhor da Vida, temos sido soldados dos exrcitos da iluso, deixando retaguarda milhes de tmulos, abertos sob aluvies de cinza e fumo. Debalde exortou-nos o Cristo a buscar as manifestaes do Pai em nosso prprio ntimo. Cevamos e expandimos unicamente o egosmo e a ambio, a vaidade e a fantasia na Crosta Planetria. Contramos pesados dbitos e escravizamo-nos aos tristes resultados de nossas obras, deixando-nos ficar, indefinidamente, na messe dos espinhos.

    Foi assim que atingimos a poca moderna, em que a loucura se generaliza e a harmonia mental do homem est a pique de

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    soobro. De crebro evolvido e corao imaturo, requintamo-nos, presentemente, na arte de esfacelar o progresso espiritual.

    O excelso orientador deu orao mais longo intervalo, du-rante o qual observei companheiros em torno. Homens e mulhe-res, segurando alguns fortemente as mos uns dos outros, exibiam extrema palidez no semblante estarrecido. Alguns deles, por certo, compareciam ali pela primeira vez, como eu, dado o exttico assombro que se lhes estampava no rosto.

    Fixando na assemblia o olhar percuciente, o Instrutor pros-seguiu:

    Nos sculos pretritos, as cidades florescentes do mundo desapareciam pelo massacre, ao gldio dos conquistadores sem entranhas, ou estacionavam sob a onda mortfera da peste desco-nhecida e no atacada. Hoje, as coletividades humanas ainda sofrem o assdio da espada homicida e chuvas de bombas arreme-tem contra populaes indefesas; no entanto, a febre amarela, a clera e a varola foram dominadas; a lepra, a tuberculose e o cncer experimentam combate sem trguas. Existe, porm, nova ameaa ao domiclio terrestre: o profundo desequilbrio, a desar-monia generalizada, as molstias da alma que se ingerem, sutis, solapando-vos a estabilidade.

    Vossos caminhos no parecem percorridos por seres consci-entes, mas semelham-se a estranhas veredas, ao longo das quais tripudiam duendes alucinados. Como fruto de eras sombrias, caracterizadas pela opresso e maldade recprocas, em que temos vivido, odiando-nos uns aos outros, vemos a Terra convertida em campo de quase intrminas hostilidades. Homens e naes perse-guem o mito do ouro fcil; criaturas sensveis abandonam-se aos distrbios das paixes; crebros vigorosos perdem a viso interi-or, enceguecidos pelos enganos da personalidade e do autorita-rismo. Empenhados em disputas interminveis, em duelos formi-dandos de opinio, conduzidos por desvairadas ambies inferio-

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    res, os filhos da Terra abeiram-se de novo abismo, que o olhar conturbado no lhes deixa perceber. Esse hiante vrtice, meus irmos, o da alienao mental, que no nos desintegra s os patrimnios celulares da vida fsica, seno tambm nos atinge o tecido sutil da alma, invadindo-nos o cerne do corpo perispiritual. Quase todos os quadros da civilizao moderna se acham com-prometidos na estrutura fundamental. Precisamos, pois, mobilizar todas as foras ao nosso alcance, a servio da causa humana, que a nossa prpria causa.

    O trabalho salvacionista no exclusividade da religio: constitui ministrio comum a todos, porque dia vir em que o homem h de reconhecer a Divina Presena em toda a parte. A realizao que nos compete no se filia ao particularismo: obra genrica para a coletividade, esforo do servidor honesto e since-ro, interessado no bem de todos.

    Se visitais a nossa companhia buscando orientao para o trabalho sublime do esprito, no vos esquea vossa luz prpria. No conteis com archotes alheios para a jornada. Em mseros planos de sofrimento regenerador, nas vizinhanas da carne, choram amargamente milhes de homens e de mulheres que abusaram do concurso dos bons, precipitando-se nas trevas ao perder no tmulo os olhos efmeros com que apreciavam a paisa-gem da vida luz do Sol. Displicentes e recalcitrantes, esquiva-ram-se a todas as oportunidades de acender a prpria lmpada. Aborreciam os atritos da luta, elegeram o gozo corporal como objetivo supremo de seus propsitos na Terra; e, quando a morte lhes cerrou as plpebras saciadas, passaram a conhecer uma noite mais longa e mais densa, referta de angstias e de pavores.

    Nesse momento, Eusbio interrompeu-se por mais de um mi-nuto, como a recordar cenas comovedoras que as imagens de seu verbo evocavam, demonstrando certa vaguidade no olhar.

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    Notei a ansiedade com que a assemblia aguardava o retorno de sua palavra. Damas sensibilizadas ressumbravam forte impres-so nas fisionomias transfiguradas e todos ns, ante a exposio leal e comovente, nos mantnhamos quedos e aturdidos.

    Decorridos longos segundos, o orador prosseguiu com infle-xo enrgica e patriarcal:

    Procurais conosco a precisa orientao para os trabalhos que vos tangem presentemente na Crosta da Terra. Seduzidos pela claridade da Esfera Superior, fascinados pelas primeiras noes do amor universal, desejais a graa da cooperao na sementeira do porvir. Reclamais asas para os surtos sublimes, tendes em mira coadjuvar no esforo de elevao.

    Indubitavelmente, a inteno no pode ser mais nobre; , en-tretanto, indispensvel considereis a vossa necessidade de integra-o no dever de cada dia. Impossvel progredir no sculo, sem atender s obrigaes da hora. Torna-se imprescindvel, na atuali-dade, recompor as energias, reajustar as aspiraes e santificar os desejos.

    No basta crer na imortalidade da alma. Inadivel a ilumi-nao de ns mesmos, a fim de que sejamos claridade sublime. No basta, para o arrojado cometimento da redeno, o simples reconhecimento da sobrevivncia da alma e do intercmbio entre os dois mundos. Os levianos e os maus, os ignorantes e os estul-tos, podem corresponder-se igualmente a distncia, de pas a pas. Antes de mais nada importa elevar o corao, romper as muralhas que nos encerram na sombra, esquecer as iluses da posse, dilace-rar os vus espessos da vaidade, abster-se do letal licor do perso-nalismo aviltante, para que os clares do monte refuljam no fundo dos vales, a fim de que o sol eterno de Deus dissipe as transitrias trevas humanas.

    Vanguardeiros da f viva, que o desejais ser doravante no mundo, no obstante os percalos que se nos defrontam, exige-se

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    de vs a cabal demonstrao de estardes certos da espiritualidade divina.

    O Plano Superior no se interessa pela incorporao de de-votos famintos de um paraso beatifico. Admitireis, porventura, vossa permanncia na Crosta Planetria, sem finalidades especfi-cas? Se a erva tenra deve produzir consoante objetivos superiores, que dizer da magnfica inteligncia do homem encarnado? Que no h que esperar da razo iluminada pela f! Receberamos to sagrados depsitos de conhecimento edificante para um sacrifcio por nada? Teramos o aljfar de tais bnos para fortalecer o propsito egostico de alcanar o cu sem escalas preparatrias, sem atividades purificadoras?

    Nossa meta, meus amigos, no se compadece com o exclusi-vismo eglatra. A Porta Divina no se abre a espritos que se no divinizaram pelo trabalho incessante de cooperao com o Pai Altssimo. E o solo do Planeta, a que vos prendeis provisoriamen-te, representa o abenoado crculo de colaborao que o Senhor vos confia. Recolhei o orvalho celeste no escrnio do corao sedento de paz; contemplai as estrelas que nos acenam de longe, como sublimes pices da Divindade; todavia, no olvideis o cam-po de lutas presentes.

    O espiritualismo, nos tempos modernos, no pode restringir Deus entre as paredes de um templo da Terra, porque a nossa misso essencial a de converter toda a Terra no templo augusto de Deus.

    Para a nossa vanguarda de obreiros decididos e valorosos passou a face de experimentao ftil, de investigaes desorde-nadas, de raciocnios perifricos. Vivemos a estruturao de sen-timentos novos, argamassando as colunas do mundo vindouro, com a luz acesa em nosso campo ntimo. Natural que os apren-dizes recm-chegados experimentem, examinem, operem sonda-gens e evoquem teorias brilhantes, em que as hipteses concorram

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    ao lado da exibio personalista: compreensvel e razovel. Toda escola caracteriza-se pelos diversos cursos, que lhe formam os quadros e as disciplinas. No nos dirigimos aqui, porm, aos que ainda sonham na clausura do eu, enredados nos mil obstculos da fantasia que lhes cristaliza as impresses. Falamos a vs outros, que sentis a sede de universalismo, annimos companheiros da humanidade que se esfora por emergir das trevas para a luz. Como aceitardes a estagnao como princpio e a felicidade ex-clusivista como fim?

    Alimentemos a esperana renovadora. No invoqueis Jesus para justificar anseios de repouso indbito. Ele no atingiu as culminncias da Ressurreio sem subir ao Calvrio e as suas lies referem-se f que transporta montanhas.

    No reclamemos, pois, ingresso em mundos felizes, antes de melhorar o nosso prprio mundo. Esquecei o velho erro de que a morte do corpo constitui milagrosa imerso da alma no rio do encantamento. Rendamos culto vida permanente, justia per-feita, e adaptemo-nos Lei que nos apreciar o mrito sempre de conformidade com as nossas prprias obras.

    Nosso ministrio de iluminao e de eternidade. O Governo Universal no nos circunscreveu as atividades

    guarda de altares perecveis. No fomos convocados a velar no crculo particular duma interpretao exclusivista, seno a coope-rar na libertao do esprito encarnado, abrindo horizontes mais claros razo humana, refazendo o edifcio da f redentora que as religies literalistas esqueceram.

    Sopros imensos da onda evolucionista varrem os ambientes da Terra. Todos os dias ruem princpios convencionais, mantidos a titulo de inviolveis durante sculos. A mente humana, perplexa, compelida a transies angustiosas. A subverso de valores, a experincia social e o processo acelerado de seleo pelo sofri-mento coletivo perturbam os tmidos e os invigilantes, que repre-

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    sentam esmagadora maioria em toda parte... Como atender a esses milhes de necessitados espirituais, se no receberdes a responsa-bilidade do socorro fraterno? Como sanar a loucura incipiente, se no vos transformardes em ms que mantenham o equilbrio? Sabemos que a harmonia interior no artigo de oferta e procura nos mercados terrestres, mas aquisio espiritual s acessvel no templo do Esprito.

    Faz-se, pois, mister acendamos o corao em amor fraternal, frente do servio. No bastar, em nossas realizaes, a crena que espera; indispensvel o amor que confia e atende, transfor-ma e eleva, como vaso legtimo da Sabedoria Divina.

    Sejamos instrumentos do bem, acima de expectantes da gra-a. A tarefa demanda coragem e suprema devoo a Deus. Sem que nos convertamos em luz, no crculo em que estivermos, em vo acometeremos a sombra, aos nossos prprios ps. E, no pros-seguimento da ao que nos compete, no nos esqueamos de que a evangelizao das relaes entre as esferas visveis e invisveis dever to natural e to inadivel da tarefa quanto a evangeliza-o das pessoas.

    No busqueis o maravilhoso: a sede do milagre pode viciar-vos e perder-vos.

    Vinculai-vos, pela orao e pelo trabalho construtivo, aos planos superiores e estes vos proporcionaro contacto com os Armazns Divinos, que suprem a cada um de ns segundo a justa necessidade.

    As ordenaes que vos ajoujam na paisagem terrena, por mais speras ou desagradveis, representam a Vontade Suprema.

    No galgueis os obstculos, nem tenteis contorn-los pela fuga deliberada: vencei-os, utilizando a vontade e a perseverana, ensejando crescimento aos vossos prprios valores.

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    Cuidai em no transitar sem a devida prudncia nos cami-nhos da carne, em que, muita vez, imitais a mariposa estouvada. Atendei as exigncias de cada dia, rejubilando-vos por satisfazer as tarefas mnimas.

    No intenteis o vo sem haver aprendido a marcha. Sobretudo, no indagueis de direitos provveis que vos ca-

    beriam no banquete divino, antes de liquidar os compromissos humanos.

    Impossvel o ttulo de anjos, sem serdes, antes, criaturas ponderadas.

    Soberanas e indefectveis leis nos presidem aos destinos. Somos conhecidos e examinados em toda parte.

    As facilidades concedidas aos espritos santificados, que admiramos, so prodigalizadas a ns, por Deus, em todos os lugares. O aproveitamento, porm, obra nossa. As mquinas terrestres podem alar-vos o corpo fsico a considerveis alturas, mas o vo espiritual, com que vos libertareis da animalidade, jamais o desferireis sem asas prprias.

    A consolao e a amizade de benfeitores encarnados e de-sencarnados enriquecer-vos-o de conforto, quais suaves e aben-oadas flores da alma; entretanto, fenecero como as rosas de um dia, se no fertilizardes o corao com a f e o entendimento, com a esperana inquebrantvel e o amor imortal, sublimes adubos que lhes propiciem o desenvolvimento no terreno do vosso esforo sem trguas.

    No cobiceis o repouso das mos e dos ps; antes de abrigar semelhante propsito, procurai a paz interior na suprema tranqi-lidade da conscincia.

    Abandonai a iluso, antes que a iluso vos abandone.

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    Empolgando a chefia da prpria existncia, deixai plantado o bem na esteira de vossos passos.

    Somente os servos que trabalham gravam no tempo os mar-cos da evoluo; s os que se banham no suor da responsabilidade conseguem cunhar novas formas de vida e de ideal renovador. Os demais, chamem-se monarcas ou prncipes, ministros ou legisla-dores, sacerdotes ou generais, entregues ociosidade, classificam-se na ordem dos sugadores da Terra; no chegam a assinalar sua permanncia provisria na Crosta do Planeta; adejam como inse-tos multicores, tornando poeira de que se alaram por alguns minutos.

    Regressando, pois, ao corpo de carne, valei-vos da luz para as edificaes necessrias.

    Participemos do glorioso Esprito do Cristo. Convertamo-nos em claridade redentora. O desequilbrio generalizado e crescente invade os departa-

    mentos da mente humana. Combatem-se, desesperadamente, as naes e as ideologias, os sistemas e os princpios. Estabelecida a trgua nas lutas internacionais, surgem deplorveis guerras civis, armando irmos contra irmos. A indisciplina fomenta greves, a nsia de libertao perturba o domiclio dos povos. Guerreiam-se as esferas de ao entre si; encarnados e desencarnados de ten-dncias inferiores colidem ferozmente, aos milhes. Inmeros lares transformam-se em ambientes de inconformao e desarmo-nia. Duela o homem consigo mesmo no atual processo acelerado de transio.

    Equilibrai-vos, pois, na edificao necessria, convictos de que impossvel confundir a Lei ou trair-lhe os ditames univer-sais!

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    Perorando, Eusbio proferiu bela e sentida prece, invocando as bnos divinas para a assemblia. Sublimes manifestaes de luz fizeram-se, ento, sentir sobre ns.

    Encerrados os trabalhos, os companheiros ainda presos ao crculo carnal comearam a retirar-se em respeitoso silncio.

    Calderaro conduziu-me presena do Instrutor e apresentou-me. O alto dirigente recebeu-me com afabilidade e doura, cumu-lando-me de palavras de incentivo. Precisvamos servir, explicou ele, encarecendo as necessidades de assistncia espiritual amonto-adas em toda a parte, reclamando cooperadores abnegados e fiis.

    Quando Calderaro se referiu aos meus projetos, mostrou-me Eusbio paternal sorriso e, expondo-nos providncias diversas a tomar, recomendou nos pusssemos em contacto com o grupo socorrista a que o Assistente emprestava ativa colaborao.

    Logo aps, ao retirar-se, ladeado pelos assessores que lhe compunham a comitiva, o nobre mentor confortou-me, bondoso:

    S feliz! Dirigindo a Calderaro expressivo olhar, acrescentou: Dado ensejo, conduze-o ao servio de assistncia s caver-

    nas. Tomado de curiosidade, agradeci sensibilizado e dispus-me a

    esperar.

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    3 A Casa Mental

    Retomando a companhia de Calderaro, na manh luminosa, absorvia-me o propsito de enriquecer noes pertinentes s manifestaes da vida prxima esfera fsica.

    Admitido colnia espiritual, que me recebera com extrema-do carinho, conhecia de perto alguns instrutores e fiis operrios do bem.

    Inquestionavelmente, vivamos todos em intenso trabalho, com escassas horas reservadas a excurses de entretenimento; demais, fruamos ambiente de felicidade e alegria a favorecer-nos a marcha evolutiva. Nossos templos constituam, por si ss, aben-oados ncleos de conforto e de revigoramento. Nas associaes culturais e artsticas encontrvamos a continuidade da existncia terrestre, enriquecida, porm, de mltiplos elementos educativos. O campo social regurgitava de oportunidades maravilhosas para a aquisio de inestimveis afeies. Os lares, em que situvamos o servio diuturno, erguiam-se entre jardins encantadores, quais ninhos tpidos e venturosos em frondes perfumadas e tranqilas.

    No nos faltavam determinaes e deveres, ordem e discipli-na; entretanto, a serenidade era nosso clima, e a paz, nossa ddiva de cada dia.

    Arremessara-nos a morte a atmosfera estranha luta fsica. A primeira sensao fora o choque. Empolgara-nos o imprevisto. Continuvamos vivendo, apenas sem a mquina fisiolgica, mas as novas condies de existncia no significavam subtrao da oportunidade de evolver. Os motivos de competio benfica, as possibilidades de crescimento espiritual haviam lucrado infinita-mente. Podamos recorrer aos poderes superiores, entreter rela-es edificantes, tecer esperanas e sonhos de amor, projetar

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    experincias mais elevadas no setor reencarnacionista, aprimo-rando-nos no trabalho e no estudo e dilatando a capacidade de servir.

    Em suma, a passagem pelo sepulcro conduzira-nos a uma vi-da melhor; mas... e os milhes que transpunham o estreito limiar da morte, permanecendo apegados Crosta da Terra?

    Incalculveis multides desse gnero mantinham-se na fase rudimentar do conhecimento; apenas possuam algumas informa-es primrias da vida; exoravam amparo dos Espritos Superio-res, como as tribos primitivas reclamam o concurso dos homens civilizados; precisavam de desenvolver faculdades, como as cri-anas de crescer; no permaneciam chumbadas esfera carnal por maldade, seno que se demoravam, hesitantes, no cho terreno, como os pequeninos descendentes dos homens se conchegam ao seio materno; guardavam da existncia apenas a lembrana do campo sensitivo, reclamando a reencarnao quase imediata quando lhes no era possvel a matrcula em nossos educandrios de servio e aprendizado iniciais. Por outro lado, verdadeiras falanges de criminosos e transviados agitavam-se, no longe de ns, depois de haverem transposto as fronteiras do tmulo; con-sumiam, por vezes, inmeros anos entre a revolta e a desespera-o, personificando hrridos gnios da sombra, como ocorre, nos crculos terrenos, com os delinqentes contumazes, segregados da sociedade sadia; mas sempre terminavam a corrida louca nos desvios escuros do remorso e do sofrimento, penitenciando-se, por fim, de suas perversidades. O arrependimento , porm, cami-nho para a regenerao e nunca passaporte direto para o cu, razo pela qual esses infelizes formavam quadros vivos de pade-cimento e de horror.

    Em vrias experincias, via-os conturbados e aflitos, assu-mindo formas desagradveis ao olhar.

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    Nos casos de obsesso convertiam-se em recprocos algozes, ou, ento, em verdugos frios das vtimas encarnadas; quando errantes ou circunscritos aos vales de punio, aterravam sempre pelos espetculos de dor e de misria sem limites.

    No entanto, era foroso convir, eles, os desventurados, e ns outros, que continuvamos trabalhando em ritmo normal, atraves-sramos portas idnticas. Talvez, em muitos casos, houvssemos abandonado o invlucro material sob o assdio de doenas anlo-gas. Isto considerando e por desejar conhecer a Divina Lei, que no concede parasos de favor nem estabelece infernos eternais, confrangia-me o contemplar as imensas fileiras de infortunados.

    Efetivamente, identificara numerosos deles em cmaras reti-ficadoras, atravs de mltiplas instituies de beneficncia; toda-via, esses, situados na zona de amparo fraterno, apresentavam a seu favor sintomas de melhora quanto ao reconhecimento das prprias falhas ou aos crditos espirituais de que gozavam, merc de certas foras intercessoras.

    Os infelizes, a que aludimos, provinham, porm, de outras o-rigens. Eram os ignorantes, os revoltados, os perturbadores e os impenitentes, de alma impermevel s advertncias edificantes, os enfatuados e os vaidosos dos mais vrios matizes, perseverantes no mal, dissipadores da energia anmica, em atitudes perversas diante da vida.

    Meu contacto com eles, em diversas ocasies, fora simples encontro fortuito, sem maior significao para meu esclarecimen-to.

    Por que motivo se demoravam tanto no hemisfrio obscuro da incompreenso? Adiavam, deliberadamente, a recepo da luz? No lhes doeria a condio de seres condenados, por si mesmos, a longas penas? No experimentariam vergonha pela perda volunt-ria de tempo? Muita vez, surpreendia-me a contempl-los... Os traos fisionmicos de muitos desses desventurados pareciam

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    monstruoso desenho, provocando ironia e piedade. Que lei regeria a estereotipao de suas formas? T-los-ia olvidado a me-natureza, prdiga de bnos em todos os planos, ou recebiam eles esses traos de apresentao pessoal como castigo imposto por superiores desgnios?

    Tais interrogaes que me esfervilhavam no crebro me pu-nham aflito por viver a possibilidade que se me oferecia.

    Aproximei-me de Calderaro, naquela manh, sedento de sa-ber. Expus-lhe minhas indagaes ntimas, relatei-lhe aos ouvidos tolerantes minha expectativa ansiosa, longamente sofreada; pre-tendia conhecer os que se entretinham na maldade, no crime, na inconformao.

    Meu amigo escutou calmo, sorriu benevolamente e comeou por esclarecer:

    Antes de mais nada, Andr, modifiquemos o conceito. Para transformar-nos em legtimos elementos de auxlio aos Espritos sofredores, desencarnados ou no, -nos imprescindvel compre-ender a perversidade como loucura, a revolta como ignorncia e o desespero como enfermidade.

    Ante a minha perplexidade, acrescentou, fraternal: Entendeste? Estas definies, em verdade, no so minhas.

    Aprendemo-las do Cristo, em seu trato divino com a nossa posi-o de inferioridade, na Crosta Terrestre.

    Julguei que o Instrutor se estendesse em longa exposio ver-balista, relativa ao assunto, trazendo referncias preciosas e co-mentando experincias pessoais. Nada disto; Calderaro informou-me simplesmente:

    A cegueira do esprito fruto da espessa ignorncia em ma-nifestaes primrias ou do obnubilamento da razo nos estados de aviltamento do ser. Nosso interesse, no socorro mente dese-quilibrada, analisar este ltimo aspecto da sombra que pesa

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    sobre as almas; assim sendo, faz-se mister saberes alguma coisa da loucura no mbito da civilizao. Para isto, convm estudar-mos, mais detidamente, o crebro do homem encarnado e o do homem desencarnado em posio desarmnica, por situarmos a o rgo de manifestao da atividade espiritual.

    Desejaria continuar ouvindo-o nas explicaes claras e con-vincentes, a lhe flurem dos lbios, mas Calderaro silenciou para afirmar, passados alguns instantes:

    No disponho de muito tempo para discretear de matria es-tranha aos meus servios; todavia, lidaremos juntos, convictos de que, trabalhando nas boas obras, aprenderemos sempre a cincia da elevao.

    Sorriu, fraternal, e rematou: O verbo gasto em servios do bem cimento divino para

    realizaes imorredouras. Conversaremos, pois, servindo aos nossos semelhantes de modo substancial, e nosso lucro ser cres-cente.

    Calei-me, edificado. Da a minutos, acompanhando-o, penetrei vasto hospital, de-

    tendo-nos diante do leito de certo enfermo, que o Assistente deve-ria socorrer. Abatido e plido, mantinha-se ele unido a deplorvel entidade de nosso plano, em mseras condies de inferioridade e de sofrimento. O doente, embora quase imvel, acusava forte tenso de nervos, sem perceber, com os olhos fsicos, a presena do companheiro de sinistro aspecto. Pareciam visceralmente jungidos um ao outro, tal a abundncia de fios tenussimos que mutuamente os entrelaavam, desde o trax cabea, pelo que se me afiguravam dois prisioneiros de uma rede fludica. Pensamen-tos de um deles com certeza viveriam no crebro do outro. Como-es e sentimentos seriam permutados entre ambos com matem-tica preciso. Espiritualmente, estariam, de contnuo, perfeitamen-

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    te identificados entre si. Observava-lhes, admirado, o fluxo de comuns vibraes mentais.

    Dispunha-me a comentar o fenmeno, quando Calderaro, per-cebendo-me a inteno, se adiantou, recomendando:

    Examina o crebro de nosso irmo encarnado. Concentrei-me na contemplao do delicado aparelho, centra-

    lizando toda a minha capacidade visual, de modo a analis-lo interiormente.

    O envoltrio craniano, ante meus poderes visuais intensifica-dos, no apresentava resistncia. Como reparara de outras vezes, ali estava o complicado departamento da produo mental, seme-lhando-se a laboratrio dos mais complexos e menos acessveis. As circunvolues separadas entre si, reunidas em lobos, igual-mente distanciados uns dos outros pelas cissuras, davam-me a idia de um aparelho eltrico, quase indevassado pelos homens. Comparando os dois hemisfrios, recordei as designaes da terminologia clssica e demorei-me longos minutos reparando as especiais disposies dos nervos e as caractersticas da substncia cinzenta.

    A voz do meu orientador quebrou o silncio, exclamando i-nopinadamente:

    Observa a sinalizao. Assombrado, notei, pela primeira vez, que as irradiaes emi-

    tidas pelo crebro continham diferenas essenciais. Cada centro motor assinalava-se com peculiaridades diversas, atravs das foras radiantes. Descobri, surpreso, que toda a provncia cere-bral, pelos sinais luminosos, se dividia em trs regies distintas. Nos lobos frontais, as zonas de associao eram quase brilhantes. Do crtex motor, at a extremidade da medula espinhal, a clarida-de diminua, para tomar-se ainda mais fraca nos gnglios basais.

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    J despendia alguns minutos na contemplao das clulas nervosas, quando o Assistente me aconselhou:

    Examinaste o crebro do companheiro que ainda se prende ao veculo denso; observa, agora, o mesmo rgo no amigo de-sencarnado que o influencia de modo direto.

    A entidade, que no se dava conta de nossa presena, em vir-tude do crculo de vibraes grosseiras em que se mantinha, fixa-va toda a ateno no doente, lembrando a sagacidade de um felino vigiando a presa.

    Observei-lhe estranha ferida na regio torcica e dispunha-me a investigar-lhe a causa, sondando os pulmes, quando Calderaro me corrigiu sem afetao:

    Trataremos da chaga no trabalho de assistncia. Concentra as possibilidades da viso no crebro.

    Decorridos alguns momentos, conclu que, parte a configu-rao das peas e o ritmo vibratrio, tinha sob os olhos dois cre-bros quase idnticos. Diferia o campo mental do desencarnado, revelando alguma superioridade no terreno da substncia, que, no corpo perispiritual, era mais leve e menos obscura. Tive a impres-so de que, se lavssemos, por dentro, o crebro do amigo estira-do no leito, escoimando-o de certos corpsculos mais pesados, seria ele quase igual, em essncia, ao da entidade que eu mantinha sob exame. As divises luminosas, porm, eram em tudo anlo-gas. Mais luz nos lobos frontais, menos luz no crtex motor e quase nenhuma na medula espinhal, onde as irradiaes se faziam difusas e opacas.

    Interrompi o estudo comparativo, depois de acurada perquiri-o, e fixei Calderaro em silenciosa interrogativa.

    O prestimoso mentor argumentou, sorridente: Depois da morte fsica, o que h de mais surpreendente para

    ns o reencontro da vida. Aqui aprendemos que o organismo

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    perispirtico que nos condiciona em matria mais leve e mais plstica, aps o sepulcro, fruto igualmente do processo evoluti-vo. No somos criaes milagrosas, destinadas ao adorno de um paraso de papelo. Somos filhos de Deus e herdeiros dos sculos, conquistando valores, de experincia em experincia, de milnio a milnio. No h favoritismo no Templo Universal do Eterno e todas as foras da Criao aperfeioam-se no Infinito. A crislida de conscincia, que reside no cristal a rolar na corrente do rio, a se acha em processo liberatrio; as rvores que por vezes se a-prumam centenas de anos, a suportar os golpes do inverno e aca-lentadas pelas carcias da primavera, esto conquistando a mem-ria; a fmea do tigre, lambendo os filhinhos recm-natos, aprende rudimentos do amor; o smio, guinchando, organiza a faculdade da palavra. Em verdade, Deus criou o mundo, mas ns nos con-servamos ainda longe da obra completa. Os seres que habitam o Universo ressumbraro suor por muito tempo, a aprimor-lo. Assim tambm a individualidade. Somos criao do Autor Divino e devemos aperfeioar-nos integralmente. O Eterno Pai estabele-ceu como lei universal que seja a perfeio obra de cooperativis-mo entre Ele e ns, os seus filhos.

    O mentor silenciou por instantes, sem que me acudisse nimo suficiente para trazer qualquer comentrio aos seus elevados conceitos.

    Logo aps, indicou-me a medula espinhal e continuou: Creio ociosa qualquer aluso aos trabalhos primordiais do

    nosso longo drama de vida evolutiva. Desde a ameba, na tpida gua do mar, at o homem, vimos lutando, aprendendo e selecio-nando invariavelmente. Para adquirir movimento e msculos, faculdades e raciocnios, experimentamos a vida e por ela fomos experimentados, milhares de anos. As pginas da sabedoria hindu-sta so escritos de ontem e a Boa-Nova de Jesus-Cristo matria

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    de hoje, comparadas aos milnios vividos por ns, na jornada progressiva.

    Depois de fazer com a destra significativo gesto, prosseguiu: No sistema nervoso, temos o crebro inicial, repositrio dos

    movimentos instintivos e sede das atividades subconscientes; figuremo-lo como sendo o poro da individualidade, onde arqui-vamos todas as experincias e registramos os menores fatos da vida. Na regio do crtex motor, zona intermediria entre os lobos frontais e os nervos, temos o crebro desenvolvido, consubstanci-ando as energias motoras de que se serve a nossa mente para as manifestaes imprescindveis no atual momento evolutivo do nosso modo de ser. Nos planos dos lobos frontais, silenciosos ainda para a investigao cientfica do mundo, jazem materiais de ordem sublime, que conquistaremos gradualmente, no esforo de ascenso, representando a parte mais nobre de nosso organismo divino em evoluo.

    Os esclarecimentos singelos e admirveis empolgavam-me. Calderaro era educador da mais elevada estirpe. Ensinava sem cansar, sabia conduzir o aprendiz a conhecimentos profundos sem nenhum sacrifcio da parte do aluno.

    Apreciava-lhe eu a nobreza, quando prosseguiu, findo breve intervalo:

    No podemos dizer que possumos trs crebros simultane-amente. Temos apenas um que, porm, se divide em trs regies distintas. Tomemo-lo como se fora um castelo de trs andares: no primeiro situamos a residncia de nossos impulsos automticos, simbolizando o sumrio vivo dos servios realizados; no segundo localizamos o domiclio das conquistas atuais, onde se erguem e se consolidam as qualidades nobres que estamos edificando; no terceiro, temos a casa das noes superiores, indicando as emi-nncias que nos cumpre atingir. Num deles moram o hbito e o automatismo; no outro residem o esforo e a vontade; e no ltimo

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    demoram o ideal e a meta superior a ser alcanada. Distribumos, deste modo, nos trs andares, o subconsciente, o consciente e o superconsciente. Como vemos, possumos, em ns mesmos, o passado, o presente e o futuro.

    Verificando-se pausa mais longa, dei curso s ponderaes ntimas, segundo antigo vezo de inquirir.

    As preciosas explicaes que ouvira no poderiam ser mais simples, nem mais lgicas. Entretanto, perquiria a mim mesmo: o crebro de um desencarnado seria tambm suscetvel de adoecer? Sabia eu que a substncia cinzenta, no mundo carnal, podia ser acometida pelos tumores, pelo amolecimento, pela hemorragia; mas na esfera nova, a que a morte me conduzira, que fenmenos mrbidos assediariam a mente?

    Calderaro registrou-me as indagaes e esclareceu: No discutiremos aqui as molstias fsicas propriamente di-

    tas. Quem acompanha, como ns, desde muito tempo, o ministrio dos psiquiatras verdadeiramente consagrados ao bem do prximo, conhece, saciedade, que todos os ttulos de gratido humana permanecem inexpressivos ante o apostolado de um Paul Broca, que identificou a enfermidade do centro da palavra, ou de um Wagner Jauregg, que se dedicou cura da paralisia, em persegui-o ao espiroqueta da sfilis, at encontr-lo no recesso da matria cinzenta, perturbando as zonas motoras. Diante de fenmenos como estes, compreensvel a quebra da harmonia cerebral em conseqncia de compulsoriamente se arredarem das aglutinaes celulares do campo fisiolgico os princpios do corpo perispiritu-al; essas aglutinaes ficam, ento, desordenadas em sua estrutura e atividades normais, qual acontece ao violino incapacitado para a execuo perfeita dum trecho meldico, por trazer uma ou duas cordas desafinadas. No devemos, nem podemos ignorar as leis que regem os domnios da forma... Da a impossibilidade de que-rermos psicologia equilibrada sem fisiologia harmoniosa, na

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    esfera da cincia humana: isto caso pacfico. Referir-nos-emos to s s manifestaes espirituais em sua essncia. Indagas se a mente desencarnada pode adoecer... Que pergunta! Cuidas que a maldade deliberada no seja molstia da alma? que o dio no constitua morbo terrvel? Supes, porventura, no haja vermes mentais da tristeza e da inconformao? Embora tenhamos a felicidade de agir num corpo mais sutil e mais leve, graas natureza de nossos pensamentos e aspiraes, j distantes das zonas grosseiras da vida que deixamos, no possumos ainda o crebro dos anjos. Constitui-nos incessante trabalho a conserva-o de nossa forma atual, a caminho de conquistas mais alcando-radas; no podemos descansar nos processos iluminativos; cum-pre-nos purificar sempre, selecionar pendores e joeirar concep-es, de molde a no interromper a marcha. Milhes vivem aqui, na posio em que nos achamos, mas outros milhes permanecem na carne ou em nossas linhas mais baixas de evoluo, sob o guante de atroz demncia. para esses que devemos cogitar da patologia do esprito, socorrendo os mais infelizes e interferindo fraternal e indiretamente na soluo de problemas escabrosos em cujos fios negros se enredam. So duendes em desespero, vtimas de si mesmos, em terrvel colheita de espinhos e desiluses. O corpo perispiritual humano, vaso de nossas manifestaes, , por ora, a nossa mais alta conquista na Terra, no captulo das formas. Para as almas esclarecidas, j iluminadas de redentora luz, repre-senta ele uma ponte para o campo superior da vida eterna, ainda no atingido por ns mesmos; para os espritos vulgares a restri-o indispensvel e justa; para as conscincias culpadas, cadeia intraduzvel, pois, alm do mais, registra os erros cometidos, guardando-os com todas as particularidades vivas dos negros momentos da queda. O gnero de vida de cada um, no invlucro carnal, determina a densidade do organismo perispirtico aps a perda do corpo denso. Ora, o crebro o instrumento que traduz a

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    mente, manancial de nossos pensamentos. Atravs dele, pois, unimo-nos luz ou treva, ao bem ou ao mal.

    Percebendo a ateno com que lhe seguia os preciosos escla-recimentos, Calderaro sorriu significativamente e perguntou:

    Compreendeste? Indicando os dois sofredores, ao nosso lado, prosseguiu: Examinamos aqui dois enfermos: um, na carne; outro, fora

    dela. Ambos trazem o crebro intoxicado, sintonizando-se absolu-tamente um com o outro. Espiritualmente, rolaram do terceiro andar, onde situamos as concepes superiores, e, entregando-se ao relaxamento da vontade, deixaram de acolher-se no segundo andar, sede do esforo prprio, perdendo valiosa oportunidade de reerguer-se; caram, destarte, na esfera dos impulsos instintivos, onde se arquivam todas as experincias da animalidade anterior. Ambos detestam a vida, odeiam-se reciprocamente, desesperam-se, asilam idias de tormento, de aflio, de vingana. Em suma, esto loucos, embora o mundo lhes no vislumbre o supremo desequilbrio, que se verifica no ntimo da organizao perispiri-tual.

    Dispunha-me a desfiar longa lista de perguntas alusivas s duas personagens em foco, mas o interlocutor iniciou o servio de assistncia direta e, impondo a destra no lobo frontal esquerdo do doente encarnado, falou-me, afvel:

    Cala, meu amigo, tuas ansiosas indagaes. Acalma-te. No transcurso de nossos trabalhos explicar-te-ei quanto estiver ao alcance de meus conhecimentos.

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    4 Estudando o crebro

    Com a mo fraterna espalmada sobre a fronte do enfermo, como a transmitir-lhe vigorosos fluidos de vida renovadora, Cal-deraro esclareceu-me, bondoso:

    H vinte anos, aproximadamente, este amigo ps fim ao corpo fsico do seu atual verdugo, num doloroso capitulo de san-gue. Iniciei o servio de assistncia a ele, s h trs dias; no en-tanto, j me inteirei da sua comovente histria.

    Dirigiu compassivo olhar ao algoz desencarnado e prosse-guiu:

    Trabalhavam juntos, numa grande cidade, entregues ao co-mrcio de quinquilharias. O homicida desempenhava funes de empregado da vtima, desde a infncia, e, atingida a maioridade, exigiu do chefe, que passara a tutor, o pagamento de vrios anos de servio. Negou-se o patro, terminantemente, a satisfaz-lo, alegando as fadigas que vivera para assisti-lo na infncia e na juventude. Propiciar-lhe-ia vantajosa posio no campo dos neg-cios, conceder-lhe-ia interesses substanciais, mas no lhe pagaria vintm relativamente ao passado. At ali, guardara-o conta de um filho, que lhe reclamava continua assistncia. Estalou a con-tenda. Palavras rudes, trocadas entre vibraes de clera, inflama-ram o crebro do rapaz, que, no auge da ira, o assassinou, domi-nado por selvagem fria. Antes, porm, de fugir do local, o crimi-noso correu ao cofre, em que se amontoavam fartos pacotes de papel-moeda, retirou a importncia vultosa a que se supunha com direito, deixando intacta regular fortuna que despistaria a polcia no dia imediato. Efetivamente, na manh seguinte ele prprio veio casa comercial, onde a vtima pernoitava enquanto a pequena famlia fazia longa estao no campo, e, fingindo preocupao

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    ante as portas cerradas, convidou um guarda a segui-lo, a fim de violarem ambos uma das fechaduras. Em poucos momentos, espalhava-se a notcia do crime; no entanto, a justia humana, emalhada nas habilidades do delinqente, no conseguiu esclare-cer o problema na origem. O assassino foi prdigo nos cuidados de salvaguardar os interesses do morto. Mandou selar cofres e livros. Providenciou arrolamentos laboriosos. Requisitou amparo das autoridades legais para minucioso exame da situao. Foi verdadeiro advogado da viva e dos dois filhinhos do tutor faleci-do, os quais, merc de seu devotamento, receberam substanciosa herana. Pranteou a ocorrncia, como se o desencarnado lhe fosse pai. Terminada a questo, com a inanidade do aparelho judicirio diante do enigma, retirou-se, discreto, para grande centro industri-al, onde aplicou os recursos econmicos em atividades lucrativas.

    O mentor estampou diferente brilho no olhar, fez pequena pausa e acrescentou:

    Conseguiu ludibriar os homens, mas no pde iludir a si mesmo. A entidade desencarnada, concentrando a mente na idia de vingana, passou, perseverante, a segui-lo. Aferrou-se-lhe organizao psquica, maneira de hera sobre muro viscoso. Tudo fez o homicida para atenuar-lhe o assdio constante. Desdobrou-se nos empreendimentos materiais, ansiando esquecimento de si mesmo e pondo em prtica iniciativas que lhe fizeram afluir ao cofre enormes quantias, valorizando-lhe os ttulos bancrios. Observando, entretanto, que os altos patrimnios econmicos no lhe arrefeciam a intranqilidade e o sofrimento inconfessveis, deu-se pressa em casar, aflito por sossegar o prprio ntimo. Des-posou uma jovem de alma extremamente elevada zona superior da vida humana, a qual lhe deu cinco filhinhos encantadores. No clima espiritual da mulher escolhida, conseguiu, de certo modo, equilibrar-se, conquanto a vtima nunca o largasse. Ocasies houve em que se engolfava nas mais cruis depresses nervosas,

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    assaltado por estranhos pesadelos aos olhos dos familiares; mas sempre resistia, amparado, at certo ponto, pelas afeies de que a esposa, desde muito, dispe em nossos planos. Se as leis huma-nas, todavia, correspondem falibilidade dos homens encarnados, as leis divinas jamais falecem. Conservando as foras tenebrosas acumuladas em seu destino, desde a noite do assassnio, nosso desventurado amigo manteve enclausuradas, no poro da persona-lidade, todas as impresses destruidoras recolhidas no instante da queda. Repugnava-lhe uma confisso pblica do crime, a qual, de certo modo, lhe mitigaria a angstia, libertando energias nefastas, que arquivara.

    A essa altura da narrativa, Calderaro interrompeu-se. Tocou a zona do crtex e prosseguiu: A mente criminosa, assediada pela presena invarivel da

    vtima, a perturbar-lhe a memria. passou a fixar-se na regio intermediria do crebro, porque a dor do remorso no lhe permi-tia fcil acesso esfera superior do organismo perispirtico, onde os princpios mais nobres do ser erguem o santurio de manifesta-es da Conscincia Divina. Aterrorizado pelas recordaes, transia-o irreprimvel pavor em face dos juzos conscienciais. Por outra parte, cada vez mais interessado em assegurar a felicidade da famlia, seu nico osis no deserto escaldante das escabrosas reminiscncias, o infeliz, ento respeitado por fora da posio social que o dinheiro lhe conferia, embrenhou-se em atividade febril e ininterrupta. Vivendo mentalmente na regio intermedi-ria do crebro, em carter quase exclusivo, s sentia alguma cal-ma agindo e trabalhando, de qualquer maneira, mesmo desorde-nadamente. Intentava a fuga atravs de todos os meios ao seu alcance. Deitava-se, extenuado pela fadiga do corpo, levantando-se, no dia seguinte, abatido e cansado de inutilmente duelar com o perseguidor invisvel, nas horas de sono. Em conseqncia, pro-

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    vocou o desequilbrio da organizao perispiritual, o que se refle-tiu na zona motora, implantando o caos orgnico.

    Fez caracterstico movimento com o indicador e acentuou: Repara os centros corticais. Contemplei, admirado, aquele maravilhoso mundo microsc-

    pico. As clulas piramidais, distinguindo-se pelo tamanho, diziam da importncia das funes que lhes impendiam no laboratrio das energias nervosas. Observando atentamente o quadro, no me parecia que estivesse a examinar o tecido vivo da substncia branco-cinzenta: tive a impresso de que o crtex fosse um robus-to dnamo em funcionamento. No estaramos diante de algum aparelho eltrico de complicada estrutura? Mau grado essas im-presses, reparei que a matria cerebral ameaava amolecimento.

    Continuava perplexo, sem saber como formular os coment-rios cabveis, quando o Assistente me veio em socorro, esclare-cendo:

    Estamos diante do rgo perispiritual do ser humano, adeso duplicata fsica, da mesma forma que algumas partes do corpo carnal tm estreito contacto com o indumento. Todo o campo nervoso da criatura constitui a representao das potncias peris-pirticas, vagarosamente conquistadas pelo ser, atravs de mil-nios e milnios. Em renascendo entre as formas perecveis, nosso corpo sutil, que se caracteriza, em nossa esfera menos densa, por extrema leveza e extraordinria plasticidade, submete-se, no plano da Crosta, s leis de recapitulao, hereditariedade e desenvolvi-mento fisiolgico, em conformidade com o mrito ou demrito que trazemos e com a misso ou o aprendizado necessrios. O crebro real aparelho dos mais complexos, em que o nosso eu reflete a vida. Atravs dele, sentimos os fenmenos exteriores segundo a nossa capacidade receptiva, que determinada pela experincia; por isto, varia ele de criatura a criatura, em virtude da multiplicidade das posies na escala evolutiva. Nem os smios ou

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    os antropides, a caminho da ligao com o gnero humano, apresentam crebros absolutamente iguais entre si. Cada individu-alidade revela-o consoante o progresso efetivo realizado. O selva-gem apresenta um crebro perispiritual com vibraes muito diversas das do rgo do pensamento no homem civilizado. Sob este ponto de vista, o encfalo de um santo emite ondas que se distinguem das que despede a fonte mental de um cientista. A escola acadmica, na Crosta Planetria, prende-se conceituao da forma tangvel, em trnsito para as transformaes da enfermi-dade, da velhice ou da morte. Aqui, porm, examinamos o orga-nismo que modela as manifestaes do campo fsico, e reconhe-cemos que todo o aparelhamento nervoso de ordem sublime. A clula nervosa entidade de natureza eltrica, que diariamente se nutre de combustvel adequado. H neurnios sensitivos, motores, intermedirios e reflexos. Existem os que recebem as sensaes exteriores e os que recolhem as impresses da conscincia. Em todo o cosmo celular agitam-se interruptores e condutores, ele-mentos de emisso e de recepo. A mente a orientadora desse universo microscpico, em que bilhes de corpsculos e energias multiformes se consagram a seu servio. Dela emanam as corren-tes da vontade, determinando vasta rede de estmulos, reagindo ante as exigncias da paisagem externa, ou atendendo s suges-tes das zonas interiores. Colocada entre o objetivo e o subjetivo, obrigada pela Divina Lei a aprender, verificar, escolher, repelir, aceitar, recolher, guardar, enriquecer-se, iluminar-se, progredir sempre. Do plano objetivo, recebe-lhe os atritos e as influncias da luta direta; da esfera subjetiva, absorve-lhe a inspirao, mais ou menos intensa, das inteligncias desencarnadas ou encarnadas que lhe so afins, e os resultados das criaes mentais que lhe so peculiares. Ainda que permanea aparentemente estacionria, a mente prossegue seu caminho, sem recuos, sob a indefectvel atuao das foras visveis ou das invisveis.

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    Verificando-se pausa natural nas elucidaes, ocorreram-me inmeras e ininterruptas associaes de idias.

    Como interpretar todas as revelaes de Calderaro? As clu-las do acervo fisiolgico no se revestiam de caractersticos pr-prios? No eram personalidades infinitesimais, aglomeradas sob disciplina nos departamentos orgnicos, mas quase livres em suas manifestaes? Seriam, acaso, duplicatas de clulas espirituais? Como conciliar tal teoria com a liberao dos micro-organismos, em seguida morte do corpo? E, se assim fora, no devera a memria do homem encarnado eximir-se do transitrio esqueci-mento do passado?

    O instrutor percebeu minhas perquiries inarticuladas, por-que prosseguiu, sereno, como a responder-me:

    Conheo-te as objees e tambm as formulei noutro tem-po, quando a novidade me feria a observao. Posso, contudo, dizer-te hoje que, se existe a qumica fisiolgica, temos tambm a qumica espiritual, como possumos a orgnica e a inorgnica, existindo extrema dificuldade em definir-lhes os pontos de ao independente. Quase impossvel determinar-lhes a fronteira divisria, porquanto o esprito mais sbio no se animaria a loca-lizar, com afirmaes dogmticas, o ponto onde termina a matria e comea o esprito. No corpo fsico, diferenam-se as clulas de maneira surpreendente. Apresentam determinada personalidade no fgado, outra nos rins e ainda outra no sangue. Modificam-se infinitamente, surgem e desaparecem, aos milhares, em todos os domnios da qumica orgnica, propriamente dita. No crebro, porm, inicia-se o imprio da qumica espiritual. Os elementos celulares, a, so dificilmente substituveis. A paisagem delicada e superior sempre a mesma, porque o trabalho da alma requer fixao, aproveitamento e continuidade. O estmago pode ser um alambique, em que o mundo infinitsimo se revele, em tumultu-ria animalidade, aproximando-se dos quadros inferiores da vida,

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    porquanto o estmago no necessita recordar, compulsoriamente, que substncia alimentcia lhe foi dada a elaborar na vspera. O rgo de expresso mental, contudo, reclama personalidades qumicas de tipo sublimado, por alimentar-se de experincias que devem ser registradas, arquivadas e lembradas sempre que opor-tuno ou necessrio. Intervm, ento, a qumica superior, dotando o crebro de material insubstituvel em muitos departamentos de seu laboratrio ntimo.

    Interrompeu-se o Assistente por alguns segundos, como a dar-me tempo para refletir.

    Em seguida, continuou, atencioso: Na verdade, no h nisso mistrio algum. Voltemos aos as-

    cendentes em evoluo. O princpio espiritual acolheu-se no seio tpido das guas, atravs dos organismos celulares, que se manti-nham e se multiplicavam por cissiparidade. Em milhares de anos, fez longa viagem na esponja, passando a dominar clulas autno-mas, impondo-lhes o esprito de obedincia e de coletividade, na organizao primordial dos msculos. Experimentou longo tem-po, antes de ensaiar os alicerces do aparelho nervoso, na medusa, no verme, no batrquio, arrastando-se para emergir do fundo escuro e lodoso das guas, de modo a encetar as experincias primeiras, ao sol meridiano. Quantos sculos consumiu, revestin-do formas monstruosas, aprimorando-se, aqui e ali, ajudado pela interferncia indireta das inteligncias superiores? Impossvel responder, por enquanto. Sugou o seio farto da Terra, evolucio-nando sem parar, atravs de milnios, at conquistar a regio mais alta, onde conseguiu elaborar o prprio alimento.

    Calderaro fixou em mim significativo olhar e perguntou: Compreendeste suficientemente?

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    Ante o assombro das idias novas que me fustigavam a ima-ginao, impedindo-me o minucioso exame do assunto, o esclare-cido companheiro sorriu e continuou:

    Por mais esforos que envidemos por simplificar a exposi-o deste delicado tema, o retrospecto que a respeito fazemos sempre causa perplexidade. Quero dizer, Andr, que o princpio espiritual, desde o obscuro momento da criao, caminha sem detena para frente. Afastou-se do leito ocenico, atingiu a super-fcie das guas protetoras, moveu-se em direo lama das mar-gens, debateu-se no charco, chegou terra firme, experimentou na floresta copioso material de formas representativas, ergueu-se do solo, contemplou os cus e, depois de longos milnios, durante os quais aprendeu a procriar, alimentar-se, escolher, lembrar e sentir, conquistou a inteligncia... Viajou do simples impulso para a irritabilidade, da irritabilidade para a sensao, da sensao para o instinto, do instinto para a razo. Nessa penosa romagem, inme-ros milnios decorreram sobre ns. Estamos, em todas as pocas, abandonando esferas inferiores, a fim de escalar as superiores. O crebro o rgo sagrado de manifestao da mente, em trnsito da animalidade primitiva para a espiritualidade humana.

    O orientador, interrompendo-se, acariciou-me de leve, como companheiro experimentado no estudo estimulando aprendiz humilde, e acrescentou:

    Em sntese, o homem das ltimas dezenas de sculos repre-senta a humanidade vitoriosa, emergindo da bestialidade primria. Desta condio participamos ns, os desencarnados, em nmero de muitos milhes de espritos ainda pesados, por no havermos, at o momento, alijado todo o contedo de qualidades inferiores de nossa organizao perispiritual; tal circunstncia nos compele a viver, aps a morte fsica, em formaes afins, em sociedades realmente avanadas, mas semelhantes aos agrupamentos terres-tres. Oscilamos entre a liberao e a reencarnao, aperfeioando-

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    nos, burilando-nos, progredindo, at conseguir, pelo refinamento prprio, o acesso a expresses sublimes da Vida Superior, que ainda no nos dado compreender. Nos dois lados da existncia, em que nos movimentamos e dentro dos quais se encontram o nascimento e a morte do corpo denso, como portas de comunica-o, o trabalho construtivo a nossa bno, aparelhando-nos para o futuro divino. A atividade, na esfera que ora ocupamos, , para quantos se conservam quites com a Lei, mais rica de beleza e de felicidade, pois a matria mais rarefeita e mais obediente s nossas solicitaes de ndole superior. Atravessado, contudo, o rio do renascimento, somos surpreendidos pelo duro trabalho de recapitulao para a necessria aprendizagem. Por l semearemos, para colher aqui, aprimorando, reajustando e embelezando, at atingir a messe perfeita, o celeiro farto de gros sublimes, de modo a nos transferirmos, aptos e vitoriosos, para outras terras do cu. No devemos acreditar, porm, quanto aos servios de resga-te e de expiao, que a esfera carnal seja a nica capaz de oferecer o bendito ensejo de sofrimento spero, redentor. Em regies som-brias, fora dela, quais no podes ignorar, h oportunidade de tratamento expiatrio para os devedores mais infelizes, que volun-tariamente contraram perigosos dbitos para com a Lei.

    Verificou-se breve pausa, que no interrompi, considerando a inconvenincia de qualquer indagao de minha parte.

    Calderaro, todavia, continuou, solcito: Perguntas por que motivo no conserva o homem encarnado

    a plenitude das recordaes do longussimo pretrito; isto natu-ral, em virtude da to grande ascendncia do corpo perispiritual sobre o mecanismo fisiolgico. Se a forma fsica evoluiu e se aperfeioou, o mesmo ter acontecido ao organismo perispirtico, atravs das idades. Ns mesmos, em nossa relativa condio de espiritualidade, ainda no possumos o processo de reminiscncia integral dos caminhos perlustrados. No estamos, por enquanto,

  • Francisco Cndido Xavier - No Mundo Maior - pelo Esprito Andr Luiz

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    munidos de suficiente luz para descer com proveito a todos os ngulos do abismo das o