nordeste nos livros didáticos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS EXATAS E DA NATUREZA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

LUCINEIDE FBIA RODRIGUES LOPES

A REGIO NORDESTE NOS LIVROS DIDTICOS DE GEOGRAFIA: UMA ANLISE HISTRICA

JOO PESSOA - PB 2009

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LUCINEIDE FBIA RODRIGUES LOPES

A REGIO NORDESTE NOS LIVROS DIDTICOS DE GEOGRAFIA: UMA ANLISE HISTRICA

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Geografia PPGG, da Universidade Federal da Paraba UFPB, como requisito parcial obteno do grau de Mestre.

Orientadora: Maria Adailza Martins de Albuquerque

JOO PESSOA PB 2009

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L864r

Lopes, Lucineide Fbia Rodrigues.A Regio Nordeste nos livros didticos de geografia: uma anlise histrica / Lucineide Fbia Rodrigues Lopes . - - Joo Pessoa: [s.n.], 2009.

139 f. : il. Orientadora: Maria Adailza Martins de Albuquerque. Dissertao (Mestrado) UFPB/CCEN. 1.Geografia. 2.Ensino de Geografia. 3.Livro didtico Geografia . 4.Regio Nordeste.

UFPB/BC

CDU: 91(043)

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Dedico este trabalho minha me Valnete que me ensinou que o melhor ensino/aprendizado da famlia o amor.

5 AGRADECIMENTOS

professora Maria Adailza Martins de Albuquerque (Dad), nada do que aqui escrevi teria sido possvel no fosse seu compromisso com a nossa cincia. Ao professor Anieres e professora Ariane, examinadores da qualificao, pelas acuradas contribuies produo deste trabalho. A todos os professores e a todas as professoras do Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal da Paraba. s minhas queridas sete irms: Lcia, Leda, Lediam Las, Lgda, Leandra e Liliana, pelas palavras de nimo e coragem que a mim sempre foram dirigidas. A minha tia Quinha. Aos meus filhos Lucas e Jeanpierre. Ao meu esposo Miguel. minha amiga Lcia. A Snia (secretria do PPGG-UFPB).

6 RESUMO

O objetivo desta dissertao investigar a relao entre os saberes escolares e os acadmicos. O cotidiano do trabalho e a forma como as descobertas e/ou revises de assuntos cientficos so divulgados, principalmente pela mdia e pela indstria cultural, associam quase sempre os contedos a ser ensinados nas escolas com a produo acadmica, resultando da uma viso hierrquica. Neste trabalho nos aproximamos de uma corrente terica, a histria das disciplinas escolares, que advoga uma relao no hierrquica entre a produo do conhecimento escolar e acadmico, tendo em vista que compreende a escola como espao de produo do saber escolar. Para atingir o referido objetivo analisamos trs livros didticos: Geographia do Brasil (1927), de Delgado de Carvalho, Geografia do Brasil (1958), de Aroldo de Azevedo e Geografia Crtica, o espao social e o espao brasileiro (2006), de Jos William Vesentini e Vnia Vlach, luz da histria das disciplinas escolares. Nessa perspectiva buscamos compreender como o contedo: Regio Nordeste apresentado nos referidas obras. certo que o livro didtico no responde sozinho pelo ensino, cujas relaes se condicionam em uma srie complexa de fatores, porm, sua discusso acompanha as prticas educacionais da escola. Desse modo, trabalhamos com esse recurso didtico de forma a tentar compreender a sua contribuio para a histria da disciplina escolar Geografia. Um dilogo com diversos autores sobre a categoria geogrfica regio apresentado para tentar sistematizar como que essa se constituiu no campo da Geografia. Neste trabalho, o que mais fundamental analisar como a regio tratada na Geografia Escolar e como se d a relao com estes autores. Com a anlise dos livros didticos citados pretendemos contribuir com a histria do pensamento e das prticas educacionais. Pois acreditamos que contedos reveladores de representaes e valores predominantes num certo perodo de uma sociedade que, simultaneamente historiografia da educao e da teoria da histria, permitem rediscutir intenes e projetos de construo e de formao social. O livro didtico e a educao formal no esto deslocados do contexto poltico e cultural e das relaes de dominao, sendo, muitas vezes, instrumentos utilizados na legitimao de sistemas de poder. Por serem representativos de universos culturais especficos, atuam, na verdade, como mediadores entre concepes e prticas polticas e culturais, tornando-se parte importante na engrenagem de manuteno de determinadas vises de mundo. Palavras-chaves: Livro didtico. Ensino de Geografia. Regio. Regio Nordeste.

7 ABSTRACT

The objective of this study is to investigate the relationship between school knowledge and academic knowledge. Everyday work and the way the findings and revisions of scientific subjects are published, mainly the Press and cultural industry, almost always associate the academic production to the contents to be taught at school leading thus, to a hierarchical vision. This work follows as a theoretical approach the history of the school subjects since it advocates a hierarchical relationship between school knowledge and academic knowledge. It also assumes school as a place of production of scholastic achievements. In order to attain our goal the following books were analised GEOGRAPHIA DO BRASIL (1927) by Delgado de Carvalho, GEOGRAFIA DO BRASIL ( 1958) by Aroldo de Azevedo e GEOGRAFIA CRTICA, O ESPAO SOCIAL E O ESPAO BRASILEIRO (2006) by Jos William Vesentini e Vnia Vlach, whose approach is the history of school subjects. Seen from this perspective, we try to understand the way the content North-east region is presented in the referred works. It is understandable that the didactic book is not by itself responsible for schooling, whose relationship depends upon a series of complex factors, however, its discussion follow the school educational practices. As such, we worked these didactic resources so as to understand their contribution for the history of Geography as school subject. A dialogue with various authors about region as geographical category is presented in order to systematize how it was constituted in the field of Geography. In this work the fundamental aspect is to analyze how region is treated in Geography at school and how this relation is connected. By analyzing the referred didactic books we intend to contribute to the history of thinking and educational practices and experiences. Thus, we believe that revealing contents of representations and predominant values in a certain period of a society allow us discuss anew intentions and projects of construction and social formation. The didactic book and formal education are not out of political and cultural contexts as well as domineering relations being, many times, useful instruments for legitimizing systems of power. Due to the fact that they are representative of specific cultural universe, they play, actually, the role of mediators between concepts and political and cultural practices turning themselves important parts in the mechanism of maintenance of determined views of the world. Keywords: Didactic books. Geography teaching. Region. North-east region.

8 LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Foto da contracapa do livro Geografhia do Brasil, Delgado de Carvalho, 1927 ................................................................................................................................ Figura 02: Foto da nota preliminar do livro Geografhia do Brasil, Delgado de Carvalho, 1927 ............................................................................................................... Figura 03: Foto da pgina 274-275 do livro Geografhia do Brasil, Delgado de Carvalho, 1927 ............................................................................................................... Figura 04: Foto da capa do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ......... Figura 05: Foto com o nmero de exemplar do Livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ................................................................................................................ Figura 06: Foto da capa do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ......... Figura 07: Foto da pgina 17 do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 Figura 08: Foto da pgina 183 do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ................................................................................................................................ Figura 09: Foto do homem brasileiro (p. 91) do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ................................................................................................................ Figura 10: Da diviso regional brasileira (p. 138-139), do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ............................................................................................... Figura 11: Foto da capa do livro Geografia Crtica o espao social e o espao brasileiro 2006 de Jos W. Vesentini e Vnia Vlach ..................................................

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Figura 12: Recife e Salvador, polos centralizadores da Regio Nordeste ...................... 120 Figura 13: Flagelados do Serto pernambucano numa frente de trabalho durante a seca ................................................................................................................................. Figura 14: Boneca de cermica produzida por arteso de Caruaru (PE) representando me a amamentar o filho ................................................................................................

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9 LISTA DE MAPAS

Mapa 01: Diviso do Brasil em Regies, segundo Delgado de Carvalho. (Adaptado) .. Mapa 02: Diviso do Brasil em Regies, segundo Said Ali Ida. (Adaptado) ................ Mapa 03: Diviso Regional do Brasil - 1940 ................................................................. Mapa 04: Mapa da Diviso Poltica do Brasil (p. 137), do livro Geografia do Brasil, Aroldo de Azevedo, 1958 ...............................................................................................

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Mapa 05 - Brasil: diviso regional segundo o IBGE ..................................................... 108 Mapa 06: Os trs complexos regionais ........................................................................... 109 Mapa 07: Meio tcnico-cientfico-informacional e as regies brasileiras ...................... 110 Mapa 08: As sub-regies do Nordeste ............................................................................ Mapa 09: Nordeste: Polgono das secas ......................................................................... Mapa 10: rea de abrangncia da seca (1979-1984) .................................................... 112 113 114

10 SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................ CAPTULO 1 DELGADO DE CARVALHO E O LIVRO DIDTICO DE GEOGRAFIA ................................................................................................................... 1.1 Origem do livro didtico brasileiro ........................................................................... 1.2 A Geografia do incio do sculo XX .......................................................................... 1.3 Delgado de Carvalho e a Geografia brasileira ......................................................... 1.4 Origem e evoluo do conceito de regio ................................................................. 1.5 Geographia do Brasil de Delgado de Carvalho - 1927 ............................................ 1.6 A Regio Nordeste no livro didtico de Delgado de Carvalho - 1927 .................... CAPTULO 2 - AROLDO DE AZEVEDO E A GEOGRAFIA BRASILEIRA ........ 2.1 A Geografia ps II Grande Guerra Mundial ........................................................... 2.2 Geografia do Brasil de Aroldo de Azevedo - 1958 ................................................... 2.3 Aroldo de Azevedo e a Regio Nordeste .................................................................. CAPITULO 3 - VESENTINI, VLACH E A REGIO NORDESTE NO LIVRO DIDTICO ....................................................................................................................... 3.1 A Geografia ps-ditadura militar brasileira ............................................................ 3.2 A Geografia Crtica de Vesentini e Vlach - 2006 ..................................................... 3.3 A Regio Nordeste e a Geografia Crtica .................................................................

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4 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 126 REFERNCIAS ............................................................................................................... 131

11 INTRODUO

O verdadeiro aprender um apreender muito notvel, no qual aquele que apreende, apreende apenas aquilo que, no fundo, j tem. O ensinar corresponde a este aprender. Ensinar um doar, um oferecer, mas no ensinar no se oferece o aprendvel; ao aluno oferecida to somente a indicao de tomar para si o que ele j tem. Quando o aluno adota unicamente algo oferecido, ele no aprende. Chega a aprender quando experimenta o que apreende com aquilo que ele mesmo j tem. Um verdadeiro aprender ocorre somente ali onde se d a si mesmo e se experimenta como tal. Dessa forma, ensinar no outra coisa seno deixar aprender aos outros, quer dizer, induzir-se mutuamente a aprender (HEIDEGGER, 1962/1973, p. 69).

O cotidiano do trabalho, as formas como as descobertas e/ou as revises de assuntos cientficos so divulgadas, principalmente pela mdia e pela indstria cultural, associando quase sempre os contedos a serem ensinados nas escolas com a produo acadmica, levounos reflexo e, sobretudo, no satisfao com o acordo verbal das definies, trazendo transformaes e promovendo um verdadeiro repensar das nossas prticas. Estas transformaes em nosso comportamento podem estar relacionadas concluso de Santos (2004), quando afirma que chegamos ao final de sculo XX possudos pelo desejo quase desesperado de completar o conhecimento das coisas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto , com o conhecimento de ns prprios. Trabalhando como professoras da disciplina Geografia por mais de duas dcadas na Regio Nordeste do Brasil, pretendemos com esta pesquisa identificar como esta regio foi e apresentada nos livros didticos de Geografia, buscando identificar as mudanas e permanncias atravs de uma abordagem histrica. Nesta perspectiva, concordamos com Cavalcanti (2005), quando diz que o pensamento, o desenvolvimento mental e a capacidade de conhecer o mundo e de nele atuar uma construo que depende das relaes sociais que o homem estabelece com o meio. A Geografia, assim como outras disciplinas ensinadas nas escolas de Ensino Fundamental e Mdio, tem sido discutida por tericos e tambm pelos professores que atuam na rea da educao. Esses pesquisadores discutem a Geografia sob diferentes focos de anlise e em diferentes momentos da sua trajetria escolar, desde a poca em que no havia professores formados em Geografia at os dias atuais, quando a formao uma exigncia primordial, mesmo que em muitos casos no seja cumprida. A trajetria da Geografia escolar, especificamente a brasileira, tem sido permeada por um discurso ideolgico que envolve a importncia dos raciocnios centrados no espao. Neste contexto, o livro didtico um complexo e polmico objeto cultural apresenta questes

12 educacionais inmeras e importantes. neste sentido que Choppin (2004) afirma que o dinamismo das pesquisas sobre os livros didticos verificados nos ltimos anos resulta da convergncia de uma srie de fatores conjunturais e estruturais. No entender deste autor, entre os fatores conjunturais podemos citar, entre outros, o crescente interesse manifestado pelos que se sentem atrados pela histria ou por historiadores em relao s questes de educao e o interesse de inmeras populaes em criar ou recuperar uma identidade cultural, devido a acontecimentos recentes como a descolonizao, o desmantelamento do bloco comunista ou, ainda, ao recrudescimento de aspiraes provenientes de grupos minoritrios. Quanto s causas estruturais, estas esto ligadas complexidade do objeto livro didtico, multiplicidade de suas funes, coexistncia de outros suportes educativos e diversidade de agentes que ele envolve. Para Choppin (2004), o estudo histrico mostra que os livros didticos exercem quatro funes essenciais, que podem variar consideravelmente segundo o ambiente sociocultural: a poca, as disciplinas, os nveis de ensino, os mtodos e as formas de utilizao. As quatro funes so assim denominadas: referenciais, que tambm podem ser chamadas de curriculares ou programticas, desde que existam programas de ensino: o livro didtico ento apenas a fiel traduo do programa ou, quando se exerce o livre jogo da concorrncia, uma das suas possveis interpretaes. Mas, em todo caso, continua Choppin (2004), ele constitui o suporte privilegiado dos contedos educativos, o depositrio dos conhecimentos, tcnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessrio transmitir s novas geraes. Uma segunda funo a denominada por Choppin (2004) de instrumental: aqui o livro didtico pe em prtica mtodos de aprendizagem, prope exerccios ou atividades que, segundo o contexto, visam a facilitar a memorizao dos conhecimentos, a favorecer a aquisio das competncias disciplinares ou transversais e a apropriao de habilidades, de mtodos de anlise ou de resoluo de problemas, etc. J a terceira funo denominada de ideolgica e cultural: a funo mais antiga, exercida a partir do sculo XIX, com a constituio dos Estados nacionais e com o desenvolvimento, nesse contexto, dos principais sistemas educativos. O livro didtico se afirmou como um dos vetores essenciais da lngua, da cultura e dos valores das classes dirigentes. Instrumento privilegiado de construo de identidades, geralmente ele reconhecido, assim como a moeda e a bandeira, como smbolo da soberania nacional e, nesse sentido, assume um importante papel poltico.

13 Esta funo, que tende a aculturar , em certos casos, a doutrinar as jovens geraes, pode se exercer de maneira explcita, at mesmo sistemtica e ostensiva, ou, ainda, de maneira dissimulada, sub-reptcia, implcita, mas no menos eficaz. A quarta e ltima funo essencial conhecida como documental: acredita-se que o livro didtico pode fornecer, sem que sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos, textual ou icnico, cuja observao ou confrontao podem vir a desenvolver o esprito crtico do aluno. Esta funo surgiu muito recentemente na literatura escolar e no universal: s encontrada afirmao que pode ser feita com muitas reservas em ambientes pedaggicos que privilegiam a iniciativa pessoal da criana e visam a favorecer sua autonomia; supe, tambm, um nvel de formao elevado dos professores. Choppin acredita, ainda, que uma das dificuldades para traar um estudo exaustivo sobre o que foi feito e escrito e, mais ainda, do que se pesquisa e se escreve atualmente pelo mundo sobre livros didticos, est relacionada prpria definio do objeto:

Na maioria das lnguas, o livro didtico designado de inmeras maneiras, e nem sempre possvel explicitar as caractersticas especficas que podem estar relacionadas a cada uma das denominaes, tanto mais que as palavras quase sempre sobrevivem quilo que elas designaram por um determinado tempo (CHOPPIN, 2004, p. 549).

Partindo destas premissas e acreditando na possibilidade de utilizar o livro didtico como fonte documental para compreendermos a histria de uma disciplina escolar, trabalharemos nesta perspectiva, buscando compreender parte da histria da Geografia escolar, a partir do que difundem os livros didticos dessa disciplina, ao longo de 80 anos. Tanto a Geografia quanto outras disciplinas fazem parte dos currculos escolares e constituem saberes, aparentemente naturais que circulam no cotidiano das salas de aula. Mas esta naturalidade da presena das disciplinas nas escolas e o lugar de cada uma delas no currculo escolar tm sido objeto de questionamentos, tanto na atualidade, quanto em outros momentos da histria da educao escolar (BITTENCOURT, 1998). Inicialmente, queremos evidenciar aqui o nosso primeiro questionamento que consiste na indagao: o que uma disciplina escolar? A resposta a tal pergunta no tem sido fcil para aqueles que se dedicam a investigar as especificidades do conhecimento escolar. As divergncias podem ser flagradas constantemente, a prpria utilizao do termo disciplina escolar coloca problemas. Em muitos casos, os termos disciplina e matria aparecem como sinnimos, mas sobre a sua semelhana nem sempre h concordncia.

14 Chervel ao situar historicamente o aparecimento do termo disciplina na documentao educacional, reconhece que seu uso recente, surgido no final do sculo XIX da seguinte maneira:

Na realidade, essa nova acepo da palavra trazida por uma larga corrente de pensamento pedaggico que se manifesta, na segunda metade do sculo XIX, em estreita ligao com a renovao das finalidades do ensino secundrio e do ensino primrio. Ela faz par com o verbo disciplinar, e se propaga primeiro com um sinnimo de ginstica intelectual, no conceito recentemente introduzido no debate. (...) Logo aps a I Guerra Mundial, enfim o termo disciplina vai perder a fora que o caracterizava at ento. Torna-se uma pura e simples rubrica que classifica as matrias de ensino, fora de qualquer referncia s exigncias da formao do esprito (CHERVEL 1990, p. 64).

Entretanto, Chervel (1990) conclui que uma disciplina igualmente, para ns, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o esprito, quer dizer, de lhe dar os mtodos e as regras para abordar os diferentes domnios do pensamento, do conhecimento e da arte. Nesta concepo, empregam-se os termos disciplina escolar ao se referir aos diversos nveis de escolarizao do ensino bsico e disciplina acadmica para o nvel superior. Para Goodson (1991), existe uma distino no que se refere ao termo disciplina. Disciplina entendida como uma forma de conhecimento oriunda da tradio acadmica e, para o caso das escolas primrias e secundrias, utiliza o termo matria escolar. Foi nos anos oitenta que as proposies pelas quais se baseiam as divergncias que, atualmente, esto presentes nas pesquisas sobre concepes de disciplina escolar, foram manifestadas. Assim, uma concepo bastante difundida, a de transposio didtica, foi introduzida em obra de Chevallard de 1981(BITTENCOURT, 1998). Para chegar concepo da transposio didtica, Chevallard (1981) parte do princpio de que a escola parte de um sistema no qual o conhecimento se insere pela mediao da noosfera, uma esfera de agentes sociais externos inspetores, autores de livros didticos, tcnicos educacionais, famlias que garante o fluxo dos saberes. Sobre esta concepo Bittencourt (1998) assim se pronuncia:

A concepo de disciplina escolar como transposio didtica , no entanto, polmica e tem gerado crticas. Uma delas a de conceber o saber erudito ou cientfico como uma forma de conhecimento descontextualizado do seu processo histrico de criao e acentuar a hierarquizao de saberes como base para a constituio de conhecimentos para a sociedade (p. 25).

15 A concepo de disciplina escolar fundamentada na transposio didtica deu origem a vrias crticas. Entretanto, a mais relevante foi a de Chervel (1990). Os pontos centrais de sua proposio residem na concepo das disciplinas escolares como entidades epistemolgicas relativamente autnomas e deslocam o acento das decises, das influncias e de legitimaes exteriores em direo escola, inserindo o saber por ela produzido no interior de uma cultura escolar. As disciplinas escolares se formam no interior dessa cultura, tendo objetivos prprios e muitas vezes irredutveis aos das cincias de referncia. Outro questionamento est relacionado permanncia ou excluso de disciplinas em um determinado currculo. Sobre esta problemtica Bittencourt (1998) relata:

A presena de cada uma das disciplinas escolares no currculo, sua obrigatoriedade ou sua condio de contedo opcional e, ainda, seu reconhecimento legitimado por intermdio da escola, no se restringe a problemas epistemolgicos ou didticos, mas articula-se ao papel poltico que cada um desses saberes desempenha ou tende a desempenhar, dependendo da conjuntura educacional. Estado, deputados e partidos polticos, associaes docentes, professores e alunos, entre outros, so agentes que integram a constituio das disciplinas escolares e, por intermdio de suas aes, delimitam sua legitimidade e seu poder (p. 10).

Como razovel crer que uma coisa foi inventada por aqueles a quem ela til, o destaque aqui vai para o livro didtico, considerado como primo pobre da literatura, apesar de ilustre, o livro didtico texto para ler e jogar fora, descartvel porque anacrnico: ou ele fica superado, dados os progressos da cincia a que se refere ou o estudante o abandona, por avanar em sua educao. Sua histria das mais esquecidas e minimizadas, talvez porque os livros didticos no so conservados, suplantado seu prazo de validade (CORRA, 2000). importante salientar, entretanto, que o valor do livro didtico engloba aspectos pedaggicos, econmicos, polticos e culturais. Portanto, os diversos modos de aprendizado, o que muito significante e deveria ser mais bem aproveitado, podem ser utilizados como um documento para contar a histria de uma disciplina, ao invs de ser jogado fora, como corriqueiro em sua histria. Por outro lado, devemos usar a prtica de olhar o livro didtico com olhos crticos e de apontar erros e inadequaes, pois embora esta prtica parea antiptica num primeiro momento, altamente educativa no s para autores e editores, mas, sobretudo, para os alunos, no sentido de derrubar o mito de que o livro didtico depositrio da verdade. Isto estimula o desenvolvimento do senso crtico do aluno e o faz refletir e questionar, antes de aceitar passivamente as informaes que recebe a todo instante na escola e fora dela.

16 Sobre a importncia do livro didtico como poderosa fonte de conhecimento da histria de uma nao, Lajolo (1987) chama ateno no sentido de uma maior preocupao com o que nos ensinam as vozes dos mestres que nos precederam. Seremos to suicidas quanto mais rapidamente nos descartarmos do cho histrico que pisamos. Sabemos hoje que a qualificao da escola brasileira passa pela recuperao, trabalhada no div, da dimenso da memria do professor, da escola e do livro. Por outro lado, concordando com Silveira (1980), que afirma que a questo regional, travestida de outras nomenclaturas, como: subdesenvolvimento regional, desigualdades regionais, relaes centro-periferia, colonialismo interno, etc., vm-se constituindo em um objeto de preocupao de amplos setores da sociedade brasileira, nos posicionamos diante dessa problemtica na busca de melhor entendermos a nossa regio: o Nordeste brasileiro. Recorremos a Andrade (2001) que alerta para o emprego, com frequncia, das palavras globalizao e regionalizao de forma esttica, como se o fenmeno da globalizao tivesse ocorrido de forma sbita, em um determinado momento, sem qualquer conexo com o passado. Neste contexto merece destaque a expresso do fim da histria, feita pelo nipoamericano Fukuyama, como se a histria pudesse ser interrompida ou, pior ainda, ter um fim. A ideia de imploso do Estado-nao s suscetibiliza aqueles que no percebem o sentido poltico do Estado que torna suas fronteiras pertinentes, mesmo quando so rompidas as fronteiras econmicas (LENCIONI, 1999, p. 191). Diante de tal posicionamento concordamos com Lencioni (1999) e reforamos nosso pensamento com Santos, que assim se pronuncia:

A histria sem-fim, est sempre se refazendo. O que hoje aparece como resultado tambm um processo; um resultado hoje tambm um processo que amanh vai tornar-se outra situao. O processo o permanente devir. [...] Ao contrrio do que se diz a histria universal no acabou; ela apenas comea. Antes o que havia era uma histria dos lugares, regies, pases. As histrias podiam ser no mximo, continentais, em funo dos imprios que se estabeleceram em uma escala mais ampla. O que se chamava de histria universal era a viso pretensiosa de um pas ou continente sobre os outros, considerados brbaros ou irrelevantes [...] Somente agora a humanidade faz sua entrada na cena histrica como um bloco, entrada revolucionria, graas interdependncia das economias, dos governos, dos lugares. O movimento do mundo conhece uma s pulsao, ainda que as condies sejam diversas, segundo continentes, pases, lugares, valorizados pela sua forma de participao na produo dessa nova histria (SANTOS, 1994, p. 95).

Completamos nossa opinio com Gomes (1995), quando afirma que, na

17 contemporaneidade, questes como a redefinio do papel do Estado, a queda de pactos territoriais que moldaram o mundo nos ltimos anos, o ressurgimento de questes regionais no seio dos Estados e a manifestao, cada vez mais acirrada, de nacionalismos / regionalismos, inspiram este tipo de discusso. Apoiados nos autores supracitados e tendo como perspectiva os debates expostos, construmos o nosso plano geral de exposio do texto organizado em trs captulos. No primeiro deles analisaremos a origem do livro didtico brasileiro, o ensino da Geografia no inicio do sculo XX com destaque para a obra de Delgado de Carvalho, Geografhia do Brasil 1927 especificando em seguida a sua abordagem sobre a Regio Nordeste. No segundo captulo o destaque vai para a obra Geografia do Brasil 1958 de Aroldo de Azevedo, enfocando, a partir da, o ensino de Geografia ps Segunda Grande Guerra Mundial no que concerne ao Brasil e, consequentemente, Regio Nordeste brasileira. No terceiro e ltimo captulo, analisamos a obra Geografia Crtica, o espao social e o espao brasileiro de Jos William Vesentini e Vnia Vlach 2006, em que procuraremos a relao entre os ltimos acontecimentos internacionais e nacionais e o livro didtico de Geografia enfocando, neste contexto, o Nordeste brasileiro. Nosso estudo surgiu pela busca de uma renovao na nossa prtica, de modo a transformar as atividades e contedos, objetivando um ensino que sirva para alm das relaes de dominao. Concordamos com Vesentini (1989), quando diz que evidente que a escola no se resume reproduo das relaes de poder, embora esse seja um dos seus aspectos essenciais. Ela tambm um campo de luta de classes, um locus de reproduo de poder, mas onde dialeticamente se pode implementar prticas que questionem esse poder e esbocem novas relaes societrias. Neste contexto, recorremos a Castro (2009), que acreditando que o fato poltico ganha destaque na Geografia das ltimas dcadas do sculo XX afirma:

Fenmenos importantes e aparentemente contraditrios continuam colocando o fato poltico em destaque na agenda da geografia. Fenmenos como a globalizao e a revalorizao do local, o enfraquecimento do Estado-nao e o ressurgimento dos nacionalismos, o aumento da circulao internacional de mercadorias e de mo de obra e o maior controle das fronteiras, o esmaecimento das regies e o renascimento dos regionalismos, a expanso da democracia e a intensificao da pobreza, o fortalecimento dos movimentos sociais e dos direitos da cidadania e a ampliao de excluso so significativos da importncia da geografia poltica, da pertinncia de alguns de seus temas tradicionais e das respostas da disciplina s novas questes impostas pelos contextos da atualidade (p. 16).

18 No a partir de qualquer esquema terico e funcional de escola, at de um modelo de sistema escolar capitalista, que se vai compreender por que, por exemplo, at as primeiras dcadas do sculo passado a escola era ainda de elite e as autoridades se recusavam a educar as grandes massas populares. A explicao s pode vir a partir de uma anlise da cada caso concreto, a partir da constatao de que a histria no a realizao de uma lgica predeterminada (seja na economia ou nos esquemas tericos de qualquer filsofo), mas sim uma forma de ser do social em que so decisivas as lutas, as contradies e as situaes de indefinio e de indeterminao, e onde alternativas plurais entram em cheque a cada momento (VESENTINI, 1989, p. 165). Com a anlise dos trs livros didticos: Geografhia do Brasil, de Delgado de Carvalho, datado do ano de 1927; O Brasil e suas regies, de Aroldo de Azevedo, do ano de 1958, e Geografia Crtica, o espao social e o espao brasileiro, de J. William Vesentini e Vnia Vlach, do ano de 2006, que por mais de oitenta anos fizeram e continuam fazendo a histria da disciplina escolar Geografia, pretendemos contribuir com a histria do pensamento e das prticas educativas ao lado de contedos reveladores de representaes e valores predominantes num certo perodo de uma sociedade que, simultaneamente historiografia da educao e da teoria da histria, permitem rediscutir intenes e projetos de construo e de formao social.

19 CAPTULO 1 DELGADO DE CARVALHO E O LIVRO DIDTICO DE GEOGRAFIA

1.1 Origem do livro didtico brasileiro

A ordenao burguesa do mundo implicou a transformao do entendimento da natureza. O cosmos fechado cedeu lugar nos sculos XV e XVI ao universo infinito. O objetivo do saber, a partir de agora, possibilitar que nos tornemos cada vez mais senhores da natureza, afirmava Descartes. nesse contexto que o Brasil achado. Mas o Brasil uma criao dos conquistadores europeus. O Brasil foi institudo como colnia de Portugal e inventado como terra abenoada por Deus, qual, se dermos crdito a Pero Vaz de Caminha, Nosso Senhor no nos trouxe sem causa (CHAUI, 2000, p. 57-58). Ainda no Brasil Colnia uma primeira tentativa de negcio tipogrfico teria sido implantada em 1747, quando o portugus Antnio Isidoro resolveu aqui se instalar. Porm, a atitude de Portugal em querer isolar a colnia de toda e qualquer influncia externa fez o comerciante fracassar (NEVES, 2005). Somente em 1808, quando da vinda da famlia real ao Brasil, as primeiras instituies de carter cultural como a Escola de Anatomia, a Escola Mdica e o Jardim Botnico so criadas. Acompanhada de tais instituies, vem a autorizao da Imprensa Rgia por D. Joo. Logo em seguida foram lanados os dois primeiros jornais: O Correio Brasiliense e a Gazeta do Rio de Janeiro. Em 1810, foi anexada Impresso Rgia uma fundio de tipos que permitiu a arte de gravuras e teve como consequncia o surgimento de profissionais de artifcio, desenhistas, gravadores e tipgrafos que vinham de fora e outros que aprendiam o ofcio aqui. O fim do absolutismo portugus e a presso da elite brasileira pela independncia do Brasil fazem a imprensa desempenhar um importante papel. Em 02 de maro de 1821, quando D. Joo deixa o Brasil, decreta a abolio da censura prvia e regula a liberdade de imprensa, at que fosse elaborada uma nova regulamentao. E em 12 de julho de 1821, Portugal decreta uma lei complementar que inclui a liberdade de imprensa. Inicia-se, a partir da, um processo de produo diversificada de jornais, livros, revistas, almanaques, folhinhas, entre outros. Um pblico necessitado de informaes e que busca com a leitura a libertao do sentimento de colonizao faz aumentar o comrcio de livros. O livro ganha importncia e o pblico para a literatura vai sendo conquistado, iniciando com o folhetim, uma espcie de imitao do romantismo europeu. Autores

20 brasileiros como Machado de Assis, Raul Pompia, Joaquim Manoel de Macedo, Manuel Antnio de Almeida e Aluzio de Azevedo tm seus trabalhos ilustrados na imprensa local. Um dos primeiros livros didticos a circular no Brasil foi o Tesouro dos meninos, obra traduzida do francs por Mateus Jos da Rocha (ZILBERMAN, 1987). Na mesma linha a Impresso Rgia publicou Leitura para meninos, coleo de histrias morais relativas aos defeitos ordinrios s idades tenras e um dilogo sobre a geografia, cronologia, histria de Portugal e histria natural (CABRAL, 1881 apud ZILBERMAN, 1987). A primeira edio data de 1818, sendo organizador do livro Jos Saturnino da Costa Pereira. Em 1827, como resultado do projeto de Janurio da Cunha Barbosa, aprovada a nica lei geral relativa ao ensino elementar at 1946, quando estavam presentes as ideias de educao como dever do Estado, da distribuio racional por todo o territrio nacional das escolas dos diferentes graus e de necessria graduao do processo educativo. Do referido projeto vigorou simplesmente a ideia de distribuio racional do ensino por todo o territrio nacional, mas apenas nas escolas de primeiras letras (VLACH, 2004). At as primeiras dcadas do sculo XIX, afirma Bittencourt (1993), os programas de ensino para a escola elementar se limitavam ao ensino inicial das habilidades de leitura, da escrita e do clculo. A partir da vo se constituindo contedos e saberes especficos para serem ensinados pela escola e os saberes compreendidos como leitura e escrita ganham novas dimenses, respondem a novas exigncias e demandas sociais, assumem formas mais complexas de escolarizao. Assim sendo, a produo de materiais pedaggicos como quadros-negros, cartazes, materiais de ensino e livros didticos se tornam necessrios. Ainda segundo Bittencourt, at meados do sculo XIX, os livros de leitura praticamente inexistiam nas escolas. Desse modo, fontes como relatos de viajantes, autobiografias e romances indicam que textos manuscritos, como documentos de cartrio e cartas, serviam de base ao ensino e prtica da leitura. Em alguns casos, a Constituio do Imprio (e a Lei de 1827), o Cdigo Criminal e a Bblia serviam como manuais de leitura nas escolas. Ainda na mesma obra, Bittencourt afirma que em 1838 o ento presidente da Provncia do Rio de Janeiro fazia a seguinte proposta:

Parece conveniente que se autorize o governo a mandar imprimir, custa dos cofres pblicos, algumas obras estrangeiras, que por melhores, mais clssicas e populares fossem havidas; e que o diretor das escolas primrias e o da Escola Normal se encarreguem de traduzir, a fim de serem distribudas no somente pelos professores pblicos e particulares da provncia, como tambm pelas autoridades e pessoas que delas pudessem fazer bom uso (1993, p. 28).

21 Quanto ao estudo da disciplina Geografia, o livro de Aires de Casal, Corografia Braslica, de 1817, foi um dos primeiros livros de Geografia do Brasil; entretanto, no sabemos se foi elaborado com fins didticos, mas que foi referencial no perodo para a disciplina escolar. Na pesquisa de Albuquerque (2009) tambm foi encontrado um livro didtico de Geografia denominado Compendio de Geographia Elementar, de Jos Saturnino, publicado no ano de 1836, na cidade do Rio de Janeiro. Em sua capa est escrito que ele se destina s escolas brasileiras, o que indica que essa disciplina compunha, de algum modo, a escola. Portanto, esta datao ainda provisria, tendo em vista que novas pesquisas podem trazer contribuies que se contraponham ao que est posto at o momento. Com a ampliao das editoras e de um mercado consumidor que crescia, entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, uma gama de livros didticos de Geografia passam a ser publicados pelas editoras privadas. Porm, as primeiras iniciativas desenvolvidas pelo Estado para assegurar a divulgao e distribuio de obras de interesse educacional, cientfico e cultural vieram somente no Estado Novo. O Instituto Nacional do Livro (INL), criado em 1937, estruturou-se em vrios rgos operacionais menores, entre os quais a coordenao do livro didtico, qual competia planejar as atividades relacionadas com o livro didtico e estabelecer convnios com rgos e instituies que assegurassem a produo e distribuio do livro didtico (FREITAG et al., 1987). Em 1938, o Decreto-Lei 1.006, de 30 de dezembro, define pela primeira vez o que deve ser entendido como livro didtico e cria uma Comisso Nacional do Livro Didtico (CNLD), qual cabia examinar e julgar os livros didticos, indicar livros de valor para traduo e sugerir abertura de concurso para produo de determinadas espcies de livros didticos ainda no existentes no pas (FREITAG et al., 1987). Na dcada de 1960, com a expanso escolar decorrente da industrializao, a educao de inspirao europeia, acusada de acadmica, propedutica e ornamental, passa a ser substituda por uma educao nos moldes estadunidenses, um ensino para engrenar o estudante no mundo do trabalho industrial. Neste contexto aumenta no Brasil a preocupao com o livro didtico. O Banco Mundial, com sua poltica de emprstimos referente educao de pases em desenvolvimento, tem participao efetiva no investimento de material escolar e de livros (NEVES, 2005). O golpe dado pelos militares em 31 de maro de 1964 atingiu em cheio a democracia. Para calar a oposio e se firmarem no poder, os golpistas criaram dispositivos legais como: a Lei de Greve, que proibia as paralisaes e a censura imprensa, as Leis de Imprensa e de

22 Segurana nacional (1967) e o Ato institucional n 5 - AI-5 (1968). No campo cultural houve a censura de peas teatrais, letras de msicas, roteiros de filmes e sinopses de novelas. Os livros que eram considerados perigosos por suas ideias foram proibidos. Muitos ttulos foram condenados e diversos autores e editores presos. Sobre os debates feitos a respeito desse perodo, Munakata assim discorre:

No Brasil, o desprestgio dos livros didticos foi sobredeterminado pela conjuntura do perodo militar, iniciado em 1964. Em meio imposio de reformas educacionais, os livros didticos foram identificados como suporte da ideologia oficial (...). Levar a srio o livro didtico equivalia, nessas circunstncias, a colaborar com a ditadura (...) a crtica do livro didtico tornou-se uma trincheira contra a ditadura. Proliferaram discursos conclamando os professores a abandonar essas muletas em nome de uma educao mais criativa, reflexiva, crtica embora raramente essas palavras fossem objeto de elucidao (2003, p. 03).

importante destacar que Munakata adverte o leitor tanto sobre a posio do Estado ditatorial quando dos intelectuais que viam no pesquisador sobre livro didtico algum que colaborava com a ditadura. Como exemplo do exposto acima, podemos citar a obra: As Belas Mentiras, de Nosella (1981), em que a autora, propondo explicitar de maneira mais rigorosa e sistemtica a defasagem entre o imaginrio (descrito pelos textos) e o real (vivido pelas crianas), recorre a Poulantzas que afirma:

A ideologia tem precisamente por funo, ao contrrio da cincia, ocultar as contradies reais, reconstituir, num plano imaginrio, um discurso relativamente coerente, que serve de horizonte ao vivido dos agentes, moldando as suas representaes nas relaes reais e inserindo-as na unidade das relaes de uma formao (POULANTZAS apud NOSELLA, 1981, p. 31).

Concordamos com Munakata quando diz que tal concepo deixa de considerar a materialidade do livro didtico, que pode ser abordado como mercadoria e objeto cultural, ou seja, para fins escolares, na diversidade de relaes que isso implica. Este autor completa sua crtica afirmando:

Como mercadoria, ele certamente carrega as marcas do ser-para-o-lucro e da indstria cultural. Convm, no entanto, desde j, esclarecer que, na sociedade capitalista, a produo de qualquer livro, seja didtico ou dos frankfurtianos, visa o lucro e efetivada segundo os procedimentos da indstria cultural. preciso tambm no perder de vista que onde h lucro e,

23portanto, a acumulao de capital, h tambm trabalhadores, de cujas atividades resultam os livros. Essas atividades, altamente diversificadas, tm, claro, o objetivo de produzir uma mercadoria que possa vir a ser consumida em larga escala, mas, por isso mesmo, essa produo deve atender a demandas e expectativas (mesmo que induzidas) do mercado, o que, no caso do livro didtico, inclui questes educacionais. Reprodutores do capital e para o bem dessa funo autores, editores, editores de arte, redatores, pesquisadores iconogrficos, etc. no podem deixar de ter preocupaes a respeito da educao escolar (MUNAKATA, 2003, p. 6).

Outras questes so evidenciadas ainda neste debate. Como foi apontado anteriormente, na dcada de 1960, j durante o regime militar so assinados vrios acordos MEC/Usaid (entre o governo brasileiro e o americano), criando-se juntamente com um desses acordos, a Comisso do Livro Tcnico e do Livro Didtico (Colted), que propunha um programa de desenvolvimento que incluiria a instalao de bibliotecas e um curso de treinamento de instrutores e professores em vrias etapas sucessivas, desde o nvel federal da Unio at os nveis mais baixos dos municpios e das escolas (FREITAG et al., 1987). Mas o que os funcionrios e assessores do MEC descreviam como ajuda da Usaid era denunciado por crticos da educao brasileira, continua o raciocnio de Freitag (1987), como um controle americano do livro didtico. A Colted foi extinta em 1971, quando foi criado o Programa do Livro Didtico (PLD) conforme decreto 68.728, de 08/06/71. Foi tambm durante o governo militar que se deu a introduo do livro didtico descartvel, aceitando assim, a concepo psicopedaggica do aprendizado calcado no behaviorismo, rejeitando o modelo alternativo das teorias cognitivas (FREITAG et al., 1987). O livro descartvel, contendo as lies da casa e os exerccios para os alunos, orientou-se na tcnica do ensino programado por unidades totalmente individuais. Em 1971, o INL desenvolve o Programa do Livro Didtico para o Ensino Fundamental (PLDEF) e, em 1976 com a extino do INL foi criada a Fundao Nacional do Material Escolar (Fename). Os anos de 1980 vo apontar como um marco tanto na produo quanto na anlise dos livros didticos. Diversas questes passam ento a compor as pesquisas e os debates acerca desse recurso didtico. Nesse perodo o mercado do livro didtico representava metade do total de livros produzidos no pas. A vinculao da poltica governamental do livro didtico com a criana carente aparece explicitamente, pela primeira vez, em 1980, quando so lanadas as diretrizes bsicas do Programa do Livro Didtico Ensino Fundamental (PLDEF). Em abril de 1983, instituda, pela Lei 7.091, a Fundao de Assistncia ao Estudante (FAE) cuja finalidade era

24 desenvolver os programas de assistncia ao estudante para facilitar o processo didticopedaggico. Em 1984 ocorre no Brasil o fim da ditadura militar e a abertura poltica se torna uma conquista dos brasileiros com a campanha pelas Diretas J. Em novembro de 1993, estudantes brasileiros saem s ruas levando o verde-amarelo da bandeira brasileira em protesto contra a corrupo. Em 1995, criou-se o Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD), com a finalidade de estabelecer critrios para a avaliao dos livros didticos. A partir de 1997, as polticas pblicas para o livro didtico so representadas pelo PNLD e executadas por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE). O Ministrio da Educao passa a adquirir livros didticos de forma contnua e massiva. Todos os estudantes do ensino fundamental passam a receber livros didticos de todas as disciplinas. O programa avana e, em 2001, comea a distribuio de dicionrios de lngua portuguesa aos alunos de 1 a 4 sries do ensino fundamental e de livros em braile para os alunos deficientes visuais. No ano seguinte, os alunos de 4 e 5 sries passam a receber a coleo Literatura em Minha Casa. Em 2003, dicionrios so entregues aos alunos da 1, 7 e 8 sries. Em 2004, o Ministrio da Educao cria o Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio (PNLEM); em 2005, este programa beneficiou 1,3 milhes de alunos de 5.392 escolas de ensino mdio. Foram distribudos 2,7 milhes de livros das disciplinas de portugus e matemtica. Neste ano de 2009 deu-se a entrega do livro didtico de Geografia e Histria para todos os alunos do ensino mdio.

1.2 A Geografia do incio do sculo XX

No incio do sculo XX, o mundo estava dividido entre os pases imperialistas que dominavam colnias e protetorados e controlavam pases formalmente independentes. Esta diviso era assim caracterizada: os pases imperialistas mais importantes, como a Inglaterra e a Frana; os pases imperialistas em expanso a Alemanha e a Itlia -; os pases imperialistas em terras contnuas como a Rssia; os pases imperialistas mdios, como a Blgica e a Holanda; os pases imperialistas em decadncia como a Espanha e Portugal; e os pases com forte vocao imperialista e em expanso, como os Estados Unidos e Japo (ANDRADE, 2001). A Geografia ingressa no sculo XX oscilando na querela do determinismo (Ratzel)

25 possibilismo (La Blache). Os estudos de Geografia fsica fornecem as bases aos estudos regionais, em que a ao do homem apreciada em suas relaes com a natureza. Hobsbawm (2009) que acredita que o sculo XX se inicia com a Primeira Grande Guerra relata:

As luzes se apagam em toda a Europa disse Edward Grey, secretrio das Relaes Exteriores da Gr-Bretanha, observando as luzes de Whitehall na noite em que a Gr-Bretanha e a Alemanha foram guerra. No voltaremos a v-las acender-se em nosso tempo de vida. Em Viena, o grande satirista Karl Kraus preparava-se para documentar e denunciar essa guerra num extraordinrio drama-reportagem a que deu o ttulo de Os ltimos dias da humanidade. {...] No foi o fim da humanidade. [...] A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifcio da civilizao do sculo XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruram (p. 30).

A velha sociedade, a velha economia, os velhos sistemas polticos tinham perdido o mandato do cu (HOBSBAWM, 2009, p. 62). A Revoluo Russa, ou mais precisamente, a Revoluo Bolchevique de outubro de 1917, pretendia dar ao mundo um novo sinal. Sobre esta revoluo Hobsbawm (2009) afirma:

A Revoluo de Outubro produziu de longe o mais formidvel movimento revolucionrio organizado na histria moderna. Sua expanso global no tem paralelo desde as conquistas do isl em seu primeiro sculo. Apenas trinta ou quarenta anos aps a chegada de Lnin Estao Finlndia em Petrogrado, um tero da humanidade se achava vivendo sob regimes diretamente derivados dos Dez dias que abalaram o mundo (REED, 1919) e do modelo organizacional de Lnin, o Partido Comunista. A maioria seguiu a URSS na segunda onda de revolues surgida da segunda fase da longa guerra mundial de 1914-45 (p. 62).

Poder e estratgias de controle e dominao a partir do territrio controlado pelo Estado nacional eram questes sempre implcitas ou explicitas na agenda da Geografia poltica nas primeiras dcadas do sculo XX. Nesse contexto no Brasil as relaes entre educao, cincia e poltica movimentam o ensino de Geografia. Sobre esta relao Vlach informa:

Em uma sociedade, cindida entre os que pensam e os que fazem, no surpreende, pois, a tardia institucionalizao da escola (aps 1930), no se a ideia de um sistema nacional de educao fez parte das propostas da Assembleia Constituinte, reunida em 1823 para elaborar a primeira constituio do Imprio do Brasil (VLACH, 2004, p. 188).

26 Formalmente incorporada Escola no Brasil a partir da fundao do Colgio Pedro II (1837), a Geografia passou a ser ensinada nas escolas secundrias do pas, e, desde ento, faz parte dos contedos definidos por todas as reformas educacionais brasileiras, de 1889 aos dias atuais (COLESANTI, 1984), mantendo seu status de matria obrigatria. Ao longo de sua afirmao enquanto matria escolar, a Geografia incorporou paradigmas vigentes na sociedade como, por exemplo, o ensino enciclopdico, mnemnico, com listas de nomes para serem decorados, entre outros. Como documento do ensino da Geografia neste perodo, os livros didticos comprovam essas formas de ensinar e aprender. Em um artigo publicado na revista Terra Brasilis, Zusman e Pereira (2000) discordam de algumas investigaes historiogrficas sobre a Geografia no Brasil no perodo compreendido entre 1913 e 1933, que o caracterizam como carente de um projeto disciplinar explcito, tentando demonstrar, ao contrrio, a existncia de mbitos especficos em que se pretendia desenvolver uma Geografia nacional cientfica, segundo parmetros acadmicos europeus. E neles Delgado de Carvalho, segundo os autores citados, atua como divulgador das formulaes da Escola Geogrfica Francesa, sem, contudo, abandonar os pressupostos tericos estabelecidos anteriormente por Ratzel. Especificamente na dcada de vinte do sculo XX, so evidenciados na Geografia escolar brasileira profundos questionamentos acerca das orientaes terico-metodolgicas que, desde a primeira metade do sculo XIX, quando da introduo desta disciplina nos currculos prescritos, orientam sua prtica de ensino. Para que possamos compreender melhor a emergncia dessa nova feio adquirida pela Geografia escolar, faz-se necessrio que nos reportemos aos fatores scio-histricos que contriburam para a sua constituio, sobre os quais, Rocha (1990) assim se refere:

medida que a estrutura at ento hegemnica comeou a ruir, o sistema educacional brasileiro foi sendo objetivo de gradativas mudanas. O modelo agroexportador em franca decadncia vai dando lugar a um modelo econmico urbano-industrial. A intensificao do processo de urbanizao, decorrente do modelo econmico emergente foi gerando novas e crescentes demandas de mo de obra especializada para ocupar as funes que os setores secundrios e tercirios estavam a exigir. A demanda social da educao amplia-se rapidamente e o sistema escolar se v pressionado a expandir-se, medida que um contingente cada vez maior de pessoas dos extratos mdios e mesmo das camadas populares buscavam a escola a fim de ampliarem suas possibilidades de ascenso social (p. 84).

Se para a escola havia um processo de transformao se evidenciando, para a Geografia escolar o perodo tambm adquiriu uma fundamental importncia. Foi verificado, a

27 partir da, de forma mais acentuada, o conflito entre os professores de tendncias conservadoras que defendiam uma concepo tradicional de Geografia e de seu ensino (a Geografia clssica, ensinada de forma descritiva e mnemnica) e, de outro lado, professores favorveis renovao do ensino desta disciplina, no s no que diz respeito s metodologias empregadas em salas de aulas, como tambm no que se refere abordagem dos contedos. Apesar do processo de transformao escolar verificado no Brasil neste perodo, a reforma Luiz Alves Rocha, instituda pelo Decreto n 16.782A, de 13 de janeiro de 1925, deixava evidente a preocupao com uma educao voltada para a consolidao do nacionalismo patritico. Pois, em seu Artigo 47 6 preconizava:

No ensino da lngua materna, da literatura, da geografia e da histria nacionaes daro os professores como thema para trabalhos escriptos assumptos relativos ao Brasil, para narraes, descripes e biographias dos grandes homens em todos os ramos da actividade seleccionando, para os trabalhos oraes, entre as produes literrias de autores nacionaes, as que estiverem mais ao alcance ou mais possam interessar aos alumnos para desenvolver-lhes os sentimentos de patriotismo e de civismo. ... Sero excludas, por seleo cuidadosa, as produes que, pelo estudo ou doutrinamento incidente, diminuam ou no despertam os sentimentos constitutivos dos caracteres bem formados (ROCHA, 2000, p. 88).

Diante do contexto histrico da dcada de 1920 e como se pode perceber na lei supracitada, o nacionalismo patritico era uma temtica referencial para a educao. Desse modo, para grande parte das disciplinas escolares, mas em especial para a Geografia, h um empenho em difundir as ideias nacionalistas, estas agora permeadas por um novo referencial terico-metodolgico. Sobre este perodo Castro (2009) assim discorre:

Sendo o Estado uma construo poltica e ideolgica que se fez no tempo e no espao, a centralidade territorial do seu poder decisrio foi fundamental para a tarefa de tomar a si a obrigatoriedade de fornecer educao para todos, utilizando o aparato institucional disposio para as exaltaes simblicas do nacionalismo. Disciplinas como a histria e a geografia foram estratgicas nesta tarefa (p. 115).

Nesse perodo, davam-se os primeiros passos visando difuso da Geografia Moderna, num claro processo de transformao paradigmtica sofrido por esta disciplina escolar. Nesse processo merece destaque o papel do professor Delgado de Carvalho (18841980), lente do Colgio Pedro II e mentor, juntamente com Raja Gabaglia, do novo currculo prescrito para a disciplina (1923), aprovado pela congregao da instituio, considerada como estabelecimento de ensino padro para o pas.

28 1.3 Delgado de Carvalho e a Geografia brasileira

Tendo nascido e desenvolvido seus estudos integralmente na Europa, a formao deste autor em renomados estabelecimentos de ensino permitiu-lhe contato com ideais liberais e democrticos to presentes entre os intelectuais europeus daquela poca (FERRAZ, 1995). Estas influncias o fizeram defensor da crena no esprito do progresso e de liberdade do homem, elementos que vo perpassar toda a sua produo terica. Formado na cole Libre de Sciences Politiques (Paris), Delgado de Carvalho chega ao Brasil com o propsito de desenvolver sua tese de doutorado, iniciando um percurso por diferentes instituies ligadas ao campo cientfico e educacional no pas (ZUSMAM & PAREIRA, 2000). Delgado ento participa do movimento de renovao pedaggica, sendo um dos participantes do Manifesto dos Pioneiros da Educao (1932). As preocupaes das elites polticas e intelectuais deste perodo em difundir os valores ptrios nas novas geraes e em amplos setores da sociedade se afinam com o pensamento de Delgado de Carvalho, que define toda uma estratgia de legitimao cientfica e didtica traduzida em trs desafios: assegurar a presena e a continuidade da Geografia no sistema escolar; outorgar cientificidade ao conhecimento geogrfico e conferir a este conhecimento identidade e autonomia frente a outras disciplinas. Destinada a enaltecer os valores ptrios, a Geografia teria sua insero no ensino justificada sem maiores dificuldades (ZUSMAN& PEREIRA, 2000). Adaptar seus protocolos metodolgicos ao domnio das cincias naturais era, na opinio de Delgado de Carvalho, a soluo para o segundo desafio. E neste contexto que este escreve:

Devemos, pois, em primeiro lugar, restituir geografia sua dignidade de cincia natural, e no deix-la mergulhada numa complicada nomenclatura de nomes prprios que no tm significao nem sentido, que nada explicam que nada nos contam (CARVALHO, 1925, p. 95).

Buscando a especificidade da Geografia, Delgado lana mo da mesma estratgia epistemolgica utilizada por Vidal de La Blach, quando, empenhado em garantir unidade e identidade para a cincia geogrfica nascente, definiu-lhe claramente um objeto a regio - e um mtodo a sntese regional (ZUSMAM & PEREIRA, 2000, p. 58). A noo de regio natural tomada de emprstimo Geografia francesa por Delgado de Carvalho, por falta de um rigor cientfico, quanto ao conceito de regio natural entre os gegrafos brasileiros daquela

29 poca, gerou uma grande polmica:

Aqui no Brasil, a luta travada pelos professores do Colgio Pedro II para implantar uma diviso natural racional do pas vai vencendo lentamente, mas enfrenta ainda poderosos obstculos arraigados no tradicionalismo histrico, na rotina pedaggica e, especificamente, na ignorncia da significao do prprio termo de regio natural (CARVALHO, 1925, p. 76-77).

Enfatizando a regio natural, Delgado de Carvalho remete a sociedade brasileira ao debate sobre a questo nacional, na verso colocada em evidncia nos anos 20 e 30. A diversidade representada pelas regies naturais s adquire sentido se esto estas submetidas a um todo, reforando a ideia de uma unidade nacional que deve sobrepor-se s configuraes espaciais construdas social e historicamente. Neste sentido Delgado afirma:

A regio natural uma subdiviso mais ou menos precisa e permanente que a observao e investigao permitem criar numa rea geogrfica estudada, no intuito de salientar a importncia respectiva das diferentes influncias fisiogrficas, respeitando o mais possvel o jogo natural das foras em presena e colocando a sntese esboada sob o ponto de vista do fator humano nela representado (CARVALHO, 1925, p. 82).

Como podemos perceber, Delgado de Carvalho, pretendendo desenvolver uma Geografia nacional cientfica segundo parmetros acadmicos europeus, atua como divulgador da Escola Geogrfica Francesa sem, contudo, abandonar os pressupostos tericos estabelecidos anteriormente por Ratzel. Trata-se de uma disciplina referenciada nas cincias naturais, mas que, de forma sui generis, incorpora o homem como um dos elementos essenciais em suas consideraes. O mtodo que Delgado de Carvalho aponta como fundamental para uma efetiva aprendizagem da Geografia moderna explicado por Ferraz da seguinte maneira:

Este mtodo consistia em descrever a realidade estudada de forma objetiva, empiricamente comprovada, racionalmente exata, de maneira a inviabilizar dvidas e contradies. Para tal, a induo, anlise e sntese eram elementos cruciais, pois, ao se estudar a realidade como um todo, dividir-se-ia este todo em partes, descrevendo suas caractersticas principais aps criteriosa observao, estabelecer-se-iam as relaes que cada parte tinha com a outra e, somar-se-iam estas vrias partes para ser a noo do todo sistematizado. Eis, em rpidas palavras, o mtodo cientfico, de fundamentao positivistanacionalista, que os gegrafos brasileiros identificavam como o nico capaz de resolver os problemas da cincia e da sociedade brasileira (1995, p. 5556).

30 Na concepo de Vlach (2004), a importncia que Delgado de Carvalho conferiu ao ensino de Geografia liga-se inextricavelmente ideologia do nacionalismo patritico, e, significativamente, a cincia geogrfica deveria fornecer-lhe os fundamentos lgicos, com o fim de atingir um patriotismo verdadeiro, esclarecido e inteligente; da o seu propsito de edificao da Geografia cientfica no Brasil. Caracterizando esta ideologia como um processo inadivel da formao da nao brasileira, Vlach (2004) assim conclui:

Se a irrupo do Brasil como Estado independente em 1822 j havia colocado a formao da nao como a questo por excelncia da arena poltica brasileira, o fato que quase no se havia avanado nesse sentido. Assim, essa questo foi apontada por lderes polticos e intelectuais como essencial no perodo que, grosso modo, estende-se da Proclamao da Repblica (1889) at meados da dcada de 1950. A maior parte dos lderes polticos e intelectuais, independente de suas concepes e projetos para o Estado brasileiro, entendiam que a educao do povo era a nica alternativa para a realizao desse amplo e complexo processo, dadas as especificidades de uma sociedade cujas lideranas indagavam, entre o final do sculo XIX e as duas ou trs primeiras dcadas do sculo XX, se a mestiagem (biolgica e cultural) no inviabilizaria o futuro do Brasil como Estado-nao. Por outro lado, no lhes passava despercebido que a ideia de nao permitiria esconder as diferenas entre as formaes sociais brasileiras! Da haverem compreendido, finalmente, que a nao brasileira j no podia se limitar s elites e a seus representantes polticos. Contribuir de maneira efetiva para formar um nico povo, uma nica nao, eis o desafio da educao no incio do sculo XX (p. 195).

E assim, no sentido de criar condies para que o ensino de Geografia desempenhasse seu papel de disciplina de nacionalizao, Delgado de Carvalho organizou, no mbito da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, o Curso Livre Superior de Geografia, em 1926. O pblico que esse Curso Livre visava atingir era constitudo por professores primrios, que careciam de oportunidades para entrarem em contato com o que Delgado de Carvalho denominou de orientao moderna em Geografia. , pois, nesse contexto que Haesbaert (2005) afirma que ao longo da histria do pensamento geogrfico podemos identificar diversas fases em que foram enfatizadas de forma distinta as mltiplas dimenses da produo do espao Na prpria obra do maior clssico da Geografia Regional, Haesbaert (2005), com base no estudo de Ozouf-Marignier e Robic (1995) identifica trs destas fases: uma primeira pautada num certo determinismo fsiconatural, uma segunda fase, em que se pode identificar uma espcie de transio da regio de bases naturais para uma regio definida, sobretudo pela ao humana e uma terceira, em que ocorre a introduo da concepo de regio econmica, e de forma indireta, de regio funcional.

31 Castro (2009) acredita que tendo como objeto o conhecimento dos contedos e das dinmicas espaciais, os estudos geogrficos sempre ofereceram um importante recurso para a necessidade de controle do territrio que se consubstanciava no exerccio do poder atravs tanto da expanso dos imprios da Antiguidade como atravs do aparato burocrticoinstitucional do Estado moderno. (p. 42). A noo de regio natural atende, portanto, a duas importantes exigncias que recaem sobre o discurso geogrfico naquele momento. Dotada de um contedo ptrio, afina-se inteiramente com o vis nacionalista que permeia esse discurso. Como construo conceitual que confere Geografia uma aura de cientificidade e uma identidade prpria, aparece como componente chave no campo didtico. No entender de Fabio Guimares (1941), o aparecimento da Geographia do Brasil de Delgado de Carvalho, em 1927, marcou uma nova evoluo do ensino de Geografia em nosso pas. Sobre esta obra acrescenta:

Pela primeira vez um livro didtico em que a Geografia Regional do Brasil merecia realmente tal nome, em vez do estudo feito at ento pelas unidades polticas isoladas, eram estas agrupadas, e dentro da cada quadro regional passava a ser estudada quer a Geografia Fsica, quer a Geografia Humana (p. 346).

tambm Fbio Guimares (1941) que, ao afirmar que h muito os gegrafos j fixaram o conceito de regio natural de modo relativamente simples, comenta:

Deriva (o conceito de regio) de dois grandes princpios que servem de base Geografia moderna: o princpio de extenso, que serve de base ao estudo da distribuio dos fenmenos pela superfcie terrestre, respondendo s perguntas onde e at onde, aliado ao princpio da conexo, do qual resulta o estudo das inter-relaes existentes entre os fenmenos que ocorrem no mesmo local. Uma regio natural s pode, pois, ser determinada, aps a anlise da distribuio dos fatos geogrficos e das influncias recprocas que esses fatos exercem entre si numa dada extenso (p. 325).

As publicaes de Delgado de Carvalho, neste sentido, se afinam perfeitamente com uma preocupao das elites polticas e intelectuais da poca: difundir os valores ptrios nas novas geraes e em amplos setores da sociedade. O conhecimento que nele se pretende ministrar, no entanto, no deveria suscitar nenhuma dvida sobre sua legitimidade, tendo, portanto, que apresentar-se ao mesmo tempo como cientfico e socialmente necessrio. Para entendermos melhor o que foi exposto acima se faz necessrio recorrer a um conceito muito caro Geografia, o de regio.

32 1.4 Origem e evoluo do conceito de regio

Etimologicamente o termo regio, segundo Moreira (1993, p. 7), vem de regere, que quer dizer, dirigir, governar, expresso de claro matiz militar e estadual. Para Gomes, o termo regio remonta aos tempos do Imprio Romano, quando a palavra regione era utilizada para designar rea, independente ou no, que estava subordinada ao Imprio. Outros conceitos de natureza espacial passaram a ser utilizados na mesma poca, tais como os conceitos de espao (spatium) e o de provncia (provincere). Naquele momento, o espao era visto como contnuo, ou como intervalo, no qual esto dispostos os corpos seguindo certa ordem neste vazio e a provncia como rea atribuda ao controle daqueles que a haviam submetido ordem hegemnica romana. O Imprio Romano passa a ser representado por mapas nos quais as diversas regies representam a extenso espacial do poder central hegemnico, sendo que nelas os governantes dispunham de alguma autonomia, mas deviam obedincia e imposto cidade de Roma (GOMES, 1995, p. 51). Com o fim do Imprio Romano seguiu-se o processo de fragmentao regional que desembocou no poder descentralizado de territrios regionais do perodo feudal. A prpria Igreja reforou este regionalismo poltico, ao utilizar o tecido destas unidades regionais como base para o estabelecimento de sua hierarquia administrativa. Neste caso, tambm fica evidente a relao entre a centralizao do poder s vrias competncias e os nveis diversos de autonomia da cada unidade, da complexa burocracia administrativa desta instituio. (GOMES, 1995). O surgimento do Estado Moderno na Europa no sculo XVIII, trazendo como discurso predominante a afirmao da legitimidade do Estado e da unio regional em face de um inimigo comercial, cultural ou militar exterior, faz surgir o problema destas unidades espaciais (GOMES, 1995). J para Lencioni (1999), o conhecimento dos lugares era de interesse prioritrio para o poder poltico e econmico do Estado-nao. Os interesses hegemnicos deveriam estar garantidos no apenas pelo domnio dos povos subjugados, mas tambm, no mbito interno das naes dominantes, pela construo ideolgica de que aqueles interesses seriam de proveito de todos. A partir do final do sculo XIX e incio do sculo XX, a consolidao da forma moderna do Estado como um projeto territorial e socialmente enraizado teve no nacionalismo um recurso ideolgico necessrio. Neste contexto, a disciplina Geografia foi instituda nas

33 escolas, com o objetivo da construo e afirmao da nacionalidade. Mas tal prerrogativa no se deu apenas com a Geografia. Para Castro (2009):

Em toda a histria de disputas entre povos e naes a prerrogativa de um conhecimento, em qualquer campo, sempre representou um trunfo importante para a dominao, ou seja, um recurso do poder e um fator do desequilbrio entre os povos, os Imprio e os Estados (p. 43).

Na opinio de Lencioni (1999), h, na atualidade, dois grandes marcos de interpretao acerca do objeto da Geografia: o primeiro entende que a Geografia estuda a relao entre o homem e o meio, e o segundo a concebe como um campo de conhecimento particular voltado para o estudo das diferenciaes das reas; ambos, no entanto, apresentam concepes diferentes de regio. Na primeira concepo a regio existe em si mesma, ou seja, ela autoevidente e cabe ao pesquisador reconhec-la por meio de estudos a priori. No segundo caso, a regio no existe em si mesma, ela no objeto de estudo no significado restrito do tempo, pois ela se conforma no final do processo de investigao, processo esse que com a elaborao de critrios definidos no processo de investigao constri o recorte espacial. A mesma autora (1999) adverte-nos sobre os motivos de o tema regio estar to obscurecido, afirmando que isto decorre de quatro fatores fundamentais: O primeiro que a realidade aparece cada vez mais como sendo homognea e indistinta, fazendo com que as diferenas paream anuladas. A partir da a regio parece se diluir imersa no homogneo. Entretanto, nas fissuras dessa homogeneidade emergem as diferenas, cujo exemplo mais agudo so os regionalismos que surgem como fora poltica. O segundo fator, continua Lencioni (1999), que a noo de regio, at recentemente, estava bastante vinculada de planejamento regional, e como houve uma desmontagem dos planos de desenvolvimento regional, associou-se um descrdito noo de regio. Ou seja, o descrdito decorrente da instrumentalizao da noo de regio se transferiu para a prpria noo de regio, fruto de uma impropriedade terica e metodolgica (p. 203). Um terceiro fator est relacionado multiplicidade de estudos regionais que se tornaram uma enfadonha repetio de formulaes tericas e metodolgicas banalizadas, chegando a se transformar em estudos sem criatividade, muito embora tenham algum mrito cientfico. E, finalmente, aponta que na discusso a respeito da noo de regio que se coloca claramente a questo da unidade da disciplina geogrfica, o que a autora salienta: a questo da unidade no diz respeito Geografia regional, ela se constitui numa questo

34 central da prpria disciplina geogrfica (p. 203). Outro autor tambm pode ser trazido para este debate, tendo em vista sua produo sobre o conceito de regio. De acordo com Corra (2007), a utilizao do termo regio entre os gegrafos no se faz de modo harmnico. Ele muito complexo. Queremos dizer que h diferentes conceituaes de regio (p. 22). Na sua concepo, o termo regio deve ser abordado sob dois pontos: regio deve ser vista como um conceito intelectualmente produzido. E completa: Partimos da realidade, claro, mas a submetemos nossa elaborao crtica, na sequncia, procurando ir alm da sua apreenso em bases puramente sensoriais. Procuramos captar a gnese, a evoluo e o significado do objeto, a regio (p. 22-23). Em segundo lugar, o mesmo autor deixa claro que todos os conceitos de regio podem ser utilizados pelos gegrafos. E conclui: Todos eles so meios para se conhecer a realidade, quer num aspecto espacial especfico, quer numa dimenso totalizante: no entanto, necessrio que explicitemos o que estamos querendo e tenhamos um quadro territorial adequado aos nossos propsitos (p. 23). Na concepo de Santos (1994), gegrafos dos mais renomados e das mais diversas origens tiveram na regio um domnio de aprofundados estudos, tanto ao nvel de teorizao, como no campo dos trabalhos empricos. Mas as mudanas que o territrio vai conhecendo, nas formas de sua organizao, acabam por obrigar a renovao das categorias de anlise. Sobre o conceito de regio ele assim afirma:

Durante um longo perodo muitos a estudaram isoladamente do mundo como um todo. Viam-na como uma entidade autnoma, com aspectos particulares, o que equivale a dividir o mundo em uma infinidade de regies autossuficientes, mantendo poucas relaes entre si. Mas o mundo mudou e as transformaes so cada vez mais intensas [...] Compreender uma regio passa pelo entendimento do funcionamento da economia ao nvel mundial e seu rebatimento no territrio de um pas, com a intermediao do Estado, das demais instituies e do conjunto de agentes da economia, a comear pelos seus atores hegemnicos [...] Estudar uma regio significa penetrar num mar de relaes, formas, funes, organizaes, estruturas, etc., com seus mais distintos nveis de interao e contradio (SANTOS, 1994, p. 45-46).

Partindo de outros pressupostos, Gomes (1995), que concorda em parte com Corra (2007), adverte que h trs grandes domnios nos quais a noo de regio est presente. O primeiro a prpria linguagem cotidiana do senso comum. Aqui os princpios fundamentais so o de localizao e extenso. E acrescenta: Empregam-se expresses como: a regio mais pobre, a regio montanhosa ou a regio da cidade X. Percebe-se que os critrios so diversos, no h preciso nos limites e a escala espacial tambm varia conforme

35 aquilo que se quer expressar (p. 53). O segundo domnio, continua Gomes (1995), o administrativo, ou seja, a regio vista como uma unidade administrativa. Sabe-se que desde o fim da Idade Mdia as divises administrativas foram as primeiras formas de diviso territorial presentes no desenho dos mapas. Nesse caso, a diviso regional a base para definio e exerccio do controle na administrao dos estados e de suas subunidades, quando for o caso. Assim completa: preciso destacar que muitas vezes empresas e instituies (como a Igreja Catlica) utilizam os recortes regionais para delimitao de circunscries hierrquicas administrativas (p. 54). O terceiro domnio, ainda segundo Gomes (1995), o das cincias em geral nas quais o emprego da noo resguarda a etimologia, pois regio vista como rea sob certo domnio ou rea definida por uma regularidade de propriedades que a definem. Castro (1994) procura identificar os "paradigmas subsumidos" nos mais influentes modos de ver a regio, ao mesmo tempo em que procura tratar tambm da questo da escala espacial, pensada como exerccio epistemolgico de integrao e no como exerccio matemtico de representao cartogrfica. Tendo em vista que a utilizao do conceito de regio envolve sempre um determinado nvel escalar, o qual pode variar, por exemplo, de nveis correspondentes a um quarteiro ou a um hemisfrio. Retoma o tema regio, tentando superar os impasses metodolgicos que os paradigmas cientficos clssicos e as diferentes perspectivas geogrficas lhe impuseram (CASTRO, 1994, p. 12). O paradigma clssico dirigiu as pesquisas geogrficas, tanto atravs da sua vertente positivista, como da dialtico-materialista, e ambas trouxeram avanos e problemas para a pesquisa regional. Na vertente positivista, o primado da disjuno e da reduo do complexo ao simples imps essa escala regional como ponto de partida metodolgico, valorizando a induo e minimizando as possibilidades da deduo. Na vertente materialista, a determinao da base material, num bem estruturado edifcio terico-metodolgico, no qual a totalidade impunha-se inexoravelmente sobre a unidade, eliminou as possibilidades explicativas da escala regional a deduo a partir de um construto terico que no dava espao a singularidades e particularidades. A vertente positivista privilegia a escala regional, e a materialista a escala planetria. Tem-se a "duas armadilhas" metodolgicas para a geografia: a perspectiva lablachiana, a mais influente na primeira vertente, aprisionou a escala planetria submetendo-a regional; a perspectiva materialista aprisionou a escala regional, submetendo-a planetria (CASTRO, ibidem, p. 57). Castro (idem) prope uma alternativa metodolgica para a regio e o lugar, centrada

36 em trs premissas principais: a superao dos determinismos; o reconhecimento como questo central da complexidade dos fenmenos e a considerao da escala como problema fenomenolgico e no matemtico. Isto porque, para ela a realidade, que complexa, coloca-se diante do particular que se articula com o geral, da unidade contida no todo e do singular que se multiplica. Indica ainda, em linhas gerais, que a reconsiderao do conceito de regio sugere certa aproximao entre os conceitos de regio e territrio. Para ela, a regio pode ser vista como um acumulador espacial de causalidades sucessivas, perenizadas numa poro do espao geogrfico, verdadeira estrutura sujeita na relao histrica do homem com seu territrio (CASTRO, ibidem, p. 61). Tal proposta definida tambm por Gomes, o qual a favor desta tese afirma:

De qualquer forma, se a regio um conceito que funda uma reflexo poltica de base territorial, se ela coloca em jogo comunidades de interesses identificados e certa rea e, finalmente, se ela sempre uma discusso entre os limites da autonomia face a um poder central, parece que estes elementos devem fazer parte desta nova definio em lugar de assumirmos de imediato uma solidariedade total com o senso comum que, neste caso da regio, pode obscurecer um dado essencial, o fundamento poltico de controle e gesto de um territrio (GOMES, op. cit., p. 73).

Outro autor ainda chamado para este debate, tendo em vista as suas contribuies. Haesbaert identifica como pressupostos bsicos do debate regional em Geografia propriedades que permearam todo o discurso geogrfico regional ao longo de sua histria, tais como: a singularidade ou diferenciao espacial; a coeso ou integrao entre diferentes dimenses do espao; a relativa estabilidade e continuidade espacial e a relevncia das mesoescalas, procurando verificar at que ponto esses pressupostos estariam sendo colocados em xeque dentro do processo globalizador-fragmentador em curso (HAESBAERT, 1999). Apesar da unificao crescente dos mercados e da globalizao de uma economia capitalista de padro neoliberal, a diferenciao espacial e, mais ainda, a reproduo das desigualdades, um fenmeno crescente. Quanto ao segundo pressuposto, afirma ainda que seja possvel optar por um ou por alguns elementos constituintes do espao regional, reconhecido(s) como seu(s) "elemento(s) integrador(es)". Ainda como parte de suas concluses, ele adverte que o que parece cair por terra a pretenso de, com um nico padro de elementos estruturantes, tentarem "regionalizar" o espao geogrfico como um todo. Em obra mais recente, Haesbaert (2003) faz um balano da trajetria de "mortes" e "ressurreies" da regio, discutindo suas idas e vindas ao longo do pensamento geogrfico e delimita ento trs "mortes" (e subsequentes "ressurreies") da regio: a primeira "morte"

37 teria sido decretada nos anos 1950-1960 pelo cientificismo neopositivista da chamada New Geography ou, como a denominamos anteriormente, geografia nova, ou ainda Geografia quantitativa, de matriz anglo-saxnica, frente ao amplo domnio na Geografia clssica, especialmente a de matriz francesa, lablachiana, acusada de priorizar o nico e impedir assim a construo de leis universais; quando no propagava o "fim" da regio destacava a sua grande fragilidade conceitual. Uma segunda "morte" teria sido decretado pelo marxismo, principalmente no perodo inicial de incorporao desta corrente terica na Geografia, quando a regio foi considerada um conceito-obstculo (LACOSTE, 1975) ou, a fim de no fetichizar o espao, foi proposto trabalhar com regio em sentido estrito (MARKUSEN, 1981) afirma Haesbaert. A terceira "morte" foi estabelecida por muitos "globalistas" e/ou "ps--modernistas" que viram na globalizao um processo homogeneizador das especificidades regionais, ou pelo vis da fragmentao (em interpretaes ps-estruturalistas), uma diluio das "mesoescalas" regionais em detrimento da diferenciao a nvel local, as relaes local-global como o novo jogo de escalas a ser priorizado (no lugar daquele entre regional e nacional) (HAESBAERT, 2003). O debate tem continuidade com as contribuies de Breitbach (1987), que acredita que a regio uma realidade objetiva, dotada de elementos que podem ser identificados e analisados. Passveis, portanto, de exame de acordo com procedimentos cientficos adequados, as consequncias de uma utilizao indisciplinada e subjetiva do conceito de regio se fazem sentir, com muita nfase, principalmente quando se trata de planejamento regional. No entender da autora, frequentemente, o conceito de regio, subjacente a planos e programas normalmente disponveis, no ultrapassa em muito as abordagens geogrficas e administrativas no sentido estrito, quer dizer, a delimitao meramente territorial do espao. A mesma autora trata de forma sucinta das principais correntes de abordagens sobre regio que, direta ou indiretamente, contriburam para a formao de um arcabouo terico sobre o tema. No seu entender, as primeiras contribuies sobre a formao de regies esto agrupadas na chamada Escola Alem, cujos estudiosos no estavam explicitamente preocupados com o estudo de regio, mas sim com os problemas locacionais da atividade produtiva, e Johann Heinrich von Thunen (1783-1850) foi o pioneiro das teorias de localizao das atividades econmicas (BREITBACH, ibidem). Ainda na mesma obra, a autora reconhece a importncia do gegrafo alemo Walter Christaller que, em seu livro Die Zentralen Orte in Suddeutschand (1933), trabalha com conceitos bastante elaborados, como centralidade, regio complementar e hierarquia que

38 compem os alicerces de sua Teoria do Lugar Central, cuja riqueza de desdobramento at hoje em curso demonstra a importncia do papel pioneiro desse gegrafo. So duas as principais contribuies de Christaller para a caracterizao do fenmeno regional: sua percepo de que a um centro urbano corresponde uma regio complementar, e de que entre eles existe uma relao de dependncia, e a sua noo de hierarquia, que revela a importncia da dominao de um lugar sobre outro de ordem inferior, fenmeno que pode ser verificado na prtica, mesmo atualmente e em diferentes pases do mundo (BREITBACH, ibidem). Losch, Perroux e Boudeville constituem formulaes avanadas sobre o conceito de regio, cujas caractersticas esto em Alejandro Rofman que, julgando ter atingido uma primeira acepo de regio, resume como sendo a apropriao geogrfica dos fenmenos econmico-sociais que acontecem em toda a formao social (ROFMAN, 1974, p. 51 apud BREITBACH, op. cit.). Compreende-se que, devido ao grau de abstrao que tal formulao encerra, o autor parta para a tarefa de situar historicamente uma formao regional dada, apontando, com maior nvel de detalhe, os diversos aspectos diferenciados das regies no interior de um sistema nacional. Na mesma obra Breitbach recorre ainda a Coraggio cuja contribuio apresentar a regionalizao como um resultado da diviso territorial do trabalho dentro de um marco conceitual que absorve a realidade social como uma totalidade histrica. A regio, portanto, resulta da regionalizao dos processos sociais e deve ser analisada a partir da dinmica da reproduo social. Depois, a Alain Lipietz para o qual a regio aparece como produto das relaes inter-regionais, ou seja, a regio no existe como um ser preexistente e autodefinido. A regio um processo integrado ao movimento do capital no sentido de sua valorizao. E termina apontando uma linha atravs da qual o estudo da regio poderia encontrar um desdobramento frtil: trat-la de um caso concreto, ou seja, uma regio fsica e historicamente situada (CORAGGIO apud BREITBACH, op. cit.). No entender de Oliveira (1977), a mais enraizada das tradies conceituais de regio , sem dvida, a geogrfica no sentido amplo, que surge de uma sntese inclusiva da formao socioeconmico-histrica baseada num certo espao caracterstico. Procurando definir, entretanto, uma regio econmica e poltica, afirma:

Num sistema econmico de base capitalista, existe uma tendncia para a completa homogeneizao da reproduo do capital e de suas formas, sob a

39gide do processo de concentrao e centralizao do capital, que acabaria por fazer desaparecer as regies [...]. Tal tendncia quase nunca chega a materializar-se de forma completa e acabada, pelo prprio fato de que o processo de reproduo do capital , por definio, desigual e combinado (p. 27).

Alguns autores influenciados por Gramsci (1978) tentam negar a existncia de uma questo regional, em face do avano e do aprofundamento das relaes capitalistas por todo o territrio nacional e da consequente homogeneizao do espao, parecendo uma questo sociocultural que o capitalismo dissolve, afirma Andrade (1993). No entanto, o referido autor acredita que o avano das relaes capitalistas provoca transformaes nas caractersticas da questo regional em suas exterioridades, mas, em vez de elimin-la, ela agrava, aprofunda a questo. Como podemos observar, o conceito de regio nos remete a uma discusso intensa, que, porm, se faz necessria para entendermos as questes polticas e econmicas, pois embora estas sejam eminentemente geogrficas esto profundamente ligadas a origens histricas e antropolgicas. Pelo exposto concordamos com Corra (2007), quando afirma que todos os conceitos de regio podem ser utilizados pelos gegrafos, e que todos eles so meios para se conhecer a realidade, quer num aspecto espacial especfico, quer numa dimenso totalizante: no entanto, necessrio que explicitemos o que estamos querendo e tenhamos um quadro territorial adequado aos nossos propsitos (p. 23). A seguir destacaremos como o conceito de regio foi construdo por Delgado de Carvalho na sua obra destinada ao ensino de Geografia, no incio do sculo XX, no Brasil.

1.5 Geographia do Brasil de Delgado de Carvalho - 1927

A obra Geographia do Brasil - Tomo II de autoria de Delgado de Carvalho, publicada no ano de 1927, considerada de tamanho pequeno, para os padres de hoje, feita em preto e branco, com formato de um retngulo, escrita em papel comum; por ser uma obra que d continuidade a outra, inicia-se na pgina 240 e vai at a pgina 481. Vejamos como se encontra hoje a referida obra:

40

Figura 01: Foto da contracapa do livro Geografhia do Brasil, Delgado de Carvalho, 1927Fonte: Registrada por Lucineide Fbia Rodrigues Lopes, 2009

Figura 02: Foto da nota preliminar do livro Geografhia do Brasil, Delgado de Carvalho, 1927Fonte: Registrada por Lucineide Fbia Rodrigues Lopes, 2009

41

Figura 03: Foto da pgina 274-275 do livro Geografhia do Brasil, Delgado de Carvalho, 1927Fonte: Registrada por Lucineide Fbia Rodrigues Lopes, 2009

Iniciando sua obra, com uma Nota preliminar da 1 edio da II Parte, o autor demonstra sua preocupao com as mudanas que ocorriam na sociedade global da seguinte maneira:

Com quartoze anos de atrazo, apparece hoje a segunda parte da Geographia do Brasil. J em 1913, estava escripta esta synthese geographica, promettida na 1 Edio. Resolvido ento a imprimil-a na Europa, onde residia, fui obrigado pelas circunstancias a adiar a sua publicao. Passados alguns annos, logo depois da Guerra, tive de modifical-a consideravelmente, para adaptal-a as mais recentes publicaes geographicas. Estava prompta a segunda redaco, quando modificaes no programma do Collegio Pedro II, em boa hora effetuadas pelos cathedraticos de geographia, Srs. Raja Gabaglia e Honorio Silvestre, mais uma vez tornaram meu trabalho inadequado s necessidades do ensino. Principiei ento, em 1923, uma remodelao ainda mais completa da Synthese Geographica. Os progressos, to rpidos e to profundos, de nossa litteratura geographica, realizados pelos esforos continnos de algumas de nossas reparties scientificas, como o Servio Geolgico e Mineralgico, como a Directoria de Meteorologia, como o Museu Nacional, como a Directoria Geral de Estatstica, como a Inspectoria de Obras contra as Seccas do Nordeste, como a Commisso Rondon, etc., esforos estes promovidos por personalidades de alta competncia e patriotismo, como Arrojado Lisboa, Euzbio Paulo de Oliveira, Arthur Neiva, Roquette Pinto, Bulhes Carvalho, Rondon, Sampaio Ferraz, auxiliados por esforos isolados de scientistas como J. G. Branner, de saudosa memria, Oliveira Vianna, Paulo Prado, V. Correia Filho, Ev Backheuser, Padberg, G. Pawels, Alberto Rangel e muito outros,

42necessitavam forosamente um adiantamento desta publicao para poder, nos limites do possvel, apresent-la em dia e a par de to brilhante produco.1

No Brasil da dcada de vinte, o discurso regionalista da segunda metade do sculo XIX que se caracterizava pelo apego a questes provincianas ou locais, d lugar a um novo regionalismo, que extrapola as fronteiras dos estados, que busca o agrupamento em torno de um espao