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No Natal a gente vem te buscar Texto de Naum Alves de Sousa 1979

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No Natal

a gente vem

te buscar Texto de Naum Alves de Sousa

1979

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PERSONAGENS

1. A SOLTEIRONA

2. O PRIMO

2. O ÚLTIMO HOMEM NA VIAGEM

3. O IRMÃO

3. O PAI

3. O PRIMEIRO HOMEM NA VIAGEM

4. A IRMÃ

4. A MÃE

4. A MULHER ESPÍRITA

4. A TIA

________________________________________________________

PRIMEIRO ATO

1 – A VIAGEM

Música de Natal. Sons de trem. Escurece. Clareia. A Solteirona está

sozinha, com malas. Chega um homem. Ela o observa.

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SOLTEIRONA – Desculpe a curiosidade, mas o senhor está indo para

onde?

HOMEM – Para perto daqui. Desço logo. A minha viagem é curta.

SOLTEIRONA – A minha, não. Ainda tenho muito que viajar. Depois

deste trem, em que eu vou até o fim da linha, ainda

tem mais duas baldeações.

HOMEM – A senhora não vai ficar cansada?

SOLTEIRONA – Eu gosto de viajar. A gente se distrai... Proseia com

um, proseia com outro, o tempo passa. Depois, o

lugar para onde eu estou indo é muito bom. Tem

muito parente, muito primo, sabe? (O homem

cochila. Ela o observa, curiosa, cismada. Acorda-

o). O senhor não viaja sempre nesta linha?

HOMEM – Não muito.

SOLTEIRONA – Mas de ônibus o senhor viaja... Parece que eu conheço

o senhor de vista. É que eu sempre ia na rodoviária

ver os ônibus passarem... (O home cochila de novo.

Entra no trem uma mulher e se senta atrás da

solteirona, que a cumprimenta e pega um pacote

de biscoitos. Come e acorda o homem para

oferecer). O senhor está servido?

HOMEM – O que? Não, obrigado.

SOLTEIRONA – Prova: é bom. Está fresquinho.

HOMEM – Não, obrigado.

SOLTEIRONA – O senhor está com nojo?

HOMEM – Não... E que... (Constrangido, pega um pedaço).

SOLTEIRONA – Mas parece que eu já vi o senhor...

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HOMEM – Pode ser. Eu nunca viajo, quase nunca. Não gosto de sair de

casa. Só saí mesmo porque precisei.

SOLTEIRONA – Coisa urgente?

HOMEM – Problemas...

SOLTEIRONA – Deus ajude o senhor a resolver tudo. Com gente

conhecida?

HOMEM – Parentes...

SOLTEIRONA – O senhor é de que família?

HOMEM – Talvez a senhora não conheça. Eu não gosto de falar muito

nesse assunto!

SOLTEIRONA – Sabe o que é? É que, dependendo da família, como eu

morei muito tempo nesta zona, podia ser que eu

conhecesse... (O homem, irritado, muda-se para a

cadeira de trás, ao lado da mulher. Ela espirra).

Saúde.

MULHER – Obrigada.

SOLTEIRONA – A senhora espirra igualzinha uma conhecida. Eu não

conheço a senhora de algum lugar?

MULHER – Não que eu me lembre.

SOLTEIRONA – Estou tentando me lembrar. Tenho quase certeza. Eu

nunca me esqueço da fisionomia de uma pessoa. Vejo

uma vez e já guardo.

MULHER – Eu não sou boa fisionomista. Nem tenho boa memória.

SOLTEIRONA – Minha mãe também não tinha. Ela era tão esquecida!

Esquecida? Mas ela tinha pressentimentos. Sonhava

com uma pessoa e acontecia o que ela sonhava.

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MULHER – É espírita a senhora sua mãe?

SOLTEIRONA – Deus que me perdoe! Ela nem podia ouvir falar em

espírita!

MULHER – Que é que espírita tem de pior que os outros?

SOLTEIRONA – Ela acabou de falecer, coitada.

MULHER – Para nós, espiritualistas, a morte tem outro significado.

SOLTEIRONA – Como é isso?

MULHER – A morte física é apenas um estado. O espírito não morre,

continua se aperfeiçoando.

SOLTEIRONA – É verdade que as pessoas mortas podem aparecer?

MULHER – Existem muitos casos. Não é coisa pra se ter medo.

SOLTEIRONA – Mas eu tenho muito medo. A senhora me desculpe.

MULHER – Eu não tenho. Acho muito bonito. Já conversei muitas vezes

com pessoas mortas. Tenho mais medo é dos vivos

que estão soltos por aí fazendo maldades.

SOLTEIRONA – E a minha mãe? Ela também pode aparecer, falar,

mesmo depois de morta?

MULHER – Claro que pode. Eu sou médium, posso tentar receber. Você

gostaria de conversar com ela?

SOLTEIRONA – Deus que me livre e guarde.

MULHER – Tem medo da própria mãe? Que filha! Sábio é Deus que lhe

deu o descanso em boa hora! Tem medo da própria

mãe!

SOLTEIRONA – Deus que perdoe, mas eu tenho muito medo. Ela

também tinha. Estou com ânsia. Eu sou fraca do

estômago. (Ruídos. Escurece. Clareia. Ruídos de

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trem passando). Estou com uma vontade de ir ao

banheiro... Mas, se eu vou aparece algum ladrão e

rouba as minhas coisas? Ué, não parou. Passou tão

depressa que nem deu pra ver quem estava na

janelinha. Às vezes podia ter alguma conhecida e

pensar que eu estou fazendo pouco caso. Eu não sou

disso. (Escuro. Ruídos de trem em marcha. Clareia.

O homem ao lado lê um livro. Ela pega seu álbum

de fotografias. Tanto insiste que acaba por

chamar-lhe a atenção).

HOMEM – É o seu álbum?

SOLTEIRONA – É. Da família. O meu pai, a minha mãe... Esta aqui é a

minha irmã casada. O meu irmão mais velho... Ele

mora numa cidade linda no estrangeiro! Sempre

manda cartão.

HOMEM – E esta! É você?

SOLTEIRONA – Não olha que eu estou muito feia! Eu sempre saio de

olho fechado ou piscando. É que me assusto com o

flash do retratista.

HOMEM – E este aqui é o irmão mais moço?

SOLTEIRONA – Esse já morreu. Era o mais novo, mas não era bem

irmão. Já era casado, tinha duas filhinhas.

HOMEM – Era irmão de criação?

SOLTEIRONA – Era e não era. Na verdade, ele era nosso primo, mas

meus pais não gostavam de fazer diferença. Quando

ele teve que ficar morando com a gente, teve trato de

irmão. A gente tratava ele de irmão e meus pais

chamavam ele de filho, igual à gente.

HOMEM – Bonito isso...

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SOLTEIRONA – Está vendo esse retrato? Foi o último que ele tirou com

a gente. Eu olho esse retrato e vejo nos olhos dele

que sabia que ia morrer.

HOMEM – Não tinha cara de doente. Parece forte aqui na fotografia.

SOLTEIRONA – O senhor não conta pra ninguém? Esse assunto a

família pediu para não comentar...

HOMEM – Não se preocupe. Se não quiser tocar no assunto... Mas se

quiser, também...

SOLTEIRONA – Olhe: eu não sei como foi, o que ele fez, que voltou

como voltou. Um dia, eu até estava lá... Foram uns

homens na casa dele, reviraram tudo, levaram umas

coisas e, no dia seguinte, ele foi chamado para depor.

Eu só sei que trouxeram ele de volta morto. Falaram

que foi ataque do coração... Nem deixaram abrir o

caixão. O enterro foi uma correria. Era tão forte,

coitado, nunca teve nada...

HOMEM – E ficou por isso? Não contrataram um advogado para saber o

que aconteceu?

SOLTEIRONA – O meu pai já estava no hospital e morreu na mesma

época, graças a Deus sem saber de nada, coitado.

Mulher não sabe lidar com essas coisas... E uma

vizinha falou que, se a gente fosse dar queixa, era

perigoso fazerem o mesmo com a gente... Nós

fizemos tanta oração por ele: coitado...

HOMEM – E a senhora dele? As crianças?

SOLTEIRONA – A família dela deu um jeito e foram embora. Ela ficou

de escrever, dando o endereço, mas nunca mais

soubemos nem dela nem das meninas. Vai ver até

que já se casou de novo! Ela tinha cara de quem ia

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fazer isso! Olha aqui o retratinho delas. Às vezes eu

fico pensando se nunca mais vou ver as duas. Me

corta o coração de saudade! Já devem ter crescido.

Acho que nem se lembram mais de mim... Criança é

bicho ingrato: cresce e esquece! Que soneira! Ainda

falta tanto pra chegar!

HOMEM – Dorme um pouco.

SOLTEIRONA – Já estou quadrada de tanto ficar sentada! (Ruídos de

trem. Escurece. Sons de estação. Clareia).

II – Numa Estação

SOLTEIRONA – Não tem ninguém me esperando. É cedo demais. O

pessoal na casa da minha prima acorda tarde. O jeito

é esperar, não custa. Quem já viajou tantas horas não

custa esperar mais algumas. (A Solteirona passeia

pela plataforma. Uma mulher velha se aproxima.

Ela protege suas malas. As duas se olham várias

vezes). A senhora não é minha tia?

TIA – Não me conhece mais?

SOLTEIRONA – Eu não sabia que a senhora estava aqui! Como a

senhora está forte! Nossa: quanto tempo!

TIA – A última vez que eu te vi foi no casamento da tua irmã.

SOLTEIRONA – Faz bastante tempo. E a prima, as crianças? Não

puderam vir? Estou louca para ver todo mundo. A

senhora também está morando na casa dela? Não

vejo a hora de chegar, tomar um banho, trocar esta

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roupa que já está fedida de tanto uso. Vai precisar

ficar de molho uma semana.

TIA – Não vá levar sua prima a mal, mas não é para a casa dela que

nós vamos agora.

SOLTEIRONA – Não?

TIA – Ela disse que lá não tem espaço, que é muito apertado, você sabe

como é a sua prima...

SOLTEIRONA – Eu não ligo de ficar apertada, dormir junto, dormir na

sala...

TIA – Você não liga, mas ela liga. É muito enjoada. Mas, no fundo, até

que é boa; coitada. Eu não posso reclamar porque ela

tem me ajudado muito.

III – A Caminho

SOLTEIRONA – Para onde é que nós vamos?

TIA – Eu não vou falar. Você vê quando chegarmos lá.

SOLTEIRONA – É perto da casa da prima?

TIA – Não, não é perto.

SOLTEIRONA – Por que isso?

TIA – Eu penso que é o marido dela quem decide as coisas. Acho que

não gosta de parentes. Ele não é flor que se cheire.

SOLTEIRONA – Dele eu não posso falar porque vão dizer que é dor de

cotovelo... Mas a senhora soube, não?

TIA – Você foi noiva dele...

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SOLTEIRONA – Quase casamos. Já estava tudo pronto, enxoval

bordado, tudo com as nossas iniciais...

TIA – E o que é que aconteceu que não deu certo?

SOLTEIRONA – Sei lá eu! Mandou uma carta com a aliança dentro!

Pode? Dava umas desculpas esfarrapadas, que não

podia casar por causa de religião, que a mãe dele não

queria - um monte de mentiras! Eu fiquei doida, fiquei

doente! Não queria comer, só queria morrer! De

vergonha, de raiva! Não posso olhar na cara dele que

me dá nojo!

TIA – Mas agora pode ser que vocês se encontrem!...

SOLTEIRONA – Eu viro a cara. A minha prima não tem culpa de ter se

casado com ele; coitada. Deve comer o pão que o

diabo amassou. Bem fiz eu que fiquei solteira. É bom

o lugar onde a gente vai ficar hospedada?

TIA – É bom e não é. No começo eu fiquei chocada, mas depois me

acostumei. De qualquer maneira, eles disseram que é

provisório. Depois vão nos arranjar coisa melhor...

Que remédio? (Escurece. Música. Clareia).

IV – Na Casa de Repouso

A Solteirona olha à sua volta, não querendo acreditar. Ouvem-se

ruídos de chinelos se arrastando, de velhos tossindo.

SOLTEIRONA – Não tinha lugar na casa dela, mesmo?

TIA – Foi como eu falei minha filha...

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SOLTEIRONA – Não sei como tiveram coragem.

TIA – No começo eu também não me conformava. Depois...

SOLTEIRONA – Eu não posso acreditar. Parece que eu estou

sonhando. Isso é coisa de pesadelo.

TIA – Só que desse você não acorda. Eu, pelo menos, não acordei

ainda.

SOLTEIRONA – Maldita hora em que eu saí da nossa cidade!

TIA – Você tinha como ficar lá? A casa era de vocês?

SOLTEIRONA – Não!... Foi nossa. Mas o meu pai vendeu para pagar

umas dívidas e a gente morava lá ainda, de graça. O

senhor que ficou com a casa, pelo menos enquanto a

mamãe era viva, nunca falou para a gente se mudar

dela. Ainda era como se fosse nossa.

TIA – Por que não ficou lá, não arranjou um emprego?

SOLTEIRONA – Eu até cheguei a falar nisso, mas todo mundo achou

que era mais seguro, para mim, aceitar a ajuda dos

parentes, até as coisas melhorarem... Eu falei que

ficaria morando num quartinho, que ajudaria nas

coisas da casa, fazendo coisas para fora...

TIA – Mas todo mundo ajudou você a ir embora, não foi?

SOLTEIRONA – Como é que a senhora sabe?

TIA – Nada... Esquece o que eu falei. Não fique triste. A gente ajuda os

outros e uma faz companhia à outra. Assim o tempo

passa.

SOLTEIRONA – Passa, passa..., até quando?

TIA – Vai passando... Eu estou esperando... (Toca um sino). Vem

almoçar: está na hora. (Escurece. Ruídos de

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máquina de costura. Clareia. A Tia faz tricô. A

Solteirona vem cantando um hino protestante,

com um monte de roupinhas de criança). É boa a

máquina?

SOLTEIRONA – Dá para o gasto. Fiz uma porção de roupinhas para

levar ao orfanato domingo. Uma vez, a minha mãe

deu para os órfãos uma peça de flanela... Cinza...

Ficou tão bonito! Todos iguaizinhos!

TIA – Se a máquina fosse melhor, até eu poderia fazer alguma coisa.

Mas essa aí é muito pesada e as minhas varizes...

SOLTEIRONA – Mas a senhora não leu a carta que o meu irmão

mandou?

TIA – Eu sei: você já leu pra mim várias vezes.

SOLTEIRONA – Eu não falei para a senhora? Ele não é como os tios,

os primos, teus filhos, teus netos... Ele respondeu a

minha carta, mandou aquele cartão bacana para a

senhora. A senhora não leu? Ele vem, mas antes de

vir vai mandar comprar uma máquina de costura para

nós. E nós vamos morar juntas. Ele sempre foi muito

bom comigo. Não tenho queixa.

TIA – Me faz um favor, hein? Me faz um favor?

SOLTEIRONA – Pois não, tia.

TIA – Não fale mal dos meus parentes, pelo menos na minha frente?

SOLTEIRONA – Ai, tia, desculpe... É que...

TIA – Deles, eu é que tenho o direito de falar. Se você quer falar de

alguém, fale de gente do seu lado!

SOLTEIRONA – Eu estava só defendendo a senhora!

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TIA – Não sou nenhuma aleijada! Não preciso de ajuda!

SOLTEIRONA – Eu não estou falando que a senhora é aleijada!

TIA – É a mesma coisa que tivesse falado.

SOLTEIRONA – Mas eu não falei!

TIA – Dá na mesma!

SOLTEIRONA – A senhora quer saber de uma coisa?

TIA – Não faço a menor questão! (Rasga o postal que o irmão

mandou).

SOLTEIRONA – O cartão de meu irmão! (Cata os pedaços). Eu vou

escrever e vou contar o que a senhora fez! Ninguém

escreve mesmo para a senhora... Agora é que nunca

mais ninguém escreve mesmo! (Escurece. Clareia.

As duas tricotam).

TIA – Tenho tanta vontade de sair deste lugar!

SOLTEIRONA – Não gosta mais daqui? A senhora gostava tanto!

TIA – Eu nunca falei que gostava daqui. Não fique inventando coisa que

eu nunca falei. Esse lugar já foi bom. Agora está a

maior pouca vergonha. (Latidos de bando de

cachorros). Todos com jeito de ficar assanhado que

nem vira-lata atrás de cadela viciada. Se era fêmea,

meu pai mandava capar. Ficava gorda, bonita, e não

dava trabalho.

SOLTEIRONA – Eu não consegui dormir esta noite.

TIA – Você não presta atenção no que eu falo.

SOLTEIRONA – Eu estou prestando. Só disse que não consegui pregar

os olhos esta noite. Não posso falar?

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TIA – A cadela está viciada. Amanheceu engatada num cachorro. Ficou

um bando em volta dela ganindo, lambendo...

SOLTEIRONA – Foi por causa dela mesmo que eu não consegui dormir.

TIA – Vagabunda, indecente!...

SOLTEIRONA – Mais indecente é quem fica olhando.

TIA – É para mim que você está falando isso?

SOLTEIRONA – Pelo amor de Deus, tia! Não, né? Acha que eu ia falar

isso da senhora? Era essa gente que mora aí na

frente. Um ficou chamando o outro para ver a

indecência. Eu tive que passar perto, mas virei a cara.

Estavam todos rindo. Passei que nem cumprimentei.

TIA – É uma negradinha encardida, indecente... Não sei como você tem

coragem.

SOLTEIRONA – Coragem de quê?

TIA – De se dar com essa gente... Você parece que não conhece o seu

lugar...

SOLTEIRONA – Eu conheço muito bem o meu lugar e, depois, a mais

velha, com quem eu me dou, ela pode ser preta, mas

é muito limpinha.

TIA – Só na palma da mão que ela é branquinha!

SOLTEIRONA – Sua alma, sua palma, como dizia o meu pai.

TIA – O seu pai, também...

SOLTEIRONA – O que é que tem o meu pai? Ele ensinou a gente a não

fazer diferença, que todo mundo é filho de Deus.

Minha mãe sempre ajudou a criar umas negrinhas,

filhas de gente pobre. Criava como branco, bem

limpinhas. Podiam até sentar na mesa com a gente. E

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eram melhores que empregadas que, além da gente

ter que pagar, ainda roubam o que se tem de melhor.

TIA – Tua tia, mulher do teu tio, criou uma negrona, de pequena.

Ensinou direitinho a cozinhar, limpar a casa... Podia

ser uma empregadinha de mão cheia, dessas de

morrer no emprego. Comia mais que muito branco, a

sem-vergonha. Um dia deixou entrar um homem no

quarto e eu só sei que dali a pouco, estava com o

bucho cheio, como vai ficar a cadela!

SOLTEIRONA – Nós sempre tivemos cachorro, cachorra, tudo. Tudo,

menos gato, porque gato ninguém segura. E gato é

falso, não cria amor. Se o cachorro era macho, vivia

preso na corrente, que era melhor, porque ficava bem

bravo. Como o muro era alto, não tinha jeito de ficar

assanhado que nem vira-lata atrás de cadela viciada.

Se era fêmea, meu pai mandava capar. Ficava gorda,

bonita e não dava trabalho.

TIA – Sua tia, quando soube, ficou louca. Deu uma surra na negrona e

botou na rua. Depois é que ela soube, que a

desgraçada, quando estava com raiva, cuspia na

panela de comida!

SOLTEIRONA – Bem que aquela minha tia merece isso! Lá em casa

nunca fizeram nada disso.

TIA – Você que nunca viu. Espere. Todas fazem. E fazem igual à

cadela!

SOLTEIRONA – Credo tia! A senhora nunca viu, pelo menos uma

pretinha que fosse direitinha?

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TIA – Só se nasceu morta! (Escuro. Som de programa de rádio

evangélico. Clareia. As duas trabalham com

bordados).

SOLTEIRONA – Fazia tempo que eu não ouvia rádio. Por causa do luto.

Era chato, mas quando eu ia na casa dos vizinhos,

eles desligavam e até pediam desculpas.

TIA – Sua mãe gostava muito de rádio. Eu me lembro dela sempre

trabalhando com o rádio ligado. Da primeira vez que

passou O Direito de Nascer foi uma beleza! A gente

nunca perdeu um capítulo! Três anos!

SOLTEIRONA – Eu sempre ouvi dizer que foi a coisa mais linda!

TIA – Teve um tempo que faltava força justo na hora da novela...

SOLTEIRONA – Pelo amor de Deus!

TIA – Mas eu, a sua mãe, a sua avó, íamos assistir dentro de um carro

de praça de um vizinho. Não perdemos um capítulo!

No dia seguinte, um monte de gente ia na sua casa

para saber! (Solteirona vai pegar o álbum no

armário).

SOLTEIRONA – A senhora soube, não?

TIA – O que, minha filha?

SOLTEIRONA – Como foi que ela faleceu?

TIA – Soube assim por cima, coitada.

SOLTEIRONA – Coitada...

TIA – Sua mãe sofreu muito. Sempre se sacrificou para poder criar

vocês.

SOLTEIRONA – Morreu sentadinha, igual a senhora está agora. Parece

até que eu estou vendo! Estava boa, não tinha nada.

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Sempre, antes de ligar o rádio de noite, ela fazia uma

oração. É porque, às vezes, adormecia na cadeira... E

sabe, ela sempre ensinou que antes de dormir a gente

devia dizer uma oração porque, se a gente morre sem

acordar...

TIA – Foi o caso dela...

SOLTEIRONA – A oração era assim: “agora eu me deito para dormir,

guarda-me, ó Deus, em Teu amor; se eu morrer sem

acordar, recebe a minha alma, o Senhor. Amém.” Eu

faço até hoje, a gente nunca sabe... Ela não sabia.

TIA – Sofria do coração, não é? Se matou a vida inteira por vocês e pelo

marido, coitada. Era uma tonta! (A Solteirona se

enfurece quando ouve “tonta”). Comigo foi

diferente. Meu marido não me tinha de escrava dele!

Por isso não aconteceu comigo o que aconteceu com

a sua mãe. Eu não fui tonta... Por isso é que ainda

estou forte, rija, aqui!

SOLTEIRONA – “Aqui”? Grande coisa ficar forte, rija, num lugar destes!

TIA – Por que é que você está falando comigo desse jeito?

SOLTEIRONA – Tonta é a senhora, que o seu marido abandonou!

Minha mãe não era tonta! Não fale dela assim! Ela

morreu; respeito! Deixe ela descansar! Ela não era

uma tonta! Tonta é a senhora! (Sai. Escurece.

Música de aniversário. Clareia. A tia se arruma

junto do armário. A solteirona vem de fora, lendo

uma revista). Faz mais de um ano que eu cheguei.

Se eles vieram me visitar duas vezes, foi muito. Eu é

que não vou mais na casa da prima porque parece

sempre que a gente está estorvando!

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TIA – Mas hoje a gente tem que ir porque é o aniversário da menina e

não custa a gente levar uma lembrançinha. Criança

não tem culpa de ter o pai e a mãe que tem.

SOLTEIRONA – Eu hein? Nem para os meus sobrinhos, que são meus

sobrinhos, eu mando nada, quanto mais para a filha

da minha prima. Não estavam dizendo que a senhora

ia ser a madrinha? E foi? Foi?

TIA – Se você não for eu vou ter que ir sozinha?

SOLTEIRONA – A senhora não sabe o caminho?

TIA – Sei muito bem... Mas não gosto de andar sozinha.

SOLTEIRONA – Por quê? Tem medo de tarado, é?

TIA – Eu vou contar para a sua prima.

SOLTEIRONA – Contar o quê?

TIA – Que você judia de mim.

SOLTEIRONA – Eu não judio de ninguém. Se a senhora quiser contar

que conte. Eu vou é continuar lendo a minha revista.

TIA – Eu vou sozinha.

SOLTEIRONA – Já vai tarde.

TIA – Eu sou um pouco surda, eu sei que é perigoso sair sozinha, mas

eu vou assim mesmo.

SOLTEIRONA – Vai... Quer que eu abra a porta? Deixa eu continuar

lendo a revista que não consigo prestar atenção?

Estou precisando trocar de óculos.

TIA – Eu não preciso de ninguém. Vou sozinha. Eu peço para alguém

me ajudar a atravessar a rua.

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SOLTEIRONA – Vou experimentar os óculos da minha mãe, os que

eram dela. A vista dela era bem mais fraca que a

minha. Como a minha já deve ter piorado, os óculos

devem estar ótimos.

TIA – Você vai ver uma coisa.

SOLTEIRONA – Não adianta a senhora me ameaçar que eu não vou. Ir,

só para ser maltratada; ter que ficar de empregada

dela, ajudando a servir, lavando prato, copo? Eu hein?

É para isso que ela nos convidou. Não é pelos nossos

lindos olhos.

TIA – Ela nunca fez diferença comigo. Se faz agora deve ser por sua

causa.

SOLTEIRONA – Para mim, tanto faz como tanto fez. Ela não é flor que

se cheire. Eu me lembro muito bem da primeira

criança. Ela se casou em maio... E a criança nasceu

em setembro. Não deu nem para disfarçar que era de

sete meses.

TIA – Isso é despeito!

SOLTEIRONA – Despeito, meu? É prima, mas eu falo mesmo. Fiz igual

biscate! A senhora não se lembra que todo mundo

comentou que ela não devia ter se casado de branco

na igreja? Por mais que segurasse o buquê na frente,

não dava para disfarçar a barriga!... Eu sentei bem na

ponta do banco. Ela passou rente a mim e eu olhei

bem. Olhei mesmo. E olhei para ele também!

TIA – Eu vou lá agora e, se eu não morrer atropelada no caminho, vou

contar tudo!

SOLTEIRONA – Conta também que ela ficou enjoada na festa...

Precisou chamar médico e tudo. Minha tia disse que

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foi por causa do champagne... Todo mundo comentou.

Foi um falatório que deu até vergonha!

TIA – Ela pode ter errado, mas agora ninguém pode falar nem dela nem

da casa dela! As crianças estão sempre que parece

que saíram do banho... E você pode chegar a

qualquer hora que está tudo brilhando!

SOLTEIRONA – Já que a senhora está falando nisso, na última vez que

estivemos lá eu reparei mesmo! A cristaleira, por

dentro, aquele luxo, aquela exibição. Eu disfarcei que

estava achando bonito um vaso e passei o dedo:

estava tudo que era só pó, só pó! Uma vergonha, um

desleixo!

TIA – Eu nunca vi nada disso.

SOLTEIRONA – Pior cego é o que não quer ver! E uma hora eu fui ao

banheiro: tinha um cocô boiando na privada! Eu quase

vomitei!

TIA – Eu vou contar tudo. (Anda pela sala. Quer sair, mas não tem

coragem). Se você não for comigo ela percebe que

eu estou demorando, ela vem me buscar... Eu não

preciso de você.

SOLTEIRONA – Espere sentada que de pé cansa. (A tia muda várias

vezes de lugar, sempre incomodando a solteirona

com o olhar). Vai, está bom, eu levo a senhora! Mas

até perto, só! A senhora entra e depois pede para

alguém vir trazer.

TIA – E se perguntarem por você?

SOLTEIRONA – Dê qualquer desculpa. Fale que eu não estava me

sentindo bem... Que eu estava indisposta...

TIA – Eu não gosto de mentir.

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SOLTEIRONA – Tem mentira que não tem importância, que não é

pecado. Vamos?

TIA – Se eu não precisasse não ia te pedir. Não gosto de incomodar

ninguém... Se for mesmo muito difícil, eu fico... Depois

explico para ela...

SOLTEIRONA – Eu levo a senhora. Que é que eu posso fazer? Não

custa. Não vai me arrancar nenhum pedaço. Vamos?

TIA – Eu peço para ela fazer um pratinho para você. (A solteirona dá

de ombros e as duas saem. Passagem de tempo.

escurece. Clareia. Sons de tique-taque de relógio).

SOLTEIRONA – Até agora não voltou... Eu é que não vou ficar

esperando... Não vou mais ser burra de ficar

preocupada com gente que não tem a menor

consideração. (Passagem de tempo. Escurece.

Clareia. Continua som do relógio). Não chegou

carta, não chegou dinheiro, o crochê que eu fiz, não

me pagaram... A tia não voltou e ninguém veio dar a

menor satisfação... Que remédio?... (Passagem de

tempo. Escurece. Clareia. Música). E a tia que não

volta? Tem dia que eu não a suporto, mas é sempre

uma companhia... Ontem era dia de visita. Esperei,

esperei... Minha irmã tinha prometido que vinha. Cada

carro que passava, cada ônibus, eu pensava que era

ela... Esperei até de noite. Só se ela veio, passou na

casa da prima e elas contaram o que eu falei. E se

contaram? Meu Deus! Ela não vai mais querer me ver.

Não vem mais me buscar. Vão contar para o meu tio,

para a minha tia... Eu não devia ter falado! Vão me

deixar sozinha! Acho que a tia nem vai mais voltar. Eu

não quero ficar sozinha, eu não quero morrer sozinha!

(Chora. Escurece. Clareia. A tia voltou. Trouxe um

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pratinho de doces embrulhados com um

guardanapo).

TIA – Pensou que eu tivesse morrido? (A solteirona nem responde,

mal olha). Ficou com raiva?

SOLTEIRONA – Fiquei, mas já passou. Estava bom lá?

TIA – Eu trouxe isso para você.

SOLTEIRONA – Se quiser, pode dar para os velhos. Eu não vou comer

nada, senão depois eu não janto.

TIA – Sua prima mandou lembrança. Seu tio também.

SOLTEIRONA – Eles estiveram aí? E porque não vieram me ver?

TIA – Estavam só de passagem. Não tiveram tempo.

SOLTEIRONA – E eu fiquei aqui esperando. Eu e Deus. Não veio

ninguém. Eu vou deixar de ser boba. Juro que não fico

esperando mais nada de ninguém. Nem visita nem

carta!

TIA – Não vai mesmo querer os doces? Posso dar?

SOLTEIRONA – Deixa eu dar uma espiada... É coisa gostosa ou é só

resto, coisa que ninguém mais queria?

TIA – Era tudo coisa boa. Eu nem mexi. Ela embrulhou e ficou

embrulhadinho, desde o dia da festa.

SOLTEIRONA – Quando foi mesmo a festa? Já não faz uma semana?

TIA (Desembrulhando os doces) – Embolorou tudo! Está cheio de

formigas!

SOLTEIRONA – Nem gente pobre vai querer comer uma coisa nesse

estado!

TIA – Que pecado! (Sai para jogar e volta).

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SOLTEIRONA – Pensei que a senhora tivesse se mudado...

TIA – Bem que eu queria...

SOLTEIRONA – A senhora se dá tão bem com a prima...

TIA – Eu pensava...

SOLTEIRONA – E agora? Não pensa mais? Que foi que aconteceu? (A

tia vai tossir, tem falta de ar, se contrai). Que é

isso, meu Deus? O que é que a senhora tem tia?

TIA – Por que é que Deus não me manda a morte?

SOLTEIRONA – Que foi tia? Que foi que eles te fizeram? Eu já estou

até imaginando!

TIA – Eu queria ficar lá... Nem que fosse num cantinho... Minha pressão

até caiu... Tiveram que chamar médico... Me puseram

na cama da menina mais velha...

SOLTEIRONA – Nem precisa contar o resto que eu já sei! Ela começou

a reclamar e a dar coice! Parece até que eu estou

vendo. Eu sabia!

TIA – As crianças não pediam a bênção, não obedeciam, riam de mim...

Mandaram até a empregada perguntar quando é que

eu ia embora...

SOLTEIRONA – E a linda da minha prima? “A boa”?

TIA – Eu me queixei para ela, que pelo menos chamasse a atenção da

menina... Mas ela disse que era melhor eu voltar

porque a casa é muito apertada, que não tem lugar

para mim...

SOLTEIRONA – Daí a senhora veio embora?

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TIA – Eu ainda pedi para ficar. Tinha um quartinho nos fundos... Mas ela

disse que precisava dele para guardar tralhas,

vassouras, roupa suja...

SOLTEIRONA – Foi bom, porque assim a senhora aprende e não volta

mais lá. Ah, eu ia me esquecendo! Sabe a velha,

aquela que estava doente, do quarto aí da frente?

Morreu. No dia ainda, de manhã, ela perguntou muito

pela senhora, coitada. Ninguém esperava. Boa ela

não estava, mas não parecia que estivesse tão mal.

Eu que encontrei ela morta. Me dá arrepio só de

lembrar! Os outros velhos, a senhora precisava ver,

não queriam mais entrar no quarto. Choravam de

medo. Pareciam crianças. No velório não apareceu

nenhum. Senti muito a falta da senhora. A gente não

devia mais ficar separada.

TIA – Qualquer dia sou eu! Eu não queria voltar para cá!

SOLTEIRONA – A senhora queria ir de novo para a casa da prima,

depois de tudo?

TIA – Eu queria, eu queria...

SOLTEIRONA – Volta, então... (Saem as duas. Escurece. Sons de

chinelos. Tosses. Clareia. A tia limpa o armário

com um pano, de maneira estranha. A solteirona

entra lendo um jornal). Pelo nome, que eu me

lembre, a falecida era irmã da cunhada da minha

vizinha. Se fosse mais perto até que a gente podia

fazer uma visita. A senhora a conhecia? (A tia parece

ter rejuvenescido. Dá a impressão de estar em sua

própria casa, há muitos anos).

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TIA – Leve as crianças para ver matar o porco no quintal! Corre, senão

quando vocês chegarem o porco já parou de gritar e

não tem mais graça!

SOLTEIRONA – O quê? Eu não falei nada de porco. Só perguntei se

era conhecida da senhora.

TIA – Leva a bacia para pegar o sangue para fazer chouriço! Não deixe

derramar que você apanha!

SOLTEIRONA – Com quem é que a senhora está falando?

TIA – Eu quero as tripas bem lavadinhas, senão fica fedendo. Lava com

água quente. Depois dá uma fervida e cheira bem,

hein? Se ficar fedido eu faço você lavar tudo de novo!

(A tia se senta na cadeira e adormece).

SOLTEIRONA – Tia? Tia? Se urinou toda... Parece que não sabe mais

se segurar... (Escurece. Sons de automóveis.

Cachorros. Clareia).

TIA – Agora eu me deito para dormir, guarda-me, ó Deus em Teu amor;

se eu morrer sem acordar...

SOLTEIRONA – A senhora vai dormir? É cedo ainda. Virou galinha é?

TIA – Quem falou que eu vou dormir? Ainda tenho que passar na

leiteria.

SOLTEIRONA – Agora! De noite! Eu ouvi a senhora fazendo oração

para dormir... Pensei que estivesse com sono...

TIA (Louca, maliciosa) – O leiteiro mostrou de novo! Eu nem me

lembrava mais como era!

SOLTEIRONA – A senhora me desculpe, mas eu não estou

entendendo: o que tem a oração para dormir a ver

com o leiteiro?

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TIA – Foi só eu chegar e ele mostrou de novo! Grande!

SOLTEIRONA – O latão? Por que ele mostrou o latão para a senhora?

Que graça tem ver latão? Quem é que nunca viu latão

na vida?

TIA – É só eu chegar e pedir que ele pega e já vai mostrando, na frente

de todo mundo!

SOLTEIRONA – Do que é que a senhora está falando?

TIA – Era muito maior que o do meu marido! Meu marido é um frouxo!

SOLTEIRONA – A senhora está brincando... Eu nunca vi a senhora

falando essas coisas!

TIA – Eu nem me lembrava mais como era! (A solteirona ainda não

percebeu claramente que a tia não fala coisa com

coisa. Entra na brincadeira).

SOLTEIRONA – E eu que nunca vi? Só vi de criança, de sobrinho.

TIA – A empregada me disse que o noivo dela quer por o “negócio” dele

aqui (aponta para a boca). Minha irmã se sujeitou. O

marido dela gostava. Eu não me sujeitei. Quando

nasceu o meu primeiro filho eu era virgem. Três anos

depois de casada! Virginha da Silva!

SOLTEIRONA – Eu morro de medo! Diz que pode pegar filho só de

sentar em privada onde homem fez coisa! Diz que tem

que ser logo em seguida, que depois não tem perigo...

Mas, Deus o livre, aconteça! (A tia desliga. Parece

que voltou ao normal).

TIA – Urinei...

SOLTEIRONA – O quê?

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TIA – Eu urinei... (A solteirona a conduz para fora. Escurece. Clareia.

A solteirona entra em cena preocupada).

SOLTEIRONA – Sumiu de novo. Devia ter alguém para cuidar dos

velhos num lugar como este. Já estou cansada de

ficar procurando a minha tia aí pela rua! Todo dia ela

foge. Ah, eu quero é que ela se dane! (Ruído forte de

um carro que se aproxima em velocidade. Freia.

Bate em um corpo. Grito. Gritos). Foi ela! (A

solteirona passa do desespero a um mutismo

meio louco. Meio automaticamente, pega sua

mala. Parece que não raciocina. Escurece

lentamente. Músicas infantis que introduzem ao

Ciclo de Memórias. Clareia aos poucos. Há cores

na iluminação, muito sutis).

V – As Memórias da Infância

O priminho morto: um bebezinho, filho de uma tia, viveu poucas

horas e está sendo velado na casa da família. Nem o pai, que

sumiu, nem a mãe, que está agonizando no hospital, estão

presentes. Apenas um menino, o único irmão do bebê. Esse

menino é o “primo”, que ficará nessa casa como “irmão de

criação”. O irmão mais velho entra com o priminho. Tenta distraí-lo.

Ele se recusa. Chega a irmã. Os dois cochicham, até a entrada da

futura solteirona.

SOLTEIRONA – Eu vi ele. Parecia que estava dormindo...

IRMÃ – A mamãe abriu o olho dele para eu ver. Era azul o olhinho.

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IRMÃO – Diz que criança que morre assim é anjinho, ou vira anjinho. Eu

não entendi bem.

SOLTEIRONA – Sabia que batizaram ele?

IRMÃ – Para quê? Batizam criança morta?

IRMÃO – Eu sei que se não batiza vai para o inferno.

SOLTEIRONA – Vira diabo. Morre pagão.

IRMÃO – Mas disseram que nasceu morto.

SOLTEIRONA – Viveu um pouco. Eu ouvi eles falando.

IRMÃ – Ah, quem vive um pouco, só um pouquinho, já faz pecado e

precisa batizar correndo!

IRMÃO – Você é batizada?

SOLTEIRONA – Eu sou. E você?

IRMÃ – Eu também sou. (Ao primo). Você é?

PRIMO – Não, eu acho que eu não sou.

SOLTEIRONA – Não? É por isso que o seu irmãozinho nasceu morto!

PRIMO – Não, não é. Minha mãe chorou muito. Eu sei que ela chorou.

IRMÃ – Chorou de vergonha porque não te batizou.

PRIMO – Não fale assim da minha mãe!

IRMÃO – Teu pai não presta. Ele não dorme sempre na tua casa.

PRIMO – Por que é que o meu pai não presta?

SOLTEIRONA – Porque o que ele fez com a tua mãe é pecado e é por

isso que ela chorou e é por isso que o teu irmãozinho

nasceu morto. É porque ele fez com ela coisa que é

pecado.

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IRMÃ – Parece que a freira vai conversar com você...

PRIMO – Eu não quero.

SOLTEIRONA – Mas ela conversa mesmo você não querendo...

IRMÃ – A gente te segura.

IRMÃO – Ela vai falar cada coisa!

PRIMO – Eu tampo os ouvidos e não escuto!

SOLTEIRONA – A gente te segura, prende a tua mão e ela pode até

gritar no teu ouvido!

IRMÃ – Eu até já sei o que ela vai fazer!

PRIMO – O quê?

IRMÃ – Eu não falo e ninguém daqui fala senão morre!

PRIMO – Fala, fala, fala! (As três crianças, tapando a boca, fazem um

jogo de não responderão que ele pergunta). O que

é que ela vai fazer? O que é que a freira vai me falar?

Por que a freira vem falar comigo? O que foi que eu

fiz? Eu não tenho culpa se o meu irmãozinho nasceu

e morreu! Não fui eu, eu juro! (O primo se encolhe,

chorando. A solteirona combina com os outros,

vai pé ante pé e o assusta).

SOLTEIRONA – Ele vai aparecer debaixo da tua cama quando você

estiver dormindo.

IRMÃO – Eu vou apagar a luz!

PRIMO – Não apaga porque eu tenho medo!

SOLTEIRONA – Assim você aprende!

PRIMO – Eu quero ver a minha mãe. Quero ver a minha mãe.

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IRMÃ – Coitadinho. Vamos parar?

SOLTEIRONA – Hummmmmmm...

IRMÃ – Podia ser a mãe da gente...

IRMÃO – Isso mesmo.

PRIMO – Eu quero ver a minha mãe.

IRMÃO – Você pensa que pode, é? Não pode.

PRIMO – Por que eu não posso ver a minha mãe?

SOLTEIRONA – Ela está no hospital e a essa hora ninguém pode entrar

lá. As freiras não deixam.

IRMÃ – Me falaram que iam mudar a mãe dele de hospital e que iam

levar ela pra outro bem longe.

PRIMO – Qual? Onde?

SOLTEIRONA – Só que pediram pra não te contar.

IRMÃ – Eu acho que ela não passa desta noite...

IRMÃO – Gente doente desenganada nunca passa da noite. A morte

sempre vem buscar as almas de noite.

SOLTEIRONA – A morte gosta do escuro.

IRMÃ – A pessoa, sozinha, a morte vem e leva!

IRMÃO – Tem gente que não quer ir.

SOLTEIRONA – Não tem que querer. Ela arrasta e leva! (Os três

olham compadecidos para o priminho).

IRMÃ – Você nunca mais vai ver a sua mãe. (O primo abaixa a cabeça

e chora abafado). Não chora. Vai ficar morando aqui,

vai virar nosso irmão. Meu pai falou.

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IRMÃO – A gente te batiza e você fica igual a nós.

PRIMO – Eu não quero! E o meu pai? Por que ele não está aqui com o

meu irmãozinho? (A solteirona malicia o assunto e

chama os irmãos para o lado).

SOLTEIRONA – Eu vi o pai dele lá fora. Nem estava chorando.

PRIMO – Mentirosa!

IRMÃ – Todo mundo comenta que ele não gosta da sua mãe.

PRIMO – Gosta sim!

IRMÃO – E não gosta de você também! Nem liga!

PRIMO – Ele gosta de mim, sim. Gosta!

SOLTEIRONA – Por que, então, ele não está aqui, nem com você nem

com o seu irmãozinho?

IRMÃ – Pode ter acontecido um desastre. Dizem que ele bebe. Gente

ruim morre de desastre.

IRMÃO – Sabia que ele tem amante? Que tem até filho com a outra

mulher, uma mulher que não vale nada?

SOLTEIRONA – Nem ele!

IRMÃ – Ele deve gostar mais do filho da outra mulher do que dele.

IRMÃO – Acho que é por isso que o irmãozinho dele preferiu nascer

morto!

SOLTEIRONA – Fala a verdade: você queria mesmo ter um

irmãozinho?

PRIMO – Queria.

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IRMÃ – Mentira! Mentir é pecado, hein? Quem vai ficar morando aqui

como nosso irmão não pode mentir! Aqui ninguém

mente. Precisa batizar logo esse menino!

IRMÃO – Se for verdade mesmo que você queria um irmãozinho, vá até

a sala e olhe bem para ele. Fale isso para ele, na cara

dele!

PRIMO – Eu tenho medo...

SOLTEIRONA – Está vendo? É mentira sua. Se ele crescesse e

mexesse nas tuas coisas, você ia bater muito nele,

coitadinho. Você não respeita nem os mortos!

IRMÃ – Eu ouvi contar que um menino ganhou um irmãozinho e encheu

a boca do bebezinho de miolo de pão.

IRMÃO – Se a mãe dele não acudisse, o nenezinho ia morrer sufocado!

PRIMO – Eu nunca ia fazer isso com o meu!

SOLTEIRONA – Ia sim!

PRIMO – Não ia. Minha mãe falou que ia ser gostoso ter um irmãozinho!

IRMÃO – Ia, mas não vai ser mais. Nem bem nasceu já morreu;

coitadinho.

IRMÃ – Começou a morrer na barriga dela.

SOLTEIRONA – Parece que, agora, ela também vai morrer: a coitada. É

quase certo. Já está desenganada. Todo mundo

ouviu, não ouviu?

IRMÃ – O pai dele já deve ter sumido com a outra mulher!

PRIMO – Eu quero ver o meu pai e a minha mãe!

IRMÃO – Vamos apagar a luz? Nós três ficamos bem juntinhos, bem

agarrados, assim não ficamos com medo!

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OS TRÊS (Em algazarra) – Apaga a luz! Apaga a luz!

PRIMO – Não apaga que eu tenho medo! Eu tenho medo!

OS TRÊS – Vai brincar com o teu irmãozinho lá na sala! Vai! Vai!

(Escuro. Clareia o centro. Penumbra. Música. O

primo, sozinho, no escuro).

PRIMO – Estou morrendo de sono, mas sei que não vou conseguir

dormir... Estou morrendo de vontade de fazer xixi,

mas a luz está apagada. Tenho medo de me levantar

e passar pela sala, perto do caixãozinho... Tenho

medo de gente morta, mesmo que seja o meu

irmãozinho. Se eu acender a luz eles vão acordar. Vai

acordar todo mundo... Vão ficar bravos comigo. Por

que o meu pai e a minha mãe não estão aqui comigo?

Eu não sei nem posso ir onde eles estão... Não pode

ser verdade que a minha mãe vai morrer e que o meu

pai não gosta de mim... E que ele não gosta da minha

mãe... Eles devem estar muito tristes por causa do

meu irmãozinho. Não aguento mais de sono. Por que

eu não durmo; acordo e, tudo está diferente e não é

mais nada disso? (Escurece. Clareia. Música.

Alguns dias mais tarde. As crianças brincam. O

clima é alegre, malicioso, brincalhão. Jogam com

saquinhos de pano). Agora é a minha vez.

IRMÃ – Joga, ué! Ninguém está te segurando.

PRIMO – Não precisa ser estúpida! Eu só falei que eu vou jogar.

IRMÃO – Joga logo, puxa vida!

SOLTEIRONA – Me dá os saquinhos? O papai falou que não é para

jogar a dinheiro, hein?

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IRMÃO – Não precisava nem falar. Ninguém tem dinheiro mesmo. Ele

nunca dá...

IRMÃ – Que cheiro ruim: alguém pisou!

IRMÃO – Pisou, é?

IRMÃO E PRIMO (Apontando principalmente para a irmã) – BO LÔ

FE DÔ RE BEN TA O CU DE QUEM PEI DÔ!

SOLTEIRONA – Isso não se fala na frente de menina! Eu vou contar!

IRMÃ – Galinha que canta é porque botou ovo!

IRMÃO – Então foi você! Quem falou primeiro que alguém pisou foi você

mesma!

IRMÃ – Não fui eu!

IRMÃO (Ao primo) – Cheira para ver se não foi ela!

PRIMO – Deixa eu te cheirar para ver se não foi você?

IRMÃ – Eu te sento um tapa que você vai ver só, seu sem-vergonha!

IRMÃO – Cheira ela, cheira ela!

PRIMO – Eu cheiro mesmo!

SOLTEIRONA – Não deixa ele te cheirar!

IRMÃ – Não me cheira que eu te chuto a canela!

PRIMO – Eu te cheiro à força! (Os dois meninos agarram e a viram de

bruços).

IRMÃO – Cheira, cheira, cheira!

SOLTEIRONA – Larga ela, seu moleque da rua!

PRIMO – Eu cheiro, eu cheiro!

IRMÃO – Cheira logo senão ela vai dizer que não foi ela!

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IRMÃ – Se você me cheirar eu te furo os olhos!

PRIMO – Eu cheiro, eu cheiro!

IRMÃO – Cheira depressa senão passa o fedor!

SOLTEIRONA – Eu vou contar para a minha mãe e ela vai te mandar

para o orfanato!

IRMÃ – Isso mesmo. Lá é que é lugar de menino que não tem mãe! (O

primo corre para um canto e chora).

IRMÃO – Precisava falar isso? É pecado falar essas coisas!

IRMÃ – Quem mandou ele fazer isso com a gente?

SOLTEIRONA – Quem mandou ele ser sem-vergonha?

IRMÃO – Ele só estava brincando.

SOLTEIRONA – Isso é brincadeira? Então o que eu falei também foi

brincadeira...

IRMÃO – Vocês são duas burras!

SOLTEIRONA – E você? Pensa que é mais inteligente só por que é

menino, é?

IRMÃO – Penso sim. Penso mesmo! Menina é burra. Por isso é que eu

não gosto de brincar com menina. Menina não se

pode nem relar. (Vai tentar consolar o primo).

PRIMO – Vai embora.

IRMÃO – Estou do teu lado.

PRIMO – Vai embora. Eu sei que você está do lado delas.

IRMÃO – Não estou. Você não me viu brigando com as duas? Eu não

aguento menina!

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PRIMO – Vocês falam essas coisas só porque vocês têm mãe...

Qualquer dia eu fujo daqui!

IRMÃO – Não fala assim. Eu gosto de você. É igual um irmão para mim.

Menina só enche, só serve para atrapalhar.

PRIMO – Mas elas são suas irmãs.

IRMÃO – Pare de chorar. Vamos brincar só nós dois? A gente não

conversa mais com elas.

PRIMO – Mas elas vão se meter na brincadeira e estragam tudo.

IRMÃO – A gente puxa o cabelo delas.

PRIMO – Puxa mesmo?

IRMÃO – Puxa. Claro que puxa. É só elas chegarem perto.

IRMÃ – Quem cochicha o rabo espicha!

IRMÃO – Quem escuta o rabo encurta!

PRIMO – Quem reclama o rabo inflama!

IRMÃ – Puxa-saco! (O primo avança, o irmão o segura).

IRMÃO – Finge que não está escutando. Vamos jogar de novo?

PRIMO – Joga você primeiro.

IRMÃO – Não, joga você.

PRIMO – Elas estão cochichando.

IRMÃO – Deixa.

PRIMO – Elas estão vindo para cá.

IRMÃO – Deixa só elas chegarem que a gente faz aquilo. (As duas se

aproximam, numa aparente proposta de paz).

SOLTEIRONA – Nós podemos jogar? Estamos muito arrependidas.

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IRMÃ – Nós viemos pedir desculpas. (Os dois se entreolham,

preparando o ataque).

PRIMO – Um, dois e...

IRMÃO – Já! (Gritos, “us” de índios de filme, correm em volta das

duas, agarrando-lhes os cabelos. No meio da farra,

o primo resolve, inesperadamente, erguer a saia

da irmã para olhar a calcinha).

IRMÃ – Meu cabelo! Sem-vergonha!

SOLTEIRONA – Olha o que ele está fazendo com ela!

IRMÃO – Por que você foi fazer isto? Fingido, mentiroso, sem-vergonha!

PRIMO – Pensa que eu tenho medo de você?

IRMÃO – Por que ergueu a saia dela?

SOLTEIRONA – Porque não presta. É igual ao pai! Sem-vergonha!

IRMÃO – Você tinha mesmo por quem puxar! Sua mãe não te deu

educação?

PRIMO – Não põe minha mãe no meio que eu ponho no meio da tua

mãe!

IRMÃO – Põe, é? Põe, põe, põe! Vamos ver se você é homem!

IRMÃ – Boca suja! Nojento!

SOLTEIRONA – Bem feito que a sua mãe morreu! Bem feito! (O irmão

e o primo se atracam).

IRMÃO – Fale de novo aquilo: que você vai pôr no meio da minha mãe!

Fala se for homem! Te dou um soco no nariz que vai

sair sangue!

PRIMO – Eu ponho no meio da tua mãe, do teu pai, da tua avó, das tuas

duas irmãs..., e de você também..., filho da puta!

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IRMÃO – Xingou minha mãe! Você podia fazer qualquer coisa, menos

xingar a mãe! Agora é que você vai ver uma coisa!

Venham ajudar, suas molengas! (O primo, apesar de

atacado pelo três, reage como pode, com chutes,

socos, mordidas).

SOLTEIRONA – Quer apanhar mais, quer? Assim você aprende?

IRMÃO – Quer apanhar mais, que assim você não xinga mais a mãe

dos outros? (O primo tenta se soltar, morde a mão

do irmão).

IRMÃ – Quer, hein? Responda: quer?

IRMÃO – Responda quando te perguntam, seu malcriado! Quer?

PRIMO (Finalmente se soltando) – Quero é que vocês vão tomar no

cu! (Escândalo. Sai correndo, perseguido pelos

três. Escuro. Música. Clareia no centro do palco. O

primo chora num lugar, de castigo. A solteirona

tenta uma aproximação).

SOLTEIRONA – Eu sou sua única amiga no mundo.

PRIMO – Mentirosa. Ninguém gosta de mim nesta casa.

SOLTEIRONA – Eles não gostam. Aqueles dois não gostam de

ninguém. De mim eles também não gostam...

PRIMO – Vai embora!

SOLTEIRONA – Deixa eu ficar aqui com você? É ruim ficar sozinho.

PRIMO – É melhor ficar sozinho. (A solteirona o observa. Quer

perguntar uma coisa).

SOLTEIRONA – Você sente saudade da sua mãe e do seu pai?

PRIMO – Não.

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SOLTEIRONA – Eu não acredito. Fala a verdade. Eu não conto para

ninguém.

PRIMO – Você conta tudo que eu faço.

SOLTEIRONA – Mas eu estou arrependida e te prometo que não vou

contar nunca mais.

PRIMO – Você jura?

SOLTEIRONA – Jurar eu não juro porque jurar é pecado. Mas eu te

prometo. Cruzo os dedos e beijo. (Pausa). Você sente

saudade da sua mãe?

PRIMO – Sinto.

SOLTEIRONA – Você já sonhou com ela?

PRIMO – Eu sonho sempre.

SOLTEIRONA – Você gostava dela?

PRIMO – Claro. Você não gosta da sua?

SOLTEIRONA – Lógico que eu gosto. Mas a minha está viva. Você

queria que a sua ficasse viva? (Ele se encolhe

chorando. Não responde). Eu fico muito triste

quando vejo você chorando. Eles não ligam..., mas eu

sei que é muito triste uma criança sem mãe! (Agarra-

o como se quisesse pô-lo no colo, ao que ele

reage).

PRIMO – Que saco!

SOLTEIRONA – Mal agradecido. É isso que dá a gente querer ser boa.

(Escuro. Música. Clareia o palco todo em

penumbra. O susto: o irmão e a irmã entram, pé

ante pé, cochichando. Riem abafado).

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IRMÃ – Quando ele chegar e olhar, você já sabe... (Solteirona vem

espiar).

IRMÃO – Vai chamar ele.

SOLTEIRONA – Ele já se deitou. E se estiver dormindo?

IRMÃ – Acorda, ora... Vai logo! Precisamos aproveitar que eles saíram!

SOLTEIRONA – E se ele não quiser vir?

IRMÃO – Ele vem. Vai logo.

SOLTEIRONA – Se ele não quiser vir não é culpa minha. Já vou

falando.

IRMÃO – Você chamando ele vem. Você é mesmo puxa-saco dele!

SOLTEIRONA – Se você falar assim de novo eu não vou, hein?

IRMÃ – Vai logo!

SOLTEIRONA – Não precisa ser estúpida! Eu vou, está bom. (Sai).

IRMÃ – Vai lá para trás do guarda-roupa, depressa! (O irmão, munido

de um lençol branco, prepara um fantasma que vai

sair por cima do guarda-roupa). Fica bem quieto e

veja se fala direitinho, com aquela voz, aquilo que nós

combinamos. Não vá rir na hora!

IRMÃO – Acho que eles estão chegando. Não vá dar risada que eu não

aguento. Estou quase fazendo xixi na calça!

IRMÃ – Psiu! (A solteirona traz o primo pela mão. Ele, meio

sonolento, não está entendendo por que foi

chamado. Está desconfiado).

SOLTEIRONA – Vem aqui que eu vou mostrar uma coisa.

IRMÃ – Vem aqui. Vamos ficar de bem?

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PRIMO – O que é que é?

IRMÃ – Fica bem aqui.

PRIMO – Por quê?

SOLTEIRONA – Para ver... É que você vai ver uma coisa... Você

mesmo me falou que gostava e que estava com

saudade...

PRIMO (Visivelmente assustado) – De que é que você está falando?

IRMÃ – Você sente saudade da sua mãe?

PRIMO – Que é que tem ela? Ela está aqui? (Um meio sorriso torna-

se uma expressão sombria, amedrontada). Mas ela

não morreu? (O fantasma de lençol aparece por

trás do guarda-roupa).

IRMÃO (Voz cavernosa de fantasma, como uma criança imagina

que um morto fale) – Filhinho: eu vim te buscar,

filhinho! (O primo, mudo, estático, hipnotizado).

Vem com a mamãe, vem... (O primo se contrai). Eu

vou te pegar para levar comigo e você vai parar de ser

malcriado! Eu vou te pegar, meu filhinho! (O primo

cai, tendo convulsões).

SOLTEIRONA – Olhem o que vocês fizeram! Ele vai morrer e a culpa é

de vocês!

IRMÃ – Por que só nossa?

IRMÃO – Culpa sua também.

SOLTEIRONA – Eu só chamei. Eu não tenho culpa. Coitado!

IRMÃO – Vamos sacudir que ele volta!

SOLTEIRONA – Eu não tenho culpa, só chamei.

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IRMÃ – Não senhora: combinou junto com a gente.

SOLTEIRONA – Mas eu não queria.

IRMÃO – Se não quisesse não tinha ido até o quarto. É culpada igual!

SOLTEIRONA – Vocês dois é que me forçaram. Eu não queria mesmo.

Isso que vocês fizeram é pecado e eu vou contar tudo!

IRMÃO – Se você contar! (Tentando arrastar o primo). Me ajuda aqui:

pega pelo pé.

IRMÃ – Você que experimente contar!

SOLTEIRONA – Eu estou com a minha consciência bem limpa! Vou

contar tudo que vocês fizeram! (Escuro. Música.

Clareia. O remorso: o irmão e a irmã estão tristes e

assustados).

IRMÃ – Eu não podia saber que ele sofria dos nervos.

IRMÃO – A mamãe dá calmante para ele toda noite, senão ele não

dorme. Outro dia eu até acordei com os gritos dele.

IRMÃ – Sonhou com a mãe?

IRMÃO – Sonhou: o coitado. Agora eu vou ficar bem amigo dele. Você

precisava ver como ele estava - com o pijama

molhado de suor! A mamãe acordou, deu água com

açúcar e depois eu conversei com ele, pedi

desculpas...

IRMÃ – E ele?

IRMÃO – Me pediu para dormir junto e daí eu chamei ele para a minha

cama... Me contou que tinha medo de fechar os olhos

e ver fantasma. Eu não sabia o que falar.

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IRMÃ – Ele treme muito agora. Olha bem na mão dele. A professora não

sabia e deu nota baixa... Porque a letra estava muito

feia...

IRMÃO – A gente não tinha nada que brincar daquilo. Coitado.

IRMÃ – Agora é tarde. Sabe que a mamãe teve até que ir à escola

conversar com a professora e explicar o que tinha

acontecido?

IRMÃO – E a professora?

IRMÃ – Passou pela minha classe e me olhou como se eu fosse uma

criminosa. Fiquei gelada de medo que ela contasse na

frente de todo mundo. Não sei por que, mas parece

que só anda acontecendo coisa ruim.

IRMÃO – Você também viu a mamãe chorando?

IRMÃ – Claro que eu vi, não sou cega.

IRMÃO – Não fale assim que você fica igual à tia Jurema.

IRMÃ – Deus que me perdoe.

IRMÃO – Tua irmãzinha linguaruda já veio me agradar e contar tudo. É

claro que ela fica sempre sabendo de tudo... Você já

sabe por que a mamãe estava chorando?

IRMÃ – Não. O que foi que ela te contou? (O primo se aproxima. Os

dois ficam quietos).

PRIMO – Por que ela está chorando?

IRMÃ – A minha mãe? Eu não sei...

PRIMO – Você sabe? Parece que estão escondendo coisa de mim. Por

que é que ela está chorando?

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IRMÃO – Se eu contar, você promete que não fica nervoso? Não é nada

de você.

PRIMO – Conta, então.

IRMÃO – Sabe a prima da mamãe, a Rosa? Uma que é professora, uma

bem moça?

IRMÃ – Sei. O que é que tem ela?

IRMÃO – Diz que ela se suicidou!

IRMÃ – Mentira! Justo ela? Como é que ela teve coragem?

PRIMO – Ela o quê? Eu não sei o que é isso. Ela o quê, mesmo?

IRMÃO – Ela se matou! O irmão dela tinha guardado uma lata de

formicida no quintal, que era para matar um

formigueiro do jardim, e ela pegou, de noite, sem

ninguém ver, misturou com guaraná e bebeu! Só

encontraram ela de manhã, mortinha!

IRMÃ – E onde foi isso? Na cama dela?

IRMÃO – Não. Foi debaixo da ponte do riozinho da Santa Casa. Uma

enfermeira foi jogar aqueles lixos de curativos e

encontrou ela morta!

IRMÃ – Por que será que ela fez isso? Mas, por que será que misturou

com guaraná, justo com guaraná?...

PRIMO – Com guaraná deve ficar muito mais gostoso. Puro é que deve

ser ruim.

IRMÃO – Me deu uma vontade de tomar guaraná!...

PRIMO – Eu também!

IRMÃ – Eu também! Mas nós não temos dinheiro... Mas você soube por

que ela fez isso? Não é pecado? Que eu saiba, é.

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IRMÃO – Eu só soube isso. Não consegui saber o resto. (O primo

manifesta vontade de fazer xixi. Vai saindo,

quando vê que a solteirona se aproxima. Volta

correndo).

PRIMO – Olha ela!

IRMÃO – Já veio espiar, é? Ninguém está fazendo nada para você

contar, sua linguaruda.

SOLTEIRONA – Está bom. Se vocês quiserem, eu posso ir embora. Já.

Só que eu não conto uma coisa que eu sei...

IRMÃ – Que me importa... Pode ir...

PRIMO – Que é que você sabe que nós não sabemos?

SOLTEIRONA – Vocês não queriam que eu fosse embora? Eu vou. E

vocês ficam sem saber. Se eu não contar, quem é que

vai contar? Eles? Ha, ha, ha! Precisei me agachar

atrás da cristaleira para ouvir tudo. E ouvi cada coisa!

(A irmã e o primo não se contêm de curiosidade. O

irmão ainda não quer dar o braço a torcer e os

contêm. A curiosidade vence).

IRMÃO – Está bem. A gente deixa você ficar aqui. Mas só se contar

tudo.

IRMÃ – E jurar que não conta nada mais da gente.

PRIMO – Conta logo. Por que a tia Rosa tomou formicida com guaraná?

SOLTEIRONA – Eu não sei se eu devo contar... Coitada da Rosa... Eu

acho que eu não devo... Essas coisas a gente não

deve ficar comentando...

IRMÃO E IRMÃ – Conta de uma vez!

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SOLTEIRONA – Sabem por quê? O mecânico da oficina, perto da casa

dela, fez mal para ela! (Espanto geral, menos do

primo, que não entendeu).

PRIMO – Bateu nela? (As duas se entreolham achando-o criança

demais).

IRMÃO (Puxando o primo para o lado) – “Fez mal”. Eu sei o que é

isso, quando falam para a gente não perceber. Eu não

sou bobo. (Descreve, com gestos cômicos,

grotescos, infantis, uma relação sexual).

PRIMO – Meteu nela? Eu não sabia que falavam assim! (Os dois riem).

SOLTEIRONA – Acabaram? Posso continuar?

IRMÃ – Vai: conta!

SOLTEIRONA – Daí, ela começou a enjoar, e vomitar, foi ao médico e

ele disse que ela estava esperando nenê!

IRMÃ – Sem casar? Como pode?

SOLTEIRONA – Diz que o mecânico é casado!

IRMÃ – Ela tinha mesmo que se matar!

SOLTEIRONA – É, pode ser pecado, mas que remédio? Qual pecado

deve ser maior? Se matar ou arranjar nenê sem se

casar?

IRMÃ – Eu quero me casar na igreja, direitinho. Eu nunca vou fazer

como a tia Rosa! Eu hein?

SOLTEIRONA – Eu também. Que Deus me livre e guarde!

IRMÃO – Eu nunca vou fazer uma coisa dessas com uma moça se ela

for direita!

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PRIMO – Nem eu! (Escuro. Música. A iluminação muda para o Ciclo

da Adolescência).

VI – Memórias da Adolescência

Os dois meninos vestem suas roupas de rapazes à vista do público.

O irmão pega uma revista de mulher pelada e o primo, uma

camisinha de Vênus. Enche-a de ar e faz brincadeiras meio

grossas. A solteirona se aproxima.

SOLTEIRONA – Que bexiguinha é essa? Parece criança... (O irmão

fica bravo de ele mostrar aquilo à irmã e os dois

saem se estapeando. A solteirona, de vestido

domingueiro, oha-se no espelho, aumenta o

peito, espreme espinhas, decepciona-se com a

própria figura. Chega a irmã, quase sexy, meio

uma caricatura de vamp de cinema, só que

ingênua. Tenta fazer um penteado. A solteirona a

copia).

IRMÃ – Para de me copiar?

SOLTEIRONA – Eu não estou copiando.

IRMÃ – Está fazendo o mesmo penteado que eu.

SOLTEIRONA – Não estou.

IRMÃ – Por que é que tudo o que eu faço você quer fazer igual?

SOLTEIRONA – Não foi você que inventou esse penteado... Isso é

penteado de artista de cinema... Saiu na revista e

você está copiando.

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IRMÃ – E o que é que você tem a ver com isso?

SOLTEIRONA – Vai encontrar seu namorado, é?

IRMÃ – Não preciso dar a menor satisfação.

SOLTEIRONA – Eu já sei de tudo.

IRMÃ – Não dá para você ir ver se eu estou na esquina?

SOLTEIRONA – Não muda de assunto, não. Eu vi vocês dois... Você

conhece o primo dele?

IRMÃ – Não sei do que você está falando.

SOLTEIRONA – Não se faça de besta. Você sabe muito bem. Me faz

um favor?

IRMÃ – Que é que você está querendo?

SOLTEIRONA – Você pode entregar um bilhetinho para mim? Não

custa.

IRMÃ – Para quem? Que é que você está tramando?

SOLTEIRONA – Eu não estou tramando nada. Além de ser sua irmã, só

estou querendo que seja minha amiga...

IRMÃ – Não seja falsa?

SOLTEIRONA – Não pense que eu estou tentando roubar o seu

namorado.

IRMÃ – Bem que tentou.

SOLTEIRONA – Eu hein? Você é que toma tudo que eu tenho. Não

quero nem ver o seu namorado. Tenho nojo dele!

IRMÃ – Para quem é, então, o bilhete?

SOLTEIRONA – Para o primo dele.

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IRMÃ – Posso saber do que se trata?

SOLTEIRONA – Deixe de ser indiscreta? Sua blusa estava rasgada,

toda suja de grama...

IRMÃ – Do que é que você está falando? Eu caí na grama do jardim.

SOLTEIRONA – Não se faça de santa. Caiu sozinha, é? Pensa que

todo mundo é cego? Eu, que sou eu, vi. Se o papai

souber, te mata, menina!

IRMÃ – Você já contou?

SOLTEIRONA – Não, ainda não... Mas...

IRMÃ – Onde está o bilhete? Falsa, invejosa! Se você não fosse minha

irmã!...

SOLTEIRONA – Entregue para o primo dele. Se eu souber que você

abriu e leu, vai ter!

IRMÃ – Qualquer dia eu ainda bebo formicida!

SOLTEIRONA – Pode beber. Eu não estou brincando. Se esse bilhete

não chegar, vai ter! Peguei a tua blusa. Se tudo der

certo, eu costuro o rasgado e dou uma lavada. Se não

der, a culpa e sua! (Escuro. Música. Clareia. Som de

futebol de rádio. Os dois rapazes. O primo vê a

revista de mulher nua. O irmão chega).

IRMÃO – A mamãe mandou avisar que amanhã começa a reforma da

casa. Nós dois vamos ter que sair do nosso quarto.

PRIMO – Isso é sacanagem com a gente.

IRMÃO – Por enquanto vamos ficar no quarto das meninas.

PRIMO – Só faltava essa!

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IRMÃO – Não gostou? Então vai dormir na rua, ninguém está te

segurando.

PRIMO – Vai morder teu pai na bunda, vai.

IRMÃO – Em vez de ficar aí resmungando, vai é tratando de tirar

aquelas revistinhas de sacanagem de baixo do

colchão.

PRIMO – E as duas? Não me diga que vamos ter que dormir com elas

no mesmo quarto?

IRMÃO (Dando banana) – Aqui para elas! Por enquanto vão dormir na

sala. Já deu a maior encrenca por causa disso.

Falaram que a gente é que devia ficar na sala.

PRIMO – Como? Já pensou nós dois dormindo na sala e acordando de

manhã naquele estado, com vontade de mijar, e ter

que passar na frente de todo mundo, disfarçando?

Mulher não tem esses problemas. Barraca armada

não é fácil.

IRMÃO – Uma vez me aconteceu isso. A besta da minha irmã ficou

perguntando, insistindo, querendo saber por que é

que eu estava segurando o travesseiro na frente.

PRIMO – Um dia ela me viu assim e foi contar para o seu pai que eu

estava fazendo sacanagem. Eu estava quase

estourando!

IRMÃO – Isso é estória para boi dormir. Você não é nenhum santo. Não

vem que não tem.

PRIMO – São gozados vocês! Tudo de ruim que acontece nesta casa eu

é que sou o culpado. Deixa: qualquer dia eu vou-me

embora. Não me importo de trabalhar para me

sustentar. Não tenho mãe... Meu pai nunca quis saber

de mim... Não tenho nada a perder.

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IRMÃO – Não precisa ser tão “dramático” desse jeito!

PRIMO – Vai tomar no cu!

IRMÃO – Vai você. Você está sendo mal agradecido.

PRIMO – Vou ter que ficar agradecendo a vida inteira?

IRMÃO – Então vai procurar o seu pai, vai morar com ele e com aquela

vaca!

PRIMO – Eu já pedi para você não tocar mais nesse assunto. E, por

falar em vaca, como vai a sua tia?

IRMÃO – O que é que tem a minha tia? Ela é minha tia, irmã do meu

pai, é diferente.

PRIMO – Não sei por que defender tanto assim a sua tia. Todo mundo

sabe que ela... (gestos)... Só por que é sua tia?

IRMÃO – Quando for falar da minha tia, pense antes no santo do teu

pai.

PRIMO – Meu pai e homem: é muito diferente. (O irmão pega a revista

de mulher nua).

IRMÃO – Ainda bem que a gente nasceu homem. Homem pode fazer o

que quiser que não tem nada demais. (O primo

pensa, observa).

PRIMO – Escute uma coisa: o que é que você faria se pegasse a sua

irmã com um cara?

IRMÃO – A minha irmã, aliás, as minhas irmãs, nunca iam fazer uma

coisa dessas!

PRIMO – Só porque você quer.

IRMÃO – Vai tomar no cu, antes que eu me esqueça. E se eu pegar

uma delas com um cara, eu mato os dois!

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PRIMO – Machão!

IRMÃO – Cala a boca, viadinho!

PRIMO – Olha aqui o viadinho!

IRMÃO – Ainda bem que ninguém ficou sabendo que você comeu a

empregada.

PRIMO – Você também comeu. Não pode falar nada.

IRMÃO – Eu só comi depois que você falou. Eu nem sabia que ela dava.

Mas quem comeu primeiro foi você.

PRIMO – Mas que comeu, comeu. (Ouvem-se gritos. As meninas

brigam).

IRMÃO – Claro. Senão você ia dizer que eu não era homem.

PRIMO – O pau está comendo. (Entram as duas. A irmã está

possessa com a solteirona. Os meninos caçoam,

fazendo caricatura da briga. São expulsos sob a

ameaça de umas sapatadas).

IRMÃ – Tinha que contar, tinha?

SOLTEIRONA – Eu não falei nada. Eu só comentei que a sua blusa

estava rasgada. O papai é que quis saber... Mas eu só

falei mesmo que você estava acompanhada. Acho

que eu não falei nada de mais nem de menos. Tudo

que acontece nesta casa eu é que sou a culpada. Eu

não pedi para nascer! Por que não me afogaram

quando eu nasci?

IRMÃ – Bem que você merecia. Invejosa, hipócrita, mentirosa!

SOLTEIRONA – Que é que você fez do bilhete?

IRMÃ – Dei para ele entregar ao primo.

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SOLTEIRONA – E ele entregou?

IRMÃ – Na minha frente.

SOLTEIRONA – E leu na frente de vocês?

IRMÃ – Só na minha.

SOLTEIRONA – E o seu namorado?

IRMÃ – Nós terminamos tudo. A gente não tinha mesmo nada em

comum.

SOLTEIRONA – E depois que ele leu? Mandou resposta?

IRMÃ – Não. Vamos mudar de assunto que eu tenho que estudar? (A

solteirona pega-a pelo braço). Acho que eu não

nasci grudada com ninguém.

SOLTEIRONA – Que foi que ele comentou com você?

IRMÃ (Cantarolando) – Diga que já não me quer / Negue que me

pertenceu...

SOLTEIRONA – Tem coisa... Que é que ele fez depois que leu o

bilhete?

IRMÃ – Quer saber mesmo? Me pediu em namoro.

SOLTEIRONA – E você? Não aceitou.

IRMÃ – Fiquei de dar resposta...

SOLTEIRONA – E eu?

IRMÃ – Eu perguntei... Ele disse que não queria nada com você.

SOLTEIRONA – Mentirosa. Você toma de mim todos os namorados,

sempre estraga tudo! Ladrona!

IRMÃ – Sabe o que ele disse? Que você é que vive atrás dele. Que já

falou, mandou recado, que não quer nada. Que é que

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eu posso fazer se ele está mais interessado em mim

que em você?

SOLTEIRONA – Você falou mal de mim.

IRMÃ – Eu? Até te defendi. Ele que falou que você é chata, que fala

muito...

SOLTEIRONA – Mentirosa! Que mais que ele falou?

IRMÃ – Que você tem mau hálito! (Escuro. Música. Clareia. A irmã

estuda e se penteia. A solteirona está rodeando).

SOLTEIRONA – Eu queria que você me emprestasse o caderno de

latim para eu copiar uma coisa.

IRMÃ – Que coisa?

SOLTEIRONA – Não vai dar tempo para eu estudar para a sabatina e

eu vou fazer uma cola. Estou precisando de nota.

IRMÃ – Por que você não estuda?

SOLTEIRONA – Eu estudo, mas não guardo nada...

IRMÃ – Burra!

SOLTEIRONA – Eu sei que eu sou burra e que você é inteligente. Não

precisa nem falar. Também, protegida do professor...

É claro que ele dá nota alta. Eu não fico mostrando a

perna. É por isso que ele me persegue. (O primo,

vindo de fora, excitadíssimo).

PRIMO – Diz que viram de novo o tarado!

SOLTEIRONA – Eu não vou dormir sozinha na minha cama esta noite!

IRMÃ – Na minha é que você não vai dormir.

PRIMO – A gente tranca bem as janelas e as portas antes de dormir e

todo mundo olha debaixo da cama!

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SOLTEIRONA – Eu não olho!

PRIMO – Por quê?

SOLTEIRONA – E se ele estiver debaixo da cama? E se, na hora que a

gente for fechar a janela, aparece uma mão preta,

peluda, e agarra a gente?

IRMÃ – Você ainda tem medo de gente preta, sua racista?

PRIMO – Por que é que você tem medo de preto? Que é que eles fazem

de mal? A vizinha me contou que o tarado apareceu

correndo lá dos lados da Santa Casa, que todo mundo

gritou e ele sumiu no matinho, perto da escola!

SOLTEIRONA – Eu não vou à aula amanhã. E se ele ainda estiver lá

escondido?

PRIMO – Ele te espera e, na hora que você passar, te agarra, põe no

saco e leva!

SOLTEIRONA – Ai, ai, ai! Eu não gosto desse tipo de brincadeira! Você

não sabe que eu sou nervosa?

IRMÃ – Quando ela era pequena, ela tinha medo que o preto a levasse

dentro de um saco!

SOLTEIRONA – Vocês não acreditam, mas a mamãe sempre conta que

a priminha dela foi roubada por um preto. Ele botou a

menininha dentro de um saco e sumiu com ela!

Ninguém nunca mais soube da coitadinha! (Os dois

riem). Querem duvidar da mamãe? Querem?

Duvidem, brinquem, podem brincar...

PRIMO – Deixe de ser medrosa! Eu vou dormir.

SOLTEIRONA – Se dormir agora vai ter pesadelo.

PRIMO – Por quê?

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SOLTEIRONA – Porque comeu banana agora de noite.

PRIMO – Não enche o saco!

SOLTEIRONA – Eu só estava avisando. Estúpido! Tomara mesmo que

tenha pesadelo!

PRIMO – Tomara que o tarado esteja debaixo da tua cama! (Sai).

SOLTEIRONA – Não fica brincando? (A solteirona rodeia a irmã).

Posso ir dormir com você na sua cama?

IRMÃ – Depois do que você faz com a gente, ainda tem cara para pedir

isso? Nem pense!

SOLTEIRONA – Eu tenho medo.

IRMÃ – È porque tem a consciência culpada de tanta ruindade.

SOLTEIRONA – Deixa?

IRMÃ – Não. (A solteirona fica só, morta de medo. Olha, de longe,

todos os cantos, debaixo do armário; tira um

cobertor da gaveta. Cobre-se inteira e adormece

sentada. Sorrateiramente aparecem o primo, o

irmão e a irmã. O irmão, nu, enrolado numa toalha,

fica bem em frente dela. O primo vai por trás.

Gritam).

IRMÃ E PRIMO – Acorda! Olha o tarado! Cuidado que o tarado te pega!

(A solteirona berra e os três saem correndo.

Dramática, vai ao espelho, contempla-se com

exagerada auto-piedade).

SOLTEIRONA – O dia em que eu amanhecer morta vocês vão chorar e

sentir a minha falta. Vão ver o quanto dói uma

saudade!... (Escurece. Música).

FINAL DO PRIMEIRO ATO

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SEGUNDO ATO

Um domingo, alguns anos mais tarde. A irmã se casou e mudou. O

irmão arranjou um emprego e foi embora para algum país

estrangeiro. Os pais já não são moços. O primo, já adulto, ainda

mora em casa. Está para se casar. A solteirona continua meio

infantil. Nem pensa mais em se casar. É hora de almoço, daqueles

enfadonhos, domingueiros, uma rotina, logo após o culto

protestante. A solteirona arruma a mesa. O primo entra ouvindo um

jogo de futebol num rádio de pilha.

SOLTEIRONA – Eu já falei para você desligar esse rádio. Estou

avisando para o seu bem. Parece que falei para a

porta. Depois ele vem e desliga e você acha que

todo mundo está sempre contra você. Sorte deles

que já não moram nesta casa... Só sobramos nós

dois.

PRIMO – Será que não dá para você falar menos, que eu estou ouvindo

o jogo? Com você falando feita matraca eu não

entendo nada. Deixa ele desligar. Ainda não chegou

da igreja... Sempre fica mais um pouco conversando

com aqueles velhos chatos.

SOLTEIRONA – Você não pode me ajudar a pôr a mesa?

PRIMO – Que saco! Com duas mulheres nesta casa eu é que tenho que

ajudar?

SOLTEIRONA – Por que você não paga um empregada para ajudar a

mamãe?

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PRIMO – Está bom. Eu ajudo: saco! (O pai chega da igreja, com a

Bíblia na mão. A primeira coisa que faz é desligar

o rádio e levá-lo. Sai).

SOLTEIRONA – Eu não disse?

PRIMO – Daqui a pouco eu vou ter a minha casa, ouvir o rádio na hora e

na altura que eu quiser!

SOLTEIRONA – Você sempre foi um mal agradecido de marca maior.

PRIMO – Não precisa me jogar isso na cara de novo. Eu sei bem o meu

lugar. Não esqueço.

SOLTEIRONA – Acho bom mesmo.

PRIMO – Você tem uma ruindade! Acho que é por isso que não arruma

namorado.

SOLTEIRONA – Não arrumo porque todos só querem se aproveitar. E

depois, você não tem nada com isso e cale a boca!

PRIMO – Cala a boca já morreu; quem manda na minha boca sou eu! (A

mãe chega, atraída pelos gritos).

MÃE – Se o seu pai ouve vocês brigando vai dar encrenca. Depois

reclamam.

PRIMO – Ele não é o meu pai.

MÃE – É como se fosse, seu mal agradecido.

PRIMO – A senhora está sempre do lado dele.

SOLTEIRONA – Sempre contra a gente.

PRIMO – Quem diria? Até que enfim você está do meu lado! Está

sempre contra... Não precisa me puxar o saco! (A

mãe olha feio, censurando, e sai).

SOLTEIRONA – Vê se respeita a sua mãe.

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PRIMO – A minha mãe morreu. Ela não é minha mãe.

SOLTEIRONA – É como se fosse, seu mal agradecido.

PRIMO – Você fala igualzinho a ela!

SOLTEIRONA – Eu posso. Ela é minha mãe... (A mãe volta).

MÃE – Fiquem quietos os dois que o seu pai vem vindo. Vocês sabem

que ele não gosta de briga na mesa. Mesa é lugar de

comer, é sagrada. (O pai se senta primeiro, na

cabeceira).

PAI – Podem se sentar vocês dois.

PRIMO – E a senhora, não vai se sentar para almoçar?

MÃE – Eu vou adiantando a louça na cozinha. Depois eu como uma

coisinha. Eu não estou com fome.

SOLTEIRONA – Depois eu ajudo a senhora. Senta: a senhora só

trabalha. Vai morrer qualquer hora, de tanto

trabalhar.

PRIMO – Senta logo, puxa vida... Eu estou morrendo de fome!

PAI – Isso são modos de falar na mesa, na frente da tua mãe e do teu

pai? Seu mal agradecido. (Para a mãe). Senta aí. (O

primo faz menção de se servir). Respeito: eu ainda

não me servi.

PRIMO – Desculpe.

PAI – Não tem desculpa. Fechem os olhos que eu vou fazer oração.

PRIMO – Eu estou com fome.

MÃE – Você quer ver sua mãe ficar sem comer, quer? Seja malcriado

com seu pai, seja.

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SOLTEIRONA – Quer fazer o favor de ficar quieto? Faça a oração,

papai, faça logo.

PAI – Quem você pensa que é, assim, dando ordens para o seu pai?

MÃE – Fique quieta. Ela não vai mais falar nada. Vai ficar quieta.

SOLTEIRONA – Eu vou ficar quieta.

PAI – Todos de olhos fechados. “Eu te agradeço, Senhor, pelo alimento

que agora vamos comer, pelo pão nosso de cada

dia, pela saúde que reina neste lar. Pedimos que não

nos deixe cair em tentação, que alivie a dor dos

doentes e nos oriente sempre nos caminhos do bem

e da verdade. Pedimos também, ó meu Deus, nesta

véspera de eleição, em que vamos escolher o

dirigente desta cidade, que abençoe o nosso

candidato e oriente a todos na escolha certa.

Pedimos perdão pelos nossos pecados. Amém”.

TODOS – Amém.

PAI – Amanhã todo mundo bastante cuidado para preencher as cédulas.

Se errarem o nome do candidato, anula o voto.

MÃE – Eu já escrevi num papelzinho.

PAI – E vocês dois? (Uma conversa muda entre a solteirona e o

primo denuncia que eles não vão votar no

candidato do pai). O que é que você está falando?

Ele não vai votar em quem eu mandei?

MÃE – Por que é que você foi falar disso justo na hora de comer?

PAI – Você não vai votar no nosso candidato? Em quem vai votar,

posso saber?

PRIMO – Não vou mesmo. Não voto em assassino, em ladrão... Voto

em quem eu quiser.

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PAI – Quem você pensa que é? O dono da verdade?

PRIMO – Eu posso não ser o dono da verdade, mas as coisas que eu

sei daquele sujeito...

PAI – O que é que você sabe?

SOLTEIRONA – Não foi ele quem matou a filha, de tanto bater? Não

sou eu que estou inventando, foi ele que me contou.

Eu não ia votar em quem o senhor mandou porque

ele me contou isso. Eu não ia votar numa pessoa

que matou a filha. Eu pensei que o senhor não

soubesse... Diz que ele matou a filha de tanto bater!

PAI – É mentira! Repita isso que eu quero ouvir, repita!

MÃE – Pelo amor de Deus, na mesa não!

PAI – Repita desgraçada, prostituta, vagabunda, mentirosa!

SOLTEIRONA – Mas foi ele que me contou!

PAI – Prostituta sem-vergonha! Vai catar homem na rua!

MÃE – Não fale desse jeito com a menina!

PAI – Se tivesse tido mais cuidado na educação deles, não teriam dado

dois vagabundos, ordinários! Eu trabalhei feito um

burro e o que eu tenho dentro de casa? Uma

cambada de vagabundos!

SOLTEIRONA – Mas foi ele quem me contou aquilo. Eu voto em quem o

senhor quiser.

PAI – Se for homem, repita o que falou para a sua irmã, seu

desgraçado!

PRIMO – Se o senhor me encostar a mão... Eu estou avisando. Ele

matou mesmo a filha, matou. Todo mundo sabe. De

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tanta pancada. Não sossegou enquanto não viu a

moça morta!

PAI – Vai ver que a vagabunda não valia nada. Se ele fez isso é que

precisava. Era isso que eu devia fazer com vocês

dois, seus vagabundos, ordinários! Devia bater até

rolar no chão! Vagabundos. Vai catar na rua um

homem que te sustente! (A solteirona tem ânsias

de vômito. Fica acuada num canto. A mãe e o

primo tentam protegê-la, abraçá-la, mas ela

repele os dois. O pai abandona a mesa,

derrotado. Saem as duas). Eu trabalhei tanto, tanto,

para dar de comer a essa gente... Tanto, meu Deus!

PRIMO – Eu vou sumir desta casa e ninguém nunca mais vai me ver! Eu

estou cheio! (Sai. Escuro. Clareia. As coisas vão

continuar como estão. O pai, na mesma posição.

A mãe chega com o primo e a solteirona).

MÃE – Tomem a bênção de seu pai.

PRIMO – A bênção.

PAI – Deus te abençoe.

SOLTEIRONA – A bênção, pai.

PAI – Deus te abençoe. (A mãe sorri. Acha que a paz voltou ao lar.

Os dois saem meio humilhados. A mãe fica com

o pai. Escuro. Música. Clareia. Os tempos

difíceis. Sentada em uma cadeira, a mãe prega

botões em uma camisa. Chora, às vezes. Parece

que pensa em alguma coisa que muito a

preocupa. A solteirona chega, vê o estado de

tristeza da mãe e tenta consolá-la).

MÃE – Nenhuma carta de seu irmão? Nem de sua irmã?

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SOLTEIRONA – Eu se fosse a senhora, esquecia aqueles dois. O primo

que nem irmão é, está aqui com a gente, aguentando

firme. A minha irmã, depois que se casou e ficou

rica, ficou orgulhosa... Para falar com ela precisa

marcar audiência. (Batem palmas).

MÃE – Vai ver quem está batendo. Não, não vai. (Palmas). É melhor ir.

Ai, meu Deus, se for gente procurando o seu pai,

diga que ele não está.

SOLTEIRONA – E se perguntarem em que hora ele chega o que é que

eu falo?

MÃE – Eu também não sei. (Palmas). Fale para procurar seu pai no

serviço. (A solteirona sai).

SOLTEIRONA (Voltando) – Era aquele senhor que era sócio dele.

Disse que já passou no serviço e que ele não estava

lá.

MÃE – E o que é que você fez?

SOLTEIRONA – Falei para ele passar de noite. Por que ele não veio

jantar ontem?

MÃE – Eu pergunte, ele não quis falar... Eu não sei o que está

acontecendo.

SOLTEIRONA – Vão prender ele? Ele fez alguma coisa?

MÃE – Eu não sei o que está acontecendo.

SOLTEIRONA – A senhora acha que ele vem para o jantar?

MÃE – Eu não sei... Ontem, depois que vocês foram dormir, ele se

levantou e saiu.

SOLTEIRONA – E a senhora deixou? Nem perguntou aonde ele ia?

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MÃE – Ele anda mudo... Quando eu perguntei, não quis responder... Foi

tão bruto quando o agarrei... Me deu um empurrão

que caí no chão. Ficou até uma mancha roxa na

perna.

SOLTEIRONA – Por que a senhora não chamou a gente?

MÃE – Vocês já tinham apagado a luz.

SOLTEIRONA – E a senhora ficou sozinha? Por que não me chamou?

Eu dormia junto com a senhora...

MÃE – Eu pensei que ele ia voltar e fiquei esperando.

SOLTEIRONA – E não dormiu enquanto ele não chegou?

MÃE – Ele não chegou... (Chora baixinho).

SOLTEIRONA – Mãe: escuta uma coisa... (A mãe olha no vazio).

Mamãe: escuta uma coisa que eu quero dizer para a

senhora. (A mãe continua na mesma). Eu vou

contar uma coisa boa, para a senhora ficar alegre e

esquecer tudo isso, escuta? (A mãe começa a

soluçar). No que é que a senhora está pensando?

MÃE (O primo está entrando) – Ele me chamou de cadela... Eu não fiz

nada para ele... Me chamou de cadela... (Abraça-se

ao primo e depois sai).

SOLTEIRONA – Estou com pena da minha mãe. Não sei o que está

acontecendo com o meu pai... Não sei o que fazer.

Parece que Deus se esqueceu da gente. Não sei o

que vai ser de mim...

PRIMO – Eu te levo para morar comigo, ninguém vai te abandonar. Não

chore, que nós dois precisamos ser fortes agora.

Segura na minha mão, segura. As coisas vão

melhorar: tudo passa.

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SOLTEIRONA – Você agora vai casar; abandonar a gente... Casa

mesmo, bobo, não vai fazer como eu que fiquei para

titia.

PRIMO – Eu não vou abandonar ninguém, nós vamos alugar uma

casinha aqui perto.

SOLTEIRONA – Vocês vão dar festa?

PRIMO – Com o dinheiro de quem? Seu?

SOLTEIRONA – Mas não dizem que a família dela é de gente mais ou

menos?

PRIMO – Mais para menos que para mais.

SOLTEIRONA – Você devia ter arranjado uma noiva rica, pelo menos

mais remediada.

PRIMO – Eu gosto dela. E ela de mim.

SOLTEIRONA – Só amor não enche barriga.

PRIMO – Pode deixar que eu encho a barriga dela.

SOLTEIRONA – Sem-vergonha!

PRIMO – E a sua barriguinha: já desistiu de encher?

SOLTEIRONA – A esperança é sempre a última que morre, não é? (Os

dois estão rindo quando o pai entra meio

desesperado, e a tensão volta. Ela sai. O pai pega

uns papéis, documentos, no armário e procura

aflito alguma coisa. O primo, cauteloso, se

aproxima).

PRIMO – A gente precisava conversar.

PAI – Agora não.

PRIMO – Tem que ser agora.

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PAI – Eu já disse que agora não! Tem gente me procurando.

PRIMO – Eu avisei todo mundo que era para falar que o senhor não

estava. (O pai remexe bolsas, revira papéis. O

primo o observa).

PAI – Não fique me olhando: nunca me viu?

PRIMO – Eu preciso falar com o senhor.

PAI – Suma daqui, seu vagabundo!

PRIMO – Está bom. Não precisa ficar nervoso: eu saio. (O primo sai. O

pai continua sua procura. Batem palmas.

Desespero por não poder sair. A solteirona vai

atender e volta).

SOLTEIRONA – Tem um homem procurando o senhor, eu mando

entrar?

PAI – Não. Fale que eu estou dormindo. Não: fale que eu não estou.

SOLTEIRONA – Ai, mas eu já falei que o senhor estava. Era o pai da

minha amiga e é na casa dela que eu escuto rádio...

PAI – Eu não quero ver ninguém agora! Me chame a sua mãe.

SOLTEIRONA – Ela está deitada. Tomou um comprimido e eu falei para

ela se deitar um pouco. Por que estão procurando

tanto o senhor?

PAI – Eu vou sair, vê se não tem ninguém na porta dos fundos.

SOLTEIRONA – O senhor não vai jantar? Tem rabada, que o senhor

gosta.

PAI – Eu não quero comer nada. Vai ver se tem alguém nos fundos.

Não tem ninguém na sala?

SOLTEIRONA – Não. O homem está no portão da frente.

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PAI – Vai ver se não tem mesmo ninguém nos fundos. (Entra a mãe).

SOLTEIRONA (Saindo) – Espere um pouco.

MÃE – Quer que eu faça um ovo frito? Você nem almoçou...

PAI – Eu vou sair. Não fique na minha frente? (A solteirona volta, o

primo passa e vai ver o homem que estava

batendo).

SOLTEIRONA – Passou a dor de cabeça, mamãe?

MÃE – Onde você vai?

PAI – Eu nunca dei satisfação dos meus atos para ninguém e não vai

ser agora que eu vou dar!

MÃE – Mas o que está acontecendo? (O primo volta).

PRIMO – O homem já foi embora.

SOLTEIRONA – Acho que cansou de esperar. Só quero ver agora para

eu escutar a novela!

PAI – Mas ele vai voltar, todos esses filhos da puta vão voltar!

MÃE – Não precisa falar palavrão!

PRIMO – Deixe ele falar.

PAI – Aqueles filhos da puta, filhos da puta...

MÃE – Por favor: aqui em casa eu nunca deixei falar palavrão, não dê

mau exemplo!

PAI – Eu ainda mando nesta casa, falo quantos palavrões eu quiser!

PRIMO – Deixa ele falar, não vê como ele está nervoso?

MÃE – Eu não falo mais uma palavra.

PAI – Eu vou sair, não quero que ninguém me impeça!

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PRIMO – Nós precisamos conversar. As coisas não podem ficar desse

jeito. A gente precisa saber o que está acontecendo

para tomar alguma providência.

PAI – Não tem mais jeito.

PRIMO – Tem que ter algum jeito. O senhor falou com o seu irmão? Ele

é rico... E se não é rico, pelo menos está bem de

vida, pode ajudar.

PAI – Eu não quero que ele saiba!

SOLTEIRONA – Quer que eu escreva? Eu escrevo, não custa: eu tenho

letra boa.

PRIMO – Escrever demora muito. É melhor dar um telefonema. Vá à

telefônica e ligue para o seu tio.

PAI – Se vocês fizerem isso, vai ser a última vez que vão me ver!

MÃE – Pelo amor de Deus, não fale assim!

PRIMO – Vai telefonar sim, vai, vai telefonar. Ele precisa ficar sabendo.

É irmão: tem que ajudar.

SOLTEIRONA – Mas quem vai pagar o telefonema? Na telefônica não

fazem fiado.

PRIMO – Pede ligação a cobrar: diz que é urgente!

SOLTEIRONA – E se a minha tia não concordar em pagar?

PRIMO – Manda ela á merda e diz que é urgente!

SOLTEIRONA – Estúpido!

PAI – Eu não quero que ele saiba, eu não queria fazer ninguém passar

vergonha.

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PRIMO – Agora não é hora de ter vergonha, não dá para pensar nisso.

Pior é ver o senhor se escondendo de gente que

vem toda hora para cobrar.

PAI – Eu vou sair.

MÃE – Onde você vai?

PAI – Não sei.

SOLTEIRONA – O senhor volta para o jantar?

PAI – Eu não sei.

PRIMO – O que é que o senhor vai fazer?

PAI – Vou sair por aí.

MÃE – Quer que eu faça um prato para você comer antes de sair? Um

copo de leite com açúcar?

SOLTEIRONA – O leiteiro! Precisa pagar o leiteiro!

PRIMO – Cala essa boca, agora não é hora de falar nisso! Será que

você não desconfia que agora não é hora?

SOLTEIRONA – Eu só estava falando, desculpe, eu calo a minha boca.

Eu só falo besteira mesmo...

PAI – Não precisa me esperar com nada, eu vou sair. (Sai. A mãe e a

solteirona choram, o primo tenta consolá-las. A

solteirona ainda está brava por causa do grito do

primo).

MÃE – Meu filho, nunca abandone a gente.

PRIMO – Eu vou ficar com vocês, não precisa ter medo. A gente vai

telefonar, as coisas vão melhorar. (Para a

solteirona). Me desculpe, eu estava nervoso... (Ela

dá de ombros).

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MÃE – O que é que está acontecendo? Ele sempre foi um homem tão

direito... Nunca matou nem roubou... É um homem

que não fuma, não bebe, sempre dormiu cedo,

acordou cedo, sempre trabalhou tanto... E agora todo

mundo diz que ele deve dinheiro...

SOLTEIRONA – Não foi comigo, pelo menos, que ele gastou. Eu nunca

dei despesa. No que eu posso, eu ajudo.

PRIMO – Não foi com você, todo mundo sabe.

MÃE – Nunca fui de luxo... Nem sou uma dessas gastadeiras que

querem tudo que veem... Não sei como ele pode se

endividar tanto. Será que ele vai ser preso?

SOLTEIRONA – Será?

MÃE – Que foi que ele fez meu Deus?

PRIMO – Ele quis progredir.

MÃE – Mas para quê?

SOLTEIRONA – Progredir? Para a gente passar por isso que estamos

passando?

PRIMO – Ele achava que as coisas iam dar certo... Pegou dinheiro

emprestado a juros muito altos, comprou terrenos,

não pagou nem conseguiu vender, passaram a perna

nele e agora tem dívidas por todo canto...

MÃE – Deve ter sido conselho de más companhias... Por que ele não

fez essas coisas com gente de confiança, alguém da

igreja, pelo menos?

PRIMO – Quem passou a perna nele foi gente de confiança, gente da

igreja.

MÃE – Eu não acredito.

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PRIMO – Eu sei que a senhora não acredita, mas foi.

MÃE – Vai ver que ele quis ajudar alguém...

SOLTEIRONA – Ele sempre ajudou.

PRIMO – Você não quer ir telefonar? Quanto mais depressa, melhor. A

sua irmã não tem telefone, não?

SOLTEIRONA – Tem numa vizinha, mas ela escreveu que ia viajar...,

que ia levar as crianças para passar as férias na

praia...

PRIMO – Então, ligue mesmo para o seu tio.

SOLTEIRONA – E se a telefonista ficar ouvindo tudo? Eu vou passar a

maior vergonha!

PRIMO – Vá para o inferno, você e a telefonista!

SOLTEIRONA – Estúpido, estúpido! Quem vai passar vergonha sou eu

e não você!

MÃE – Não gritem, os vizinhos podem ouvir e pensar que vocês estão

brigando! Não quero que pensem mal da minha

casa! Se quiserem brigar, se tranquem no quarto e

não ergam a voz! Eu ainda estou viva! Depois que eu

morrer vocês podem gritar o quanto quiserem!

SOLTEIRONA – Mas o que foi que eu disse demais?

PRIMO – Numa hora dessas, com a situação ruim desse jeito, com

todos os problemas do seu pai, você ainda pensa em

passar vergonha só porque a telefonista vai ouvir?

Tamanha marmanja! Você prefere ver seu pai nesse

estado, prefere que ele tome um veneno, prefere?

SOLTEIRONA – Deus que me perdoe que eu não quero nada disso!

PRIMO – Vai logo, então, para a telefônica, pamonha!

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SOLTEIRONA (Saindo) – Está bom, eu já vou, não precisa gritar. Que

estupidez!

PRIMO – Me desculpe por ter gritado.

MÃE – Deixa meu filho, já passou. (Chora baixinho. Vai até o primo e

passa a mão no seu cabelo). Eu sempre ficava, de

noite, pensando em você, meu filho...

PRIMO – Que engraçado...

MÃE – Acho que você sempre pensou que eu preferia mais os meus

filhos, não pensou?...

PRIMO – Eu acho que a senhora sempre se esforçou...

MÃE – Por que você nunca me chamou de mãe, como os outros? Eu

sempre te pedia isso quando você era

pequenininho...

PRIMO – É uma coisa que eu não sei explicar... Eu tinha vontade, mas

não tinha coragem... Parecia que se eu a chamasse,

a minha mãe não ia gostar, que ia achar que a

esqueci... Não sei explicar. Eles iam ficar com

ciúme... Eu nunca consegui chamar a senhora de

mãe...

MÃE – O meu marido também não faz diferença entre você e os outros.

Estima a todos igual.

PRIMO – A estima dele é muito difícil de entender. Parece que eu nem o

conheço. Os outros também pensam assim. Sempre

achávamos que ele não gostava da gente.

MÃE – Mas ele gosta, eu sei. É o jeito dele...

PRIMO – E a senhora? Não foi difícil viver com ele?

MÃE – Como assim, difícil?

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PRIMO – Difícil... Ele não é de falar muito, não leva a senhora a lugar

nenhum, não dá presentes... Eu nunca vejo ele

sendo carinhoso...

MÃE – Mulher é que é mais carinhosa: homem não precisa... Acho que

não fica bem...

PRIMO – E a senhora não sente falta dessas coisas?

MÃE – Eu acho que já me acostumei... E, que é que eu posso fazer? Se

eu escolhi casar com ele, tenho que ficar com ele.

PRIMO (Um tristonho sorriso) – Eu vou me encontrar com ela na

telefônica. Já volto. Por que a senhora não se deita

um pouco?

MÃE – Eu vou ficar esperando por ele. Vai meu filho, vai. (O primo sai,

a mãe vai para dentro, mas volta. O pai chega).

PAI – Por que você não foi se deitar ainda?

MÃE – Eu não consigo dormir enquanto tem algum na rua.

PAI – Eles já dormiram?

MÃE – Onde você estava?

PAI – Em nenhum lugar.

MÃE – Está bom, então...

PAI – Não precisa ficar desconfiada que eu não estava em casa de

mulher da vida.

MÃE – Se você foi, ou for, algum dia, eu gostaria de não ficar sabendo.

Nem que as crianças soubessem...

PAI – Eu quero morrer...

MÃE – Não presta falar assim. Não chega o que nós já estamos

passando? (A conversa para com a passagem do

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primo e a solteirona que estão voltando da

telefônica. Vão para dentro). Eu tenho alguma

culpa disso tudo que está acontecendo?

PAI – Você não tem culpa de nada. A culpa é minha. Eu é que sou o

culpado. Eu queria melhorar, ganhar mais, dar mais

conforto para vocês...

MÃE – Eu nunca quis nada mais do que o que você me deu. Para mim

estava bom... Deus me perdoe, mas parece que

você passou a gostar mais do dinheiro do que dos

filhos... Para mim eu não reclamo nada, falo mais

pelas crianças...

PAI – Ninguém é mais criança nesta casa. Uma já se casou, o outro

arranjou aquele emprego e foi para o estrangeiro...

Nenhum dos dois se lembra de nós. Se gostassem

do pai e da mãe, não teriam saído de casa, estariam

aqui ajudando.

MÃE – Bem que eu gostaria que ficassem sempre juntos, todos...

Quando um filho cresce não é mais da gente, não dá

para segurar. Mas esses dois ficaram... Você não se

preocupa com ela? Nunca deixou a coitada namorar

e agora não vai mais arranjar casamento. Eu me

preocupo muito, você nem liga.

PAI – Foi bom ela não ter se casado, assim você não fica sem

companhia.

MÃE – Eu não queria que filho meu só servisse para isso. Você parece

que não gosta deles, nunca teve paciência... Nunca

vi um deles conversando com você, recebendo um

agrado seu...

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PAI – Eu nunca tive tempo para essas coisas, trabalhei desde menino.

Meu pai e minha mãe também nunca tiveram tempo

para isso.

MÃE – Então, por que tivemos filhos?

PAI – Todo mundo não tem?

MÃE – Eu nem sei o que falar... Se eu puder ajudar em alguma coisa...

(Longa e constrangedora pausa. Ela, imersa em

tristeza, raiva, ressentimento. Ele anda relutante,

pela sala, até aproximar-se dela. Coloca a mão

em seus cabelos. Parece um raro momento de

carinho. Ela o abraça. Reagindo a um inesperado

gesto do marido, que lhe acaricia o seio, meio

desajeitado, meio bruto). Que é que você está

querendo? Pare com isso, eu tenho vergonha!

(Violento, ele insiste e deita-a no chão). Eu não

quero fazer isso! (Ele ergue-lhe o vestido e abre a

braguilha). Eu não quero fazer isso!

PAI – Vai fazer nem que não queira, ainda é minha mulher!

MÃE – Eu já estou velha, eu tenho vergonha!

PAI – Eu quero. Vai com vergonha ou sem vergonha! (A mãe se

abandona, intimidada pela brutalidade do marido.

Chora baixinho. O marido se deita sobre ela, mas

é acometido por um choro convulsivo. O primo e

a solteirona - atraídos pelo barulho - chegam).

SOLTEIRONA – Mãe, pai, o que está acontecendo, meu Deus? (Ajuda

a mãe a se erguer). O que aconteceu, mãe? Eu já

pensei coisa ruim. Que foi que aconteceu? (As duas

saem. O primo vai se aproximando do pai e vê

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que ele abotoa a braguilha. Desvia o olhar. O pai

chora).

PRIMO – O que é que o senhor tem? (O pai o agarra, parece procurar

proteção). O senhor está com medo? Ninguém vai

te fazer nada.

PAI – Tem gente me procurando?

PRIMO – É muito tarde, não tem ninguém. Vem descansar que eu fico

junto com o senhor. Não precisa ter medo.

PAI – E se me puserem na cadeia?

PRIMO – Não vão pôr, não existe motivo para isso. Dorme um pouco,

descanse.

PAI – Eu tenho medo de dormir e eles virem me buscar.

PRIMO – Eu não deixo: ninguém vai fazer nada de mal para o senhor.

Seu irmão vai chegar amanhã.

PAI – Falaram com ele? Eu pedi para não contar nada! (Desesperado

pega roupas, pastas de papéis,

desordenadamente).

PRIMO – O que é que o senhor está fazendo?

PAI – Eu vou-me embora, vou sumir daqui!

PRIMO – Por quê? Pare com isso, seu irmão vai chegar e o senhor

precisa estar aqui!

PAI – Já não chega a vergonha que eu estou passando? Ele não tinha

nada que ficar sabendo! Quem fez a burrada fui eu!

PRIMO – Não pense assim: ele é seu irmão...

PAI – Como é que eu fui dar tanta cabeçada? Tenho que fugir logo,

antes que ele chegue! Não tenho cara para falar com

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ele, com a minha cunhada! Uma vez eu pedi um

empréstimo e ele quase não me arranjou por causa

dela. Precisou mandar escondido... E eu nunca

consegui pagar. E agora isso?

PRIMO – Ele vai resolver tudo, logo acaba tudo, o senhor vai ver.

PAI – Você acha? Eu acho que ninguém mais vai ter confiança em mim.

PRIMO – Nós estamos do seu lado. Todos nós sabemos que o senhor é

um homem honesto, direito. Todo mundo erra.

PAI – E queria melhorar e não deu certo. Tudo por culpa minha.

PRIMO – Um dia vai dar certo, eu ajudo o senhor.

PAI – Minha mulher disse que eu nunca liguei para vocês. Deixei vocês

sem comida, sem roupa, deixei? Eu não sei o que

podia ter feito mais do que fiz. Você se lembra

quando chegou nesta casa?

PRIMO (Abatendo-se) – Lembro. Muito bem. Nunca esqueci.

PAI – Eu chamei a mulher e mandei ela falar para as crianças que você

devia ter tratamento igual de filho. E nunca te faltou

nada, faltou? Nós não queríamos que a sua mãe se

casasse com o seu pai, mas ela teimou e ele fez o

que fez...

PRIMO – Por favor, não fale mais nada... (Está à beira do choro, mas

o pai parece não perceber).

PAI – Eu só vou terminar. Depois não falo mais nada. Ele nem esperou

para o enterro e sumiu, com a roupa do corpo!

Ninguém nunca mais ouviu falar dele. Nunca

procurou saber se você estava vivo ou morto. Nem

para te mandar um presentinho no dia de anos! Sorte

sua que ficou morando aqui com a gente, que teve

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uma família que nunca te deixou faltar nada...

Faltou?

PRIMO (Soluçando) – Por favor?

PAI – Eu estou perguntando se faltou. Faltou? Faltou, hein? Faltou? (O

primo chora muito. O pai não entende, em seu

desespero, para se justificar. Escuro. Música.

Mudança na iluminação).

II – Envelhecimento / Velhice

Enquanto se ouve a música, ações mudas mostram o primo saindo

de casa, para se casar e a rotina da família. Os pais, já bem mais

velhos, ele bem abatido. A solteirona ainda é quase a mesma.

Despedida do primo. Solteirona faz a mala. Ele chega, os dois se

abraçam, demoradamente. A mãe vem chegando, amparando o pai.

Bênçãos e abraços. A mãe lhe ajeita o paletó e o colarinho. Um

novo e desajeitado abraço no pai. A solteirona não quer se

despedir, muito comovida. Ele sai e eles se acomodam na sala. O

pai lê sua Bíblia, cochila. As duas bordam. Tricotam. Escurece.

Clareia. Uma visita do primo.

MÃE – Mas olha só quem está aí!

SOLTEIRONA – Quem é vivo sempre aparece.

PRIMO – Nunca vi uma pessoa com tanta frase na boca! A bênção...

PAI – Deus te abençoe.

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PRIMO – A bênção.

MÃE – Deus te abençoe. Que cara mais cansada! Você já está

bonzinho, sarou da gripe? E a sua mulher? Está boa?

PRIMO – Está boa. Mandou um beijo para a senhora. Para você

também...

SOLTEIRONA – Hum...

MÃE – E as crianças? Já faz tempo que elas não veem ficar aqui com a

gente.

SOLTEIRONA – É mesmo. Por que você não trouxe elas com você?

PRIMO – Por que vocês não vão lá?

SOLTEIRONA – Me desculpe, mas a última vez que eu fui lá, ela me

tratou com o maior pouco caso.

MÃE – Seu pai até reclamou que ela não serviu um café!

PAI – Eu não reclamei de nada.

MÃE – Reclamou sim. Agora, na frente dele, você não tem coragem de

repetir. Meu filho: dá uns conselhos para ela, fala com

jeito que ela ouve...

PRIMO – Conselho para quê? Aconteceu alguma coisa?

MÃE – Eu não gosto de me intrometer, mas..., eu estou falando é para o

seu bem... Pede para ela tirar melhor o pó da casa,

para vestir melhor aquelas criancinhas, coitadas...

SOLTEIRONA – Como coisa que adianta a gente falar. As duas

coitadinhas, tão bonitinhas! Também: puxaram a você,

puxaram o nosso lado. Pareciam umas judinhas,

saíram para passear com umas roupinhas

molambentas, mal passadas... Fiquei com pena de

você.

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PRIMO – É o jeito dela. Para mim está bom como está. (Para o pai). O

senhor sabe que quando eu chego do serviço para

jantar, já está tudo na mesa, quentinho, gostoso... Eu

janto e saio correndo para a faculdade.

SOLTEIRONA – Parece que ela não gosta muito dessa faculdade.

PAI – Vocês não podem parar de fofocar? Tem que ficar enchendo a

cabeça do rapaz?

PRIMO (Preocupado) – Que foi que ela comentou da faculdade?

SOLTEIRONA – Reclamou que você só fica indo em reunião, reunião...

Olha: eu só estou repetindo o que ela me falou... Não

quero fazer fofoca. Disse que é um tal de gente te

telefonando para marcar reunião, que você chega

tarde todo dia, que não quer que ela arrume os seus

livros, que tranca suas coisas, que não conta para ela

que tanta reunião é essa.

MÃE – Olhe bem, meu filho, com quem você está andando. O mundo

está sempre tentando a gente. Cuidado com as más

companhias.

PRIMO – Não se preocupe, eu vou conversar com ela. (Levanta-se

para sair, bruscamente, deixando-os meio

desconcertados).

SOLTEIRONA – É verdade que está cheio de comunista na faculdade?

PRIMO – Você sabe o que é um comunista?

SOLTEIRONA – Não sei nem quero saber. Só sei que é coisa ruim.

PRIMO – Então não fique falando à toa. E eu não sou comunista.

SOLTEIRONA – Pelo amor de Deus: não vai contar para ela que eu te

contei, hein?

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PRIMO – Tenho que ir embora. Tchau para vocês. Qualquer hora eu

passo aí... (Está se despedindo, quando a mãe se

lembra).

MÃE – Ah, meu filho, eu estava me esquecendo... Veio um homem te

procurar... Um homem de terno. Perguntei se ele

queria deixar recado, mas ele disse que queria falar

pessoalmente.

PRIMO – Que mais?

MÃE – Daí ele me mostrou um papel com os nomes de todos os seus

amigos e me perguntou se eu conhecia. Como eu

conhecia todo mundo... (O primo emudece. O pai

adormece na cadeira, deixa cair a Bíblia. A mãe e a

solteirona o acodem. O primo sai. As duas

conduzem o pai para fora. Escuro. Música.

Iluminação central).

III – Meditação do Primo em sua Última Noite

PRIMO – Chegou o dia de comparecer diante dos homens que me

chamaram. Até que eu tive sorte. Tem muita gente

que sumiu de madrugada. Só que isso não é garantia.

Sei de outras pessoas que não voltaram. Vão me

perguntar coisas que sei e que também não sei.

(Pausa). Vai ser difícil dormir esta noite. Vai ser difícil

para a minha mulher, para a minha irmã. Das crianças

tentamos esconder nossa aflição, mas elas já nos

surpreendem brigando, chorando. Já me senti sujo e

covarde. (Pausa). Sinto uma raiva muito grande dos

meus amigos, dos companheiros que acreditavam

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numa mesma coisa. Depois que passei a ser

considerada uma pessoa perigosa, muitos mudaram

de ideia e sumiram desta casa. Ninguém mais

telefonou - pelo menos nenhum amigo... Quando a

gente ligava, nunca estavam, tinham saído: essas

coisas... É o medo. (Pausa). Meu pai, quer dizer, o

meu tio, está no hospital e, a qualquer hora, pode

chegar uma má notícia. Ninguém da família pode ficar

com ele..., porque está na enfermaria coletiva..., e só

pode ser visitado no horário... A visita é semanal e só

podemos saber dele por uma enfermeira nossa

conhecida. Ele chorou muito quando eu fui vê-lo. A

dor da doença é pouca perto da solidão, da tristeza,

da saudade que ele sente. Nunca me senti tão

próximo dele quanto desta vez. Foi duro fingir ânimo e

não chorar muito..., não contar tudo que eu estou

passando. Ele está esperando a morte, até desejando

isso, ele mesmo falou. A pobreza não deixou de

acompanhá-lo nem na velhice. Se eu pudesse, ficaria

ao menos num quarto particular. (Pausa). Tenho

medo que o procurem para saber de mim. Jamais

entenderá. Talvez até pense que cometi algum crime.

Mas eu tenho uma fé muito grande: se me acusarem

de alguma coisa, ele vai me defender! Vai agir apenas

com o coração e me defenderá com todas as suas

fracas energias. Pode morrer de desgosto, mas de

meu lado! Não quero que o maltratem nem que o

humilhem! (Pausa). Eu nunca acreditei nisso, mas

agora, nesta hora de medo, chego a desejar a ajuda

de Deus, desse Deus que eles acreditaram durante

toda a vida..., e que parece estar acertando as contas

comigo. (Pausa). Que medo eu sinto deste escuro,

desta noite que está chegando ao fim. Nunca mais

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vou poder dormir, o sono me abandonou. Quando

fecho os olhos só sinto medo. (Pausa). Um dia,

quando minha mãe morreu e o meu pai sumiu, eu

chorei porque estava me sentindo muito sozinho.

Havia muita gente no mesmo quarto, mas ninguém

me servia de companhia. Aquela noite que eles me

deixaram ficou muito comprida... (Escuro. Fim da

sequência de memórias. Mudança de iluminação).

IV

Num hospital. Cansaço. O irmão e a irmã, adultos, estão com a

solteirona. Vieram, foram obrigados a vir. A solteirona está

adormecida, tomou muitos tranquilizantes.

IRMÃ – Você tomou café?

IRMÃO – Tomei.

IRMÃ – Não quer descansar um pouco? Eu posso ficar com ela, não

consigo mesmo dormir.

IRMÃO – Eu também não. Não consegui dormir nem no avião. Só

pensava nela. Senti muita saudade... Você pode

entender? Nunca nos demos bem. Achei que iria

encontrá-la morta, que você estivesse escondendo

alguma coisa...

IRMÃ – Ainda bem que você não viu o estado dela na Delegacia: louca,

suja, desgrenhada... Chorei de pena, de vergonha, de

raiva... Fiquei com vergonha de admitir que ela era

minha irmã...

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IRMÃO – Eu sou um merda. Ela te reconheceu logo?

IRMÃ – Na hora. Se agarrou em mim com uma força! Estava tão suja,

com tanto medo, coitada... (A solteirona começa a

se mexer, pedindo água).

SOLTEIRONA – Água: me dá água...

IRMÃ – Ela está acordando. Pegue água para ela.

SOLTEIRONA – Eu quero água...

IRMÃ – Ele foi buscar. Você está com sede?

SOLTEIRONA – Eu estou com sede. Eu quero água...

IRMÃO – Erga um pouco a cabeça dela. Tome devagar. (Escuro. Som

de tique-taque de relógio. Clareia. Pequena

passagem de tempo. A solteirona, mais animada,

está feliz com a presença dos irmãos).

SOLTEIRONA – Como é bom ver vocês.

IRMÃ – Você estava com saudade?

SOLTEIRONA – Eu pensava que nunca mais ia ver ninguém. Pensava

que não queriam mais me ver...

IRMÃO – Nada disso. É que eu estava morando muito longe, você sabe.

IRMÃ – E eu estou sempre muito ocupada com meu marido, meus

filhos...

SOLTEIRONA – Que bom, meu Deus, que bom que vocês voltaram. Eu

tinha tanta fé! Nunca perdi essa fé. Eu tinha uma

esperança, uma certeza, que um dia a gente ia se

juntar de novo para nunca mais me separar. (O irmão

e a irmã, incomodados pelo que ela falou,

desvencilham-se do abraço). Por que vocês não

estão contentes? Eu não aguentava mais ficar longe

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de vocês, da minha família. Deus é grande, nos juntou

de novo. Agora eu vou poder ter de novo aquela coisa

bonita da família em união... Como eu agradeço ao

Senhor por isso!

IRMÃO – Escute uma coisa que eu quero te falar.

SOLTEIRONA – O que é que é? Fale que eu quero matar a saudade.

Fazia tanto tempo que eu não te via... Você sentiu a

minha falta? Eu sabia adivinhar tudo que você queria.

(Para a irmã). E só em você eu tinha confiança, você

se lembra?

IRMÃ – A gente precisava te explicar uma coisa.

SOLTEIRONA – Você era tão medrosa... Quando chovia, que tinha

relâmpago, trovão, você corria para a minha cama e

eu lia a Bíblia até você dormir...

IRMÃO – Deixa eu falar uma coisinha?

SOLTEIRONA (Não ouvindo, entrando em clima de sonho, euforia) –

Vai ser tudo de novo como antigamente, melhor ainda!

(Mudança de luzes. Clima de irrealidade festiva.

Música de banda. Iluminação no guarda-roupa,

festiva, colorida. Alteração no comportamento dos

irmãos, que cumprem o sonho da solteirona.

Aparece, criança, o primo, morto há muito tempo.

Todos voltam à infância. O primo brinca com o

irmão. A solteirona e a irmã colocam um porta-

retratos com fotos do pai e da mãe no guarda-

roupa. Os quatro cantam uma sequência de

canções de aniversário, de Natal, de ano-novo.

Quando começam a cantar a Canção da

Despedida, ela reage, derrubando o retrato dos

pais. O primo some. Volta a realidade).

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SOLTEIRONA – Essa música não! Essa música não! A gente não devia

cantar coisa triste! (Entra em crise furiosa).

IRMÃO – Olhe para mim, escute uma coisa!

SOLTEIRONA – Não: eu não vou olhar para ninguém! Nunca mais na

minha vida!

IRMÃ – Calma: ninguém te fez nada de mau!

SOLTEIRONA – Não fizeram? Não fizeram? Vocês se esqueceram de

mim, do papai, da mamãe! Esqueceram, não

esqueceram? A vida inteira vocês fizeram tudo que

podia ser de ruim para mim e para o primo! Ele

morreu: sorte dele! Coitado... Vocês nunca ligaram se

a gente estava passando fome, passando

necessidade... Não escreviam, não telefonavam... O

papai e a mamãe viviam esperando. E morreram

esperando.

IRMÃ – Eu quero ir embora!

SOLTEIRONA – Eu nem sei por que é que vocês vieram... Se foi só por

minha causa, podem ir, os dois! Eu já me acostumei a

ficar sozinha. Depois daquele asilo em que vocês me

puseram não podem fazer nada de pior!

IRMÃO – Eu não estava aqui.

IRMÃ – Realmente, você não estava nem queria saber o que estava

acontecendo.

SOLTEIRONA (Ao irmão) – Eu escrevi tanto para você. A mamãe

escrevia e você não respondia... O papai, quando

estava no hospital, perguntava e a gente tinha que

mentir que você ia chegar... É mentira o que eu estou

falando? Ou vocês vão continuar dizendo que eu sou

burra, mentirosa, que eu só faço futrico? Morreram

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todos: o primo, o papai e a mamãe... Algum de vocês

apareceu? Só eu acompanhei os três!

IRMÃ – Eu mandei dinheiro para ajudar.

IRMÃO – Grande coisa!

IRMÃ – Você não pode falar nada.

IRMÃO – Eu estava muito longe.

IRMÃ – Eu sei por que você foi para longe.

SOLTEIRONA – Por que você não volta? É solteiro, não tem família

mesmo... Volta para morar comigo? Me leva com

você?

IRMÃ (Ironizando) – É mesmo. Por que você não volta? Por que não

leva ela para morar com você? (O irmão nem olha

nem responde).

SOLTEIRONA (À irmã) – O papai e a mamãe viviam reclamando,

dizendo que os teus filhos nem pareciam netos

deles... Acho que você tinha vergonha da gente...

Casou, ficou rica, se esqueceu dos pobres...

IRMÃ – Eu não sou de fazer diferença com ninguém. Se eu não ia mais

vezes é por que não podia...

IRMÃO – Só deu para eu voltar uma vez. Você não se lembra quando

eu fiquei doente, fiz aquela operação e passei um mês

com vocês?

IRMÃ – Ficou porque precisou deles... Eu nunca me aproveitei, pelo

menos nisso eu posso ficar tranquila.

IRMÃO (Avançando) – Como você é maldosa! Você, a boazinha da

família, a ajuizada, não passa de uma boa vaca! (Os

dois se estapeiam).

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IRMÃ – Para de me ofender? (A solteirona se assusta com a

violência da briga entre os dois irmãos. Depois da

briga aproxima-se da irmã).

SOLTEIRONA – A mamãe sempre fez diferença entre nós duas.

Sempre era para você o melhor vestido, o melhor

sapato... Eu só ganhava o que ficava velho ou que

alguma prima dava...

IRMÃ – Imaginação sua.

SOLTEIRONA – Você tinha tudo que queria... Até na escola os

professores te protegiam... Por isso é que você

conseguiu se formar. Eu fiquei marcando passo.

Passei a vida ouvindo todo mundo dizer que eu era

burra!

IRMÃ (Enfurecida, parece ter voltado à adolescência) – Burra não,

preguiçosa, só! Preguiçosa! (Avança na irmã aos

tapas).

IRMÃO – Você ficou louca? Pare com isso!

IRMÃ – Você não está vendo que ela está me provocando?

IRMÃO – Ficou criança de novo? (Chacoalha violentamente a irmã até

fazê-la voltar à realidade).

IRMÃ – Me desculpe, eu não sei o que aconteceu comigo.

SOLTEIRONA – O papai sempre foi bruto comigo. Todo mundo era. Se

eu arranjava namorado, vocês iam contar e ele me

batia. E a mamãe sempre ficava do lado dele. Eu

sempre fui o capacho de todo mundo!... Que é que

adiantou eu ir tanto à igreja, pedir a Deus? Foi isso

que Deus me deu? Isso? Ficar assim, ninguém querer

saber de mim, me deixar jogada desse jeito? A

mamãe e o papai sempre falavam que a gente, sendo

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direita, tendo fé, a gente ia ser feliz, que Deus nunca

ia se descuidar... E foi isso que eu ganhei de Deus?

Que será que eu fiz de errado para ter tanto castigo?

(Forte crise de choro, imprecações, autoagressão).

IRMÃO – Nós não vamos mais te deixar...

IRMÃ – Pelo amor de Deus?... (A solteirona se assusta com as

imprecações que falou contra Deus).

SOLTEIRONA – Me perdoe. Deus me perdoe, Deus me perdoe... Que é

que eu falei? Eu não falei de coração, meu Deus... Se

foi essa a vida que eu tive, deve ser porque Deus

escolheu assim. Me perdoe, meu Deus...

IRMÃO – Não é possível alguém pensar desse jeito!

IRMÃ – Foi assim que aprendemos... Só que ela acreditou.

SOLTEIRONA – Eu te peço perdão, meu Deus. Nunca mais vou falar

desse jeito. (Enquanto fala com Deus, os irmãos

conduzem-na para a cadeira).

IRMÃ – Tome isso.

SOLTEIRONA – Eu não quero.

IRMÃO – Tome: você precisa descansar um pouco.

SOLTEIRONA – Vocês não vão aproveitar que eu estou dormindo para

ir embora?

IRMÃ – Não, não precisa ficar com medo. É só para você descansar,

ficou muito nervosa. (A solteirona toma o calmante,

agarrada aos irmãos. Aos poucos vai

adormecendo. Sua respiração é difícil. Os dois a

observam. Passagem de tempo. Escurece. Música.

Clareia). Um pouquinho que eu feche os olhos eu vejo

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o papai, a mamãe, o primo... Agora não dá mais para

fazer nada por eles.

IRMÃO – Eu tenho a mesma sensação... É horrível. Espero que algum

dia isso passe senão vou ficar louco. Será que ela vai

morrer? Esquece o que eu falei.

IRMÃ – Por que você está perguntando isso?

IRMÃO – Esquece. Sabe essa vez que eu voltei? Nos primeiros dias,

pensei até em morar de novo com eles. Os dois,

velhinhos, simpáticos, estavam tão felizes com a

minha presença que até me esqueci das coisas

chatas do passado.

IRMÃ – Eu fui ficando cada vez mais aflita, vendo que a vida deles

estava terminando e o que isso significava.

IRMÃO – Como assim?

IRMÃ – Me dava tristeza, saudade, preocupação... A velhice deles, as

doenças, a hora que morressem: tudo isso ia ser

problema para mim... Além disso tudo, ainda tinha a

nossa irmã... Ia sobrar tudo para mim... Você estava

no estrangeiro...

IRMÃO (Fugindo ao olhar da irmã) – Será que ela vai morrer?

IRMÃ – Por favor...

IRMÃO – Você tem condições de levá-la para morar na sua casa?

IRMÃ – O meu marido... Eu e o meu marido... Não sei se ela teria

aguentado um casamento...

IRMÃO – Por que você está falando isso? Estão pensando em se

separar?

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IRMÃ – Nada disso, eu não vou me separar dele. Não gosto nem de

pensar nisso. Meu Deus: será que ela vai morrer?

SOLTEIRONA – Não, ainda não. (Música. Alteração nas cores da

iluminação. Irrealidade. A hora dos acertos finais.

Um clima absolutamente irreal. A solteirona,

lúcida, comanda uma civilizada e fria reunião de

família. A conversa é prática, desapaixonada. A

solteirona arruma as cadeiras e convida os irmãos

a sentarem). E agora? O que vai acontecer comigo?

Você volta? Volta para cá?

IRMÃO – Não. Não aguento ficar aqui.

SOLTEIRONA – E você?

IRMÃ – Que é que você quer me perguntar? Se você vai comigo para a

minha casa?

SOLTEIRONA – É isso mesmo que eu ia perguntar.

IRMÃ – Não dá. Por causa do meu marido.

SOLTEIRONA – Só por isso?

IRMÃ – Por causa das crianças, também.

SOLTEIRONA – Se não fosse por eles, você me levaria?

IRMÃ – Não. Só se não houvesse mesmo uma saída.

SOLTEIRONA – O que vai ser de mim, você sabe?

IRMÃO – Sei. Já combinamos.

SOLTEIRONA – E você?

IRMÃ – Também sei. Combinamos juntos.

SOLTEIRONA – O que vai ser de mim?

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IRMÃO – Não vou falar na sua frente. Não tenho coragem.

IRMÃ – Nem eu.

SOLTEIRONA – Vocês vão sumir enquanto eu durmo, não é?

IRMÃO E IRMÃ – É.

SOLTEIRONA – Os parentes já disseram que cuidar de mim não é de

responsabilidade deles.

IRMÃO – O ideal seria se o primo não tivesse morrido. Vocês se davam

bem, não é mesmo? (Aparece o primo, com o terno

de sua última noite. Segura na mão uma vela e

tem, no pescoço, uma coroa de defuntos, para

evidenciar bem que está morto. Há bom humor em

sua pessoa).

PRIMO – Eu era muito ligado a ela, só que eu morri. Me mataram.

IRMÃ – Você seria a solução ideal. Agora não estaríamos com este

problema.

PRIMO – Mas vocês estão com o problema. Agora. Não é imaginação

de ninguém. Estou morto há muito tempo. Acharam

que eu não devia viver.

SOLTEIRONA – Falaram que você morreu de ataque do coração. Nem

eu acreditei. E olha que eu sempre fui muito burra,

todos vocês falavam.

PRIMO – Eu inclusive.

SOLTEIRONA – Besta!

IRMÃO – Se você estivesse vivo... Por que te mataram? Adiantou

alguma coisa?

PRIMO – Não sei se adiantou me matarem. Eu só queria ler, pensar,

falar... Não fez muito sucesso a minha morte. Outros

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ficaram ou eram mais famosos. Morri num fim de

corredor, num cantinho, de chão de cimento. Só me

deixaram de calça e sapatos, sem cinto nem cordões.

Estava muito frio. Aí terminou a minha história. Não foi

do coração que eu morri. Nem foi suicídio!

IRMÃ – Eu quero continuar com o meu marido. Já não há mais nada

que nos ligue: nem paixão nem desejo, só uma

convivência sem graça, para manter as aparências.

IRMÃO – Aqui eu não fico, volto para o estrangeiro. Lá eu levo uma vida

sem compromissos. Não suporto compromissos.

Agora vou ter que ganhar mais para mandar o

dinheiro da sua hospedagem.

SOLTEIRONA – Obrigada, não precisava se incomodar.

IRMÃ – Eu também vou ajudar a pagar.

SOLTEIRONA – Obrigada, não precisava se incomodar. Vocês vêm me

visitar?

IRMÃ – No Natal a gente vem te buscar, para passarmos juntos.

SOLTEIRONA – É verdade? (O primo dá uma banana com o braço).

IRMÃ – Não.

IRMÃO – Não é verdade.

SOLTEIRONA – Eu vou ficar na casa de repouso e não estou cansada.

Até...

PRIMO – Até o quê? Complete.

SOLTEIRONA – Eu não quero falar a palavra.

PRIMO – Não é palavrão. Fala. Deixa de ser boba? Olha que eu falo,

hein?

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SOLTEIRONA – Vê se não me enche?

PRIMO – Está bom. (A solteirona se levanta para despedir a irmã e o

irmão).

SOLTEIRONA (À irmã) – Obrigada por tudo. Desculpe o incômodo.

(Trocam beijos, a irmã sai. Ao irmão). Obrigada por

tudo. Desculpe o incômodo. (Trocam beijos, o irmão

sai).

PRIMO – Quer que eu te espere?

SOLTEIRONA – Não. Vai embora!

PRIMO – Sem educação!

SOLTEIRONA – Sou mesmo! Vai embora! (O primo joga um beijo e

vai embora. A solteirona arruma a sala. Abre a

geladeira e dela tira um bastidor. A iluminação que

permanece é apenas a da geladeira. Em seu

interior vê-se um pinheirinho de Natal artificial.

Música natalina alegre. A solteirona fecha a

geladeira).

FIM