Nome-do-pai Em Um Sujeito Ultramoderno

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psicanálise

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    Latusa Digital ano 3 N 25 novembro de 2006

    Nome-do-Pai em um sujeito ultra-moderno

    Zelma Abdala Galesi*

    Introduo

    Como dimensionar a prxis clnica pelo vis da orientao lacaniana nesses

    tempos do Outro que no existe, que determinam a emergncia dos novos

    sintomas representantes desse gozo dominante de nossa poca?

    O que a experincia clnica evidencia que os denominados novos sintomas

    tm como finalidade escavar uma falta no Outro, para dar lugar ao desejo

    para o qual no h mais lugar, j que o Nome-do-Pai no faz mais estofo no

    psiquismo dos sujeitos. Ou seja, o "O Outro que no existe" se marca pela

    via de que o Outro da Lei est em fracasso no psiquismo e,

    conseqentemente, a inscrio da falta do Outro. Dessa maneira, o que se

    apresenta na atualidade o Outro gozador e consistente. De forma

    paradoxal, quanto mais o Outro do simblico est em fracasso, mais o Outro

    se apresenta em sua potncia destrutiva.1

    Se a eficcia do Nome-do-Pai decorre de sua possibilidade de, ao dar um

    nome, sinalizar uma ausncia, poderamos conjecturar que esse papel

    estaria sendo realizado hoje pelos novos sintomas? Do mesmo modo,

    * Analista praticante AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanlise (EBP) e da Associao Mundial de Psicanlise (AMP). 1 O presente trabalho est sendo discutido no Ncleo de Topologia do ICP-RJ, sob a coordenao de Stella Jimenez. Nesta verso acrescento alguns pontos que foram enfatizados no debate de 12/05/2006.

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    poderamos questionar a utilidade do dispositivo analtico do Sujeito Suposto

    Saber sobre as contingncias atuais.

    Foi acompanhando Joana que pude comear a dimensionar essas questes e

    a compreender os desafios que se apresentam ao analista, quando o Nome-

    do-Pai no pode mais ser utilizado para colocar o sujeito em regra com o

    seu desejo, e ele busca, na relao com o real do gozo, conduzir-se na vida

    em um caminho que pode ser sem volta.

    Esse jovem sujeito se apresenta ao dispositivo analtico submetido fruio

    compulsiva de um gozo mortfero e caprichoso do Outro, que praticamente o

    havia aniquilado em sua soluo ao mal-estar contemporneo.

    Representando-se a si mesmo como Bad-boy, uma nomeao ortopdica

    para inserir-se em uma gangue e se utilizando de sadas ultramodernas:

    bebida, droga, piercings, tatuagens, mutilaes e o sexo desvairado,

    escancarava em seus excessos, uma precria tentativa de resoluo

    enganosa e fracassada de tamponar a falta estrutural ao fazer existir o

    Outro, j que sua particularidade s poderia ser reconhecida por essa via.

    A relao de Joana com seu pai moderno perdido na melancolia pela morte

    de sua mulher, assim como ela mesma confrontada com sua prpria

    angstia diante da morte e da falta da me produz a entrada desse sujeito

    nesse circuito de horror.

    O caso

    Recebo o telefonema de um homem extremamente aflito, que me demanda

    receber sua filha de quatorze anos, por indicao de sua terapeuta. Em um

    atropelo ditado pela angstia, ele me diz: Por favor, ela no quer ir, mas a

    levarei a fora; no tenho outra sada. Concordo que tente trazer sua filha.

    Joana vem mais uma vez, portanto, trazida pelo pai fora; ele j a

    empurrou por vrias psicoterapias na tentativa de que algum pudesse

    fazer algo por sua filha. Ambos tambm se empurram para o interior da sala.

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    Joana vai logo avisando, de modo agressivo e com um sorriso cnico, que de

    nada adiantariam os meus esforos para que ela ficasse.

    Escutando atentamente o que me diz, comeo a conversar com seu pai e a

    interrogar o porqu estava me procurando. O pai mostra-se desarvorado,

    perdido, sem saber o que fazer com a filha. Eles tm vivido em um inferno de

    brigas, de xingamentos, de desobedincia, as ms-companhias e o alcoolismo

    dando o retoque final do horror de um processo destrutivo. H poucos dias,

    Joana esteve hospitalizada por ter entrado em coma alcolico, aps ingerir um

    litro de cachaa.

    Sua esposa havia morrido de cncer h cinco anos e ele se encontrava

    absolutamente impotente para resolver os problemas que estavam surgindo

    depois disso. E vai descrevendo o cenrio de sofrimento, de excesso de gozo

    que estavam vivendo desde ento, demonstrando como o Nome-do-Pai em

    fracasso no consegue organizar o mais-de-gozar dos sujeitos

    contemporneos.

    Joana intervm de vez em quando para dizer que tudo o que estava

    acontecendo era porque seu pai no se garantia como pai, no se garantia

    como homem, [...] que ela tinha que dar um jeito na sua vida [...] que

    precisava ser parruda.2

    O pai responde: Minha filha me causa horror, eu no entendo essa

    modernidade, essa juventude,... tudo est diferente de minha poca, [...]

    Joana no derramou uma lgrima sequer pela morte da me, j foi expulsa de

    quatro escolas por brigas, desacato a autoridade, destruio de bem pblico.

    Anda com jovens de extrema periculosidade, participando de brigas de

    gangues do bairro, onde adolescentes de doze ou treze anos andam com

    armas na cintura, ameaando pessoas e destruindo propriedades [...] os meus

    conhecidos me dizem que isso moderno! [...] Aos dezoito anos eu ainda

    2 Parruda um termo que, sendo o Aurlio, tem o sentido chulo de mulher virgem, mas o sujeito o usa diversas vezes de modo a querer enfatizar que parrudo, forte, musculoso.

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    precisava pedir permisso para ir ao cinema, e voltava para casa no mximo

    s dez horas e Joana quer chegar sempre de madrugada.

    Sem me dirigir a Joana, pergunto ao pai o que ele espera trazendo sua filha a

    um tratamento psicanaltico. Ele se assusta, perguntando porque eu usava a

    palavra tratamento, pois, nas terapias anteriores, lhe disseram que ela

    precisava de conselhos e novos padres de comportamento, mas no de

    tratamento. Ser que a filha estava doente? Ele no iria suportar ter mais

    algum doente na famlia. Insisto na pergunta, e ele responde: Que ela

    voltasse a ser uma boa menina, educada, estudiosa, obediente, como antes

    dos dez anos, antes da morte da me e da entrada na adolescncia. Como

    resposta, Joana d uma enorme gargalhada cnica, debochada, e diz: um

    idiota, mesmo, ele e a me! Continuando a me dirigir ao pai, digo que estava

    fora de questo receber sua filha, por dois motivos: primeiro, porque no

    tratava ningum contra a sua vontade e segundo, porque no acreditava que

    ela pudesse se encaixar na imagem de boa menina que ele idealizava, alm

    do que era evidente que sua filha no estava nem um pouco preocupada com

    os acontecimentos recentes.

    Encerrei a sesso, depois de vrias tentativas do pai em me estimular a

    receber Joana. No momento da sada e, pela primeira vez, Joana me olhou

    surpresa, sem aquele sorriso cnico que lhe vincava o rosto. Entreguei-lhe um

    carto, dizendo que se ela um dia quisesse se tratar, me ligasse.

    Na semana seguinte recebo um telefonema de Joana que, com voz agressiva,

    pede: Eu quero ser recebida, o mais rpido, possvel, cara!

    Chegou querendo tirar satisfaes do porque eu disse que ela precisava de

    tratamento. Ela era apenas uma guria atual, fumava e bebia e fazia zoeira,

    derdava3, como todos os amigos, para enfrentar o mundo hoje, era preciso

    ser um Bad Boy! O velho, no sabia de nada, estava por fora e se ela se

    3 Derdar um neologismo do grupo ao qual este sujeito pertence, e tem o sentido de ficar andando nas ruas sem direo, fazendo arruaa, bebendo nas praas e confrontando-se com a polcia ou destruindo bens pblicos.

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    excedia era porque seu pai a forava a tudo, ele no acreditava nas prprias

    palavras, por isso s berrava e impunha, usava a fora o tempo todo e a

    proibia de sair, passear, encontrar-se com os amigos, queria controlar inclusive

    seu corpo. Ela no queria mentir para o pai, mas se via obrigada porque ele

    no aceitava nada do que era novo e atual.

    Mantive o significante tratamento como o ponto de enigma necessrio

    abertura ao trabalho, pois entendia que o mesmo havia presentificado o non-

    sense, e se abria para duas vertentes: a primeira que apontava para a

    dessimetria necessria entre o sujeito e o Outro e, numa segunda vertente,

    representava o furo no real, onde no h relao sexual possvel. Ponto

    nevrlgico para essa phallus girl atual, sendo aquilo que poderia funcionar

    como um grampo e organizar o campo do simblico. Pois, a morte da me, o

    encontro com o real, quebrou para ela a possibilidade de se inscrever como

    mulher, ser feminina, levando-a, na entrada da adolescncia (mulher/morte),

    a inscrever-se como parruda (menina flica), fazendo par ao pai "moderno",

    como ela tambm mergulhado em sua melancolia e depresso e, portanto,

    inserido nos sintomas contemporneos.

    Eu apostava que Joana poderia na trama das associaes formular uma

    demanda, que logo depois pode se constituir como um saber a ser buscado:

    porque uma guria ultramoderna precisava de tratamento?

    Joana se engatou na aposta da analista, o sujeito suposto saber se funda e a

    analista foi aceita como mais um membro da gangue: O cara, algum

    esperto para as malandragens, e que, portanto, devia saber at que ponto

    uma guria era ultramoderna ou no. Foi atravs desse significante da

    transferncia que se descortinou para o sujeito uma pergunta sobre a

    dimenso do gozo autstico. Como conseqncia, sua posio subjetiva

    localizou-se no significante rebeldia, sintoma analtico, que continha o seu

    modo particular de defender-se do desejo, mas que propiciou ao sujeito

    engatar-se como analisando.

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    Essa rebeldia vem alojar-se justamente no lugar onde o saber sobre a

    sexualidade falhou: Como era possvel a me ter morrido, depois de ter

    resistido por quatro anos aos mais variados tratamentos se ela e o pai eram

    to agarrados, viviam numa melao, num grude? [...] Os dois grandes

    idiotas eles se amavam, mesmo!

    Joana optou principalmente pela mais extrema rebeldia afastando o amor: Eu

    consigo tudo: berrar, bater, estourar de tanto beber e fumar, fao coisas que

    deixariam voc de cabelo em p, mas no consigo de jeito nenhum admitir que

    eu amo [...], eu acho que o amor no pode vencer a morte.

    E Joana vai associando at onde chegou em sua rebeldia, aos maus-tratos do

    seu corpo, as mutilaes, e mostra as cicatrizes de mutilaes, os piercings,

    como passou a entregar o corpo para os meninos da gangue, a exibir-se, a cair

    na rua bbada. Essas associaes eram sempre seguidas por expresses de

    raiva e por muitos e pesados palavres e obscenidades. O que preenche seu

    ser a paixo do dio e, como diz: o desejo de ferrar o outro!

    Tendo o pai como seu parceiro de vida e de gozo, Joana est sempre bolando,

    armando situaes que visam afastar-se dele e de suas orientaes. No

    entanto, o que se observa a um truque do sujeito diante do enigmtico do

    gozo, ou seja, ao mesmo tempo em que joga com o pai sua partida, goza

    repetidamente disso, sendo impossvel suportar o gozo que advm dessa

    parceria.

    Essas manobras visam sustentar o pai para encontrar uma nomeao forada:

    Pai, no vs que..., como nos ensinou Freud na Interpretao dos sonhos,

    e faz-lo cada vez mais se preocupar com ela, restaurando a funo do pai que

    probe, guardio do gozo flico, fazendo-o viver para tratar dela. Essa

    interpretao inesperada da analista corta mais uma de suas atuaes, em um

    momento em que estava bolando um jeito de fugir de casa, passar uma noite

    derdando pelas ruas para lhe dar uma lio, tomar um grande porre, j que

    ele no queria deix-la ir a uma festa. Essa interpretao provoca uma

    ultrapassagem importante para esse sujeito, mudando o rumo da direo do

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    tratamento. Da entrega de seu corpo aos meninos da gangue, escolhe um

    dentre eles e comea a namorar. A tnica de seu discurso passa a ser: casar e

    ter filhos.

    Abre-se, nesse momento uma segunda etapa da anlise, na qual Joana pede

    uma sesso e chega chorando muito, algo indito para esse sujeito que trata o

    traumtico com profunda insolncia e impassibilidade. O namorado havia

    ficado com sua melhor amiga, pois ela era muito carinhosa e amorosa e

    disse que o amava.

    Joana j no consegue mais continuar mantendo a frieza e o cinismo.

    tomada pelo desejo de saber e comea um trabalho para entender porque no

    consegue admitir que ama. Esse trabalho desemboca em um pesadelo que, no

    dizer de Lacan, em seu Seminrio 10, uma denncia ao gozo do Outro e

    uma realizao fantasmtica, mostrando como o objeto a est no Outro e

    ligado ao gozo: Eu sonhei que havia esfaqueado meu pai, porque ele me

    provocava dizendo: vai ... me esfaqueie, vamos ver se voc tem coragem para

    isso, voc s tem dio, no sente amor por ningum! Eu vou em frente o

    esfaqueio, mas ele no sangra. O que horrvel v-lo rindo como se no

    estivesse nem a para o que estava acontecendo, ignorando que estava sendo

    esfaqueado, que estava sofrendo. Acordei chorando!

    Esse pesadelo sobre "no poder sangrar/chorar" elaborativo, na medida em

    que Joana se d conta, de que cada um ao seu modo, o pai e ela eram

    parceiros do mesmo modo de gozar diante do traumtico. A partir desse

    sonho, ela pode falar da me, ou seja, do que sangra, assunto vetado at

    ento na anlise. Fiel aos novos sintomas, ela diz estar considerando fazer

    uma grande tatuagem, a de um drago.

    O drago, o amor e a tatuagem so os temas recorrentes de muitas sesses

    que se concluem no tempo lgico, ao associar o drago a uma imagem de

    fora e poder, mas que possui um certo ar de loucura, como a loucura do

    amor dos pais. Um drago soltando fumaa pelas ventas, uma marca, para

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    guardar na memria da carne, em forma de representao simblica, a

    lembrana do amor dos pais, um jeito de ordenar sua histria.

    No entanto, a fora de passar ao simblico esse impulso de fazer a tatuagem,

    leva o sujeito a colocar em questo, pela primeira vez, a relao do corpo com

    a dor. At que decide por no se marcar por essa insgnia.

    Concluso

    No mesmo passo em que o trabalho analtico sinaliza claramente uma nova

    orientao de gozo, Joana comea a afastar-se da gangue do bairro, a

    desentender-se com os lderes do grupo, principalmente quando eles querem

    forar algum a fumar maconha ou a cheirar substncias txicas. Passa ento

    a circunscrever suas questes sobre o significado do amor na vida de uma

    mulher: para que serve o amor?, ou o que meus pais escondiam com esse

    amor?. desesperador verificar o quanto meu pai perdeu o rumo depois da

    morte desse grande amor. s voltas com essas questes sobre o amor, Joana

    retoma o fio de Ariadne que pode conduzi-la ao seu ser de mulher, separando-

    se da parruda. Essa hiptese se confirma com as ltimas colocaes do sujeito,

    ao se perguntar sobre qual o tipo de amor que um homem espera de uma

    mulher.

    Em se Curso de Orientao Lacaniana Peas soltas, Miller faz uma afirmao

    preciosa que contribui para pensarmos a direo de tratamento com os

    sujeitos ultramodernos: Peas soltas o que tenho que extrair de mim para

    trazer para vocs. Digo que se trata de uma atitude analtica porque no se

    pede outra coisa a um analisando a no ser entregar seu pensamento em

    peas soltas, sem se preocupar com a ordem, a congruncia, a coerncia nem

    a verossimilhana. E ele deve ser assegurado de que qualquer coisa que lhe

    ocorra no deixar de estar relacionada. Continuando, acrescenta: Trata-se

    da confiana estabelecida no procedimento inventado por Freud e que Lacan

    traduziu como sujeito suposto saber. Sendo que o sujeito suposto saber se

    resume no que se opera da relao, da conexo escrita para simplificar S1-S2.

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    Referncias bibliogrficas

    FREUD, S. A interpretao dos sonhos (1900). Em: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. IV, 1987. LACAN, J. Le Sminaire, livre X: Langoisse (1962-1963). Paris: Seuil, 2004. MILLER, J.-A. Curso de Orientao Lacaniana (2004-2005), aula 1, de 17/11/2004. Indito.