NORA Entre Memoria e Historia a Problematica Dos Lugares

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  • 7/28/2019 NORA Entre Memoria e Historia a Problematica Dos Lugares

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    TRADUES

    ENTRE MEMRIA E HISTRIA"A problemtica dos lugaresPierre Nora**

    Traduo: Yara Aun Khoury***

    I. O fim da histria-memriaAcelerao da histria. Para alm da metfora. preciso ter a noo do que

    a expresso significa: uma oscilao cada vez mais rpida de um passado definitivamente morto, a percepo global de qualquer coisa como desaparecida - umaruptura de equilbrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradio,

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    memria s . no entanto. um exemplo o mundo inteiro que entrou na dana,pelo fenmeno bem conhecido da mundializao. da democratizao. da massificao. da mediatizao. Na periferia. a independncia das novas naes conduziuparJ a historicidade as sociedades j despertadas de seu sono etnolgico pela violcntao colonial. E pelo mesmo movimento de descolonizao interior. todas asetnias. grupos, famlias, com forte bagagem de memria e fraca bagagem histrica.Ftm das sociedades-memria, como todas aquelas que asseguravam a conservaoc a transmisso dos valores, igreja ou .escola, famlia ou Estado. Fim das ideologias-memrias. como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passadopara o futuro. ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro;quer se trate da rcao, do progresso ou mesmo da revoluo. Ainda mais: o modomesmo da percepo histrica que, com a ajuda da midia. dilatou-seprodigiosamente. substituindo uma memria voltada para a herana de sua prpriamtmudade pela pelcula efmera da atualidade.

    Acelerao o que o fenmeno acaba de nos revelar bruscamente toda adtstncia entre a memria verdadeira social intocada, 1 da,d d'. . . , , aque a CUJas socte es Itaspnnuu vas. ou arcaicas representaram d 1 . . . . o mo e o c guardaram constgo o segredo - ea histona que e o que nossas soe dad d te es con enadas ao esquecimento fazem dopassado, porque levadas pela mudana. Entre wna memria integrada, ditatorial eHJConsctente de SI mesma, organizad da ora e to -poderosa. espontaneamente atualt-;.adora urna memria sem passad nd. . o que reco uz eternamente a herana, conduzindoo antigamente dos ancestrrus ao tempo indiferenciado d he da d. os r01s, s ongcns e omtto - c a nossa, que s hist u 'lha . , .. . na, ves g10 e tn . DJstarJCJa que s se aprofundoua medida em que os homens t; nhcoram reco cendo como seu um poder e mesmo umdever de mudrula, sobretud dI . o a parur os tempos modernos. Distncia que chega10JC num ponto convulsivo.Esse arrancar da m b emona SO o Impulso conquistador e erradicador da histriatem como que um efeito de re 1 . .anti 0 fi . ve a 0 a ruptura de um elo de identidade mmto, dag 110 Im 0daqutlo que vivamos como uma evidncia: a adequao da histria" menJOna fato que s .. 'd _ . eXIsta urna palavrJ em frarJCs para designar a histria\I\ 1 a e a operaao mtelectual .C h. que a toma lllteltgtvel ( o que os alemes distinguempor esc u:hte e Hi,torie) enfcmlid; d d 1nece aq f a c e tnguagem muitas vezes salientada . for-111 sua pro unda verdade 0 t movtmento que nos transport a da mesmana Ure7.a que aquele que o representa , . , . . .no te riamos ncc d d d para nos. Se habitssemos amda nossa memona . esst a c e lhe consagr u lugares No haveria lugares porque nohavena memria transportada pela histria C . , . . . .vtvido como uma rc li . . . ada gesto. ate o mats cotidiano . senape 0 reltgtosa daqutlo que sempre se fez. numa identificao

    l'm;. lflstnu, Siinl'au/o, (10), dez. JY93

    carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distncia. mediao, no estamomais dentro da verdadeira memria mas dentro da llistria. Pensemos nos judeuconfinados na fidelidade cotidiana ao ritual da tradio. Sua constituio em "povda memria" exclua uma preocupao com a histria. at que sua abertura para mundo modemo lhes impos a necessidade de historiadores.

    Memria, histria: longe de serem sinnimos, tomamos conscincia que tudope urna outra. A memria a vida sempre carregada por grupos vivos e, nessentido, ela est cm permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana c desquecimento. inconsciente de suas dcfom1acs sucessivas. vulnervel a todos ousos c manipulaes. succptivcl de longas latncias e de repentinas rcvitaliz.acA histria a reconstnto sempre problemtica c incompleta do que no exismais. A memria um fenmeno sempre atual. um elo vivido no eterno presenta llistria. uma representao do passado. Porque afetiva c mgica, a memria n,se acomoda a detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembraJIas vagatelescpicas, globais ou flutuantes. particulares ou simblicas, sensvel a todas atransferncias, cenas, censura ou projccs. A histria, porque opemo intelectuae laicizante. demanda anlise e discurso critico. A memria instala a lembrana nsagmdo. a histria a liberta_ c a torna sempre prosaica. A memria emerge de umgrupo que ela une. o que quer diLCr. como Halb" achs o fez. que h tantas memriaquantos gntpos existem; que ela , por natureza, mltipla e desacelerada, colctivapluml c individualizada. A histria, ao contrrio, pertence a todos c a ningum, que lhe d uma vocao para o utliversal. A memria se enraza no concreto, nespao, no gesto. na imagem, no objcto. A llistria s se liga s continuidades tempomis, s evolues e s relaes das coisas. A memria um absoluto e a histris conhece o relativo.

    No corao da histria trabalha um criticismo destrutor de memria espontnea. A memria sempre suspeita para a histria, cuja verdadeira misso destru-la c a repelir. A histria desligitimao do passado vivido. No horizonte dasociedades de histria, nos limites de um mundo completamente historicizadohaveria dessacralizao ltima e definitiva. O movimento da histria, a ambiohistrica no so a exaltao do que verdadeirdlllente aconteceu, mas sua anulaoSem dvida um criticismo generalizado conservaria museus, medalhas e monumentos, isto , o arsenal necessrio ao seu prprio trabalho, mas esvaziando-os daquiloque, a nosso ver, os faz lugares de memria. Uma sociedade que vivesse integralmente sob o signo da histria no conheceria. afinal. mais do que uma sociedadetradicional, lugares onde ancorar sua memria.

    P I V J ~ Histrla. SJoP,./o. (10},

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    . Um dos sinais mais tangveis desse arrancar da histria da memria . talvez.o iicio de uma histria da histria, o despertar recente. na Frana. de uma conscincia historiogrfica. A lstria e, mais precisamente, aquela do desenvolvtmentonacional, constituiu a mais forte de nossas tradies coletivas, nosso meto dememria, por excelncia. Dos cronistas da Idade Mdia aos historiadores contemporneos da lstria "total'', toda a tradio lstrica desenvolveu-se como exerccioregulado da memria e seu aprofundamento espontneo, a reconstituio de um passado sem l a ~ u n a e sem falha. Nenhum dos grandes historiadores, desde Froissart.tinha,. sem duvtda, o sentimento de s representar uma memria particular. Comy nesno tinha conscincia de recolher s uma memria dinstica La p r memria france Bo , . . . . , ope truere umasa, ssuet uma memona monarqmca e cnst . \bltaire a memriados progressos do gnero humano, Michelet unicamente aquela do " . " L S da po\O C a\ISseo a mem na nao Muito 1 pe o contrrio, eles estavam imbudos do sentimentoque seu papel consistia estabelecer uma memria mais positiva do que as preceden-tes, mats globalizante e mais r ti o . '. exp tca va. arsenal cientfico do qual a histria foidotada no seculo passado s se r. . rvm para re.orar poderosamente o estabelecimentocnttco de urna memria verdad li d .. . etra. o os os grandes rernaneJamentos lstricosconststtram em alargar o campo da memria coleltva.Num pas como a Frana hi t d hi . .. . a s ona a stona no pode ser uma operaoInocente. Ela traduz a subverso interior de uma hi t . . . .., . . . s ona-tnemona por urna lstona-cnttca, e todos os lstonadores pretenderam d . . . .seus predeces M 1 . enuncmr as mitologias mentirosas desores. as a gurna COisa fundamental se inicia quando a histriacomea a faz.er sua prpria histria. O nascim I d .riogrfica a hst . en o c uma preocupa o histo-' ona que se empenha em embo .Prpn' descob do . . scar em st mesma o que no ela"' nn -se como VIII ma da t:dela Num pat's q dari , . . . mem n a e azendo um esforo para se livrar ue '""' a a h1stona un 1d.nacional a histo'n d hi , . 1 pape Iretor e fonna dor da consci ncia a a stona no se enca dEstados Unid rregana esse contedo polmico. Nosos, por exemplo pas de me 1 1 .a disciplina foi sem r . ' . mona P ura e de contnb uies mltiplas.da . . P e prattcada. As diferentes interpretaes da lnde ndncia ouguerra ctvtl, apesar de suas implicaes . . peno questionam a T r a d ~ ~ . por mais pesadas que sejam as tramas.t.,...o amencana seja porqueou no passe principal 1 1 . ' . . num certo sentido, ela no exista.. men e pe a htstona Ao tr . .e iconoclasta e irreverente El . con no, na Frana a histo nograf ia a constste em tomar p ob. .tuidos da tradio _ uma batalha ha . ara SI os ~ e t o s melhor conso-o pequeno Lavisse - para d c ve, como B o ~ m e s , um manual cannico, comocondies de sua elaboraoe';nstrar 0 . e c a ~ s m o e reconstituir ao mximo asrvore da memria e a c a ~ c ~ n t ~ u ~ t r a duvtda no corao. a lmina entre aa a tstona. Fazer a historiografia da Revoluo

    lOProJ. Hutna. So Paulo, (10), dez. JV93

    Francesa. reconslituir seus mitos e suas interpretaes, signfica que ns no identificamos mais completamente com sua herana. Interrogar uma tradio,mais venervel que ela seja c no mais se reconhecer como seu nco portaOra, no so urcamente os objetos mais sagrados de nossa tradio nacional se prope uma histria da histria; interrogando-se sobre seus meios materiaconceituais, sobre os procedimentos de sua prpria produo e as etapas sociaissua difuso, sobre sua prpria constituio em tradio. toda a histria entrousua idade historiogrfica, consUirndo sua desidentificao com a memria. Umemria que se tomou, ela mesma. objeto de uma histria possvel.Houve um tempo em que, atravs da histria c em tomo da Nao, utradio de memria parecia ter achado sua cristalizao na sntese da III RepblDesde Lettres sur l'hi.!.toire de France. de Augustin Thierr)' (1827) at a Histosincere de la nation franaise. de Charles Seignobos, adotando uma larga crooogia. Histria, memria Nao mantiveram. ento, mais do que uma circulao naral: uma circularidade complementar, uma simbiose em todos os nveis, cientficpedaggico, terico e prtico. A definio nacional do presente chamava imriosamente sua justificativa pela Iluminao do passado. Presente fragilizado ptraUinatismo revolucionrio que impunha uma reavaliao global do passado monquico; fragili7..ado tambm pela derrota de 1870 que s tomava tnais urgente, crelao cincia alem como ao instrutor alemo, o verdadeiro vencedor de Sadoo desenvolvimento de uma erudio documentria e da transmisso escolarmemria. Nada se equipara ao tom de responsabilidade nacional do historiador, mpadre, meio soldado: ele manifesta-se, por exemplo, no editorial do primeiro nmda Revue historique (1876) onde Gabriel Monod podia legitimamente ver a "invtigao cientfica, doravante lenta, coletiva e metdica" trabalhar de uma "manesecreta e segura para a grandeza tanto da ptria quanto do gnero humano". Lendoum tal texto como cem outros semelhantes, pergunta-se como se pode acreditaridia que a histria positivista no era cumulativa. Na perspectiva finalizada de uconstituio nacional, o poltico, o militar, o bibliogrfico e o diplomtico so, contrrio, os pilares da continuidade. A derrota de Azincourt ou o punhal de Rvaillac, o dia dos Dupes ou uma tal clusula adicional dos tratados de Westphasobressaem de uma contabilidade escrupulosa. A erudio a mais aguda sorna subtrai um detalhe ao capital da nao. Unidade poderosa desse espao de memrde nosso bero greco-romano ao imprio colonial da III Repblica, no mais cesdo que entre a alta erudio que anexa ao patrmnio novas conquistas e o manuescolar que impe a vulgata. Histria santa porque nao santa. pela nao qnossa memria se manteve no sagrado.Pro;. Hutna. So Paulo. fI OJ, d,;. I WJ

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    . Compreender porque a conjuno se desfez sob um novo impulso dessacrali-zante resultaria em mostrar como d na cnsc os anos tnnta, substJtwu-se progressi-vamente a dupla Estado-Nao pela dupla Estado-Sociedade. E como, ao mesmotempo, c por razes idnticas, a histna. que se tinha tomado tradio de memria.se fez, de maneua espetacular na Frana, saber da sociedade sobre si mesma. Nessescnudo. ela pde multiplicar, sem dvida, os lances de projetares sobre memriasparticulares e se transfonnar em lab t d . ora ono as mentalidades do passado; mas li-berando-se da 1dcnUficao nacional, ela deixou de ser habitada por um sujeito portador c: no mesmo lance, ela perdeu sua vocao pedaggica na transmisso devalores. a cnsc da escola est a para demonstr-lo. A nao n . . dunlt . . o e ma1s o qua rono que encenava a consc1enc1a da coletividadc. Sua definio no est maiscm. questo. e a paz, a prosperidade e sua reduo de poder fizeram o resto ela sesta ameaada pela ausncia de amca c . . . 'as. om a emergenc1a da soc1cdadc no lugarc espao da Nao a legitimao 1 d ' le u ' pc 0 passa o, portanto pela histria, cedeu lugargJ ma o pelo futuro O passado . N . so sena poss1vcl conhece- lo e vener- lo e aa o. scrvJ-la; o futuro, preciso pr . I O .autonomiJ A na n . . cpara 0 s tres termos recuperaram sua '.' . 0 0 e mais um combate. mas um dado; a histria tomou-seuma c1enc1a soc1al; e a memria 11 1) .ter sido a ltima m e.nomcno puramente pnvado . A nao-memriaencarnao da hlstona-memria.O estudo dos lugares encontra-s . . .que lhe do ho' e ' assim, na encruz1lhada de dois movimentos na Frana seu lugar e 'dpuramente historiogrfi ' seu senil o: de um lado um movimentoICO, o momento de um reto fl . . . . .mesma; de outro lado . . mo re ex1vo da histona sobre s1

    , um movimento propname t hi t ..de memria 0 tempo d 1 n c s onco, o fim de uma tradio os ugares esse imenso capital que ns . . ' . . momento prec1so onde desapa rece um\ lVI amos na ml!midade de . . . .o olhar de uma histri . uma memon a, para so v1ver soba reconsutuida Aprofi d . .histria. por um lado . un amento dec1s1vo do trabalho da emergenc1a de uma he .interna do principio crtico rana consolidada. por outro. Dinmica. esgotamento de nosso d hi . . ..suficientemente poderoso 'nd _ qua ro stonco pohtlco e mental,ai a para nao no d . . d.sistente para s s elxar m ifercntes, bem pouco con-. se Impor por um retomo b . . .do1s movimentos se combi so rc seus mais evidentes s1mbolos. Os,1 . nanl para nos remeter de u ' an. aos Instrumentos de base d b ma so vez, e com o mesmoo tra alho h' .de nossa memria: os Arquivos d IStonco c aos objetos mais simblicosd. . a mesma fonna qu T Cos 1c1onrios e os museus co . e as res ores, as bibliotecas,P . m o mesmo atnbuto anthcon ou o Arco do T . , . . . 0 que as comemoraes, as festas,nun.o. o d1c1onrio LOs lugares de memri arousse c o muro dos Federados .

    b . a sao. antes de lt dsu s1stc uma conscincia co lC . 1 0 restos. A forma extrema onden morat1va numa 1 t us ona que a chama. porque ela aPmJ. H1stna. So Paulo. (/0}. de:. Jf}Q3

    ignora. a desritualizao de nosso mundo que faz aparecer a noo. O que secreta.veste. estabelece, constri. decreta, mantm pelo artifcio c pela vontarle umacoletividadc fundamentalmente cmolvida cm sua transfonnaiio e sua renovao.Valorizando. por natureza. mais o novo do que o aiJtigo, mais o jovem do que ovelho, mais o futuro do que o passado. Museus. arquivos. cemitrios c colees.festas. aitivcrsrios, tratados. processos verbais. monumentos. santurios, associaes. slio os marcos testemunhas de uma outra era, das iluses de eternidade. Daio aspecto nostlgico desses empreendimentos de piedade, patticos e glaciais. Soos rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizaes passagcirdS numa sociedadeque dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciaes efetivas numa sociedade que nivela por principio; sin ais dereconhecimento e de pcrtencimento de gmpo numa sociedade que s tende a reconhecer indivduos iguais e idnticos.Os lugares de memria nascem c vivem do sentimento que no h memriaespontnea, que preciso criar arquivos. que preciso manter aniversrios, organizarcelebraes. pronunciar elogios fnebres. notariar atas. porque essas operaes noso naturais. por isso a defesa. pelas minorias. de uma memria refugiada sobrefocos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar incandescncia a verdade de todos os lugares de memria. Sem vigilncia comemo-rativa. a histria depressa os varreria. So basties sobre os quais se escora. Mas seo que eles defendem no estivesse ameaado, no se teria. tampouco, a necessidadede constn-los. Se vivssemos verdadcimmente as lembranas que eles envolvem,eles seriam inteis. E se, em compensao. a histria no se apoderasse deles paradefonn-los, transfonn-los, sov-los e petrific-los eles no se tomariam lugaresde memria este vai-e-vem que os constitui: momentos de histria arrancados domovimento da histria, mas que lhe so devolvidos. No mais inteiramente a vidanem mais inteiramente a morte. como as conchas na praia quando o mar se retirda memria viva

    A Marselhesa ou os monumentos aos mortos vivem, assim, essa vida ambguasovada do sentimento mh'to de pertencimento e de desprendimento. Em 1790, o 1de julho j era e ainda no um lugar de memria. Em 1880, sua instituio em festnacional em lugar de memria oficial. mas o esprito da Repblica fazia dele umrecurso verdadeiro. E hoje? A prpria perda de nossa memria nacional viva nosimpe sobre ela um olhar que no mais nem ingnuo. nem indiferente. Memrique nos pressiona e que j no mais a nossa. entre a dessacralizao rpida e sacralizao provisoriamente reconduzida. Apego visceral que nos mantm ainddevedores daquilo que nos engendrou. mas distanciainento histrico que nos obrigaPmJ. Hulna, So Plo. 1 0), de: IW3

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    a considerar com um olhar frio a herana c a inventari-la. Lugares salvos de umamemria na qual no mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afeti\os csentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo que no exprimem mais nemconvico militante nem participao apaixonada. mas onde palpita ainda algo deuma vida simblica. Oscilao do memorial ao histrico. de um mundo onde setinham ancestrais a um mw1do da relao contingente com aquilo que nos engendrou.passagem de uma histria totmica para uma histria critica: o momento dos lugares de memria. No se celebm mais a nao. mas se cstultm1 suas celebraes

    II. A memria tomada conw histriaTudo o que chamado hoje de memna no , portanto, memona. mas jhistria. Tudo o que chamado de claro de memria a finalizao de seu desaparecimento no fogo da histria. A necessidade de memria uma necessidade dahistria.Sem dvida impossvel no se precisar dessa palavra. Aceitemos isso, mascom a conscincia clara da diferena entre memria verdadcird, hoje abrigada nogesto e no hbito, nos ofcios onde se transmitem os saberes do silncio, nos saberesdo corpo, as memrias de impregnao e os saberes reflexos c a memria transformada por sua passagem em histria, que quase o contrrio: voluntria e deliberdda,vivida como um dever e no mais espontnea; psicolgica, individual e subjeliva eno mais social, coletiva. globalizante. Da primeira, imediata, segunda, indireta.

    o que aconteceu? Pode-se apreender o que aconteceu, no ponto de chegada da metamorfose contempornea.. . a ~ t e s de tudo, uma memria, diferentemente da outra. arquivstica. Ela seapo1a mte1ramente sobre o que h de mais preciso no trao , mais material novestgio. mais concreto no registro . mais visvel na imagem. O movimento quecomeou ~ o n 1 a escrita tcnnina na alta fidelidade e na fita magntica M enos amemona e v1v1da do interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e dereferncias tangveis de uma existncia que s vive atravs delas. Da a obsess

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    Igreja e ao Estado. Quem no se cr autorizado hoje a consignar suas lembranas,a escrever suas Memrias, no somente os pequenos ateres da histria, como tambmos testemunhos desses atores, sua esposa e seu mdico? Menos o testemunho extraordinrio, mais ele parece digno de ilustrar uma mentalidade mdia. A liquidao da memria foi soldada por uma vontade geral de registro. Numa gerao, omuseu imaginrio do arquivo enriqueceu-se prodigiosamente. O ano do patrimnio,em 1980, forneceu um exemplo evidente, levando a nao at s fronteiras do incerto.Dez anos mais cedo, o Larousse de 1970 limitava ainda o patrimnio ao "bem quevem do pai ou da me". O "Petit Robert " de 1979 faz "da propriedade transmitidapelos ancestrais, o patrimnio cultural de um pais". Passou-se, muito bruscamente,de uma concepo muito restritiva dos monumentos histricos, com a convenosobre os stios de 1972, a uma concepo que, teoricamente, no poderia deixarnada escapar.

    No somente tudo guardar, tudo conservar dos sinais indicativos de memria,mesmo sem se saber exatamente de que memria so indicadores. Mas produzirarqutvo o imperativo da ' liepoca. em-se o exemplo perturbad or com os arquivosda S e g ~ n a Social -soma documental sem equivalente, representando, hoje, trezen-tos qllllometros lineares d , .. . . . massa e rncmona bruta cujo inventri o pelo compu tado rpenmtma, Idealmente, ler tudo sobre o normal e sobre o patolgico da sociedade,desde os regtmcs alimenta t .res a c os modos de vtda, por regies e por profisses;mas, ao mesmo tempo b, 1d . massa CUJa conservao, tanto quanto a explorao conce-tve emandanam escolhas drst'tcas e, portanto, impratic veis Arquiv e-se ar quive-se, sempre sobrar alguma . r N , . ,hc . cotsa. o e outro exemplo gritante, o resulta do a quec ga, de fato, a mUlto leg't'1 1 ma preocupao das enquetes orais recentes? H alu-a mente, somente na Fran . dlhi " a, mrus e trezentas equipes ocupadas com o reco-menta destas vozes dquand que vem 0 passado" (Philippe Joutard). Muito bem. Mas0 se pensa por um instant especial . ' e, que 31 se trata de arquivos de um gnero muito CUJO estabelecimento .cuia u t i l i z ~ r ~ , eXIge tnnta e seiS horas por urna hora de gravao e' ~ . , . . . o so pode ser pontual . . .tegrai 1mpo , 1 pots que elas tiram seu sentido da audto m-' SSIVC no se inda bvontade de , . gar so re as possibilidades de sua explorao. Quememona elas testemunham d .O arquivo muda d . a os entrevist ados ou a dos entrev istado res?e sentido e de "status" 1 mais o saldo mais . stmp esmente por seu peso. Ele noou menos mtencionaJ d \'oluntria c orgaruzada d e urna memri a vivida, mas a secre oeumame \'olve, muitas vezc fu mona perdtda. Ele dubla o vivido, que se desen-s, em no de seu pr de outra coisa? _ d . . pno regtstro - as atualidades so fettas e uma memona see nd du na, e uma memria - prtese. A pro-

    Proj. H1stna, So Paulo. (10}, dez. 1993

    indefinida do arquivo o efeito aguado de uma no\a conscincia, a mais clex-presso do terrorismo da memria histoncizada.

    que esta memna nos vem do exterior c ns a intcriori7.amos como uobrigao individuaJ. pois que ela n.1o mais uma prtica soc1al.

    A passagem da memria para a histria obrigou cada gmpo a redefinir identidade pela re\'italizao de sua prpria histria. O dever de memria fazcada um o historiador de si mesmo. O imperativo da histria ultrapassou mUassim. o crculo dos historiadores profissionais. No s.'io somente os antigos marnali/.ados da histria oficial que s;lo obsccados pela necessidade de recuperar passado enterrado. Todos os corpos constlluidos. intelectuais ou no. sbios ou napesar das etnias c das minorias sociais, sentem a necessidade de ir em busca sua prpria constituio. de cnconmu suas origens No h mais nenhum.a famna qual pelo menos um membro n.'lo se tenha recentemente lanado reconstituimais completa possvel das existncias furti\'as de onde a sua emergiu. O crescimendas pesquisas genealgicas um fenmeno recente e macio: o relatrio anual dArquivos nacionais o cifra cm 43% cm 1982 (contra 38% da freqncia univsitria). Fato surpreendente: no devemos a historiadores profissionais as histrmais significativas da biologia, da fsica, da medicina. ou da msica, mas a bilogfsicos. mdicos e msicos. So os prprios educadores que tomaram em moshistria da educao. a comear pela educao fsica. ar o ensino da filosofia. Coo abalo dos saberes constitudos, cada disciplina se colocou o dever de verificseus fundamentos pelo caminho retrospectivo de sua prpria constituio. A soclogia pane cm busca de seus pais fundadores, a etnologia, desde os c r o n i s t a ~sculo XVI at os administradores coloniais se pe a explorar seu prprio passadAt mesmo a critica literria dedica-se a reconstituir a gnese de suas categoriasde sua tradio. A histria toda positivista mesmo a "chartista" no momento eque os historiadores a abandonaram. encontra nessa urgncia e nessa necessidauma difuso c uma penetrao cm profundidade que ela ainda no havia conhecidO fim da histria-memria multiplicou as memrias particulares que reclamam sprpria histria.

    Est dada a ordem de se lembrar, mas cabe a mim me lembrar e sou eu qme lembro. O preo da metamorfose histrica da memria foi a converso definiti psicologia individual. Os dois fenmenos esto to estreitamente ligados que nse pode impedir de salientar at sua exata coincidncia cronolgica No no fido sculo passado, quando se sentem os abalos decisivos dos equilbrios tradiciollaparticularmente o desabamento do mundo rural, que a memria faz sua apariocentro da reflexo filosfica. com Bergson. no centro da personalidade psquic

    ProJ. HutOna. So Pau n. (I 0), de:. I 993

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    com Freud, no centro da literatma autobiogrfica, com Proust? A violao do quefoi, parn ns, a prpria imagem da memria encarnada e a brusca emergncia damemria no corno das identidades individuais so como as duas faces da mesmaciso, o comeo do processo que explode hoje. No devemos efetivamen te a Freude a Proust os dois lugares de memria ntimos e ao mesmo tempo universais queso a cena primitiva e a clebre pequena n1adalena? Deslocamento decisivo que setransfere da memria: do histrico ao psicolgico, do social ao individual, do transtsstvo ao subjetivo, da repetio rememorao. Inaugura-se um novo regime dememna, ~ u e s t o daqui por diante privada. A psicologizao integral da memriacolllempornnea levou a uma economia singularmente nova da identidade do eu, dosmecarusmos da memria e da relao com o passado.

    Porque a coero da memria pesa definitivamente sobre o indivduo e somen tesobre 0 indi_vduo, como sua revitalizao possvel repousa sobre sua relao pessoalseu propno passado. A atomizao de IUIIa memria geral em memria privadad a let da lembrana um inte d d . .nso po er e coerso mtcnor. Ela obriga cada um aEe relembrar_ c a reencontrnr o pertencimento, pr incpio e se gred o da identidade.sse pertenctmento em troca . , o engaja mtclramentc. Quando a memria no estmats em todo lugar ela no esta 1. : . na em ugar nenhum se uma conscincia individual,numa deciso sohtana no de d d. . Cl sse ela se encarrega r. Menos a memria vividacolctJvamente ma1s ela tem d d d' necess1 a e e homens particulares que fazem de simesmos homens-memria c . . . d , uma voz mtcnor que d1ssesse aos Corsos: "Voceeve ser Corso e ao Brete . "E .c 0 chamad d ' d , . s. preciSO ser Breto!". Para compreender a forao este es1gruo talvez fioss . .

    . e necessano voltar-se para a memria judaica,que conhece hoje, em tantos j d d .tradio que s tem co . eus e s j ~ d a i z a d o s , uma recente reativao. Nestaser judeu, mas esta I : h i s t o ~ a sua propna memria, ser judeu, se lembrar devez mais M m . dee rana Irrefutvel, uma vez interiorizada, o aprisiona cada e na que? Em lti . . . .gizao da memna d ma IIIStncla, memona da memna. A pslcolo-eu a cada um 0 se tinalmente, do quitar uma d' .da . . n mento que sua salvao dependeria, fi-. . lVI 1mposs1vel.Memo na aRJuivo, memria dever . .esse quadro de meta rfi . . . preciso um terce1ro trao para completarmo oses. memona-distnciaPoRJue nossa relao com o .atravs das produes hi t . . passado, ao menos do modo como ele se revelas oncas as mats . nifi .daque la que se espera de . . Stg IC3!Jvas, completamente diferenteuma rncmona No . . . .mas o colocar a desconti 'd , lllals urna con!Jnwdade retrospecuva ,nut ade a luz do d' p . . . .gamenre. a verdadeira pe la. ara a h1stona-memria de anu-rcepo do passado .cm verdadeira mente passad U cons1stta em cons1derar que ele no0 m esforo de 1 b .cm rana podcna ressucit-lo; o pre-/.\

    PTVJ. Histna. So Paulo. {10), det. !993

    sente tomando-se, ele prprio. a sua maneira. um passado recondundo. atualizadcmijurado enquanto presente por essa solda c por essa ancoragem. Sem dvida. pque haja um sentimento do passado. necessrio que ocorra uma brecha entrepresente e o passado. que aparea um "antes" e um "depois". Mas trata-se mende uma separao vivida no campo da diferena radical do que um intervalo vivino modo da filiao a ser restabelecida. Os dois grnndes temas de inteligibilidada histria, ao menos a partir dos Tempos modcmos. progresso c decadncia. ambexprimiam bem esse culto da continuidade. a certeza de saber a quem e ao qdevamos o que somos. Donde a imposio da idia das "origens. fonna j profada narrativa mitolgica. mas que comnbuia para dar a uma sociedade cm via laicizao nacional seu sentido c sua necessidade do sagrado. Mais as origens eragrandes, mais elas nos cngrandcctam. PoRjuC venervamos a ns mesmos atravdo passado. esta relao que se quebrou. Da mesma fonna que o futuro visvprevisvel. matupulvcl. balisado. projco do presente. tomou-se invisvel, imprvisvel. incontrolvel: chegamos. simetricamente. da idia de um passado visvelum passado invisvel: de um passado coeso a um passado que vivemos como ropimento: de wna histria que era procurada na continuidade de uma memria a ummemria que se projeta na descontinuidade de uma histria. No se falar mais d''origens". mas de "nascimento". O passado nos dado como radicalmente outrele esse mundo do qual estamos desligados para sempre. colocando em evidnctoda a extenso que dele nos separa que nossa memria confessa sua verdade.como na operao que, de um golpe. a suprime.Porque no se deveria crer que o sentimento da descontinuidade se satisfcom o vago c o difuso da noite. Paradoxalmente. a distncia exige a reaproximaque a conjura e lhe d, ao mesmo tempo, sua vibrao. Nunca se desejou de maneito sensual o peso da terra sobre as botas, a mo do Diabo do ano mil, e o feddas cidades no sculo XVIII. Mas a alucinao artificial do passado s prcisamente concebvel num regime de descontinuidade. Toda a dinmica de nosrelao com o passado reside nesse jogo sutil do impenetrvel e do abolido. Nsentido inicial da palavra. trata-se de uma representao radicalmente diferendaquela tra7jda pela antiga ressurreio. To integral quanto ela se quis, a ressureio implicava. com efeito. numa hierarquia da lembrana hbil em ajeitar as sombras e a luz para ordenar a perspectiva do passado sob o olhar de um presenfinalizado. A perda de um princpio explicativo nico precipitou-nos num universfragmentado. ao mesmo tempo em que promoveu todo objeto, seja o mais humildo mais improvveL o mats maccssvel. dignidade do mistcrio histrico Nsabamos. antigamente. de quem ramos filhos c hoJC somos filhos de ningum l'mJ. Hutona. Siiol'auio. t/01. de::. I'N3

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    todo mundo Se ningum sabe do q d r ue o passa o e Cito. uma mqUJeta mcertezatransfonna tudo vestgio, indcio possvel, suspeita de histria com a qual contarnmamos a mocenca das coisas. Nossa percepo do passado a apropriaoveemente daqmlo que sabemos - . nao mais nos pertencer. Ela exige a acomodaoprecisa sobre um obieto perd'd A . ' o. representao exclw o afresco, o fmgmento. oquadro de conjunto; ela procede atravs de iluminao pontual. multiplicao detomadas selellvas, amostras significativas. Memria intensamente retiniana epoderosamente televisual Co n f ." . , mo o azer a ligao, por exemplo. entr e o famosoretomo da narrativa que pudem ta .

    hi , . os no r nas ma1s recerues rnancims de se escrevera stona e o poder total da imag d .. em e o cmema na cultum contempornea? Nar-rallva, na verdade bem diferente da . narrativa tmdconaJ, fechada sobre si mesmae com seu recorte smcopado Com n r .de arq 1 , : 0 0 gar o respello escrupuloso pelo documentowvo - co ocar a propna pea b .. so seus olhos -. o particular avano da oralidade- Citar os atores, fazer ouvir suas vozes . . .habituad ? C _ -. a autentiCidade do direto ao qual fomosos. omo nao ver nesse gost I ..de . . . ' 0 pe o cotidailO no passado. o nico meionos reslltuu a lentido dos dias e .annimos 0 meio d 1 abor das coisas? E nessas biogmfias de' e nos evar a apreendemassificada Como n 1 r que as massas no se formam de maneira o er nessas bulas d dde micro-histria a tad d . 0 passa 0 que nos fornecem tantos estudos, von c e Igualar a hi t' vivemos? Memria-espelho d . s ona que reconstrumos histria que ' r-se-a se os espelhos no 11 Imagem qu ando ao co 1 . . . ' rc ellssem a propna' 11 mno, e a diferen , .espetculo dessa diferen b .1ha . a que procummos ai descobnr; c noa, o n r repentmo d d encontrada. No mais u , e urna entidade impossv el de serma genese mas o de lino somos mais. ' CI mmento do que somos luz do queEsta alquimia do essencial contribui . .da histria, cujo impulso brutal d' de mane1m bizarra, para fazer o exerccio

    cionar, o depositrio dos se d e: reo ao futuro deveria tender a nos propormenos pela histria do qu:epelos hio presente. Alis, a operao traumtica realiza-se o stonador Estranho d .Simples antigamente e seu lugar . . estJno o seu. Seu papel era1nscnto na so edadc barqueiro do futuro Nesse t'd Cl e: se fazer a palavm do passado. sen 1 o sua pecab1a-lhe ser apenas uma t _ '. ssoa contava menos do que seu servio:d . mnsparencta erudita, e uruo o mais leve po . 1 um veiculo de tmnsmisso um tmo. ss1ve entre a m t r mscro na memria. Em lf . , . a ena Idade bruta da documentao e a0 u ma lllSincta uma - . .a exploso da histria-me ' ausencta obsessva de objetivid ade.d fi mona emerge um1 erentemente de seus pred novo personagem proruo a confess ar. ecessores, a li . , . ' 'mantem com seu suieito Ou 11 ga 0 estreita, mtima e pessoal que ele, " me 1or a pro 1 1obstaculo. mas a alavanc d c ana- o, a aprofund-lo e a fazer, noa e sua compree -nsao. Porque esse sujeito deve tudo a}0

    l'roJ, Hutna. So Paulo, (10), de:. f,JIJ3

    sua subjetividade. sua criao. sua recriao. ele o instrmnento do metabolismque d sentido c vida a quem. em si e sem ele. no teria nem sentido nem viImagmemos wna sociedade inteiramente absorvida pelo sentimento de sua prphistoricidade; ela estaria impossibilitada de produzir historiadores. Vivendo integmente sob o signo do futuro, ela se contentaria de processos de gravao automtide si mesma e se satisfaria com mquinas de se auto contabilizar, mandando volta para um futuro indefinido a tarefa de se compreender a si mesma. Em ctrapartida. nossa sociedade. cert;uuente arrancada de sua memria pela amplitude suas mudanas. mas ainda mais obcecada por se compreender historican1ente, econdclk1da a fazer do historiador um personagem cada vez mais centml, porque nse opera aquilo de que ela gostaria mas no pode dispensar: o historiador aquque impede a histria de ser somente histria.

    Da mesma fonna que devemos dstncia panormica o grande plano e estranhamento defi1tivo uma hiperveracidadc artificial do passado, a mudana modo de percepo reconduz obstinadamenrte o historiador aos objetos tmdiciondos quais ele se havia desviado, os usuais de nossa memria nacionaL Vejamnovamente na soleira da casa nataL a velha morada nua, irreconhecvel. Commesmos mveis de fanlia. mas sob uma nova luz. Diante da mesma oficirta, mpara uma outm obra. Na mesma pea. mas para um outro papel. A historiograinevitavelmente ingressada em sua era epistemolgica. fecha definitivamente a da identidade, a memria inelutavelmente tr.tgada pela histria, nlio existe mais homem-memria, em si mesmo, mas um lugar de memria.

    /11. Os lugares de memria, uma outra histria

    Os lugares de memria pertencem a dois donnios, que a tomam interessanmas tambm complexa: simples c ambguos. naturais e artificiais, imediatamenoferecidos mais sensvel experincia e. ao mesmo tempo. sobressaindo da mabstrata elaborao.

    So lugares. com efeito nos trs sentidos da p a l a v r < ~ , material, simblicofuncional. simultaneamente. somente em gr,ms diversos. Mesmo um lugar de aparcia puramente material, como um depsito de arquivos, s lugar de memria a imaginao o investe de uma aum simblica. Mesmo um lugar puramente fucional. como um manual de aula. um testamento, wna associao de antigos combatentes. s entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto silncio, que parece o exemplo extremo de uma significao simblica, ao mesm

    Pro]. Hrsll'ma. So Paulo. (IOJ. dez. JW3

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    tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, parauma chamada concentrada da lembrana. Os trs aspectos coexistem sempre. Trata-sede um lugar de memria to abstraio quanto a noo de gerao? material porseu contedo demogrfico; funcional por hiptese, pois garante , ao mesmo tempo,a cristalizao da lembrana e sua transmisso; mas simblica por definio vistoque caracteriza por um acontecimento ou uma experincia vividos por um pequenonmero uma maioria que deles no participou.

    O que os constitui um jogo da memria e da histria, uma interao dosdois fatores que leva a sua sobredeterminao recproca. Inicialmente, preciso tervontade de memria. Se o princpio dessa prioridade fosse abandonado, mpidamentederivar-se-ia de uma definio estreita, a mais rica em potencialidades. para umadefinio possvel, mais malevel, susceptvel de a

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    inteno inicial ou o retomo sem fim dos crclos de sua mcnrri a'' E\ rdcntcmenlcos dois: todos os lugares de memria so obJetos no abismoEsse mesmo princpio de duplo pcrlcncimcnto que pcnnnc opcrdr. na multi

    plicidade dos lugares. uma hierarquia. uma delimitao de seu campo. um repcrlnode suas escalas. Se vemos efetvamente as grandes categorias de objetos que sobrcss a e n ~ do gnero - tudo o que vem do culto dos mortos. tudo que sobressai do patnmomo. ludo o que administra a presena do passado no presente -. est portantoclaro que alguns, que no entram na estrita definio. podem isso prctcndcr c que.

    m v e r ~ a m c n t e . muitos. a maior parle mesmo daqueles que de le fazem parte porpnncrpro. devem. de fato ser excludos. O que constitu certos sitias pr-histricos.geogrficos ou I arqueo ogiCos cm lugares. c mesmo em lugares de destaque. mwtasvezes 0 que deveria precisamente lhes ser proibido. a ausn

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    Nada impede, em contrapartida, no interior do campo, que se imaginem todasas distribuies possveis e todas as classificaes necessrias. Desde os lugaresmais naturais, oferecidos pela experincia concreta, como os cemitrios, os museus,e os aniversrios, at os lugares mais intelectualmente elaborados, dos quais ningumse privar; no somente a noo de gerao, j evocada, de linhagem, de "regiomemria'', mas aquela de "partilhas", sobre as quais esto fundadas todas as percepes do espao francs, ou as de "paisagem como pintura", imediatamenteinteligivel, se pensamos particularmente em Corot ou em Sainte-f'ictoire de CDmne.Se insistimos sobre o aspecto material dos lugares, eles prprios se dispem numvasto dcgr.Jd, Veja-se. primeiro. os portteis, no os menos importantes visto queO povo da memria d um exemplo maior com as tbuas da lei; veja-se otopogrfico, que devem tudo a sua locali7.1o exata e a seu enraizamento ao solo:assim, por exemplo, todos os lugares tursticos, assim a Biblioteca nacional to ligadaao hotel Mazarin quanto os Arquivos nacionais ao hotel Soubise. Veja-se os lugaresmonumentais, que no saberamos confundir com os lugares arquiteturais. Os primeiros, esttuas ou monumentos aos mortos, conservam seu significado em sua existncia intrnseca; mesmo se sua locali7.ao est longe de ser indiferente, uma outraencontraria sua justificao sem alterar a deles. O mesmo no acontece com osconjuntos construdos pelo tempo. c que tiram sua significao das relaes complexas entre seus elementos: espelhos do mundo ou de uma poca, como a catedralde Chartres ou o palcio de Versalhes_

    Apegar-nos-emos, ao contrrio dominante funcional? Desdobrar-se- 0 lequedos lugares nitidamente consagrados manuteno de uma experincia intransmi ' 1 - desslve e que desaparecem com aqueles que o viveram, como as assoclaoesantigo b ' d ordems com atentes, aqueles cuja ra71lo de ser, tambm passage1ra, e e _ ,pedaggica, como os manuais, os dicionrios, os testamentos ou os "livros de razaoque, na poca clssica. os chefes de famlia redigiam para o uso de seus descendentes Seremos lfi . , . - b lco? Oporemos. nos, e1 un, ma1s sens1ve1s ao componente s1m o I por exemplo, os lugares dominantes aos lugares dominados. Os primeiros, espetaculare t nf: dade na-. s e nu antes, Imponentes e geralmente impostos, quer por urna autortClonai, quer por um corpo constitudo mas sempre de cima, tem, muitas vezes afrieza ou a solenidade das c e r i m n i a ~ oficiais Mais nos deixamos levar do que

    v ~ m o s a eles. Os segundos so os lugares refgio, o santurio das fidelidades espontancas e das pe - . , a De um ladoregnnaocs do Silencio. E o corao v1vo da memon .o Sacr-Coeur. de outro, a peregrinao popular a Lounles: de um lado, os funeraiS 1do 'Inacwnals de Paul V.llry, de outro. o enterro de Jean-Paul Sartre: de um a 'cc fi' c 1 nbc'nmoma unebre de De Gaulle em Notre Dame_ de outro. o cemitrio de 0 01 -I 101 dec iW-'ProJ. Hlr:r. Siin Pau n. (

    Poderamos refinar infinitamente as classificaes. Opor os lugares pblicosaos lugares privados. os lugares de memria puros, que esgotam inteiramente suafuno comemomtiva - como os elogios fnebres, Douaurnont ou o muro dos Federados -, e aqueles cuja dimenso de memria uma s entre o feixe de suassignificaes simblicas. bandeira nacional, circuito de festa, peregrinaes, etc. Ointeresse desse esboo de tipologia no est nem cm seu rigor nem em sua exausto.Nem mesmo cm sua riquc/.a e v o c a d o r < ~ . Mas no fato que ela seja possvel. Elamostra que um fio imisvcl liga objctos sem uma relao evidente, c que a reuniosob o mesmo chefe do Pre-Lacrulisc c da Estatstica geral da Frana no o encontro surrcalista do guarda chuva c do ferro de passar. H uma rede articuladadessas identidades diferentes, uma organi1.ao inconsciente da memria coletivaque nos cabe tomar consciente de si mesma. Os lugares s;1o nosso m01ncnto dehistria nacional.Uma caractcristica simples. mas decisiva, os coloca radicalmente a parte detodos os tipos de histria, antigos c novos, aos quais estamos habituados Todas asaproximaes histricas e cientficas da memria. sejam elas dirigidas a da naoou a das mentalidades sociais, tinham a ver com a rea/ia, com as prprias coisascuja realidade em sua maior vivacidade elas se esforavam por apreender. Diferentemente de todos os objetos da histria, os lugares de memria mio tem referentesna realidade. Ou melhor, eles s.'io, eles mesmos, seu prprio referente, sinais quedevolvem a si mesmos, sinais cm estado puro. No que ru1o tenham contedo, pnesena fsica ou histria; ao contrrio. Mas o que os faz lugares de memria aquilopelo que, exalamente . eles escapam da histria. Templum: recorte no indeterminadodo profano - espao ou tempo. espao c tempo - de um crculo no interior do qualtudo conta, tudo simboliza, tudo significa. Nesse sentido, o lugar de memria umlugar duplo: um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extenso desuas significaes. o que faz sua histria a mais banal e a menos comum. Assuntos evidentes,material o mais clssico, fontes disponiveis, os mtodos menos sofisticados.Teramos a impresso de retornar histria de anteontem. Mas trata-se de outracoisa. Esses objetos s so apreensveis na empiria a mais imediata, mas o meca-nismo, a trama est em outro lugar, inapto para se exprimir nas categorias da histriatradicionaL Crtica histrica tomada toda histria critica, e no somente de seusprprios instrumentos de trabalho. Despertada de si mesma para viver no segundograu. Histria puramente transferencial que, con10 a guerra, uma arte de execuo,feita da felicidade frgil da relao com o objeto refrescado e do envolvimento do

    Prol HUrna. So Paulo, (I 0), dez. I WJ

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    historiador com seu sujeito. Uma histria que s repousa, afinal das contas, sobreo que ela mobiliza, um lao fim1e, impalpvel, apenas dizvel, o que pennancce cmnos, de. apego carnal desenraizvel a esses smbolos, no entanto, j murchos. Re-vavcncaa de uma hi t da s ona a mo Michelet, que faz invencivelmente pensar nesse~ c o r ~ do luto do amor do qual Proust falou to bem, esse momento quando a.nlluencaa obsessava da paixo se levanta, enfim, mas quando a verdadeira tristezae de no mais sofrer daq 1 li ,UI o que nos ez tanto sofrer e que so passamo s a com-preender com as razes da cabea e mais o irracional do coraoRefe' be ]'

    rencaa m aterana. Deve-se lament-la ou, ao contrrio, justific-la com-pletamente? Ela a conserva . ,uma vez mrus da poca. A memria, com efeito, soconheceu duas foilllas de 1 ,; 'dad . , .. egiunu e: histonc a ou literria. Elas foram, alis,exercadas paralelamente t. ho'e ob mas, a e separadamente A fronteira hoje desapareces re a morte quase sim lt' da hi , . . .. d . , . u anea stona-memon a e da histria-fico, nasceum tipo e histona que d , .eve seu prestJgao e sua legitimidade sua nova relaocom o passado, um outro pa d A hi , . ,R . ssa o. stona e nosso imaginrio de substituio.enascamento do romanc hi . .zao li-terria do drama e , t o n c o , moda do d o ~ u m e n t o personalizado, revitali-1ad histonco, sucesso da narratava de hist ria oral como scnamcxp ac os seno como a etap da .onde se anc a fico enfraquec ida? O interesse pelos lugaresora, se condensa e se . , .coletiva ressalt d . . . expnme o capatal esgota do de nossa memonaa essa sensabahdade H de sua profundidad astona, profun didade de wna poca arrancadaMemria promovdae, romance verdadeiro de uma poca sem romance verdadeiro.

    ' I ao centro da hi t s o na: e o luto m anifest o da lit eratura.

    ProJ. Hutna. Silo PaJJlo. (/O), dz. J99J

    MITOBIOGRAFIA EM H ISTRIA ORAL"'Luisa Passerini..Traduo: Maria Therezinha Janine Ribeiro

    primeira vista, a relao entre mito e histria parece ser a mais adequadapara descrever o complexo espao da histria oral. So dois plos, um mais voltadopara o simblico, o outro para o analtico, entre os quais a histria oral se movecontinuamente. Contudo, quando um tende a se aprofw!dar, esta relao se destabilizac os dois plos parecem se aproximar. A expresso "mito e histria" engloba umsrie enorme de significados, que obriga quem quiser falar a respeito a indicar quaisos significados escolhidos em cada caso.Inicialmente. lembremos que ambos os termos, em grego antigo, compartilhavam pelo menos um significado: mythos e isturia tinham em comum o sentidode discurso ou narrao, embora cada um remetesse a implicaes distintas. Oprimeiro, a empreendimento, trama, conto; o segw!do, a busca, interrogao, exame. sabido que Tucdides. ao conceituar a histria, faz uma distino clara entresua cincia, baseada em anlises cuidadosas, e o akual, tradies orais, sempreconectadas com o reino do fabuloso, os mythdes. A posio de Tucdides umexemplo daquele escndalo que Mancel Detienne considerou um componente decisivo da atitude ocidental em relao aos mitos. O problema, desde ento, esteve emcomo lidar com esta sensao de escndalo e encontrar um lugar aceitvel para oscontedos que ela levantou. As fronteiras to ttidas traadas por Tucdides foramabaladas com freqncia, mas raramente se viram negadas em sua prpria essncia.Escndalo em que sentido? Escndalo da mente racional em confronto com oOutro, o divino ou o alm, o sobrenatural ou o inexplicvel. Em sua origem, osmitos, diferentemente da histria, eram narraes que tentavam exprimir essas di-

    ln: SAMUEL. Raphaele TitOMPSON. Paul The myths wel1w by. London ., d New Yorl