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No parque

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conto do livro Contos do amor e da morte

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As aves cujo canto lembra um mantra são as de que Caroline mais gosta. Como o Bem-te-vi. Elas lhe evocam concentração, disciplina, paciência – virtudes que, tão dispersa, persegue. Essa que chilreia agora ela não conhece, mas assim que ouviu não gostou. Uma sonoridade sinuosa, sofisticada, em busca de novas oitavas, procura seu máximo e não usufrui do que seu mínimo já conseguiu. Só partilha uma glória infrutífera. Sabe que sua veleidade não muda o mundo, mas sente que precisa assim se posicionar. O mundo está tão errado porque todos são iguais, gostam do que é facilmente apreciável, do que exige pouco do próprio gosto. Está com Elisuki, sempre está com ele, porque de algum mundo há um outro mundo quando estão juntos, há uma aspiração de vida melhor e mais árdua.

O sol se põe no céu próximo, onde é impedido o acesso da normalidade, das pessoas sensatas, dos diplomas formidáveis, da multidão que venera mais que o amor o que se tem a dizer sobre o amor e mais que a sabedoria o currículo. Azar deles, pensa Caroline. Elisuki hoje está calado, não quer mais falar sobre esse assunto desgastante. Ademais, não tem mais certeza de quem é

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o azar. Pois apesar de inóspito, em meio a festas e confraternizações que dividem tempo e espaço com o a violência e o crime, onde talvez seja ilusório pensar em coisas eternas e integras, aí estão eles por toda a parte, todos fazendo planos e se dando bem, e esse que hoje desponta não haverá de querer mudar tal panorama.

Está esfriando. Você vai para casa? Elisuki calada hoje. Será um anjo nos céus, pois se aqui já é. Ela sorri em resposta ao olhar amoroso. E quando voltar ali depois ou aos domingos, Caroline sempre há de lembrar esse sorriso, que queria dizer que sim iria para casa, ao lar escondido atrás das árvores e do alto de sua janela, ao que ela responde com firmeza que são o lar um das outra. Suplica. Não me abandone. No canto dos pássaros um presságio. Pobrezinha. Não, isso não. Não é pela piedade de ninguém. Valerá talvez a pena seguir o caminho, sinuoso como este, em que também o fim não se vislumbra. E é verdade, ser amada assim tem um peso. Mas não tem certeza de nada. Não irá decidir agora, mas apenas manter esse contato com o verde até a saída. Há de pensar em alguma coisa. Caroline fez um sinal de cabeça e sorriu também. Tinha algumas

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idéias. E afinal, de um modo ou de outro todas as coisas hão de passar um dia.