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RESENHA NORBERT ELIAS POR ELE MESMO Norbert Elias por ele mesmo BCH-UFC PERIODICOS do prefácio! (não à toa, Casa-Grande & Senzala é dedicado à memória de seus avós). Outro ilustre exem- plo é o de Max Weber. Impossível reduzir a genialidade de sua obra a aspectos biográficos, ou tentar explicá-Ia somente por sua história de vida, uma vez que sua ciência é legítima herdeira de vertentes diversas da intelectualidade alemã. Con- tudo, é difícil desconsiderar que a incompatibili- dade entre a atividade científica e a prática política tão denunciada em seus textos não seja reflexo de um dilema pessoal: defensor da neutralidade axiológica das Ciências Sociais, Weber foi também um cidadão interessado em participar das deci- sões políticas de seu país - seu fracasso neste últi- mo empreendimento, aliás, pontua o pessimismo de alguns de seus ensaios. Também não é incoe- rente imaginar que parte do seu interesse pelo puritanismo possa derivar da influência mater- na (embora não professasse credo algum, Weber mantinha laços afetivos muito e treitos com a mãe, Helene Weber, mulher de austera forma- ção protestante). E por que retomo essa discussão tão con- troversa quanto apaixonante? Justamente porque ela se faz presente em Norbert Elias por Ele Mes- mo, mais um título da série que a editora cario- ca Jorge Zahar vem dedicando à obra do sociólogo alemão. Dividido em três segmentos, o livro apresenta uma extensa e esclarecedora entrevista com o intelectual - quase noventa páginas -, cinco ensaios de natureza autobio- gráfica e uma breve cronologia. A leitura dos textos não deixa dúvidas: a figura que emerge desses relatos é o homem Elias, alemão de DE NORBERT ELlAS Norbert Elias por Ele mesmo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. POR LAÉCIO RICARDO DE AaUINO RODRIGUES* * Jornalista e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) P ode a história de vida de um autor, seus dilemas e triunfos pessoais, cons- tituir um termômetro indicativo da orientação de sua produção inte- lectual, a ponto de permitir analogias entre sua biografia e o conteúdo de seus livros? A coloca- ção é delicada. Os entusiastas poderão alegar que uma compreensão da visão de mundo do pesquisador - de quem foi este homem, que valores professou e como se situou ante as ques- tões centrais de seu tempo - é indispensável a um maior entendimento de sua obra. Cientistas sociais de índole positivista, por outro lado, ten- deriam a refutar tal hipótese: um conhecimento produzido livre de juízo de valor não pode ser mensurado por questões ideológicas. E penso que ambos estão certos. Exemplifico. Ninguém pode chegar ao extremo de afir- mar que "Casa-Grande & Senzala", obra seminal de Gilberto Freyre, é um livro autobiográfico, uma vez que, para redigi-Ia, o autor precisou se dis- tanciar de suas raízes e aprimorar sua formação acadêmica no exterior (sobretudo nos Estados Unidos). No entanto, em vários trechos deste clás- sico, Freyre admite que, escrevê-lo, implicou um reencontro com a sua ascendência: remanescen- te da aristocracia açucareira pernambucana, suas recordações reverberam nas páginas do livro, num exercício de memória: "é um passado que se en- tende tocando em nervos; um passado que emen- da com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesqui- sa pelos arquivos", confessa, em trecho marcante ROORIGUES. LAÉelO RICARDD DE AaUINO: NORBERT ELlAS POR ELE MESMO. P. 139 A 142 139

NORBERT ELIAS POR ELE MESMO BCH-UFC PERIODICOS€¦ · Casa-Grande &Senzala. 39ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2 Elias descreve poucos episódios de cunho anti-semita neste

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RESENHA

NORBERT ELIAS POR ELE MESMO

Norbert Elias por elemesmo

BCH-UFCPERIODICOS

do prefácio! (não à toa,Casa-Grande & Senzalaé dedicado à memória deseus avós).

Outro ilustre exem-plo é o de Max Weber.Impossível reduzir agenialidade de sua obraa aspectos biográficos, ou

tentar explicá-Ia somente por sua história de vida,uma vez que sua ciência é legítima herdeira devertentes diversas da intelectualidade alemã. Con-tudo, é difícil desconsiderar que a incompatibili-dade entre a atividade científica e a prática políticatão denunciada em seus textos não seja reflexo deum dilema pessoal: defensor da neutralidadeaxiológica das Ciências Sociais, Weber foi tambémum cidadão interessado em participar das deci-sões políticas de seu país - seu fracasso neste últi-mo empreendimento, aliás, pontua o pessimismode alguns de seus ensaios. Também não é incoe-rente imaginar que parte do seu interesse pelopuritanismo possa derivar da influência mater-na (embora não professasse credo algum, Webermantinha laços afetivos muito e treitos com amãe, Helene Weber, mulher de austera forma-ção protestante).

E por que retomo essa discussão tão con-troversa quanto apaixonante? Justamente porqueela se faz presente em Norbert Elias por Ele Mes-mo, mais um título da série que a editora cario-ca Jorge Zahar vem dedicando à obra dosociólogo alemão. Dividido em três segmentos,o livro apresenta uma extensa e esclarecedoraentrevista com o intelectual - quase noventapáginas -, cinco ensaios de natureza autobio-gráfica e uma breve cronologia. A leitura dostextos não deixa dúvidas: a figura que emergedesses relatos é o homem Elias, alemão de

DE NORBERT ELlAS

Norbert Elias por Ele mesmo.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

POR LAÉCIO RICARDO DE AaUINO RODRIGUES*

* Jornalista e mestrando do Programa dePós-Graduação em Sociologia da Universidade

Federal do Ceará (UFC)

Pode a história devida de um autor,seus dilemas e

triunfos pessoais, cons-tituir um termômetroindicativo da orientação de sua produção inte-lectual, a ponto de permitir analogias entre suabiografia e o conteúdo de seus livros? A coloca-ção é delicada. Os entusiastas poderão alegarque uma compreensão da visão de mundo dopesquisador - de quem foi este homem, quevalores professou e como se situou ante as ques-tões centrais de seu tempo - é indispensável aum maior entendimento de sua obra. Cientistassociais de índole positivista, por outro lado, ten-deriam a refutar tal hipótese: um conhecimentoproduzido livre de juízo de valor não pode sermensurado por questões ideológicas. E pensoque ambos estão certos. Exemplifico.

Ninguém pode chegar ao extremo de afir-mar que "Casa-Grande & Senzala", obra seminalde Gilberto Freyre, é um livro autobiográfico, umavez que, para redigi-Ia, o autor precisou se dis-tanciar de suas raízes e aprimorar sua formaçãoacadêmica no exterior (sobretudo nos EstadosUnidos). No entanto, em vários trechos deste clás-sico, Freyre admite que, escrevê-lo, implicou umreencontro com a sua ascendência: remanescen-te da aristocracia açucareira pernambucana, suasrecordações reverberam nas páginas do livro, numexercício de memória: "é um passado que se en-tende tocando em nervos; um passado que emen-da com a vida de cada um; uma aventura desensibilidade, não apenas um esforço de pesqui-sa pelos arquivos", confessa, em trecho marcante

ROORIGUES. LAÉelO RICARDD DE AaUINO: NORBERT ELlAS POR ELE MESMO. P. 139 A 142 139

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RESENHA

Breslau (hoje a cidade polonesa de Wroclaw),um sobrevivente em duplo sentido: dopatrulhamento nazista e do ostracismo acadê-mico, ao qual esteve confinado até fins da déca-da de 60, quando teve sua obra revista na Europa- à época, contava já com quase 70 anos. Mas édifícil não perceber que, às vezes, sua ciência seaproxima sensivelmente de sua trajetória bio-gráfica, quase se tangenciam.

Elias viveu em Breslau até 1924, quandodefende sua tese de filosofia e decide seguirpara Heidelberg, a fim de aprofundar sua for-mação. Na entrevista, que data de 1984 (pró-ximo à sua morte, em 1990, portanto), descrevesua cidade como "opulenta" e de grande mo-vimentação cultural, localizada numa rica re-gião agrícola. Inicialmente dispersas, aslembranças do sociólogo vicejam aos poucos.Filho único de uma abastada família judia - opai era um empresário do ramo têxtil -, revelaque o anti-sernitismo parecia uma sombra pá-lida naquele início de século.?

Apesar do longo desprezo acadêmico, Eliasexplica a perseverança intelectual pela atençãoe zelo familiar, uma dedicação capaz de lhe im-primir uma inabalável autoconfiança '. O proces-so de exclusão não lhe demovera do desejo deprosseguir no campo científico; tampouco recu-ava em suas colocações. "Ou triunfava, ou de-saparecia. Não tinha certeza absoluta,naturalmente, mas não duvidava nem um pou-co de que minha obra um dia seria reconhecidacomo contribuição de qualidade ao saber dahumanidade" (p. 22).

Para atingir o Olimpo, no entanto, Eliasdesceu ao inferno várias vezes. A contragosto,foi recrutado para o exército alemão, durante aPrimeira Guerra - em suas palavras, não escon-de o desprezo pelo imperador e pelo conflito".Teve experiências marcantes no front, emboranão participasse diretamente das batalhas. Suarecordação mais notável é dos cânticos entoa-dos pelos soldados, durante o deslocamento doscomboios, onde a intuição da morte está sem-pre presente, inspirando uma espécie de senti-

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mento de derrota - "isso é muito alemão, malemão. Nenhum outro país, a não ser talvezPolônia, tem uma consciência de si tão sinis(p. 32). Curioso que Elias, ainda jovem, jámonstrasse interesse em fontes pouco ucomo canções militares para decifrar o habitde uma sociedade.

Os estudos em filosofia e medicina,senvolvidos em Breslau, seriam importantes pampliar a dimensão interdisciplinar de sua CI'

cia social. A partir de 1925, instala-se eHeidelberg. A atmosfera intelectual da cidalogo o seduz - em suas palavras, Heidelberg ea "meca da Sociologia", num contexto fortemeinfluenciado pela figura de Max Weber. _efervescência dos debates e a presença de a -dêmicos como Alfred Weber (irmão de M~\:Karl Mannheim, de quem se tornariainterlocutor assíduo, lhe despertam o interespela disciplina emergente.?

No final da década, dirige-se para Frankf -com Mannheim, para continuar os estudo -essa altura, sua sociologia já adquirira contnos peculiares: uma ciência a serviçodesmistificação de estereótipos e mitologideslocada de partidarismos e ideologias. "Pso então dizer que a minha convicção de qé preciso erguer o véu que oculta os conce -tos remonta muito longe em meu passado"46). Remover a máscara, demolir represen -ções ilusórias. É significativo, portanto, queseu livro O Que é Sociologia? tenha um capí -10 intitulado o sociólogo como caçador de 11 -

tos. o mesmo período, também desenvolsuas idéias sobre as redes de interdependênci"o indivíduo está ligado aos outros por ufenômeno de dependência recíproca", conceitque seria plenamente desenvolvido em A So-ciedade de Corte.

Ainda em Heidelberg, ouve falar dos nacio-nal-socialistas; contudo, não sentia o movimen-to como ameaça. No depoimento, reconhece quea segurança familiar e a atmosfera intelectual dacidade prejudicaram suas intuições. Somente e __Frankfurt pressente os riscos do anti-semitismo

2003

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RESENHA

Deixa então a Alemanha em 1933. Tem início oexílio e um período de enorme carestia, com osrecursos familiares bloqueados pelo governonazista (seus pais seriam vítimas do hitlerismo).Enfrentando privações diversas, escreveu seusprimeiros livros na Inglaterra com a ajuda deum comitê de refugiados judeus - obras comoA Sociedade de Corte e O Processo Civilizado r,hoje celebradas, foram publicadas para audiên-cias vazias, sem qualquer retorno.

Embora não o tenha exasperado, o re-conhecimento tardio lhe exigiu demasiada pa-ciência. A relação ambígua com seu país natalfoi passada a limpo no volume Os Alemães,espécie de biografia daquela nação, onde Eliasmapeia o habitus germânico e seu ímpeto mi-litarista não para explicar as causas do nazis-mo, mas para revelar que os processoscivilizadores não são unilineares - às vezessão atravessados por surtos de "descivilização"e irracionalidade. Pelo menos num sentido,seu desterro foi positivo: é provável que umaobra do porte de Os Alemães somente possater sido viabilizada em virtude do distan-ciamento de seu país e do seu passado.

Apesar do isolamento acadêmico, é notá-vel que a disposição de Elias para o labor cien-tífico tenha se mantido forte e duradoura,despertando a atenção de seus admiradores eimpondo-lhe uma longa existência (mais de 90anos) sem descendentes: Elias não casou ou tevefilhos. Indagado sobre a importância que o tra-balho adquiriu em sua vida, recorre a seus argu-mentos teóricos: "Nunca acho que se possa dizerque determinada atividade seja resultado de umaopção pessoal". A idéia subjacente da frase é amesma já presente em A Sociedade de Corte erevisitada em A Sociedade dos Indivíduos: o ho-mem não é absolutamente autônomo ou social-mente determinado em suas decisões (os laçosde interdependência aos quais se encontra vin-culado revelam que em suas escolhas tambémpesam motivações sociais).

Usando uma terminologia clássica de seupensamento, Elias foi sempre um outsider.í í.un

judeu alemão lutando para se estabelecer nocampo acadêmico, um sociólogo exilado empermanente esforço para não se deixar tragarpelo esquecimento, confiante na singularida-de de seu pensamento. Difícil não considerartais aspectos biográficos pertinentes numa dis-cussão sobre sua produção teórica (o vínculoapontado aqui não é o de determinação, masde cumplicidade). Aliás, Leopoldo Waizbort,na apresentação do Dossiê Norbert Elias', rea-firma este dialogismo: segundo ele, sociólogo,judeu e alemão são pontos de abordagem pri-vilegiados para se compreender a trajetóriapessoal, intelectual e institucional do autor esua obra, suficientes, inclusive, para apontaro leque de formulações teóricas e o sentidode certas escolhas temâticas".

O tom confessional e biográfico, portan-to, não é a única virtude de Norbert Elias porEle mesmo. Sobretudo, o livro se destaca porpermitir esta saudável confrontação entre a tra-jetória pessoal do autor e sua produção teóri-ca, servindo, pois, como texto introdutório àssuas idéias científicas. Vai além: também possi-bilita ao leitor situar o sociólogo no contextohistórico de sua formação e desenvolvimen-to intelectual. Uma experiência fascinante,sem dúvida.

Notas

1 FREYRE, Gilberto. (2000). Casa-Grande & Senzala.39ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Record.

2 Elias descreve poucos episódios de cunho anti-semita neste período de sua vida. Um é marcante:quando tinha entre 15 e 16 anos, durante uma dis-cussão colegial, em meio à qual os alunos apresen-tavam seus projetos para o futuro, Elias manifestouo desejo de ser professor universitário, e foi inter-rompido por um colega, alegando que esta possi-bilidade lhe havia sido vetada desde ° nascimento,observação ilustrativa do preconceito acadêmicocontra os intelectuais judeus (p. 19).

3 "É por essa sensação de grande segurança que usu-fruí durante minha infância que explico minha per-severança, mais tarde, na época em que escreviameus livros e ninguém prestava atenção em mim.

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RESENHA

[, .. 1 Tenho uma intuição que me dá a segurança deque tudo irá bem, enfim, atribuo isso à enormesensação de segurança que usufruí como filho úni-co, graças ao amor de meus pais" (p. 22).

4 "Minha identificação com a Alemanha não se davade forma alguma em termos militares; na época, eunão tinha nada a ver com isso. Mesmo como solda-do, nunca fui nacionalista ou patriota - dirigia-mepara a morte porque era obrigado" (p. 28).

5 Para o conceito de babitus em Elias, conferir osvolumes A Sociedade de Corte e Os Alemães, publi-cados pela mesma editora.

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6 Três dos ensaios presentes no livro discorrem sobreeste período de reorientação intelectual de Elias -sua inclinação à sociologia - e sua aproximação comintelectuais como Karl Mannheim e Alfred Weber.

7 Para o conceito de outsider, conferir o volumeOs Estabelecidos e os Outsiders, também publica-do pela Zahar.

8 WAIZBORT, Leopoldo. (org.). (2001). Dossiê NorbertElias. São Paulo, Edusp.

9 No quarto ensaio incluído no livro, Elias discorresobre a sua condição simultânea de judeu e alemão.

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