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Normose, a doença da "normalidade" no mundo acadêmico ENVIADO POR RENATO SOUZA SEX, 27/06/2014 - 19:50 ATUALIZADO EM 01/07/2014 - 16:51 AUTOR: Renato Souza Doença sempre foi algo associado à anormalidade, à disfunção, a tudo aquilo que foge ao funcionamento regular. Na área médica, a doença é identificada por sintomas específicos que afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde. A saúde, por sua vez, identifica-se como sendo o estado de normalidade de funcionamento do organismo. Numa analogia com os organismos biológicos, o sociólogo Émile Durkheim também sugeriu como identificar saúde e doença em termos dos fatos sociais: saúde se reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao seu meio, ao passo que doença é tudo o que perturba essa adaptação. Então, ser saudável é ser normal, é ser adaptado, certo? Não necessariamente: apesar de Durkheim, há quem considere que do ponto de vista social, ser normal demais pode também ser patológico, ou pode levar a patologias letais. Os pensadores alternativos Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema chamaram isto de Normose, a doença da normalidade, algo bem comum no meio acadêmico de hoje. Para Weil, a Normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Crema afirma que uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente, e age como a maioria. E para Leloup, a Normose é um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação. Estes conceitos, embora fundados sobre um propósito de análise pessoal e existencial, são muito pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela Normose não é apenas o indivíduo que adoece, que estagna, que deixa de realizar o seu potencial criador, mas o próprio conhecimento. E não apenas no

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  • Normose, a doena da "normalidade" no mundo acadmico ENVIADO POR RENATO SOUZA SEX, 27/06/2014 - 19:50

    ATUALIZADO EM 01/07/2014 - 16:51

    AUTOR:

    Renato Souza

    Doena sempre foi algo associado anormalidade, disfuno, a tudo aquilo

    que foge ao funcionamento regular. Na rea mdica, a doena identificada

    por sintomas especficos que afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal

    de sade. A sade, por sua vez, identifica-se como sendo o estado de

    normalidade de funcionamento do organismo.

    Numa analogia com os organismos biolgicos, o socilogo mile Durkheim

    tambm sugeriu como identificar sade e doena em termos dos fatos sociais:

    sade se reconhece pela perfeita adaptao do organismo ao seu meio, ao

    passo que doena tudo o que perturba essa adaptao.

    Ento, ser saudvel ser normal, ser adaptado, certo? No necessariamente:

    apesar de Durkheim, h quem considere que do ponto de vista social, ser

    normal demais pode tambm ser patolgico, ou pode levar a patologias letais.

    Os pensadores alternativos Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema

    chamaram isto de Normose, a doena da normalidade, algo bem comum no

    meio acadmico de hoje. Para Weil, a Normose pode ser definida como um

    conjunto de normas, conceitos, valores, esteretipos, hbitos de pensar ou de

    agir, que so aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada

    sociedade e que provocam sofrimento, doena e morte. Crema afirma que uma

    pessoa normtica aquela que se adapta a um contexto e a um sistema

    doente, e age como a maioria. E para Leloup, a Normose um sofrimento, a

    busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de

    cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnao.

    Estes conceitos, embora fundados sobre um propsito de anlise pessoal e

    existencial, so muito pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela

    Normose no apenas o indivduo que adoece, que estagna, que deixa de

    realizar o seu potencial criador, mas o prprio conhecimento. E no apenas no

  • Brasil, tambm em outras partes do mundo.

    Peter Higgs, Prmio Nobel de Fsica de 2013 disse recentemente que no teria

    lugar no meio acadmico de hoje, que no seria considerado suficientemente

    produtivo, e que, por isso, provavelmente no teria descoberto o Boso de

    Higgs (a partcula de Deus), descrito por ele em 1964 mas somente

    comprovado em 2012, quase 50 anos depois, com a entrada em funcionamento

    de uma das maiores mquinas j construdas pelo homem, o acelerador de

    partculas Large Hadron Collider. Higgs contou ao The Guardian que era

    considerado uma vergonha para o seu Departamento pela baixa

    produtividade de artigos que apresentava, e que s no foi demitido pela

    possibilidade sempre iminente de um dia ganhar um Nobel, caso sua teoria

    fosse comprovada. Ele reconheceu que, nos dias de hoje, de obsesso por

    publicaes no ritmo do publique ou perea, no teria tempo nem espao

    para desenvolver a sua teoria. sua poca, porm, no s o ambiente

    acadmico era outro como ele prprio era um desajustado, um anormal, uma

    espcie de dissidente que trabalhava sozinho em uma rea fora de moda, a

    fsica terica expeculativa. Ento, sua teoria tambm fruto desta saudvel

    anormalidade.

    A mim, embora no surpreendam, as declaraes de Higgs soam

    estarrecedoras: ou seja, com os sistemas meritocrticos de avaliao de hoje,

    que privilegiam a produo de artigos e no de conhecimentos ou de

    pensamentos inovadores, uma das maiores descobertas da humanidade nas

    ltimas dcadas, que rendeu a Higgs o Nobel em 2013, provavelmente no

    teria ocorrido, como certamente muitos outros avanos cientficos e intelectuais

    esto deixando de ocorrer em funo dos sistemas atuais de avaliao da

    produtividade em pesquisa. a Normose acadmica fazendo a sua maior

    vtima: o prprio conhecimento.

    Alis, nunca se usou tanto a autoridade do Nobel para apontar os desvios

    doentios do nosso sistema acadmico e cientfico como em 2013. Randy

    Schekman, um dos ganhadores do Nobel de Medicina deste ano, em recente

    artigo no El Pas, acusou as revistas Nature, Science e Cell, trs das maiores

    em sua rea, de prestarem um verdadeiro desservio cincia, ao usarem

    prticas especulativas para garantirem seus mercados editoriais. Schekman

    menciona, por exemplo, a artificial reduo na quantidade de artigos aceitos, a

    adoo de critrios sensacionalistas na seleo dos mesmos e um absoluto

    descompromisso com a qualificao do debate cientfico. E afirmou que a

  • presso para os cientistas publicarem em revistas de luxo como estas (de alto

    impacto) encoraja-os a perseguirem campos cientficos da moda em vez de

    optarem por trabalhos mais relevantes. Isto explica a afirmao de Higgs sobre

    ser improvvel a descoberta que lhe deu o Nobel no mundo acadmico de hoje.

    O prprio Schekman publicou muito nestas revistas, inclusive as pesquisas que

    o levaram ao Nobel: diferentemente de Higgs, que era um dissidente,

    Schekman tambm j sofreu de Normose. Porm, agora laureado, decidiu pela

    prpria cura e prometeu evitar estas revistas daqui para adiante, sugerindo no

    s que todos faam o mesmo, como tambm que evitem avaliar o mrito

    acadmico dos outros pela produo de artigos. Foi preciso um Nobel para que

    se libertasse da doena.

    A atual Normose acadmica se deve meritocracia produtivista implantada nas

    universidades, cujos instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina e esta

    doentia normalidade so os sistemas de avaliao de pesquisadores e

    programas de ps-graduao, capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq.

    Estes sistemas tm transformado, nas ltimas dcadas, docentes e alunos em

    burocrticos produtores de artigos, afastando-os dos reais problemas da cincia

    e da sociedade, bem como da busca por conhecimentos e pensamentos

    realmente novos. A exigncia de produtividade um estmulo ao status quo,

    obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso crtico e a inovao, pois inovar,

    criar, empreender, fugir ao normal pode ser perigoso, pode ser incerto, pode

    ser arriscado quando se tem metas produtivas a cumprir; portanto, no

    desejvel: o mais seguro fazer mais do mesmo, que ao que a Normose

    acadmica condenou as universidades e seus integrantes ao redor do mundo.

    Eu escrevi em um artigo de 2013 (http://jornalggn.com.br/fora-

    pauta/desvendando-a-espuma-ii-de-volta-ao-enigma-da-classe-media) que a

    meritocracia leva a uma iluso de eficincia e progresso que no podem se

    realizar, porque as meritocracias modernas so burocracias. Como bem ensinou

    Max Weber, a burocracia uma fora modeladora inescapvel quando se

    racionaliza e se regulamenta algum campo de atividade, como acontece no

    sistema cientfico atual. Para supostamente discriminar por mrito pessoas e

    organizaes acadmicas, montou-se um tal sistema de regras, critrios

    avaliativos, hierarquias de valor, indicadores, etc., que a burocratizao das

    aes acadmicas tornou-se inevitvel. Agora este sistema que orienta as

    aes dos acadmicos, afastando-os de seus prprios valores, desejos e

    convices, para agirem em funo da convenincia em relao aos processos

  • avaliativos, visando controlar os benefcios ou penalidades que eles impem.

    Pessoas sob regimes de avaliao meritocrticos se tornam burocratas

    comportamentais; e burocratas, como se sabe, pela primazia da conformidade

    organiozacional a que se submetem, tornam-se inexoravelmente

    impessoalistas, formalistas, ritualistas e avessos a riscos e a mudanas.

    Tornam-se normticos, preferindo, no caso da academia, uma produo sem

    significado, sem relevncia, sem substncia inovadora porm segura, a

    aventurarem-se incertamente em busca do novo.

    Agora, depois de j ter escrito isto naquele artigo, descubro que o Nobel de

    Medicina de 2002, o sul-africano Sydney Brenner, em entrevista de fevereiro

    deste ano Kings Reviw, afirmou exatamente o mesmo. Dentre outras coisas,

    disse ele que as novas ideias na cincia so obstrudas por burocratas do

    financiamento de pesquisas e por professores que impedem seus alunos de

    ps-graduao de seguirem suas prprias propostas de investigao. ao

    menos alentador perceber que esta realidade inslita no apenas uma verso

    tupiniquim da busca tardia e equivocada por um lugara o sol no campo

    acadmico atual, mas uma deformao que assola tambm os grandes da

    arena cientfica mundial. E tambm constatar que os lureados com a distino

    do Nobel tem se percebido disto e denunciado ao mundo.

    De certa forma, todos na academia sabem que estes sistemas de avaliao

    acadmicos tm levado a um produtivismo estril, mas isto no tem sido

    suficiente para mudar nem as condutas pessoais, nem as diretrizes do sistema,

    porque a Normose uma doena coletiva, no individual. Ela advm da

    necessidade de legitimao do indivduo frente ao sistema de regras, normas,

    valores e significados que se impe a ele. Por isto que o pesquisador

    australiano Stewart Clegg afirmou, certa vez, que pesquisadores que buscam

    legitimao profissional podem com muita facilidade ser pressionados a

    aprender mais e mais sobre problemas cada vez mais desinteressantes e

    irrelevantes, ou a investigar mais e mais solues que no funcionam.

    Mas agora me advm uma questo curiosa: por que tantos Nobis tem

    denunciado este sistema? Creio que porque do alto da distino recebida, eles

    j no tem mais nenhum compromisso com a meritocracia acadmica, e podem

    falar do dano que ela causa s ideias realmente inovadoras que, inclusive,

    podem levar lurea. Mas tambm porque o Nobel foge lgica da

    meritocracia, ele no um mecanismo meritocrtico, portanto, no

    burocrtico. Ele at mesmo poltico, antes de ser meritocrtico e burocrtico!

  • um reconhecimento de mrito sem ser uma cracia. Ou seja, no h,

    atravs dele, um sistema de governo das atividades cientficas, e por isso ele

    no leva a uma racionalidade formal, pois ningum em conscincia normal

    pautaria sua atividade acadmica quotidiana pela improvvel meta de, talvez j

    na velhice, ganhar o Nobel; e mesmo que tivesse este excntrico propsito

    como pauta, teria que fugir da meritocracia que governa os sistemas cientficos

    atuais para chegar a um lugar reconhecidamente distinto, pois ser normal no

    leva ao Nobel.

    Mas este no o mundo da vida dos seres acadmicos de hoje, aqui vivemos

    em uma meritocracia burocrtica, e num contexto assim, pouco adiantam as

    advertncias da editora-chefe da revista Science, Marcia McNutt, publicados no

    Estado, de que a cincia brasileira precisa ser mais corajosa e mais ousada se

    quiser crescer em relevncia no cenrio internacional. Segundo ela, para criar

    essa coragem preciso aprender a correr riscos, e aceitar a possibilidade de

    fracasso como um elemento intrnseco do processo cientfico. Mas quando as

    pessoas so penalizadas pelo fracasso, ou so ensinadas que fracassar no

    um resultado aceitvel, elas deixam de arriscar; e quem no arrisca no produz

    grandes descobertas, produz apenas cincia incremental, de baixo impacto, que

    o perfil geral da cincia brasileira atualmente, segundo ela. a Normose

    acadmica a brasileira vista de fora.

    Somos todos normticos em um sistema acadmico de formao de

    pesquisadores e de produo de conhecimentos que est doente, e nossa

    Normose acadmica tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa

    para o novo em nossas universidades. Sem eles, porm, no h futuro

    significativo para a vida intelectual dentro delas, nem na cincia nem nas artes.