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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LAURA GOULART FONSECA NOS LABIRINTOS DA MEMÓRIA: A POÉTICA DE AUTRAN DOURADO EM OS SINOS DA AGONIA E ÓPERA DOS MORTOS RIO DE JANEIRO 2007

NOS LABIRINTOS DA MEMÓRIA: A POÉTICA DE AUTRAN … · Paulista (UNIP), campus de Brasília-DF, pela amizade e compreensão. Às colegas professoras do curso de Letras da Universidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LAURA GOULART FONSECA

NOS LABIRINTOS DA MEMÓRIA:

A POÉTICA DE AUTRAN DOURADO EM

OS SINOS DA AGONIA E ÓPERA DOS MORTOS

RIO DE JANEIRO 2007

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LAURA GOULART FONSECA

NOS LABIRINTOS DA MEMÓRIA:

A POÉTICA DE AUTRAN DOURADO EM

OS SINOS DA AGONIA E ÓPERA DOS MORTOS

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor. Orientador: Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro

RIO DE JANEIRO

2007

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Laura Goulart Fonseca

Nos labirintos da memória:

a Poética de Autran Dourado em

Os Sinos da Agonia e Ópera dos Mortos

Rio de Janeiro, ....... de ....................... de 2007.

_____________________________________________ Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro, UFRJ

_____________________________________________ Profa. Doutora Martha Alkimin

_____________________________________________ Profa. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki

_____________________________________________ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos

_____________________________________________ Prof. Doutor Flávio Garcia de Almeida SUPLENTES:

_____________________________________________ Prof. Doutor Antônio Jardim

_____________________________________________ Profa. Doutora Idalina Azevedo da Silva

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DEDICATÓRIA

Para meu filho, Angelo, minha obra de arte. Para meus pais, Helena e Aecio, que plantaram em mim a paixão pela literatura, pelo apoio e confiança incondicionais e exemplo de vida. Sem eles, esta tese não se teria concretizado. Para meu irmão, Aécio, pelo companheirismo de sempre e pela presença amiga na data da defesa. Para Ronaldes de Melo e Souza, professor, mestre, amigo de longo percurso, exemplo de profissionalismo e ética que, desde os tempos de graduação na Universidade de Brasília e, posteriormente, como meu orientador no Curso de mestrado em 1993/94, me abriu os caminhos da literatura como construção do real. A idéia desta tese nasceu em suas aulas de Literatura Contemporânea nesta época. Tive o privilégio de tê-lo como membro da banca no exame de qualificação do doutorado. Agradeço por seus comentários e sugestões, que foram importantíssimos para o desenvolvimento deste trabalho. Para Manuel Antônio de Castro, meu orientador, exemplo de entusiasmo e seriedade profissionais, que me ampliou os caminhos no universo literário, com a precisão necessária às exigências de uma tese, aliada à paixão pela inventividade poética. Surpresa agradabilíssima para mim, recém-chegada à UFRJ. Para os amigos e colegas da Universidade de Brasília, Maurício Izolan, Lurdes Albuquerque e Ari Pae, que iniciaram os caminhos pela literatura comigo, pela amizade que permaneceu. Para Letícia Freitas, amiga de longa data, que por tantas vezes soube calar as angústias de sua tese de doutorado para escutar as minhas. Para Bruna Teixeira, pela amizade de longa data, pelas palavras certas nos momentos certos e pelo incentivo de sempre. Para Márcia, Juliana e Alessandra Dotto, que não mediram esforços para fazerem de sua casa minha casa no Rio de Janeiro.

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AGRADECIMENTOS

À Lucília Bonfim, prima querida, pela revisão dos originais, pelo carinho e pela amizade. Aos colegas da UFRJ, Bia Albernaz, Andréa Copeliovich, Ataíde, Carlos Rocha e Célia, pelos debates instigantes e pela alegre convivência. Aos professores Doutores, Martha Alkimin, Eleonora Ziller Camenietzki, Adauri Silva Bastos e Flávio Garcia de Almeida, membros da banca, pelos questionamentos instigantes e profundos, porém simpáticos à tese, pela seriedade com que leram este trabalho e por buscarem comigo o diálogo entre teoria e ação poética. Ao professor Doutor Luiz Edmundo, pelas observações pontuais e atentas a respeito de meus textos apresentados nos simpósios e encontros organizados por esta Faculdade. Ao professor Doutor Alberto Pucheu, pelas contribuições quando da conferência apresentada no encontro “Heidegger e as questões da arte” nesta Faculdade e por todo o apoio durante o período em que coordenou o curso de pós-graduação desta faculdade. Ao professor Doutor Antônio Jardim, pela abertura de perspectivas, durante o curso: “Identidade e Diferença”, pelos comentários e sugestões durante o exame de qualificação e pela amizade. À professora Doutora Maria Lúcia Guimarães de Faria, pela amizade de longa data e pelo apoio logístico, tantas vezes necessário. À Joana Ormundo, coordenadora do curso de Letras da Universidade Paulista (UNIP), campus de Brasília-DF, pela amizade e compreensão. Às colegas professoras do curso de Letras da Universidade Paulista (UNIP), campus de Brasília-DF, pela torcida. À professora, bailarina e amiga Paula Cunha, pela amizade, pela alegria contagiante e pelas conversas sempre animadoras. À professora, bailarina e amiga Shadya, pela acolhida quando de minha chegada ao Rio de Janeiro. Aos amigos de Brasília, Renísia, Gustavo, Josi, Rachel, Wilson, Petrúcia, Wagner, pela amizade, torcida e, principalmente, por não se esquecerem de mim durante minha quase total ausência. À CAPES, pela concessão da bolsa.

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À Secretaria de Educação do Distrito Federal pela concessão da licença.

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Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida.

Carlos Drummond de Andrade

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RESUMO

Trata-se de um estudo hermenêutico dos romances Os Sinos da Agonia e Ópera dos Mortos, de Autran Dourado. Pela interpretação original da tragédia grega e do Barroco o autor constrói narrativas labirínticas, fundadas nas técnicas da narrativa em blocos e na da falsa pessoa. Questões fundamentais como destino, tempo, ser, memória, e o próprio fazer poético, são interpretadas. As regras rígidas de composição não destroem a inventividade das obras porque se comprometem com a verdade poética, que opera em tensão com a não-verdade. A tragédia grega como tensão entre limite e não-limite. O Barroco como movimento literário vivo, em diálogo fértil com a atualidade. Os Sinos da Agonia: os três pontos de vista de uma mesma história e a questão da verdade. Ópera dos Mortos e a questão da memória.

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ABSTRACT

This is an hermeneutic study about the works Os Sinos da Agonia and Ópera dos Mortos by Autran Dourado. Trough an original interpretation of Greek Tragedy and Barroque, the author constructs labirintic narratives, founded on the techniques of narrative in blocks and false person. Fundamental questions like destiny, time, being, memory and the poetic making itself are interpreted. The rigid composition rules do not destroy the works inventiveness because they are compromised to the poetic truth, which operates in tension witn the non-truth. Greek Tragedy as tension between limit and non-limit. Barroque as a live literary movement, in fertile dialogue with the present. Os Sinos da Agonia: three points of view about the same story and the question of truth. Ópera dos Mortos and the question of memory.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................11

2 VERDADE, LINGUAGEM E ARTE..............................................................................28

2.1 VERDADE POÉTICA......................................................................................................28

3 LINGUAGEM POÉTICA E MITO ................................................................................57

4 O TRÁGICO COMO TENSÃO ENTRE LIMITE E NÃO LIMITE ............................70

4.1 ANTÍGONA ..................................................................................................................71 4.2 DRAMA DE PAIXÕES ....................................................................................................75 4.3 DESTRUIÇÃO DE MUNDO ..............................................................................................76 4.4 APOLO, DIONISO, O ORGÂNICO E O AÓRGICO ................................................................79

5 O BARROCO EM AUTRAN DOURADO: DIÁLOGO COM A ATUALIDADE........86

5.1 TRADIÇÃO CERVANTINA DO ROMANCE .........................................................................90 5.2 BARROCO....................................................................................................................97

6 AS QUESTÕES DA ARTE EM OS SINOS DA AGONIA E ÓPERA DOS MORTOS DE AUTRAN DOURADO...................................................................................106

6.1 A POÉTICA DE AUTRAN DOURADO .............................................................................106

7 OS SINOS DA AGONIA................................................................................................128

7.1 O EMOLDURAMENTO MITOPOÉTICO............................................................................129 7.2 A MODULAÇÃO DO PONTO DE VISTA .........................................................................130 7.3 JANUÁRIO .................................................................................................................131 7.4 GASPAR ....................................................................................................................133 7.5 MALVINA ..................................................................................................................136 7.6 O CORO COMO NARRADOR ........................................................................................137

8 ÓPERA DOS MORTOS ................................................................................................144

8.1 ROSALINA – MEMÓRIA - TEMPO ................................................................................145 8.2 ROSALINA - VERDADE ...............................................................................................150 8.3 NARRAÇÃO, TEMPO E OBRA .......................................................................................155

9 CONCLUSÃO ................................................................................................................159

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................163

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe a reflexão sobre a obra de arte literária em

uma perspectiva poética. Apresenta-se um diálogo entre arte e pensamento,

pelos caminhos de Martin Heidegger, que volta aos pensadores originários e

propõe uma compreensão do real como uma tensão harmônica de

contrários, e não como uma dualidade incompatível entre sensível e

inteligível, como quer a metafísica tradicional. A arte surge como forma de

conhecimento, fazendo emergir a linguagem originária, que por sua vez,

manifesta o real e a verdade, entendida como algo que se mostra ao mesmo

tempo em que se oculta.

As teorias expostas nesta pesquisa não se pretendem conceitos

fechados, antes são pontos de partida para reflexões sobre as questões da

arte que possam instigar o pensamento e que se atualizam conforme a

humanidade evolui, ao contrário de se tornarem obsoletas. Teorias e

conceitos não são inválidos, importam para que se apreenda a arte como

forma de conhecimento, mas é preciso ter em mente que são meios, não fim.

A superestima das teorias faz com que não se perceba a abrangência do

questionamento radical que é proposto na presente reflexão, porque buscam

uma definição sempre válida, tematizam sobre o real abstrato, o

permanente, enquanto esquecem e não revelam o real concreto, a mudança,

a singularidade. Essa singularidade ocorre por meio da produção de

imagens-questões dentro do escopo da arte poética. Segundo Manuel

Antônio de Castro: “O poeta em seus poemas-imagens faz uma

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experienciação inaugural do homem e do real na medida em que neles fala e

se presenteia o apelo da sabedoria de toda poiesis e a poiesis de toda

sabedoria”.1 A imagem manifesta a tensão entre a fala e o silêncio, entendido

como ausculta da linguagem.

Propõe-se uma leitura poética. Conforme Manuel Antônio de Castro:

O que a leitura poética faz é indagar os horizontes existenciais que a produção literária descortina. Nela, o texto surge como a rede onde se surpreende e revela o enigmático fazer histórico-existencial do ser do homem. (CASTRO, p.75-76)

A narrativa de Autran Dourado, por ser labiríntica, está em perfeita

sintonia com a idéia de rede proposta por Castro. A obra douradiana é uma

rede por onde transitam personagens símbolos, ou, nas palavras do autor,

personagens-metáfora, que descortinam horizontes não vislumbrados

anteriormente, embora essa rede parta de horizontes antigos, a saber,

Tragédia Grega e Barroco.

O labirinto faz com que o leitor caminhe entre lugares desconhecidos e

a partir deles tenha a experiência do auto-conhecimento. Para a

interpretação desse diálogo, impossível falar em estilo de época no sentido da

estética tradicional ou dar-se por satisfeito diante de listas de características

desses estilos. Parte-se da voz do texto, jamais de teorias, conceitos ou

formas preexistentes. A partir dessa voz busca-se a interpretação das obras

como disputa entre terra e mundo e como resgate do ser. O homem moderno

vive preso a automatismos, novidades tecnológicas, cálculos e critérios de

medida que apenas encobrem aquilo que o homem é como é. A escuta do

1 CASTRO, Antônio Manuel de. Heidegger e as questões sobre a verdade. Ensaio publicado no site: www.travessiapoetica.com

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texto literário, sem as armas da estética e da retórica, ao propor um novo

ângulo de visão sobre as coisas, é o que pode revelar esse ser oculto sob a

aparência externa ao homem. Prossegue Castro:

Interpretar é descer à dinâmica da história. Pela interpretação não se analisa ou esclarece algo no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito claro da razão e da expressão (discurso). Ao contrário: no questionamento interpretativo se elabora a diferença e identidade de língua e linguagem, discurso e discursividade. Interpretar é reconduzir algo a seu lugar de origem (originário), à linguagem. (CASTRO, 1982, p.80)

Pretende-se, neste trabalho, reconduzir a obra de Autran Dourado à

linguagem que nela fala, bem como mostrar o diálogo que se estabelece entre

épocas literárias distintas para a construção do real na atualidade. As

classificações são preteridas em favor da interpretação das questões que se

apresentam, sendo estas: verdade, ser, memória, destino, tempo e saber. São

essas questões que tornam a obra viva e verdadeiramente operante. As

ambigüidades realizadas pelo autor surgem no sentido de provocar a reflexão

do leitor e de propor a ele horizontes originais. Não se podem estabelecer

conceitos ou teorias preexistentes para essa grande obra, assim como não se

podem estabelecer conceitos ou teorias preexistentes para qualquer obra que

mereça o adjetivo grande. Eles se fecham em classificações e definições

acabadas e não se abrem para a escuta da possibilidade de horizontes

abertos pela obra. Já as questões sempre se abrem a novos e originais

caminhos de pensamento. Quem se propuser à ausculta da escrita de

Autran Dourado aprenderá a fazer as perguntas que a própria obra pede

para que se interprete. Nesta perspectiva hermenêutica, o leitor toma

consciência também do próprio ato de narrar. A obra é arquitetonicamente

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estruturada. O autor tem alto grau de consciência de seu processo narrativo

e, simultaneamente, o texto tem forte teor dramático.

Pretende-se apresentar o vigor da obra que reúne consciência

narrativa e teor dramático. A leitura das obras se torna um diálogo entre

texto e leitor:

Constatando que a leitura é uma ação multifacetada, o seu exercício num texto demanda uma familiarização progressiva, o ir habitando a arquitetura de cada texto: devemos re-tecer os nexos das diversas partes, sondar as relações reflexivas, até depreender o fio ou os fios de toda problemática. (CASTRO, 1982, p.111)

Para tal percurso no texto, Castro estabelece três níveis de leitura:

a) Leitura literal: apreensão do significado imediato do texto. Precede

as outras;

b) Leitura discursiva: parte da realidade discursiva: articulação

discursiva do sistema de signos. Tem o texto como objeto ‘e não

como presença’. O problema que daí decorre é que o texto se torna

algo abstrato, justificativa para nomenclaturas e dogmas, e não

forma dinâmica de interpretação do real. ‘Tal exercício crítico

conduziu a uma visão formalista do texto, a uma literariedade

abstrata e uma identidade formal, onde a diferença não se faz na

presença e a história não tem rosto’;

c) Leitura poética: apreensão do fenômeno literário ‘enquanto

literariedade, que exige a compreensão do literário em sua diferença

e identidade, enquanto fenômeno humano e histórico

(historicidade)’. A leitura poética compreende o discurso literário em

distinção com os demais discursos e o faz dialogar, à medida que

reúne os outros e dá a eles interpretações originais, a partir da

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tensão entre aparência e essência, sagrado e profano, ente e ser. A

leitura poética, ao considerar questões e não conceitos, não exclui

possibilidades. Elas se deixam auscultar pelo leitor atento e trazem

à tona o ser que se ocultava na enigmática essência da obra de arte

literária.

Para o exercício dessa ausculta, a reflexão proposta neste estudo será

apresentada em duas partes: a primeira tratará da questão da verdade com

relação à linguagem e à arte. Para os pensadores originários, questões como

mundo e physis se relacionam de uma forma tal que não se interpreta uma

sem que se interprete a outra. Segundo Martin Heidegger esses pensadores

entendiam a physis como o desabrochar, “o vigor dominante daquilo que

brota e permanece”.2 Tal consideração permite compreender que a physis se

liga ao poder da criação, tanto no que diz respeito ao próprio ato de criar (o

que brota), como ao que já está criado (o que permanece). José Carlos

Michellazo observa que havia uma noção de movimento implícita à idéia de

physis, justamente por ela ter sido entendida tanto por aquilo que brotava

como por aquilo que permanecia, e isso não era apenas em relação às

criações da natureza, mas também às dos homens, seu pensamento e sua

linguagem. Dessa forma, os contrastes incompatibilizados pelo platonismo

nas esferas sensível e inteligível eram, segundo Michellazo, “manifestações

de uma única realidade”.3 Percebia-se a unidade existente nos contrastes. É

nesse sentido que Heráclito diz, no fragmento 123: “physis kripthestai philei”

2 MICHELLAZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade: Heidegger e a construção Ontológica do Real. São Paulo: Annablume, 1999. p.29. 3 Ibid.

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– a physis (o ser) bem quer ocultar-se. Aquilo que brota, que surge, tem

tendência ao ocultamento, ou ainda, o desvelar apropria-se no velar A

verdade para os pensadores originários traz esse jogo de velamento e

desvelamento. Os contrastes como dia e noite, matéria e espírito, vida e

morte, entre outros, são mais do que partes integrantes do real: surgem

como condição para a permanência de quaisquer de seus pólos. A tensão

não é incompatível, mas sim, harmônica. Nesse sentido, método4 é caminho

que leva à escuta da voz do texto literário, justamente porque não procura

forçá-lo a caber em uma determinada teoria, tornando-o mero pretexto para

justificar aquilo que já se sabe, ou aquilo que foi criado como conhecimento

para justificar ou legitimar uma conduta ou teoria já existente. A questão do

método é a questão da ação do sentido e essência de ser ‘como’ e ‘a partir’ do

agir, de modo que esse ‘caminho através do logos’ tem três grandes portais

que, ao contrário de se fecharem em si mesmos, interpenetram-se. São eles:

1º. os passos ao longo do percurso através do entre;

2º. os procedimentos, que englobam as atitudes do homem diante de

seu mundo, ou da abertura do ser. Refere-se à disposição para a

clareira;

3º. a mudança, a entrada do homem em outra dimensão, após a

experiência durante a caminhada.

O método, uma vez fundado nos três níveis acima, forma-se a partir de

quatro dimensões e procedimentos:

4 Consideramos a tradução de Manuel Antônio de Castro para método (metáhodós): “caminho que se dá através do entre – entre as margens do caminho, entre ser e não ser, limite e não limite, fala e silêncio, etc”. In: “Método e Ação: Passagens”. Publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com

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1. as imagens-questões;

2. as questões;

3. os conceitos;

4. os jargões.

A partir de tais dimensões, o método traz à presença três questões:

1. O que é o homem?

2. O que é o ente e o ser?

3. O que é a verdade?

É dessas questões que emergem as demais, tais como: linguagem,

conhecimento, sentido da ação (poiesis), verbo/Hermes, história, tempo,

memória.

Nota-se que o caminho do método é complexo. Manuel Antônio de

Castro aponta três passagens: as leituras, a escuta/fala e, por fim, a

interpretação.

O vocábulo “ler” tem origem no verbo latino “legere”, que significa

“dizer”. Essa raiz é a mesma do verbo grego “legein”, que tem dois

significados: reunir e dizer. De acordo com Castro: “Toda leitura reúne e

reunindo se torna um dizer, se realiza como linguagem, e, como linguagem,

pressupõe uma escuta”.5 Compreende-se o significado do verbo “ler”:

(...) constituir e compreender o mundo como sintaxe poética ou cosmos e rito do real em sua origem e fundação no caos. O microcosmos de tudo isso é nosso corpo como reunião de sentidos, mente e energia de eros. 6

O que importa investigar neste ponto é como se opera a escuta da fala

(aparência) na linguagem (essência).

5 Método e ação: passagens. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com/ 6 Ibid.

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Em Platão o conhecimento prévio é a diá-noia, aquilo que precede a

fala. Para a realização desta, é necessária a presença do logos. A diá-noia

deve caminhar de mãos dadas como o logos para uma compreensão poética

da linguagem - a linguagem como ‘casa do ser’. Quando diá-noia e logos se

separam, tanto linguagem e conhecimento se rebaixam a instrumento, como

a linguagem se torna instrumento do aprendizado. Se essa separação

ocorrer, perde-se a dimensão poética do texto literário, o que implica dizer

que se perde a essência do texto. A preocupação do leitor passa a ser mais

com a forma do que com o conteúdo, como se aquela precedesse este na

atividade criadora. O predomínio do aprendizado, o conhecimento formal e

conceitual acerca da literatura, fazem surgir a excessiva preocupação com

nomenclaturas, listas de estilos de época e suas correspondentes listas de

características desses estilos.

A escuta poética que se pretende realizar neste trabalho compreende

que ‘a linguagem fala’. Ela não é ‘expressão do pensamento’ ou do

conhecimento, e, sim, soberana arquiteta do homem; portanto não pode

reduzir-se a um código: há que se penetrar cuidadosamente em seu reino -

reino de que o homem é súdito, logo, em que já está - e tomar uma nova

posição: a da escuta da fala na linguagem. Segundo Heidegger:

A linguagem fala deixando vir o chamado, coisa-mundo e mundo-coisa, no entre da diferença. (...) A linguagem fala como consonância do quieto. A quietude aquieta-se dando suporte ao modo de ser de mundo e coisa. Dar suporte a mundo e coisa no modo da quietude é o acontecimento apropriador da di-ferença. A linguagem, a consonância do quieto, dá-se apropriando a di-ferença. A linguagem vigora como a di-ferença que se apropria entre mundo e coisa. (HEIDEGGER, 2003 p.22-24)

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As coisas se demoram na terra e nela se abrigam. Entretanto, nesse

demorar-se, elas se relacionam umas com as outras e, a partir de então

constroem mundo como abertura de possibilidades de relações que reúne

coisas. Coisa não é mero objeto, ou utensílio, e sim, é em sua essência,

despojado da idéia de serventia e cercado de seu mundo. Tal despojamento é

possível na obra de arte, que desautomatiza as visões do utensílio e revela

mundo. Heidegger pensa na linguagem vigorando como a di-ferença que se

apropria em mundo e coisa. A linguagem já pressupõe uma escuta. Para

haver escuta, é preciso, no mínimo, dois: o que fala e o que ouve. Além da

escuta do outro, há também a auto-escuta, onde o homem se percebe como

o outro. Essa percepção é concedida ao ser que subjaz ao ente. Esse

encontro do ente com ser faz com que o ente se mostre naquilo que é como é,

e o homem (leitor) se liberta no âmbito do saber poético: aquele que advém

da ambigüidade entre fala e silêncio, entre ente e ser. Tal saber é ação que

impulsiona em direção à liberdade para o sentido e essência da linguagem

soberana do homem. Estão implícitos aqui o vigor e o mistério do entre, que

se presentificam na tensão entre verdade e não-verdade. A escuta da fala na

linguagem é a percepção do ente naquilo que é como é, dada pelo silêncio

que possibilita a escuta da poiesis na obra de arte. Subjacente a tudo isso,

há o logos, que reúne e diz mundo e coisa na obra de arte, que, por sua vez,

configura-se como disputa entre terra e mundo. A di-ferença que se apropria

em mundo e coisa revela, não a separação, mas a tensão entre fala e

silêncio, força motriz da ambigüidade do texto literário. Ainda com

Heidegger, conclui-se:

A consonância do quieto não é nada humano. Ao contrário. Em sua essência o homem é como linguagem. A expressão “como linguagem”

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diz aqui: o que se apropria pelo falar da linguagem. O que assim se apropria, a essência do homem, é trazido pela linguagem ao seu próprio de maneira a permanecer uma propriedade da essência da linguagem, ou seja, a consonância do quieto. Essa apropriação se apropria à medida que a essência da linguagem, a consonância do quieto, faz uso da fala dos mortais, no intuito de torná-la sonora como consonância do quieto para a escuta dos mortais. Somente porque os homens pertencem à consonância do quieto, os mortais têm a capacidade de a seu modo falar emitindo sons.7 (HEIDEGGER, 2003, p.24).

A essência do quieto, como propriedade da essência da linguagem, se

apresenta em tensão com o agir essencial da poiesis. Quietude e ação se

complementam para construir a fala humana: o homem dis-posto para a

quietude, escuta a linguagem, dela se apropria e a faz surgir como fala. A

quietude e o silêncio aparecem como não dito na obra de arte literária.

Nesse jogo fértil de ambigüidades, a obra surge como verbo/ação e

corpo. Para Manuel Antônio de Castro: “A dança, a música e o verbo

manifestam nosso corpo que é um sendoser poético”.8 O corpo é constituído

pela ambigüidade do sendoser e apresenta três dimensões:

1. Sendoser físico sensitivo;

2. sendoser menta-cognitivo;

3. sendoser emotivo erótico.

A essência da ação é o que integra as três dimensões e dá sentido a

elas, de modo que em sersendo integralmente nas três dimensões, o homem

também se torna obra de arte. Nesse sentido, diz Castro:

A leitura dos textos poéticos nos lança na libertação poético-ontológica: sermos como caminhada de ascensão e descensão o que já desde sempre somos. É a procura do ser.9

O que já desde sempre somos é o ser integral em suas três dimensões.

7 Grifos do autor. 8 Método e ação: passagens. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com/ 9 Ibid.

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A leitura poética, portanto, não pode ser um exercício puramente

racional, sob pena de se perderem as dimensões sensitiva e emotiva-erótica

do sendoser do homem. A partir do cartesianismo, entretanto, fundou-se o

primado da razão, e os conceitos obliteraram as questões. Esqueceu-se que

“o corpo antes de tudo é poiesis, ação que se cria continuamente”.10 Dessa

forma, a leitura da obra de arte não prescinde do corpo e inclui oito

passagens que o leitor precisa percorrer para o acontecimento da plenitude

do ser: leitura, escuta/fala, interpretação, diálogo, experienciação,

acontecimento, aprendizagem e libertação. O real poético é ação da poiesis

na linguagem, e o corpo é uma ‘sintaxe poética’ que engloba as forças - a

física, mental e psíquica, e a erótica. Na tensão dessas forças - pólemos - se

dá a compreensão do texto poético como apreensão e aprendizagem, e não

apenas como entendimento intelectual. Tal aprendizagem propicia a

energização plena do ser humano como corpo e espírito. O corpo, como ser,

abrange o um (o nada excessivo) e a multiplicidade (a excessividade poética):

este é o mergulho no ‘entre’ para o qual a sintaxe e a narrativa poética

lançam o leitor. Porque a sintaxe poética se dá na tensão das três forças e

“tende sempre à não ação como máximo de ação e silêncio”11, a sintaxe

poética manifesta culminância sintática no entre, como repouso. Nesse

sentido:

(...) o corpo abrange as três forças e se torna o lugar/mundo como tal do nada excessivo enquanto excessividade poética. (...) As oito passagens são a eclosão do corpo no que cada um é, em sua inteireza, a partir de e no entre (CASTRO, 1982, p.11)

10 Método e ação: passagens. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com/ 11 CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético: a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982, p.11

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A leitura poética não separa intelecto, corpo e afetividade/eroticidade,

não separa forma de conteúdo, de modo que realiza o diálogo entre obra e

leitor, dentro do círculo hermenêutico. Segundo José Carlos Michellazo este

círculo:

(...) significa guiar-se pela perspectiva de que o homem só compreende o ser porque este já o constitui (círculo), mas para que esta compreensão do ser ganhe o estatuto de fenômeno - isto é, aquilo ‘que se revela, o que se mostra em si mesmo’ - é preciso que sejam explicitadas as estruturas ontológicas do homem por meio da interpretação (hermenêutico). (MICHELLAZO, 1999, p.109).

Para que se realize a escuta, é necessário silêncio. Este é trazido pela

disponibilidade para a qual o homem se abre ao escutar a fala do logos.

Nesse acontecimento da escuta, a diá-noia não é mais portadora de

conhecimento passível de aprendizado, e, sim, manifestadora do que cada

um é. Ela é “o ente vigente em cada coisa”, segundo Castro. Nessa revelação

do ser dá-se o acontecimento da aprendizagem. Ela não pode ser ensinada,

apenas é recebida como doação do logos.

A escuta do logos acontece na caminhada dentro do círculo

hermenêutico. De tal escuta nasce a interpretação, que é uma tripla escuta:

a do outro, a auto-escuta e a escuta do logos.

De hermenêutica nasce a palavra interpretação. E a palavra

hermenêutica, por sua vez, tem sua origem em Hermes, o “deus dos

caminhos, imagem-questão do ser humano enquanto se faz fazendo o

percurso do que é como método”.12 Dessa forma, não se busca uma análise

do texto. A análise, divisão de algo em partes, disseca o texto e classifica-o

como objeto. A hermenêutica, ao contrário, concebe a obra de arte como

12 Método e ação: passagens. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com/

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obra, o que opera, está, portanto, vivo e carrega ‘falas e verdades’: “O logos

enquanto algo que é, enquanto opera (manifesta) a verdade como

desvelamento do ser que ama velar-se”.13

A partir de tais considerações, entende-se que a interpretação poética

move-se na escuta poética, ambígua e poético-ontológica. Dessa

interpretação surge a aprendizagem - experienciação do que somos - que não

pode ser ensinada, uma vez que traz o jogo da verdade como não-verdade,

cerne da ambigüidade “tanto do ser humano como do próprio ser”.14

O diálogo entre leitor e obra poética se dá na tensão entre verdade e

não verdade e, também, em relação à própria obra que, doando-se em

sentidos, retrai-se enquanto mistério. É nesse enfoque que o real ama velar-

se: ele é radicalmente ambíguo.

Na aprendizagem o ser humano toma consciência de que é. Ao mesmo

tempo finito e não-finito, ente e ser. A tensão entre limite e não limite é o

horizonte da experienciação. Na tomada de consciência de sua grandeza,

pela escuta do silêncio excessivo, o homem encontra o telos: “a realização

como consumação do que se é”.15 Desse modo o diálogo com a obra

compreende a experienciação, o horizonte e o telos. O método, caminho que

se dá através do entre, muito mais do que um conjunto de normas para o

procedimento de uma análise deve levar à passagem onde o homem acontece

como telos.

13 Método e ação: passagens. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com/ 14 Ibid. 15 Ibid.

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A leitura poética, portanto, realiza-se como história, na, da e pela

memória. Dessa forma é possível o diálogo entre épocas que se aborda neste

estudo. Segundo Manuel Antônio de Castro:

Mais do que como historiografia, a obra de arte se nos oferece como verdade e memória poético-ontológica. Quando a leitura se abre para esta dimensão, então ela se torna um acontecimento.16

A primeira parte deste trabalho apresenta-se subdividida em quatro

capítulos: 1) “A Verdade Poética”, onde será tematizado que a verdade capaz

de interpretar a arte é a alétheia, e não a orthotes que se estabeleceu a partir

do mito da caverna de Platão; 2) “Linguagem poética e mito”, onde será

estudado o caráter sagrado da palavra poética como questão fundamental

para compreensão da obra de arte; 3) “O trágico como tensão entre limite e

não limite”, em que será interpretado o drama ático não como imitação de

ação, mas sim, encenação do próprio drama humano, que consiste na

tendência a ir além do limite, embora se reconheça a finitude; as questões do

tempo e do destino são fundamentais para a interpretação da tragédia grega;

4) “Barroco em Autran Dourado: diálogo com a atualidade”, onde serão

tratadas e aprofundadas as questões de gênero e estilo como inauguradoras

de significado, e não como categorias estéticas ou formais.

A segunda engloba três capítulos: 5) “A Poética de Autran Dourado”,

que aborda a concepção que o autor tem de linguagem literária e questões

fundamentais para seu fazer poético, tais como, o diálogo com o Barroco e

com a tragédia grega. Percorrendo o labirinto construído pelo autor é que se

desdobram as perguntas que permitem alcançar os múltiplos sentidos da

16 Ibid.

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obra. No centro do labirinto está a chave para a compreensão, “mas, sem a

chave, como entrar? Como sair?”, pergunta o próprio autor; 6) “Os Sinos da

Agonia”, interpretação da obra homônima, em uma perspectiva

hermenêutica, pensando a estrutura arquitetônica proposta pelo autor como

leitura das questões de seu tempo e do processo narrativo. A mediação que

se estabelece tanto pelo narrador coral, como pela falsa terceira pessoa,

funciona como o fio de Ariadne, imagem-questão do método nos caminhos

do real, conduzindo o leitor ao desvelamento / velamento do labirinto; 7)

“Ópera dos Mortos”, interpretação da obra homônima, também em uma

perspectiva hermenêutica, compreendendo o diálogo estabelecido entre

Barroco e atualidade como um dos pilares da construção do real poético.

Na perspectiva proposta neste trabalho, é importante que se ressalte a

relação entre história e literatura. As obras literárias de diferentes épocas

fazem com que a história permaneça como memória, enquanto o diálogo

entre os diversos momentos (épocas) interpreta originalmente movimentos

literários anteriores num incessante diálogo que contribui para a construção

da época em questão. De acordo com Manuel Antônio de Castro:

Nesta perspectiva, o temporal-histórico é a emergência do real no homem como instituição de mundo. Nesse sentido, o literário é atemporal, porque fundamentalmente humano. O rompimento dos limites se dá em virtude de sua radicalidade. Tal rompimento efetiva-se na proporção em que possibilita novas e contínuas leituras, reunindo unidamente as propriedades de ser sempre epocal e ao mesmo tempo não epocal, nas vicissitudes das épocas. (CASTRO, 1982, p.63)

Autran Dourado propõe uma nova leitura da Tragédia Grega e do

Barroco, movimentos literários característicos de épocas, mas que a elas não

se reduzem porque fazem um questionamento radical da condição humana e

apresentam questões que cada época há de interpretar na busca de sua

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própria identidade. Em sua obra, institui-se um mundo fundado tanto no

questionamento da posse da verdade única acerca de tudo e de todos como

na concepção de tempo como uma roda, onde passado presente e futuro se

tocam e se interpenetram dinamicamente.

Observar-se-á ao longo deste trabalho, que não é possível reduzir

esses dois movimentos às classificações da estética tradicional. Elas devem

ser consideradas apenas como ponto de partida para a reflexão mais

profunda: seus significados para a construção do homem histórico e disputa

entre terra e mundo. Terra como o que se fecha, mas necessita do mundo

para que apareça como abrigo de todos os seres, e mundo como o que se

abre, mas necessita da terra para abrigar-se. A obra de arte literária é o

surgimento do mundo. Na obra o mundo se manifesta como presença e

ausência.

Essa relação será estudada neste trabalho quando se abordar o

diálogo entre a obra de Autran Dourado, a Tragédia Grega e o Barroco.

Entretanto, para que se perceba tal relação, é necessário examinar o vigor

que esses últimos têm na atualidade. Tal vigor se fundamenta nas questões

trazidas por ambos. É a possibilidade de interpretação original que faz com

que Barroco e Tragédia sejam atuais.

Neste ponto, faz-se necessário um esclarecimento: pode parecer

estranho falar em Neobarroco como atualização do Barroco, uma vez que o

prefixo ‘neo’ está desgastado e soa como cópia mal feita, ou até mesmo

tentativa fracassada de continuar o que já findou. O que importa nesse

estudo muito mais que o nome, é a capacidade que o Barroco ainda tem de

produzir mundo e originalidade de horizontes. Autran Dourado dialoga

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magistralmente com esse movimento, sem perder de vista a

contemporaneidade – ‘sou um homem do meu tempo’, faz questão de frisar.

O resultado disso é uma obra que chama o leitor à participação ativa na

interpretação/construção da obra. Não se fica indiferente diante de Os Sinos

da Agonia, nem de Ópera dos Mortos. A forte carga dramática nasce desse

diálogo entre épocas e do questionamento radical de verdade, memória e das

demais questões que essas implicam. Conforme Castro:

As poéticas das obras vêem nas obras dos autores as figuras da configuração epocal. A figura é o autor como celebrante, como lugar do acontecer histórico, e o texto-obra como realização desse acontecer. (CASTRO, 1982, p.137)

Autran Dourado estabelece rico diálogo com as questões acima, dentre

outras presentes na tragédia grega, trazendo à tona dimensões do drama

ático até então não pensadas e contribuindo para a reflexão acerca dos

aspectos que essas questões ganharam na atualidade. O autor concretiza a

interpretação da tragédia grega, tecendo uma rede labiríntica: assim como

no gênero trágico, no romance dramático é preciso sofrer para conhecer. A

experiência humana é privilegiada em detrimento de teorias filosóficas

preexistentes.

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2 VERDADE, LINGUAGEM E ARTE

Na circunferência do círculo, o começo e o fim se confundem.

Heráclito

2.1 Verdade Poética

A relação entre verdade e arte é, constantemente, tema de reflexão e

debate entre estudiosos das ciências e das artes em geral. Tal discussão

baseia-se, na maioria das vezes, em traduções e interpretações metafísicas

do conceito platônico de verdade e do conceito aristotélico de arte, que

relegaram a arte a um patamar muito inferior a que verdadeiramente ocupa

na história ocidental. Em sua obra República, Platão constrói a Alegoria da

Caverna e estabelece o korismós – a dicotomia do mundo em duas esferas

distintas, em constante oposição e incompatíveis entre si. O interior da

caverna representa aquilo que pode ser visto, o mundo sensível – o mundo

da aparência, onde a verdade, a essência das coisas concretas não se mostra

devido à escuridão da caverna. A verdade, compreendida como a razão do

existir das coisas sensíveis, está do lado de fora; o exterior da caverna

representa o que pode ser apenas pensado e que contém a essência

verdadeira de tudo o que se apresenta ao homem - o inteligível – o ‘Mundo

das Idéias’, onde, iluminadas pelo sol, as coisas se mostram como são exata

e verdadeiramente. Ao sair da escuridão da caverna para a claridade

exterior, o homem é obrigado a adaptar o olhar à luz. Essa adaptação é,

essencialmente, o que Platão chama de Paidéia: “uma tendência do homem

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para uma mudança completa de todo o seu ser” [...] “Quando, na caverna, o

homem liberto se desvia das sombras para considerar as coisas, ele já dirige

o seu olhar para aquilo que tem mais do ser que de simples sombras (...) vê

de um modo mais exato”.17

Heidegger decompõe o vocábulo alemão Bildung (formação) para

alcançar o significado da palavra Paidéia como interpretada pelos gregos.

Bildung, em primeiro lugar, significa “um ato formador (ein Bilden) que

imprime à coisa um caráter, segundo o qual ela se desenvolve. Em segundo,

um ato que conforma a coisa a uma visão determinante que, por esta razão,

é chamada modelo (Vor-bild)”.18 A formação (Bildung) é, simultaneamente,

impressão de um caráter e guia recebida de um modelo. Esse voltar os olhos

para as coisas iluminadas pelo sol (Paidéia) é um conformar o olhar a um

modelo dado previamente. Ora, se o modo de olhar é modificado, modificam-

se as coisas que se manifestam ao homem, bem como “o modo em que elas

se manifestam”.19 Compreende-se dessa forma que se modifica também o

modo do não-velamento das coisas, em outros termos, muda a aparência das

coisas, (o não-velado). A palavra grega para não-velamento é αλήθεια –

alétheia, traduzida no Ocidente como verdade. O termo verdade, atualmente,

perdeu o significado de desvelamento ou desencobrimento, pois, como

demonstra Heidegger, no ‘Mito da Caverna’, a mudança do foco do olhar traz

a idéia de adaptação a um modelo (guia), que representa uma adequação (em

grego: όµοίώσις – homoiósis) do conhecimento à própria coisa.

17 HEIDEGGER, M. A doutrina de Platão sobre a Verdade. Trad. Antônio José Jardim. UFRJ Faculdade de Letras, s/d. p.03. 18 Ibid. 19 Ibid. p.04

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Em minucioso exame, Heidegger aponta quatro graus para o ‘Mito da

Caverna’ referentes à passagem da escuridão para a luz:

1º. Os homens vivem acorrentados na caverna e são fascinados por

aquilo que percebem imediatamente, considerando as sombras

como o não-velado;

2º. um dos homens retira as correntes: libertado da dominação das

sombras, o homem chega ao ‘mais desvelado’, mas considera que

as sombras vistas na caverna são mais bem desveladas do que as

coisas vistas no mundo da luz. Isso ainda não é a verdadeira

liberdade porque a visão do homem está ofuscada pelo fogo;

3º. o homem sai da caverna: a saída corresponde à verdadeira

liberdade, significa o acesso ao desvelado ‘ao máximo’. Há uma

mudança completa (paidéia) quando do acesso à verdade e,

finalmente,

4º. o homem livre volta à caverna e trava combate com os prisioneiros

(seus antigos pares) que se opõem a toda libertação. É o

arrancamento do velado para o não-velado. O não-velado

(desvelamento) é, para os gregos, a essência do ser, é a verdade do

ente na sua presença e acessibilidade, mas o velamento, a não-

verdade, também está presente nessa essência. O arrancamento é

necessário para que se atinja a essência da verdade, uma vez que

o velado faz parte do desvelado: o desvelado é o que estava velado

antes e foi arrancado do velamento.

Heidegger observa ainda que a grande imagem do ‘Mito da Caverna’

não é a caverna, mas o fogo e o sol. Tudo depende da aparência (είδος) da

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coisa e daquilo que lhe permite aparecer. Dado ao desvelamento, o que

importa é saber como a coisa que aparece se torna “acessível em sua

evidência e como o desvelamento torna visível o que se mostra assim

(ίδεα)”.20 A alegoria do sol mostra que ‘a idéia brilha como o sol brilha’. A

luminosidade é o que possibilita a presença do ente em sua essência

(quidditas). Portanto, a verdadeira essência é a quidditas, e não a existentia.

O que a idéia nos faz ver é o não velado. “Assim o não-velado é compreendido

por avanço e de uma maneira única como aquilo que nós percebemos

percebendo a ίδεα, como aquilo que é conhecido (γιγνωτκόµενον) - no

conhecer (γινώσκειν)”.21 Verdade é aquilo que se atinge quando da percepção

da ίδεα. Desta forma, as idéias passam a ser o centro para o qual o olhar se

deve voltar, isso implica dizer que a idéia se torna a essência da percepção e,

mais tarde, da ‘Razão’. O que mantém a coisa vista e o ato de ver unidos é o

sol. Para Platão, “aquilo que, portanto, permite o não-velamento das coisas

conhecidas, mas dá também ao conhecedor o poder (de conhecer), revela que

isto é a Idéia do Bem”, o ágathon (τό άγαθόν)22. O problema surge porque a

tradução consagrada de ágathon para ‘Bem’ delega à palavra um valor moral

que não havia no pensamento grego. Ágathon significa: ‘aquilo que está apto

a alguma coisa e que torna apto a alguma coisa’, em outros termos, cada

idéia, a própria evidência de alguma coisa, possibilita a visão do que se

considera que a coisa seja. O que permite que cada idéia seja uma idéia, ‘a

Idéia de todas as idéias’ consiste no fato de possibilitar a aparição de todas

20 HEIDEGGER, op. cit., p.08. 21 Ibid. 22 Ibid., 08-09

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as coisas presentes em sua inteira visibilidade. A ‘Idéia do Bem’ é a

possibilidade das outras idéias. Ela é a Origem, a Causa, ‘permite a aparição

da evidência da consistência do ser da coisa presente. Por esta doação do

ágathon o ente é mantido no ser e, assim, salvo’.

Heidegger, dessa forma, estabelece, ao interpretar tal reflexão, que o

mito da caverna se funda sobre um fato não mencionado no texto:

Quando Platão diz da Idéia que ela é a Soberana que concede o não-velamento, ele nos reenvia à alguma coisa que ele não diz, a saber, que doravante a essência da verdade cessa de se deslocar, a partir de sua própria plenitude de ser, como essência do não-velamento, mas que ela se desloca para vir coincidir com a essência da Idéia. A essência da verdade abandona seu traço fundamental anterior: o não velamento. (HEIDEGGER, s/d, p.11)

Sob tal ótica, compreende-se que a idéia de verdade passa do não-

velamento (alétheia) à exatidão do olhar (orthotes), que é uma característica

do comportamento do homem em relação às coisas que são.

A grande questão levantada por Heidegger é que Platão trata e fala da

alétheia, mas pensa em orthotes. A verdade é ao mesmo tempo não-

velamento e exatidão, mas este último está sob o jugo da idéia, pois é ela que

torna possível a visão exata do não-velado. A capacidade de julgamento do

homem se dá pelo entendimento enquanto é uma adequação e é considerado

verdadeiro enquanto esta capacidade se conforma à coisa. É neste ponto que

a verdade perde completamente o sentido de alétheia. É fato que, em todas

as correntes filosóficas tradicionais, desde a escolástica, a verdade aparece

como subordinada à idéia, ou, nas palavras bem mais contundentes de

Heidegger, ‘escrava’ da idéia.

A verdade, compreendida como exatidão, é o oposto do inexato, do

falso. Em conseqüência desta oposição, os poetas distanciavam-se

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duplamente da verdade e foram expulsos da pólis: eram meros copiadores do

mundo sensível, pois se afastavam tanto do ser (idéia) como do ente (o que

se representa).

Posteriormente, a teoria aristotélico-escolástica definiu a verdade como

a adequação da coisa com o intelecto - veritas est adequatio rei et intellectus -

esta foi a definição que se consagrou na cultura ocidental. Mas verdade

como adequação é tão somente um dos aspectos da verdade que, enquanto

arte, extrapola tal definição, pois revela novo enfoque, justamente o de

desvelamento. Tal enfoque será aprofundado a partir do conceito tradicional

até o resgate da idéia de verdade no período dos pensadores originários, pois

este caminho possibilitará a reflexão sobre a verdade da obra de arte.

Heidegger observa que a definição tradicional da verdade, veritas est

adaequatio rei et intellectus também pode ser lida como, veritas est adequatio

intellectus ad rem – a verdade é a adequação do conhecimento à coisa. Dessa

forma, a verdade da proposição só é possível se fundada na verdade da

coisa. Pensa-se a verdade como conformidade. Porém, intellectus e res são

pensados de maneira diferente em cada uma das duas concepções. Veritas

como adequatio rei ad intellectus é uma interpretação decorrente da fé cristã

e da idéia teológica que concebem uma ordem da criação, a saber, as coisas

(ens creatum) correspondem à idéia previamente concebida pelo intellectus

divinus. O intellectus humanus também é um ens creatum, uma vez que,

como faculdade concedida por Deus deve adequar-se à idéia.23 A

possibilidade do conhecimento humano origina-se em que todo ente é

23 HEIDEGGER, M. Sobre a essência da verdade. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril. Cultural, 1983. p.130.

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‘criado’ sobre o fato de a coisa e a proposição serem conformes à idéia. São

coordenados um ao outro a partir da unidade do plano de criação. A veritas

enquanto adequatio rei ad intellectum possibilita a veritas enquanto

adequatio itellectus ad rem, e a veritas torna-se convenientia, a concordância

dos entes entre si, que se fundam na concordância das criaturas com o

criador. A partir do momento em que a essência humana se torna

subjetividade e o pensamento transcendental de Kant afirma que ‘os objetos

se conformam ao nosso conhecimento’, essa ordem pode separar-se da idéia

de criação e ser representada como ordem do mundo - o espírito torna-se a

razão universal (mathesis universalis) que cria leis e postulados – cria,

inclusive, sua própria lei. A verdade da coisa tem de estar em acordo com

seu conceito essencial, concebido pelo espírito, razão universal. O homem

aqui é entendido como portador e realizador do intellectus. Confirma-se a

tese segundo a qual a essência da verdade da proposição reside na

conformidade da enunciação – veritas est adequatio intellectus et rei. Esta

interpretação da verdade se relaciona com o primeiro conceito de coisa,

estudado por Heidegger n’ A Origem da Obra de Arte, que será retomado

posteriormente.

A culminância desse primado é o humanismo. O homem passa a

senhor da razão e, com ela, conduz a vontade e o sentimento. O homem se

torna sujeito observador e converte a obra de arte em objeto plausível de sua

avaliação e de seu julgamento. O homem é o construtor da verdade com base

nesse espírito universal, na idéia. Não há que se estranhar que a arte nunca

tenha sido vista como manifestadora do real na tradição ocidental. A

sentença veritas est adequatio intellectus et rem retira a arte do âmbito da

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verdade. O homem, senhor da razão, se sente impelido a dar uma

nomenclatura, uma classificação a todas as coisas; não seria diferente em

relação à arte. O problema subjacente ao ato de se classificar a arte, é que se

esvazia a dimensão poética, justamente aquilo que leva o homem ao

encontro do ente e da percepção do mistério. Por muitos séculos perdurou a

crença segundo a qual verdade é o que é real, e a arte, ficção, portanto, não

corresponde à verdade. Mas a verdade pensada em tensão com a não

verdade, arte como desvelamento que, simultaneamente é velada, se torna

verdade vigorando, mas não como orthotes e sim como alétheia. As medidas

e classificações humanas posteriores ao pensamento originário grego

convertem o meio em fim: contentam-se com o que era apenas meio para o

alcance do desvelamento e esquecem o que era buscado anteriormente. De

fato, sobretudo no que se refere à arte, as classificações, por conterem uma

interpretação prévia, antes mesmo que o contato com a própria obra ocorra,

excluem por completo o significado da poiesis, do fazer-se das coisas. A obra

previamente classificada perde a característica fundamental, qual seja, o

agir.

Manuel Antônio de Castro expôs como a essência do agir da poiesis

passou à subjetividade. A metafísica, ao tentar amenizar as tensões

implícitas às questões do ente/ser - fala/linguagem; tempo finito/ tempo

não-finito; saber/não saber - criou as abstrações, que são os conceitos, e

esqueceu o agir – a poiesis, e o conhecimento se tornou techné. Por sua vez,

o homem passou a ser o detentor da techné, a agir através dela em vez de

agraciado pelo ser e pela linguagem (logos). Assim:

O real e o verdadeiro passam a ser determinados pela ciência representativa e experimental. O homem como sujeito racional

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constrói o real e o homem, onde só há lugar para conhecimentos científicos e a sabedoria se torna algo muito raro. Por quê? Numa tal paisagem e realidade, a linguagem ainda pode ser o nosso maior Bem, isto é, ser o que somos? O sujeito racional é a tradução latina de quê? Do on do ser e do logos. E, contudo, Heráclito já nos advertia: “Auscultando não a mim, mas ao logos, é sábio dizer-com: tudo é um”. Essa é a questão que não nos abandona, pois sempre se faz presente.24

De fato, Heráclito fala de dois logos: o da fala e o da linguagem (que

deve ser escutado). A tensão entre fala e linguagem é a mesma que existe

entre ente e ser. Trata-se da questão fundamental, esquecida pela

metafísica, mas que não deixou de existir.

A tradição metafísica ocidental, dominada por esta subjetividade,

torna a obra algo estático, incapaz de relação dinâmica com o homem, posto

que é o dominador por ser o detentor da razão. A obra passa a estar contida

em qualquer teoria que o homem forjar porque a teoria a enforma e

conforma. As classificações calam a obra, afastam-na da verdade e do real,

mas quando se realiza sua escuta, quando se calam as classificações

impostas pela tradição, e se atinge o pensar originário, que pulsa como

verdade no interior da obra, ela fala por si, e a interpretação deixa de ser

uma relação entre um sujeito dotado de razão e um objeto estático à espera

de uma nomenclatura: passa a ser um diálogo no qual o leitor se abre para a

escuta da verdade da obra.

Desta passagem ao diálogo, apresenta-se a questão da alteridade, que,

segundo Castro, são três: o outro como interlocutor; a alternância entre o eu

e o ‘outro eu’, ou o eu interior e o eu exterior (o ‘fingidor’ de que fala

24 Aula Inaugural, segundo semestre de 2004: Linguagem: nosso maior bem. Faculdade de Letras UFRJ. Ensaio publicado no site: www.travessiapoetica.com/

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Fernando Pessoa no poema que motiva a reflexão de Castro)25; e a alteridade

do logos que reúne e diz. Deste último depreende-se o que o ser (homem) é,

sendo esta terceira alteridade a que funda a possibilidade das outras duas.

O homem só é na e pela linguagem e só se relaciona com o outro na e pela

linguagem. É nesse sentido que o texto se torna experiência a ser

experienciada pelo leitor. Conforme Castro: “O fingir e a dor do poeta são

como que espelhos onde se reflete o leitor para se lançar na experienciação

do que cada leitor deve ser e sentir”.26

Com base nessas considerações, segue o que ocorre com a linguagem

para, posteriormente, ser examinada a questão da linguagem literária.

A linguagem é a casa do ser e, no pensar, o homem se deixa atravessar

pela linguagem. É missão de pensadores e poetas guardarem esta casa,

levando a cabo a manifestação do ser na linguagem. Entretanto, no

momento em que o homem se arvorou a senhor da linguagem, fazendo dela

um instrumento, inverteu a relação e passou a classificá-la, descrevê-la e

nomeá-la, fechando o espaço para o pensamento original e para a própria

poiesis como essência do agir, posto que a linguagem literária também se

tornou objeto de classificação.

Heidegger pergunta sobre ‘o significado da concordância da

enunciação com a coisa’. Esta não se realiza pelo aspecto de uma e de outra,

mas sim pela natureza da relação existente entre a coisa e a enunciação, que

é uma adequação. A enunciação apresenta a coisa e diz o que ela é do ponto

25 Autopsicografia. 26 Aula inaugural, segundo semestre de 2004: Linguagem: nosso maior bem. Faculdade de Letras UFRJ. Ensaio publicado no site: www.travessiapoetica.com/

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de vista principal. A coisa surge diante de nós como objeto: este é o

significado de apresentar. Por isso se opõe a nós (sujeitos). Segundo o

filósofo:

Esta aparição da coisa, enquanto cobre (mede) um âmbito para o encontro, se realiza no seio de uma abertura cuja natureza de ser aberto não foi criada pela apresentação, mas é investida e assumida por ela como campo de relação. A relação da enunciação apresentativa com a coisa é a realização desta referência; esta se realiza, originariamente e cada vez, como o desencadear de um comportamento. Todo o comportamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se manter referido àquilo que é manifesto enquanto tal. Somente isto que (...) está manifesto foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental como “aquilo que está presente” e já, desde há muito tempo é chamado “ente”. (HEIDEGGER, 1983, p.136)

Essa abertura é mantida pelo homem de modo distinto, conforme duas

coisas: a natureza do ente e o modo de comportamento que aí se estabelece.

É no seio do âmbito aberto por este desvelamento que o ente se torna

‘suscetível de ser expresso naquilo que é como é’. O expressar-se só é

possível quando ‘o ente mesmo se pró-põe’ na enunciação que o apresenta,

de tal maneira que esta enunciação se submete à ordem de exprimir o ente

assim como é. A partir deste pensamento é possível compreender que a

essência da verdade não está na conformidade, mas naquilo que a torna

possível. Evidencia-se, desta forma, a questão do “fundamento da

possibilidade intrínseca de abertura que mantém o comportamento e que se

dá antecipadamente uma medida”.27

Heidegger se pergunta: “Em que medida28 o homem habita

poeticamente?”.29 A partir de sua interpretação do poema No Azul Sereno

27 HEIDEGGER, Sobre a essência da verdade, op. cit., p.136. 28 Destaque nosso. 29 HEIDEGGER, ...poeticamente o homem habita. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes. 2000. p.170

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Floresce, de Hölderlin, percebe-se que, ao olhar para o céu (os celestiais) o

homem o faz a partir do esforço pelos méritos, o que significa um esforço

para igualar-se com o divino. O homem se compara aos celestiais. Quando o

homem mede o ‘entre o céu e a terra’ mede a dimensão que, em sua essência

é o “comedimento tornado claro, e assim, mensurável do entre (...)”.30

Manuel Antônio de Castro esclarece que:

Entre provém do pré-verbo e da preposição altina “in”. Em primeira instância, “in” tem os sentidos de “em”, “dentro” e “sobre”, tanto do ponto de vista espacial como temporal. Ele, poeticamente diz, por isso mesmo, “lugar”. E assim tanto indica movimento como estado físico ou moral.(CASTRO)31

Compreende-se que o habitar poético do homem tem seu lugar nesse

entre. Entre divino e mortais, entre saber e não-saber, entre ser e não-ser.

Ser humano significa mover-se no entre. Ainda conforme o autor, “só por ser

Entre-ser é que o ser humano se realiza necessariamente como

caminhada”.32 Realizar-se como caminhada é essencial ao ser humano, uma

vez que na caminhada se dá a experiência como acontecimento poético e a

conseqüente aprendizagem.

A partir dessa medida o homem tem noção de seu espaço. O espacial

é concedido a partir da dimensão, não o contrário.

O espaço deve ser pensado como o ‘arrumado, o lugar’. São as coisas

que fundam espaço. São elas que integram e reúnem a quadratura (céu –

terra – mortais – imortais) e a ela propiciam estância e circunstância. A

30 Ibid. p.172 31 CASTRO, Manuel A. In: Interdisciplinaridade poética: o entre. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.blogspot.com/ 32 Ibid.

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partir da estância e da circunstância propiciada ao lugar pelas coisas

fundam-se os espaços.

O homem só consegue ser em sua essência ao medir-se com o divino –

ao estabelecer uma dimensão. Ser em ‘sua essência’ significa situar-se em

um espaço, reconhecer-se limitado, mas o homem só apreende esta

dimensão ao pretender estabelecer-se ao divino. Essa medida, conforme

Heidegger, constitui o poético do habitar. Medir significa ditar poeticamente.

O habitar sustenta-se no poético: o habitar é o estabelecimento, a

fundação de mundo, e o poético é a medida pela qual se estabelece a

dimensão humana.

Para Hölderlin, Deus é a medida enquanto esse desconhecido 33. É

como desconhecido que Deus deve aparecer. “A revelação de Deus e não ele

mesmo, esse é o mistério”.34 Este mistério é justamente a dissimulação do

ente como tal, a não-essência original da verdade, que não significa

inessência, mas essência pré-existente. “O aparecer do mistério através do

céu consiste num desocultamento que deixa ver o que se encobre (...) no

sentido de resguardar o que se encobre em seu encobrir-se”.35 Esse

aparecimento do mistério através do céu, como um resguardar, propicia um

construir que se relaciona com o habitar. O mistério é a medida que dá ao

homem a noção de sua essência: a finitude. Esta medida é o que garante o

habitar poético do homem. A poesia é uma tomada de medida. O divino – ou

o mistério – é a medida que deve fazer apelo ao homem. A poesia é a tomada

33 Grifos do autor. 34 HEIDEGGER, ... poeticamente o homem habita, op. cit., p.174. 35 Ibid.

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de medida que participa ao homem o divino. Claro está que a medida aqui

descrita não é algo quantitativo – e por isso o homem se engana quando

preenche seu mundo com projetos e cálculos – Heidegger propõe que seja

considerada a medida que se faz tomar na poesia. A poesia é o que deixa vir

ao encontro o que está na medida. Ela ensina a escutar o entre, ponto de

partida do levantamento de medida.

O desconhecido destina-se ao que é familiar para o homem e estranho

para o deus, a fim de se manter resguardado como desconhecido. O poeta é

aquele que apela para o estranho em tudo o que se mostra familiar. O poeta

vela o desvelado para que se obrigue a escutar. A relação entre a poesia e o

divino (mistério) sustenta-se no fato de que o poeta toma a medida que se

destina ao estranho, “em que o invisível resguarda a sua essência na

fisionomia familiar do céu”.36

O habitar só acontece se a poesia for a tomada de medida. Poesia em

grego se diz poien. Conclui-se que o habitar só acontece se houver criação.

“A poesia é um construir no sentido original”.37 Não é edificação de coisas

construídas, mas um permanente construir-se. Construir, neste sentido, é

passar do não ser para o ser, da não essência para a essência, da não-

verdade para a verdade.

O habitar sem poesia só acontece porque a ‘estranha desmedida’ do

homem busca a matematização do humano. A necessidade de tudo se medir

quantitativamente nos afasta da condição essencialmente poética.

36 HEIDEGGER, ... poeticamente o homem habita, op. cit., p.178. 37 Ibid.

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A enunciação representativa recebe a ordem de se adequar à lei da

conformidade porque há uma doação prévia que nos instaura como livres,

dentro do aberto para algo que nele se manifesta e que vincula toda

apresentação. É a liberdade, não a idéia do Bem, que possibilita

intrinsecamente a conformidade. Aqui se apresenta a grande revolução que

Heidegger promove na questão da verdade: “A essência da verdade é a

liberdade”.38 Tal afirmação não implica, porém, afirmar que a verdade está

entregue ao arbítrio humano. Deslocar a verdade para a subjetividade

humana significaria abrir caminho para todas as formas de erro: falsidade,

hipocrisia, mentira, engano, logro, simulação. Heidegger conclui que se a

não-verdade tem sua origem no ser humano, a essência da verdade ‘em si’

reina ‘acima’ do homem.

Necessário se faz examinar a relação essencial entre verdade

(conformidade) e liberdade, o que conduz esta pesquisa à investigação da

essência do homem “dentro de uma perspectiva que nos garantirá a

experiência de um fundamento original oculto ao homem (do seu ser-aí)”.39

Este é o âmbito onde a essência da verdade se desdobra originariamente. E

esse fundamento é o que possibilita a compreensão de que,

A liberdade somente é o fundamento da possibilidade intrínseca da conformidade porque recebe sua própria essência mais original da única verdade essencial. (HEIDEGGER, 1983, p.137-138)

38 HEIDEGGER, Sobre a Essência da Verdade, op. cit., p.137. 39 Manuel Antônio de Castro traduz a expressão Da sein como ser-do-entre: entre ser e ente, entre silêncio e fala, entre treva e luz - entre o permanente e o mutável. Essa tradução será usada aqui sempre que se quiser chamar atenção para o aspecto dual do ser enquanto presente e exposto na clareira, doada enquanto retraimento do ser. A verdade/liberdade vigorará tensional neste entre. É neste e deste “entre” (Da-) que o ser humano receberá as suas dimensões.

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A essência da liberdade como liberdade do manifesto no seio do aberto

se dá de forma tal que o manifesto que se conforma à enunciação

apresentativa é também o ente manifesto para e por um comportamento no

aberto. A liberdade, assim entendida, deixa que cada ente seja o ente que é.

A liberdade se revela como o que deixa-ser o ente. Liberdade não significa

que o homem possa agir como lhe aprouver, mas que necessita colocar-se à

disposição do ser. O afastar-se da essência é a verdadeira prisão. A essência

da verdade será atingida quando o homem aprender a se colocar na abertura

da clareira, à disposição de seu ser. Deixar ser significa, neste sentido,

entregar-se ao ser, ocupar-se e cuidar dele, protegê-lo, planejá-lo, sobretudo,

entregar-se ao aberto e à sua abertura. Aberto no estrito significado grego de

ta alétheia, o desvelado. Destas reflexões, tem-se que, entregar-se ao ser

significa: entregar-se ao caráter de ser desvelado, o que implica um recuo

diante do ente a fim de que ele se manifeste. É desta entrega que a

adequação representativa deve receber a medida.

A essência da liberdade, à luz da essência da verdade, surge como

exposição do ente ao ser enquanto tem o caráter de desvelado. Assim sendo,

liberdade significa o abandono ao desvelamento do ente como tal. Esse

caráter de ser desvelado do ente é preservado pelo abandono ek-sistente.

Alcança-se, pois, a abertura do aberto, a presença, o ‘aí’ ou o ‘entre’.

Compreende-se, a partir desta passagem, porque o ser-aí, ou o ser-do-entre,

é o fundamento essencial para o homem – sua ek-sistência enraíza-se na

verdade como liberdade.

A pergunta: ‘O que é o ente?’ É a própria experiência do ente em seu

desvelamento. No momento primeiro em que se fez tal pergunta inicia a

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história, não como simples desenrolar de fatos, mas como o despertar do

homem inserido em seu tempo e seu espaço, para sua missão de ser. Esse

tempo não é mensurável, mas abre a possibilidade de toda medida. É o ser-

aí ek-sistente, como deixar-ser que libera o homem para sua liberdade. Por

isso não se pode dizer que o homem possui a liberdade, é a liberdade que

possui o homem. Ela é uma doação do ser ao homem que se dis-põe para a

abertura do desvelamento. A não-essência da verdade acontece justamente

quando o homem historial deixa que o ente seja, mas não naquilo que ele é.

Quando isso ocorre, o ente é dissimulado e a aparência domina. Essa

dissimulação do ente acontece no mesmo movimento em que o deixar ser

desoculta o ente. Isto significa que o deixar também é dissimulação.

Heidegger retoma a etimologia de alétheia. Traduzindo a palavra por

desencobrimento, mostra que em αληθεία o α ainda não tem o valor

privativo, somente atribuído a ele pela gramática do pensamento grego

tardio. Tal definição implica que o α não tira do encobrimento o

desencobrimento (o revelar-se), um e outro se co-pertencem.

“Desencobrimento é o traço fundamental daquilo que já apareceu e deixou

para trás o encobrimento”.40 A alétheia não pode desvelar-se completamente

porque o velamento faz parte dela. A partir daí conclui-se que a não verdade

pertence à essência da verdade.

Heidegger chama de ‘o mistério’ essa dissimulação do ente como tal

velado em sua totalidade. É o que domina o ‘ser-aí’ do homem. O mistério é a

40 HEIDEGGER, M. Construir, Habitar, Pensar. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. p.227-229.

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não-essência original da verdade, entendida não como degradação, mas

como o âmbito ainda não experimentado e inexplorado da verdade do ser.

O problema que se apresenta nesse movimento simultâneo e ambíguo

de velamento e desvelamento é que o homem se limita à realidade corrente,

aquela que pode ser dominada por ele, e esquece a dissimulação do que está

velado (o mistério), esquecendo, portanto, a essência. O mundo do homem

historial passa a ser preenchido por questões inessenciais, não reais, porque

estão sempre seguras de si mesmas, legitimadas que estão pelo senso

comum. A dissimulação passa a ser entendida como um limite que

acidentalmente se anuncia, mas o mistério não desaparece com o

esquecimento, apenas se subtrai retraindo-se no e para o esquecimento. As

falsas questões se sobrepõem e o homem passa a completar seu mundo com

projetos e cálculos e a retirar dele suas medidas. Enquanto o homem tomar

a si mesmo como medida (como sujeito) para todos os entes, permanecerá

nela enganado. É a partir da tomada de medida que o homem habita e,

conseqüentemente, é essencialmente. O saber se torna inessencial quando é

almejado somente por seus méritos. Embora conquistados com tantos

esforços, afastam o homem de sua essência, pois este só habita

poeticamente a terra “quando constrói e continua a construir na

compenetração de um sentido”.41 Esse saber não é, sob nenhuma hipótese,

inválido, mas, como bem observa Manuel Antônio de Castro, é:

Um saber que não só classifica, ordena e julga o saber ocidental, mas também se torna o instrumento e paradigma da classificação, ordenação e julgamento de todas as demais culturas. É um saber que a tudo identifica, a tudo dá uma medida, a tudo representa. Esse é o lado visível da metafísica. A sua outra face preferimos ignorá-la

41 HEIDEGGER, ... poeticamente o homem habita, op. cit., p.169.

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como se ela fosse o seu lado já superado e desprezível. Esta outra face é o vigor da própria metafísica e que nos desafia permanentemente como uma esfinge enigmática. O que não sabemos da metafísica é muito mais complexo e profundo, e não é acessível ao saber apressado e bem estruturado em respostas precisas e análises previsíveis. (CASTRO)42

É preciso despojar-se, silenciar o saber já existente, as pré-

concepções, para habitar. O habitar, para Heidegger, relaciona-se com a

physis, no sentido de brotação. É preciso despojar-se para que no homem

brote algo novo – que não existia até então. O habitar traz, em si, a poiesis

porque implica construir, fazer, edificar. A linguagem poética, como fazer-se

das coisas, traz o homem para um habitar, um construir. As coisas se fazem

nesta terra, o homem habita esta terra e constrói nesta terra. A terra é o

lugar do fazer-se das coisas.

O lugar é a condição para o espaço “em que se admitem terra e céu, os

divinos e os mortais”.43 É a partir dele que o espaço é capaz de reunir a

quadratura e fundar mundo. A poesia faz parte da vida concreta, ao

contrário do que pensa o senso comum, porque não é mera fruição, mas

promotora do resgate do ser. É nesse sentido que a poesia se relaciona com à

verdade. O poeta vela o desvelado para que se aprenda a verdade de um

outro modo, para que se obrigue a escutar e, assim, colocar-se à disposição

do ser. Esse outro modo se refere ao despojamento dos méritos.

Alcança-se, a partir desta reflexão, a relação implícita que há entre as

questões da arte e da verdade. Heidegger aprofunda essa relação ao afirmar

que há na verdade um tender para a obra e investigar essa tendência. O

filósofo pontua as três interpretações acerca da coisidade da coisa vigentes

42 CASTRO. In: Paidéia Poética e Metafísica. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/ 43 HEIDEGGER, Construir, Pensar, Habitar, op. cit., p.134.

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na tradição do pensamento ocidental, a saber, substância e seus acidentes,

unidade do que é perceptível através das sensações e matéria enformada.44

Quanto ao primeiro conceito, é relevante a influência que a tradução

latina – subjectum – para a expressão grega τό ϋποκείµνον exerceu na

compreensão da coisa. τό ϋποκείµνον é “o elemento nuclear da coisa, o que

subjaz e já existe sempre”.45 Heidegger chama a atenção para o fato de que,

tanto a palavra subjectum, como substantia (tradução de υπόστασιζ) e

accidens (tradução de συµβεβηκός) não conservam a experiência

fundamental grega do ser do ente, no sentido da presença. A tradução latina

apropria-se dos nomes gregos, mas transporta-os para um outro modo de

pensar, não havendo evidências concretas ou razões que justifiquem ou

fundamentem tal modificação de sentido. Claro está que não é impunemente

que se faz tal transporte: com isso a coisa se tornou a junção da proposição

enunciativa com os predicados. Esse conceito, aparentemente natural, não

aprofunda a questão porque é uma representação e não a ‘imagem

especular’ da coisa. Trata-se de uma definição tautológica em que não se

sabe, porque não se investigou, qual foi o padrão: se a estrutura da

proposição ou se a estrutura da coisa. O conceito é válido para todo o ente,

não apenas para a ‘mera coisa’, assim como a definição tradicional de

verdade (adequação da coisa ao conhecimento) não alcança a essência da

verdade. Esta é a investigação que Heidegger se propõe a fazer, não só na

Origem da Obra de Arte, como em toda sua obra. Privilegia-se neste estudo a

44 Cf. Heidegger, A origem da obra de arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva. Lisboa: Edições 70, 1977. 45 HEIDEGGER, Construir, Pensar, Habitar, op.cit., p.16.

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questão da verdade da arte, pois é ela que propicia a compreensão da obra

de arte como construtora do real.

O segundo conceito de coisa também não alcança a ‘coisidade’ da coisa

porque o caráter coisal não é aquilo que é percebido nas sensações, mas no

‘estar em si’ da coisa.

O terceiro conceito é excessivamente abrangente e ultrapassa o

domínio particular das meras coisas, além de se fundar na concepção

teológica cristã que pensa todo ente como criado, previamente concebido.

Para o alcance do caráter coisal é imprescindível distinguir coisa e utensílio.

A coisa não é um mero objeto do qual um sujeito (homem) se serve. Antes, é

o que se mostra em sua essência. A serventia de que o homem dota a coisa

acaba ocultando seu ser coisa, portanto, é somente depois de despojada das

características de objeto que a coisa pode aparecer como coisa. E é por estar

despojada e revelar sua essência que a coisa reúne a quadratura e garante

sua tensão. Aparecer como coisa é o desvelamento do ente.

Heidegger prossegue na investigação da tendência da verdade para a

obra. Com o exemplo dos sapatos de camponês pintados por Van Gogh,

compreende-se que a obra desvela o ente e faz o utensílio surgir como coisa

(aquilo que ele, na verdade, é). Portanto, se a obra promove “a abertura do

ente no que é e no modo como é, está em obra um acontecer da verdade”.46

Observa-se que, enquanto é visto apenas como utensílio, os sapatos não se

desvelam, não há um acontecimento da verdade, porque a serventia na qual

reside o ser apetrecho do apetrecho, repousa, de fato, “na plenitude de um

46 HEIDEGGER, A origem da obra de arte, op. cit., p.22. Tradução de Castro e Azevedo: “na obra está em obra um acontecer da verdade, se aqui acontece uma abertura inaugurante de ente naquilo que ele é e no como ele é”.

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ser essencial do apetrecho”, a saber, a solidez.47 Devido à solidez é que o

apetrecho tem serventia. Esse ser essencial do apetrecho, anterior à

serventia, mais original do que ela, só é percebido na obra de arte. A obra de

arte transporta o homem do lugar habitual para o que se tornou estranho

devido ao esquecimento da essência e o coloca diante da verdade do ente.

A arte é o pôr-se em obra da verdade. Se o que é verdadeiro é o que é

real, trata-se de procurar o real na obra de arte. Para isso é preciso que à

obra seja permitido repousar em si mesma, o próprio artista deve anular-se

na criação e ser apenas um acesso à obra. A obra deve revelar mundo, mas

esse espaço essencial é destruído se a obra é transferida para um museu,

biblioteca ou pinacoteca. Todavia, a obra abre seu próprio campo e só em tal

abertura o ser obra da obra advém.

A questão que se impõe é tornar visível o acontecimento da verdade em

vista da obra. Entende-se mundo como a ‘amplitude de relações abertas’

para o ‘povo histórico’ ao qual a obra pertence. É a partir dessa amplitude

que esse povo histórico “é devolvido a si próprio para o cumprimento da

vocação a que se destina”.48

A obra faz com que tudo o que existe à sua volta apareça como aquilo

que é essencialmente: “A imperturbabilidade da obra [um templo grego]

contrasta com a ondulação das vagas do mar e faz aparecer, a partir da

47 Ibid. p.26-27. Confiabilidade, na tradução de Castro e Azevedo. 48 Heidegger, A origem da obra de arte, op. cit. Tradução de Castro e Azevedo: “A amplitude reinante destas referências abertas é o mundo deste povo histórico. Somente a partir dela e nela é que ele retorna a si mesmo para consumar sua vocação”, p.26.

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quietude que é a sua como ele está bravo”.49 Este vir à luz é a phisys: “o que

abre a clareira daquilo e sobre o qual e no qual o homem funda seu

habitar”.50 O homem funda seu habitar na terra. A obra abre um mundo, no

sentido de espaço de abertura de relações e devolve-o para a terra no sentido

de reunião de tudo o que se ergue, e só assim a terra “vem à luz como solo

pátrio”.51

A obra de arte abre mundo e se retira para a terra. A terra é o que se

fecha em si, transforma toda tentativa de análise e cálculo em destruição; ela

aparece como a que se mantém fechada. Assim também a obra esfacela-se

diante de análises, rótulos e ‘-ismos’. Ela está em harmonia com a terra

como coisa. A coisa mesma não se deixa apanhar ou apreender como

conceito. Ela resiste sempre e se retrai. O homem habita na e sobre a terra,

a obra repousa sobre a terra e a faz ressair. É nesse sentido que a obra abre

mundo e pro-duz terra. Ela traz a terra ao aberto na medida em que se retira

na terra. Heidegger considera que a instituição de um mundo e a produção

da terra são os dois traços essenciais do ser-obra da obra. Esses dois traços

são os pilares do acontecer da verdade. A obra acontece, mas repousa em si

mesma porque este repousar não exclui o movimento, ao contrário, é o que

recolhe o movimento e contém, por isso mesmo a ‘suprema mobilidade’.

Se mundo é abertura e terra é fechamento, há uma disputa entre

mundo e terra. Trata-se da disputa essencial que, em vez de promover a

derrota de um dos combatentes, faz com que ambos afirmem-se como o que

49 Tradução de Castro e Azevedo: “o inabalável da obra contrasta com a vaga da maré e deixa, a partir de seu repouso, aparecer a fúria do mar”, p.26. 50 “Ela [a physis] clareia ao mesmo tempo aquilo sobre o que e em que o homem funda seu morar”. p.26. 51 Tradução de Castro e Azevedo: “a Terra vige como a que abriga”. p.26.

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são essencialmente. A obra instiga essa disputa ao abrir mundo e produzir

terra. É nesse sentido que a obra é o que deixa que a terra seja terra. Na

intimidade da disputa recolhe-se a mobilidade da obra. É nesta intimidade

que a obra pode repousar em si mesma e ser essencialmente. A obra é o

próprio travar da disputa na medida em que promove a desocultação do

ente.

A compreensão do acontecimento da verdade como arte e a existência

em geral da arte depende da compreensão:

a. da verdade como desocultação;

b. da ocultação como parte da desocultação;

c. da dupla essência da verdade / não verdade.

Quando ocorre a classificação, medida e nomenclatura, toca-se já na

questão da técnica. O que era para ser meio para a construção de mundo,

converteu-se em fim, e, atualmente, vige o domínio da técnica. Chega-se

mesmo a considerar esse fato como a grande vantagem da modernidade,

enquanto que o homem, cada vez mais, encontra-se perdido e conhece a si

próprio cada vez menos. O excesso de técnica confere aparente poder ao

homem e isso o torna aparentemente feliz, mas, obcecado por controlar a

técnica, perde a dimensão de seu próprio ser. Heidegger conduz o leitor ao

sentido grego original da palavra τέХνη (techné): um modo de apreensão do

que se apresenta enquanto tal, em outros termos, a própria essência do

saber, a desocultação e produção do ente. Antônio Jardim observa que,

etimologicamente, produção deriva do latim pro-ducere. Pro significa diante,

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em frente de, para a frente de. E ducere, levar, conduzir, trazer.52 Tem-se,

desta forma que, produzir é trazer para frente, revelar o que antes estava

velado, desvelamento, alétheia. No entanto, esse significado que aproxima a

técnica da poiesis foi esquecido com a conversão da técnica em fim em si

mesmo, com o primado da razão e com a concepção de verdade como

orthotes. O desencobrimento da técnica moderna ocorre de forma diferente

daquilo que se passa com a alétheia. A técnica moderna desencobre à

medida que explora a natureza, beneficia e armazena a energia por ela

fornecida. O homem realiza este desencobrimento abrindo e expondo a

natureza à sua disposição. Tal disposição garante o controle das forças da

natureza pelo homem. O homem, por sua vez, realiza a exploração que

desencobre o real como disponibilidade, mas não tem o poder de desencobri-

lo em sua simultânea revelação e retraimento. Quando o apelo do ser atinge

o homem, ele se sente impelido para a manifestação do real, mas não é o

homem que provoca essa manifestação. Ele passa a perceber o real antes

despercebido porque escutou o apelo do ser. Quando o homem realiza a

técnica como desencobrimento da disposição da natureza, é porque se sentiu

desafiado para a exploração. O que se esquece nessa relação entre o homem,

a natureza e a técnica, é que o primeiro pensa que pode simplesmente tomar

a natureza como objeto de sua exploração e adquire aparente poder agindo

assim, mas ele também pertence à disponibilidade.

Esse apelo que incita o homem a explorar a natureza e a dispor dela é,

segundo Heidegger, a essência da técnica moderna. Mas essa força que rege

52 Cf. Antônio J. Jardim. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

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a técnica não é produção no sentido de desencobrimento, alétheia. Desse

modo, a essência da técnica acaba por encobrir-se. Ao se retirar o véu dessa

essência, pela originalidade, tanto do pensamento, quanto da criação

poética, percebe-se que tal essência acaba por conduzir o homem ao real, à

disponibilidade para a abertura do ser: a técnica já não é uma fatalidade,

diante da qual resta apenas a resignação humana. Não é mais preciso

entregar-se cegamente a ela, nem negá-la veementemente. Com o primado

da razão no contexto ocidental o homem tende a favorecer apenas o que

pode ser explorado, controlado, calculado e medido. Essas medidas tornam-

se o parâmetro, a norma, o correto e verdadeiro, que se opõem ao incorreto e

ao falso. É nesta passagem que o homem fecha seus olhos para o

desencobrimento e se perde no caminho da revelação de seu ser. É assim

que o real perde uma de suas mais fortes constituintes: a ‘possibilidade’,

como bem observa Antônio Jardim.

O imbricamento do verdadeiro com o correto, acontece desde que a

tradição ocidental passou a considerar verdade como exatidão (orthotes). A

verdade perdeu seu pólo oposto, a não-verdade, que é seu duplo – desfez-se

a unidade dual de que se compõe a verdade. Deixou-se de perceber a não

verdade como a parte encoberta, oculta da verdade: o mistério. Entretanto,

se na essência da técnica reside a interpretação equivocada do

desencobrimento, é nessa própria essência que se encontra a possibilidade

da visão plena desse desencobrimento. O homem se encanta tanto com a

técnica que se cega diante daquilo que nela está em vigor, a saber, o fato de

que a técnica é o que “concede ao homem que ele continue a ser o

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encarecido pela verificação da essência da verdade”.53 A técnica como

produção, no sentido de trazer para a luz o que antes estava nas trevas, de

tornar presente o que antes estava oculto, não pode nem deve ser dominada

pelo homem para que ele venha a ser o senhor da terra, mas sim,

compreendida por ele como possibilidade – compreender em vez de dominar:

deve-se extinguir a relação homem-sujeito / técnica-objeto para que se

estabeleça uma relação em que o homem seja o agraciado e a técnica a

agraciadora da possibilidade para o desocultamento, de forma que o desejo

de domínio e exploração converta-se em vontade de compreensão e de

verdadeiro alcance daquilo para o que apela o ser.

A proximidade entre técnica e arte pode ser percebida pelo fato de os

gregos antigos usarem a palavra τέХνη tanto para uma como para outra

coisa. Tanto a arte quanto a techné faziam parte do movimento de des-

ocultação, preservando assim a verdade. A partir do momento em que

verdade passou a ser exatidão, as coisas, e também as idéias, passaram a só

fazer sentido à medida que servem a um propósito imediato. Por isso uma

outra razão para o fato de a ciência ter sido valorizada em detrimento da arte

é que esta última não tem essa serventia imediata, além de sempre fugir das

tentativas de rotulação. Na verdade, a arte não se revela aos rótulos, revela-

se apenas a quem se propõe a escutá-la na realização do círculo

hermenêutico.

53 HEIDEGGER, M. A questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, Vozes. 2000, p.35.

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A obra, como algo que foi criado pelo artista, é produzida,

manufaturada por uma techné (τέХνη). O sentido original da palavra, porém,

não significa técnica, tal como interpretada atualmente, mas, sim:

muito mais um modo de saber. Saber quer dizer: ter visto, no sentido lato de ver que indica: apreender o que está presente enquanto tal. A essência do saber repousa, para o pensar grego, na άλήθεια, a saber, na desocultação (Entbergung) do ente. (HEIDEGGER, 1977, p.47)

A atividade do artista é a produção do ente, e não manufatura, o

artista não é o artesão, mas o produtor do ente. Ora, a verdade, como

combate original carrega a tensão entre ente e ser. Ela institui-se no ente

para acontecer historicamente. É como instituição histórica que a essência

da verdade tende para a obra.

Segundo Heidegger, a obra, ao revelar o ente, faz com que a verdade se

torne ente no meio dos entes. Esclarece-se, nesta passagem, a diferença

entre produção do apetrecho/manufatura e criação da obra/techné: o

apetrecho é produzido em função da serventia. A obra é criada em vista da

própria coisa criada justamente porque a razão de ser da obra é revelar a

coisa como coisa. A obra desoculta o ente, produz mundo e institui terra. Ela

desautomatiza as ações humanas, propõe um ângulo de visão original, o que

modifica as relações do homem com mundo e terra e altera os critérios para

a tomada de medida. Agindo assim, a obra faz com que o homem se converta

em intérprete e ele deixa que a obra seja obra, o que significa realizar a

salvaguarda. “Só para a salvaguarda é que a obra se dá no seu ser-criada

como efetivamente real, a saber, agora presente no seu caráter-de-obra”.54

54 HEIDEGGER, A origem da obra de arte, op. cit., p.53.

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É nesse sentido que se entende a interpretação da obra de arte:

interpretar é devolver a obra ao seu lugar, é deixá-la ser, é reconhecer o ente

que ali se revela como o real construído poeticamente, como physis, como

alétheia. Para tanto é preciso saber olhar para a obra como coisa. Tanto os

criadores como os que salvaguardam a obra pertencem ao ser criado da

obra. Por isso a obra é real, e não ornamento da realidade. É origem porque:

A arte é então a salvaguarda criadora da verdade na obra. A arte é, pois, um devir e um acontecer da verdade. (...) Toda a arte, enquanto deixar-acontecer da adveniência da verdade do ente como tal é, na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o pôr em obra da verdade. (HEIDEGGER. 1977, p.57-58)

A verdade poética guarda profunda relação com a história porque se

projeta na obra para a salvaguarda de uma humanidade histórica. A

instauração dessa verdade poética produz um choque que faz com que a

história, como o despertar de um povo para seu habitar poético na terra,

recomece. A relação entre verdade e obra de arte é um círculo que nunca

cessa de girar e constrói, dessa forma, o real. Conclui-se com Ronaldes de

Melo e Souza:

No sério jogo da verdade da poesia, a que corresponde o magistério da poesia da verdade (alethopoíeisis), a obra de arte é a memória concriadora da patência simultaneamente desveladora e veladora da latência ontológica, e não a mera imitação da multiplicidade dos entes circunstantes nem a repetição fidedigna de um ente paradigmaticamente concentrado em sua unicidade absoluta. (SOUZA, 2001, p.22)

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3 LINGUAGEM POÉTICA E MITO

A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade.

Segundo o aristotelismo, a arte é a imitação da natureza. O conceito

aristotélico de arte como mimesis da realidade conduziu a crítica literária

tradicional a pensar em arte como cópia. Sendo a arte a imitação da

natureza, a natureza é o modelo que a arte procura copiar. Eudoro de Sousa,

nos comentários à sua tradução da Poética, explica que a ‘ação a imitar’ e a

‘ação imitativa’ são designadas por apenas um vocábulo no texto grego,

traduzidas, na primeira acepção como ‘mito’ e, na segunda, como ‘fábula’.55

O mito seria a matéria prima que o poeta transformaria em fábula (trágica),

observando as leis da verossimilhança e necessidade. É nesse sentido que

Eudoro de Sousa chama a atenção para a ambigüidade da palavra ‘mito’ ao

ser interpretada a definição aristotélica da tragédia como imitação de ação.

55 Cf. SOUSA, Eudoro. Mitologia: mistério e surgimento de mundo. Brasília: Universidade de Brasília, s/d.

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Observa ainda que há uma outra ambigüidade no original grego da Poética: a

da própria palavra imitação, que tanto em português como em grego podem

causar o mesmo equívoco. A ação imitada pela tragédia não é a fábula

trágica, mas sim o mito tradicional. Ao contrário, a fábula trágica é o

resultado da atividade poética sobre o mito tradicional. Segundo o autor, a

imitação é, justamente, esse resultado. Há ainda um terceiro equívoco: o da

tradução da palavra natureza pelos vocábulos naturans e naturata. Segundo

Sousa, somente o primeiro corresponde à physis (φύσις):

(...) que designa em primeiro lugar, o oculto princípio, tanto da geração e corrupção de todos os seres naturais, e, em segundo lugar, a própria realidade enquanto se realiza”, mas de um modo que não é o do costume (συνήυεια) nem o da arte (τέχνη). Só refletido especulativamente na “Física”, o eventual consuetudinário e artificioso parecerá conforme as leis da necessidade e da verossimilhança. (SOUZA, s/d, p.90)

Percebe-se a relação dessa reflexão com o fragmento de Heráclito:

“physis kriptestai philei”: a physis bem quer ocultar-se. A physis, como

princípio oculto, tanto da geração como corrupção dos seres, e também ‘da

própria realidade enquanto se realiza’ não é só manifestação, presença, mas

também ocultação – ausência dos seres. É na physis que tem início o jogo

entre verdade e não verdade, que colhido pelo logos se torna também

característico da linguagem poética.

Emanuel Carneiro Leão, ao interpretar, vocábulo por vocábulo, uma

passagem fundamental do livro da Física de Aristóteles lança luz sobre a

relação entre physis (natureza) e techné (arte). Diz a passagem:

De modo geral, a arte, por um lado consuma o que a natureza não pode pôr em obra, por outro, imita o que a natureza produz. (Holós epitelei physis epergadzomai mimetai techné) (LEÃO, 2005)

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Em sintonia com Eudoro de Sousa, Leão verte a passagem: “Provindo

da realidade, a arte consuma, no sentido de levar à plenitude, o que a

natureza não é capaz de pôr em obra e imita o que ela é capaz de operar”.56

O autor adverte que “imitar a natureza não quer dizer copiá-la, mas

sim deixar que novos processos de realização natural se apossem de nós”.57

Esclarece ainda que “para Aristóteles, toda criação da arte é sempre criação

da realidade, nos percalços da realização da natureza”.58 Deixar que novos

processos de realização se apossem de nós é escutar a physis, colocar-se à

sua disposição.

Tais esclarecimentos modificam radicalmente a compreensão da teoria

aristotélica da arte com relação aos moldes tradicionais. De acordo com a

proposta hermenêutica neste trabalho, entende-se que a arte não é mimesis,

pois não é reflexo nem produto de nenhuma teoria, ao contrário, é a

manifestação do real enquanto physis e ser como alétheia. A arte recolhe a

physis enquanto linguagem (logos). Como a Poética focaliza o fazer poético,

não pode conceber regras ou leis anteriores à obra autenticamente artística.

O autor escuta o apelo do logos e cria a partir da poiesis, de forma tal que as

regras ou leis que regem determinada obra surgem da e pela criação da obra.

O artista não cria a regra, ele a recebe do logos. Concluída, a obra revela que

somente aquela lei caberia a ela e que só aquela era sua lei. É neste círculo

que a obra produz verdade a partir da não-verdade. Conforme o fragmento

123 de Heráclito: ‘A physis ama velar-se’.

56 LEÃO, Emanuel Carneiro. As questões da arte em Aristóteles. org. Castro, Manuel A. In: Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 10. 57 Ibid. 58 LEÃO, Emanuel Carneiro, As questões da arte, op. cit., p.10.

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Na linguagem literária, tal apelo se mostra nas imagens das quais

surgem as questões tratadas na obra. O saber é dado pela linguagem poética

que, por ser originária, é a base de uma experiência do sagrado. A Teogonia

de Hesíodo e o estudo que dela realiza Jaa Torrano iluminam a compreensão

da relação entre linguagem poética e mito. Como manifestação, a linguagem

poética tem o poder de instaurar um mundo que não existia anteriormente.

É nesse sentido que o poder mágico da palavra na época arcaica encontra

eco na poesia atual.

Em épocas remotas, anteriores à escrita, acreditava-se que a palavra,

uma vez pronunciada, tinha o poder de trazer consigo a coisa nomeada.

Dessa forma, Jaa Torrano fala do poder simultaneamente ontopoético e

ontofânico da palavra, pois é um poder que “faz o mundo e o tempo recuarem

à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida

com que vieram à luz pela primeira vez”.59 Na Teogonia de Hesíodo,

o mundo, os seres e os Deuses (...) e a vida aos homens surgem no canto das Musas do Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e a vida aos homens. (TORRANO, 2003, p.20).

Atualmente o caráter sagrado da palavra permanece quando ela é

símbolo, e não signo. O símbolo não representa, mas, sim, significa aquilo

que é. Dessa forma, linguagem e ser não se separam, são imanentemente

recíprocos, pois ser é aparição, manifestação, o que se dá através das Musas,

filhas da Memória, detentoras da linguagem. As Musas doam a linguagem ao

59 TORRANO, Jaa. In: Hesíodo. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2003. p.19-20.

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homem, que dessa forma, se manifesta como tal, o que implica dizer que o

ser só é na linguagem.

Na Teogonia a primeira palavra que se pronuncia é ‘Musas’: ‘Pelas

Musas heliconíades comecemos a cantar’. O canto do poeta se presentifica

como tal e adquire forças para presentificar também os seres e os âmbitos

em que são. As Musas realizam a dança circular em volta da fonte para

garantir a perenidade do fluxo da fonte. O poeta realiza a escuta do sagrado

para que o mito sempre lhe seja doado como logos: o que permite a doação é

o constante exercício da escuta. As Musas habitam poeticamente o monte

Hélicon para que seja mantido na sacralidade. O poeta ensina o habitar

poético aos homens e assim garante a união da quadratura céu – terra –

mortais – imortais. O canto das Musas dentro da noite:

traz consigo os Deuses senhores de cada fase cósmica, a ordem cósmica que estes Deuses determinam e em si mesmos são, e traz ainda consigo a própria noite circundante dentro de que as Musas surgem como belíssima voz e fazer surgir múltiplo o cosmo divino. (TORRANO, 2003, p.23)

Como potências ontofânicas elas passam para o âmbito da potência

do não-ser e da privação, que é a Noite. Além disso, trazem a força originária

na Negação para o âmbito do ser, da doação, da claridade, que é o Dia. Elas

se manifestam como esplendor e diacosmese, fundamentados no antinômico

reino da Noite. Essa tensão está presente não só na Teogonia, como também

em todo o Mito e religião gregos.

Também na obra de arte essa tensão se faz presente: a tensão entre

Dia e Noite é a mesma presente entre Ser e Não-ser, que em linguagem

literária se traduz em tensão entre fala e silêncio. A fala nasce do silêncio

arrancado de seu velamento, da esfera do não-ser. A tensão harmônica de

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contrários, presente nos gêneros, que serão estudados no presente trabalho,

a saber, tragédia e romance dramático é tributária do Mito, assim como o é a

linguagem poética.

A ambigüidade da linguagem poética nasce da ambigüidade do Mito: o

poder das Musas de trazer os seres à luz da presença é o mesmo que elas

têm de levá-los à escuridão da ausência, ao encobrimento, à ocultação. No

capítulo anterior ressaltou-se que a verdade poética é alétheia – o que se

desencobriu porque deixou para trás o encobrimento, simultaneamente

encobrindo-se. Da mesma maneira ocorrem as revelações das Musas ao aedo

(poeta cantor) – elas retiram seres e fatos da esfera obscura da Noite e os

apresentam à claridade do Dia. É Memória, mãe das Musas, que recolhe o

que será revelado e doa a colheita à ‘força da belíssima voz, que são as

Musas’60. Entretanto, as Musas também foram presenteadas com o poder do

esquecimento.

O poeta recebe das Musas e de Apolo o cetro de loureiro viçoso,

símbolo da autoridade de guardião da palavra (sagrada) que tem o poder de

ação. É nesse sentido que Heidegger afirma que o poeta nomeia o sagrado. A

palavra do poeta, a linguagem poética, torna-se manifestação do Ser.

A relação entre linguagem e ser é a mesma existente entre o ‘Canto das

Musas’ (palavra) e a aparição do que se canta (Ser). Trata-se, sempre, da

relação entre alétheia (revelação) e lesmosyne (esquecimento). Jaa Torrano

chama atenção para o fato de que: “a rigor, não há na Teogonia uma relação

entre linguagem e ser, mas uma imanência recíproca entre eles” e explica:

60 Realce nosso.

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Ora, ser é dar-se como presença, como aparição (alethéa), e a aparição se dá, sobretudo, através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória. O ser-aparição, portanto, dá-se através da linguagem, ou seja: por força da linguagem e na linguagem. O ser aparição é o desempenho (= a função) das Musas. E o desempenho das Musas é ser-aparição – e também o simulacro, as mentiras (v.27). É na linguagem que impera a aparição (alethéa) – também o esquecimento (lesmosyne v. 55). O ser se dá na linguagem porque a linguagem é numinosamente a força-de-nomear. E a força-de-nomear repousa sempre no ser, isto é, tem sempre força de ser e de dar ser. (TORRANO, 2003, p.29)

Por sua força numinosa, a linguagem é a experiência do sagrado por

excelência. As palavras presentificam os seres e as coisas, elas revelam

mundo. A relação entre linguagem e ser equivale à relação entre linguagem e

poder: o poder de apresentar o mundo, de ordená-lo e de decidir “quais

possibilidades nele se oferecerão em cada caso ao homem”.61 O pai das

Musas é Zeus, o detentor do poder máximo no Olimpo. A mãe, Memória, tem

o poder de trazer os fatos à luz, à revelação, ou de guardá-los no

esquecimento, na ocultação. Torrano mostra a paridade existente entre reis

(basileus) e poetas-cantores (aedos) patrocinados por Memória:

1. ambos são guardiães das palavras e têm por função o uso eficiente

delas;

2. para a guarda desta palavra, ambos se prepararam, desde muito

jovens, com assistência das Musas. O uso da palavra é uma

qualificação que ‘os distingue dos demais’;

3. a base da autoridade de ambos é a sedução e o fascínio que

exercem através da palavra;

4. não só a comunidade como também a ordem do mundo são

influenciadas pelo uso que ambos fazem da palavra;

61 TORRANO, Teogonia, op. cit., p.38.

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5. ambos são alunos e protegidos das Musas.

O poeta cantor é, no reino dos mortais, o servo das Musas: sua tarefa é

a guarda do Ser. O rei, aluno de Zeus, é o mantenedor da ordem cósmica.

Todos os dois são patrocinados por Belavoz (kalíope), cujo nome indica poder

sob ‘as fontes do Ser e da Vida e pertinência às dimensões do mundo e ao

sentido e totalidade da Vida’.62

A relação entre tempo e linguagem poética também tem sua origem no

mito do nascimento das Musas. Elas são bisnetas da Terra, a divindade

originária, ‘sede inabalável de todos os seres’. As Musas desvelam o ser, mas

duas gerações as separam de Terra. Segundo Torrano, devido a essa

ascendência e à circularidade do tempo, as Musas se tornam a divindade

primordial ‘por serem os Nomes Numes presentificadores do ser aparição’. As

Musas retiram os seres e os fatos do não-ser para o ser. A distância temporal

existente entre a Terra e as Musas indica a circularidade do tempo nesta

reciprocidade de linguagem e ser.

Entre a Terra e as Musas está Memória, que tem o poder de

presentificar o passado. É neste ponto que a questão do tempo está

intimamente ligada à questão da linguagem e do Ser. Na linguagem poética,

o tempo nunca é entendido como instâncias separadas entre passado,

presente e futuro; ao contrário, é dinâmico e circular, como uma ciranda. É

preciso lembrar que os gregos antigos tinham três palavras para designar o

tempo: kairos, momento decisivo no tempo em que algo significativo

acontece; aion, o tempo de fixação da eternidade no tempo dos homens, e

62 Cf. Torrano. Realce nosso.

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kronos, o tempo cronológico. Segundo Manuel Antônio de Castro, essas três

denominações estão ligadas à concepção grega de movimento, em grego,

kinesis, que equivale a mudança ou variação. São quatro tipos de

movimento:

1. movimento local, a mudança de lugar;

2. movimento quantitativo, o aumento e a diminuição (auksesis kai

ftsis);

3. movimento qualitativo ou alteração (alloiosis);

4. movimento substancial, a geração e corrupção dos seres.63

A tradição ocidental forjou outras formas de tempo, como os do

Cristianismo, na Idade Média, os tempos cronológico, psicológico e

ontológico da Idade Moderna. Porém, de acordo com o pensar poético

proposto neste estudo, e segundo Castro, tal divisão é artificial, justamente

por causa da idéia de tempo como ciranda. E o eixo que o faz circular é a

memória, que presentifica o passado e faz a experiência presente modificar a

interpretação que se tem do passado. Neste ponto tem início a relação entre

vida, experiência e linguagem, que em grego é denominado pela palavra

dzoé, que significa vida implicada com as idéias de experiência e linguagem.

Entretanto, na atualidade, a técnica tem acelerado o tempo, possibilitando

vivências em número muito maior do que era suposto há apenas algumas

décadas atrás. A aceleração, embora possibilite vivências, impede a

metábole, que acontece no tempo de processamento das vivências. O homem

não tem tempo de transformar as vivências em aprendizagem. O tempo da

63 CASTRO, Manuel A. Paidéia Poética e Metafísica. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/

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experiência é o tempo da metábole, do movimento como substância. É nesta

passagem que o tempo da arte penetra. Este é o tempo das experiências e

experiência não é o mesmo que vivência. Experiência é o que leva à

aprendizagem, que, por sua vez, não é o mesmo que aprendizado: este se dá

no momento da escuta da linguagem como logos, o que encerra a

possibilidade de ser como diálogo. Castro chama atenção para o fato de que

arte é manifestação de mundo, portanto, os tempos atuais são impróprios

para a arte.

Manifestação de mundo implica a idéia de tempo como kairos, que em

arte se dá como acontecer poético. O kronos, a que se habitou a tradição

filosófica e histórica ocidental, não é capaz de abranger esse tempo de

eclosão artística.

Para os tempos atuais, o grande problema que se impõe é o da técnica,

que a tudo e a todos acelera e, justamente por isso, encanta o homem.

Castro comenta que, “a técnica faz parte da arte, mas não pode interferir nas

experiências, porque a experiência tem fundo ético-poético-ontológico”.64 A

experiência não necessita da técnica no sentido de saber produzir. Além

disso, situa-se além das instâncias temporais estanques, passado, presente

e futuro. Experiência relaciona-se com o pathos, o sofrer que promove

alteração completa no modo de SER do homem. Após a experiência, adquire-

se nova visão de mundo, revelam-se novas possibilidades ao SER e o tempo

surge como “experienciação do que se é”.65

64 CASTRO, Manuel A. Método e ação. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/ 65 Ibid.

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Para Heidegger, a linguagem é a casa do ser. O homem só se realiza

enquanto tal pela linguagem, de modo que esta possui aquele. Mas o que

ocorre no cotidiano é que o homem procura inverter essa relação e passa a

usar a linguagem, em vez de deixar-se manifestar por ela. Desta forma, o

significado original de cada palavra é encoberto, e toda sua poesia se perde.

É a linguagem poética que liberta a palavra de seus automatismos e faz

aparecer sua originalidade. Estabelece-se, nesta perspectiva, a relação entre

mito e linguagem: o mito concebido como origem só pode ser narrado em

uma linguagem também original, de forma que a narrativa mítica não é

apenas representação do mito, mas se torna real, pois reúne sentidos - o

mito funda mundo, assim como a obra de arte. O mito é a origem de todas

as coisas e se renova como linguagem. Embora temas como mito e poesia

pareçam não ter lugar no atual contexto da tecnologia e do capital, o

homem, que tão poderoso se concebe devido às inovações tecnológicas, não

consegue mais se entrever no espelho, tal como a personagem de Guimarães

Rosa, que perdeu a visão do próprio rosto original, encoberto que estava pela

aparência.66 O excesso de técnica encobre a essência humana e a poesia é o

que pode, e possibilita, revelá-la. Isso ocorre justamente porque essa

linguagem não pode ser dominada pela técnica. O homem não pode dominar

a poesia. Não se trata de dominantes e dominados nessa contenda, mas se o

homem habitar a linguagem – e para que esse habitar se realize plenamente

só será possível se for pensado em linguagem poética – deve saber calar,

saber escutar e, assim, ser falado pela poesia.

66 ROSA, João Guimarães. O espelho. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.65-72.

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68

A chamada crise da atualidade é acompanhada por uma crise na

linguagem e na própria comunicação. É paradoxal, mas sintomático, que a

tecnologia tenha facilitado a comunicação, muito embora as pessoas se

sintam cada vez mais sós. O homem abandonou sua essência – a linguagem

– e não consegue entrar em contato nem com seus pares nem consigo

mesmo.

A grande questão que se nos apresenta, decorrente dessas reflexões, é

a relação entre homem e mundo. Eudoro de Sousa diferencia mito de mítico,

sendo o último o impulso que cria o primeiro. Para o autor, o mítico é

‘cosmofania teocríptica’, os deuses morrem (ocultam-se) para que o mundo

se manifeste, e os deuses só se podem manifestar como ocultos. Segundo o

autor, o homem é “o animal que se recusa a aceitar o que gratuitamente lhe

deram e gratuitamente lhe dão”.67 O homem recusa o mundo que lhe foi

dado pelos deuses porque sente que não é seu. Os deuses devem-se retrair

para que o homem construa seu próprio mundo. Entretanto, o homem

necessita relacionar-se com o sagrado – essa é a sua medida – por isso esses

dois mundos permanecem entrelaçados – aquele doado pelos deuses e o que

é o dos homens. Mas o que promove esse entrelaçamento? A linguagem

poética, que, por sua vez, só se manifesta no homem que realiza a escuta e

que se permite viver a experiência do sagrado. Em literatura, tal experiência

se traduz na tensão entre fala e silêncio que os grandes escritores articulam

em suas obras. O enredo torna-se possibilidade para reflexão maior: a da

consciência do processo criativo, a da nomeação do sagrado e a da

67 SOUSA, Eudoro. Mitologia: mistério e surgimento de mundo, op. cit., p.09.

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estranheza humana. Essa consciência de forma alguma aborta a

inventividade, pois aqui a técnica está em consonância com o fazer, ambos

se realizam simultaneamente, não há prevalência de uma sobre o outro.

Para Ronaldes de Melo e Souza:

O círculo dionisíaco do duplo domínio da vida e da morte traz necessariamente o viço vitalizante e o vício mortalizante, o vitium, o anel das vicissitudes do destino. Deus não aparece divinamente senão ocultando-se. O viver do mundo é o morrer do deus. O repto vital, já de si, é o rapto mortal. E não se trata de uma verdade que transcende o universo habitual da experiência humana. Pelo contrário, esta verdade constitui a facticidade da existência em geral e se traduz no paradoxo preciso e conciso de que a vida morre, amadurece a morte dentro de si mesma. Compreende-se, portanto, o motivo por que Dioniso é o deus da tragédia grega. Ele é o deus da máscara (SOUZA, 1997, p.11-12)

A máscara revela a tensão entre aparência e essência, que é a mesma

tensão entre vida e morte. A tragédia grega traz essa tensão quando destrói o

mundo do herói trágico. Aquele mundo que o herói pensava ser seu

(aparência) já não é, e a personagem defronta-se com o mundo desconhecido

(essência).

Na literatura brasileira, Autran Dourado é um dos exemplos mais

marcantes de autores de narrativas cosmogônicas. Sua obra se insere na

vertente dramática do romance, que incorpora elementos do drama ático.

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4 O TRÁGICO COMO TENSÃO ENTRE LIMITE E NÃO LIMITE

Há muitas maravilhas, mas nenhuma É tão maravilhosa quanto o homem.

(...) Somente contra a morte clamará

Em vão por socorro, embora saiba Fugir até de males intratáveis

Sófocles

Tanto a tragédia grega como a comédia tem origem nos ditirambos.

Posteriormente, cada um dos gêneros tomou aspectos específicos e se

separaram. A natureza comum de tragédia e comédia auxilia a compreensão

da idéia de ironia trágica, a que se fará referência ao longo deste capítulo.

O gênero trágico caracteriza-se, entre outros aspectos, por colocar em

crise todos os valores consagrados e transgredir as leis existentes. O homem

trágico é aquele que abre todos os caminhos e deflagra o nada, não é uma

criatura, mas criador, inclusive de seu próprio destino. Édipo, por exemplo,

encaminha-se ao oráculo, que lhe diz que seu destino será matar o próprio

pai e se casar com sua mãe. Ironicamente, é na tentativa de fugir desse

destino que a personagem o deflagra. Manuel Antônio de Castro observa:

(...) E ele [Édipo] se autoproclamou o mais inteligente dos homens. Grande na luz da sua grandeza, grande na escuridão de sua desgraça: Édipo simboliza a insuficiência radical do homem diante do ser, e por isso ele é grande. Para marcar indelevelmente a insuficiência do homem, ele arranca os olhos. Significa: anula, renega a capacidade de ver a luz, isto é, conhecer a verdade, para que da coragem da negação Édipo surja na dimensão do ser, quando no conviver com a escuridão é mais. (CASTRO, 1982, p.24)

O homem é insuficiente diante do ser porque é limitado (ente) e o ser é

o não-limite. O reconhecimento desse limite provoca o arrancar os olhos. Da

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convivência com escuridão nasce a sabedoria trágica que não vigorava na

luz. Ironicamente, a cegueira iguala Édipo a Tirésias, o sábio que era sempre

ridicularizado, porque incompreendido, pelo filho de Jocasta e Laio. Ainda

segundo Castro:

Este [Tirésias] em sua “cegueira” é a presença visível do conhecimento do divino. E Édipo reconhecerá, tragicamente, que o homem não é a resposta do Enigma. A verdade é mais que as duas irmãs: a claridade e a escuridão. (CASTRO, 1982, p. 30)

A verdade é a tensão harmônica entre as duas irmãs.

A partir da caminhada de Édipo inicia-se a tensão fundamental da

peça: saber/não saber. É esse poder comunicar-se com o abismo do nada

que o torna trágico e dialetizador de tudo aquilo que se pensava até então.

A destruição de valores que as personagens tinham como certos é

característica da ironia trágica, recurso utilizado pelos poetas trágicos para

intensificar e demonstrar a crise de todas as leis. É na pretensão da verdade

absoluta pelas personagens que se encontra a ironia. Na Antígona, de

Sófocles, o combate entre as leis do Estado (certeza de Creonte) e as leis não

escritas (certeza de Antígona) mostra que a sabedoria está na aprendizagem

da tensão harmônica dos contrários, e não na opção por apenas um dos

pólos.

4.1 Antígona

A peça teatral Antígona, de Sófocles 68, é referência neste trabalho em

decorrência da ênfase que ela dá à questão do poder dos diversos discursos

68 SÓFOCLES. Antígona. Trad. Mario da Gama Kury. 2a. ed. In: A trilogia tebana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

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que nela ocorrem, a saber, o da justiça, o da lei, o do Estado e, finalmente, o

da arte.

A transgressão das leis em Antígona ocorre tanto no mundo dos

homens como no mundo dos deuses. Mortais entram em conflito tanto com

outros mortais como com imortais. Antígona entra em conflito com Creonte e

com Zeus; Creonte entra em conflito com Antígona, com Hades e com o

próprio Zeus, quando irrompe em profunda ira contra Tirésias. A figura a

seguir mostra as relações entre as personagens e as leis, e o conflito que as

perpassa:

Creonte representa as ‘leis escritas’, criadas pelos mortais para reger o

Estado. O rei julga conhecer tudo o que acontece no mundo dos deuses e

invoca Zeus, o deus supremo, para fundamentar suas leis e justificar seus

atos. Antígona é a representante das ‘leis não escritas’ dos deuses infernais,

cultua Hades e, em seu nome, despreza completamente as leis da pólis - que

proibiam o sepultamento de um traidor em solo pátrio - sem nunca se

arrepender de sua atitude, pois julga que essa é a mais alta glória. Sabe que

Leis não escritas

Antígona

Hades

Leis escritas

Creonte

Zeus

conflito

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seu castigo será a morte, mas para ela é um prêmio. De fato, ao final da

peça, sua morte é seu engrandecimento.69

Mas Zeus não foi o arauto delas para mim nem essas leis são ditadas entre os homens pela Justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje nem de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las. (vs. 511 a 523)

Nesse ponto evidencia-se também o conflito entre as leis da família e

as leis do Estado. Antígona não hesita em desrespeitar as leis da pólis para

cumprir o que, para ela, era um dever sagrado. Observe-se sua fala com

Ismena, no prólogo.70

Procede como te aprouver, de qualquer modo hei de enterrá-lo e será belo para mim morrer cumprindo esse dever: repousarei ao lado dele, amada por quem tanto amei e santo é meu delito, pois terei de amar aos mortos muito, muito tempo mais que aos vivos. Eu jazerei eternamente sob a terra E tu, se queres, foge à lei mais cara aos deuses. (vs. 80 a 86)

O conflito de Antígona com as leis escritas intensifica-se durante a

peça até culminar em sua morte, e é nesta passagem que reside um ponto-

chave para sua interpretação, pois a grande questão que apresenta é a falta

de eqüiponderância entre forças contrárias. A morte de Antígona é, sem

dúvida, sua glorificação, mas não é ressaltada sua vitória sobre Creonte,

uma vez que o ideal de harmonia grega - a tensão harmônica de contrários -

69 Grifos nossos. 70 Grifos nossos.

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não foi atingido. Se tanto Antígona quanto Creonte absolutizam seus valores,

não há vencidos nem vencedores. Na peça, há a dissolução de todas as

certezas, não se sabe quem é o homem, nem quem são os deuses ou que

poderes eles têm. A destruição de valores que eram tidos como certos é

característica da ironia trágica, recurso utilizado por Sófocles para

intensificar e demonstrar a crise de todas as leis. É na pretensão da verdade

absoluta pelas personagens que se encontra a ironia. Creonte pensa estar

certo por ser o rei e por estar ao lado de Zeus. Antígona pensa estar certa por

estar ao lado das leis não escritas, do amor familiar e de Hades, mas ambos

esquecem que não há Zeus sem Hades nem Hades sem Zeus e não realizam

a complementariedade de contrários. A propósito, Ronaldes de Melo e Souza

observa que “Para o poeta trágico a catarse não significa a superação do

conflito, mas, sim, a transformação da oposição antagônica na oposição

complementar”.71

Além da ironia trágica, há outro recurso literário que se revela de

fundamental importância para a criação do universo ficcional de Antígona e

que também está em constante diálogo com a questão do poder, a saber, a

esticomitia.

A esticomitia é usada para mostrar a eqüiponderância de forças entre

as personagens. O diálogo inicia-se com a perfeita consonância entre elas e

termina com a mais completa dissonância. Essa é a nova esticomitia de

Sófocles, em que o diálogo surge como protagonista, conforme observa

Eudoro de Sousa - o poder da palavra. Não são as ações das personagens

71 SOUZA, Ronaldes de Melo e. A tragédia grega: Hölderlin versus Aristóteles. In: Cadernos de Letras. Rio de Janeiro: UFRJ – Centro de Letras e Artes, 1997, p.12

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que importam ao drama, e sim suas palavras, de forma que a tragédia se

configura como drama de caracteres, e não de ações, como postula a teoria

aristotélica. Tais palavras não representam uma luta, mas são a própria luta

entre os poderes masculino (Creonte) e feminino (Antígona). Na esfera divina,

elas são a luta entre os poderes olímpicos e infernais. Ao longo da peça,

porém, as certezas se absolutizam, pois os discursos se radicalizam e

Antígona e Creonte se afastam da tensão harmônica de contrários, proposta

pela harmonia grega e pela arte literária.72

A ironia trágica surge sempre que o coro se ilude em relação ao que

ocorre em cena e se acentua sempre que este ‘diz a coisa certa sobre a

pessoa errada’, como, por exemplo, nas cenas em que Creonte está presente

sem dizer ou fazer nada. Para Eudoro de Sousa, a apatia do rei de Tebas

mostra que as palavras ditas pelo coro contra Antígona servem muito mais a

Creonte. Outras vezes, as palavras com que o coro se refere a Creonte cabem

a Antígona.73

4.2 Drama de Paixões

Tanto a tragédia grega como os pensadores originários, resgatados por

Heidegger, compartilham a interpretação de verdade como alétheia. Com

base, sobretudo nos estudos de Emil Staiger, Nietzsche e Hölderlin,

compreende-se a tragédia não como imitação de ação, no sentido de

seqüência de fatos, como entenderam as leituras tradicionais da Poética de

72 Cf. SOUSA, Eudoro. Mitologia: mistério e surgimento do mundo, op. cit. 73 Ibid.

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Aristóteles, mas sim, encenação do próprio drama humano. A interpretação

original de Autran Dourado, ao estabelecer o diálogo entre o romance

contemporâneo e a tragédia grega, faz com que a experiência humana seja

privilegiada como forma de conhecimento. Ressalta-se que esta abordagem

será, posteriormente, aprofundada.

4.3 Destruição de mundo

Emil Staiger examina a questão do pathos e afirma que nele “a emoção

decorre de algo que ainda não é”, mas deve vir a ser.74 A personagem trágica

pressente esse vir a ser e experimenta, segundo a concepção de Aristóteles,

as emoções eleos e phobos (aflição e terror). A purificação de tais emoções é a

katharsis. Observa-se que a experiência de eleos faz com que a personagem

trágica provoque um sofrimento muito maior do que o próprio phobos, para

que fique rapidamente livre de tais emoções. Por isso, muitas vezes o suicídio

do herói trágico é catártico. É o que ocorre com Antígona. Em Édipo Rei, a

experiência de eleos faz com que o herói vaze os olhos. N’Os Sinos da Agonia,

Januário se entrega a seus carrascos e, em Ópera dos Mortos, Rosalina não

cumpre o ritual de enterrar o pai. Staiger considera o trágico uma explosão

de mundo no sentido heideggeriano do termo: a amplitude dominante de

relações abertas. O autor relaciona as questões de mundo e estilo. O trágico

seria a destruição de tudo aquilo em que a personagem crê. Nas palavras de

Staiger, o trágico ocorre “quando se destrói a razão de uma existência

74 STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p.126.

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humana”.75 Para o autor, o ritmo do pathos, repleto de alterações bruscas,

tem por objetivo “purificar a atmosfera com pancadas rudes como as de uma

tempestade”.76 O pathos é aquela experiência que tira o homem de seu

confortável lugar, é o que abala seu mundo. Esse abalo o leva à

transgressão, pois ele deseja sair da situação desconfortável em que se

encontra e vai além dos limites estabelecidos pela pólis, ou pelo Olimpo. O

pathos é mostra de grandeza por parte do herói e por isso se fala em estilo

elevado. Mas Staiger explica que essa grandeza reside em estar adiante, uma

vez que o herói pathético percebe aquele ‘algo que ainda não é, mas deve vir

a ser’, já citado anteriormente. O herói trágico, ao buscar o não-limite, passa

por uma experiência que o diferencia dos demais. O que ainda não é

pertence à esfera do não-ser, do velado. O herói trágico é o que percebe o

velado que se vai desvelando ao longo do drama. Esse desvelamento é dado

justamente pela interpretação, sobretudo do coro. As interpretações

permanecem em tensão harmônica, e é devido a essa tensão que se pode

falar em atualidade da tragédia grega, pois, se houvesse um único ponto de

vista prevalecente, apontar-se-ia uma solução para a questão. O que se

apresenta na tragédia, entretanto, não são problemas à espera de uma

solução, mas questões que instigam interpretações.

A tensão entre limite e não limite que se revela na percepção do vir-a-

ser (não-limite) é realizada na vertente dramática do romance

contemporâneo. A incorporação de elementos trágicos altera a própria

arquitetura do romance. É nessa perspectiva que Autran Dourado insere o

75 Ibid. p.139-146 76 Cf. STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética, op.cit.

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narrador coral, que promove a interpretação das ações, bem como a

refutação da idéia de uma verdade única e absoluta, que vença as outras. Na

tragédia, se há algum vencedor é a prudência, a aprendizagem do ‘entre’.

É importante ressaltar, contudo, que esse nascimento do trágico não

decorre da seqüência de ações, mas se dá como escuta do apelo de ser. Por

mais que eleos seja desencadeado por um acontecimento, é o drama interior

da personagem que causa tal emoção. Volta-se ao exemplo de Antígona: ela

decide enterrar o irmão a despeito das leis escritas da pólis e experimenta o

terror. Essa decisão, resultado da escuta do apelo do ser, foi o que

desencadeou as ações, não o contrário. Ronaldes de Melo e Souza observou

que a tragédia grega não é representação de ações, mas interpretação. O

autor considera o gênero um ‘drama estático’.77

De fato, as ações trágicas são anunciadas, não encenadas, como o

suicídio de Antígona, o vazar dos olhos de Édipo e o assassinato de

Clitemnestra. Uma vez entendida como drama de paixões, e não como trama

de ações, a tragédia se revela como o gênero literário por excelência, pois

representa várias vozes sem que haja predominância de uma sobre a outra.

Necessário se torna esclarecer que as ações aqui devem ser entendidas como

seqüência de fatos, e não como agir poético.

77 Cf. SOUZA. Ronaldes de Melo e. Atualidade da tragédia grega. In: Filosofia e Literatura: o trágico. Org. Holzermayr Rosenfield, colaboração de Francisco Marshal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. p.115-140

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4.4 Apolo, Dioniso, o orgânico e o aórgico

Souza defende a tese segundo a qual a poesia filosófica de Hölderlin e

a filosofia poética de Nietzsche interpretam verdadeiramente o sentido do

trágico, enquanto a tradição aristotélica da tragédia obscurece tal sentido ao

considerar o drama ático como ‘representação lógica de eventos

consecutivos’ e esquece completamente sua dimensão ontológica. A partir do

Mito da Caverna de Platão e da Poética de Aristóteles “a idealidade da paidéia

filosófica se contrapõe sistematicamente à tragicidade da paidéia poética”.78

Nesta última o ser é reconhecido como finito a partir da medida como divino.

Mas não há o reconhecimento simultâneo da necessidade de o homem se

tornar infinito. A mortalidade está em tensão com a imortalidade, e é nessa

tensão que se dá o trágico. O fracasso das personagens reside no fato de elas

almejarem a imortalidade. Por isso o coro de Antígona fala que ‘não se deve

ofender os deuses em nada’. Nesse sentido, Souza entende que a tragédia

grega não é “encadeamento lógico das ações e conseqüências”, mas “a

interpretação, a exegese das ações”.79 O que importa para a tragédia não é o

fato em si e por si, nem mesmo a causa do fato, mas sim sua compreensão:

No drama ático o que se representa é a demanda do sentido do que acontece hic et nunc no palco. Numa formulação paradoxal, mas rigorosamente verdadeira, a tragédia grega é um drama sem ação, um drama estático. (SOUZA, 2001, p.119)

É na interpretação das ações, e não na seqüência de fatos que as

questões fundamentais se manifestam. O leitor que realizar tal processo se

apropriará das questões lidas e realizará a auto-interpretação.

78 SOUZA, Ronaldes de Melo e, Atualidade da tragédia grega, op. cit. p.119. 79 Ibid.

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A poesia de Hölderlin80, ao fundar a unidade do orgânico e do aórgico

(não orgânico), refuta a unidade orgânica preconizada pela tradição estética.

A poesia trágica é entendida como tensão harmônica entre caos e cosmos.

Ordem e desordem formam unidade e revelam que a ambigüidade está no

próprio homem, que se reconhece finito, mas procura incessantemente ir

além, mesmo sabendo das terríveis conseqüências que advirão dessa

procura – o que refuta o conceito aristotélico de hamartia, o erro que o

personagem comete por ignorância e que o leva à conseqüência trágica. O

homem trágico erra, não porque não foi educado filosoficamente, mas porque

trágica e conscientemente caminha para seu destino: o encontro com o

nada.

Segundo Souza:

O trágico é a suprema harmonia do ser, porque lhe pertence a dissonância como a mais profunda forma de consonância. Há antes a retração do ser, e não simplesmente a presencialização de um ente divino e supradivino. O sacrossanto velamento é mais venerando que o desvelamento. Caos inseminador dos zigotos da vida, a noite antiqüíssima da teogonia poética é o seio materno da estirpe dos olímpicos. O apolíneo requer necessariamente o dionisíaco. (SOUZA, 1997, p.9)

A ordem, o cosmos apolíneo, requer a desordem, o caos dionisíaco,

porque esta última é a condição para o estabelecimento da primeira. O

trágico é o fio que tenciona harmonicamente esses dois pólos. O ser se retrai,

e o que surge é o não-ser, a não-verdade. Mas eles despontam como

mistérios, como ocultos. E como ocultos são dignos de veneração. O poeta

trágico venera (e faz venerar) o mistério, justamente porque é a partir do

diálogo entre os deuses que se dá a ação trágica, que não é ação como

80 Cf. Hölderlin, apud SOUZA, Ronaldes M. In: Atualidade da tragédia grega, op.cit.

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normalmente se entende – a causalidade de acontecimentos – mas, sim, o

agir essencial da poiesis, como acontecimento da physis na linguagem.

Nesse sentido, a tragédia grega surge como instância literária nomeadora do

sagrado (o mistério) como “vigor daquilo que brota e permanece”.81 O que

brota, nessa escrita, é a linguagem promotora da tensão harmônica entre

limite e não-limite. O que permanece é o homem como errância: o erro como

parte constituinte da trajetória do homem por entre o labirinto da vida.

Em ‘Ópera dos Mortos’, Autran Dourado observa que esta obra deve

ser lida mais como tragédia do que como romance. Rosalina é o

emolduramento mitopoético de Antígona, a guardiã das leis não-escritas em

oposição às escritas. O coro se faz presente como narrador e interpreta o

mundo de Rosalina. As ações já aconteceram quando o romance inicia – há

um narrador que fala para o leitor, estabelecendo com ele um diálogo poético

sobre o passado de Rosalina, que é o passado da cidade, e relata as ações

ocorridas: a vida desregrada de Lucas Procópio Honório Cota, a vida regrada

de seu filho, João Capistrano Honório Cota, a construção do sobrado como

união entre pai e filho, o nascimento de Rosalina, a entrada de João

Capistrano na política, a briga com a cidade, a vida reclusa de Rosalina, a

chegada de Juca Passarinho, a gravidez de Rosalina – são todos fatos

passados – o que importa é o impacto que eles tiveram para a cidade.

N’ Os Sinos da Agonia, também há a presença do narrador coral,

inclusive com uma invocação ao sábio Tirésias e ações apenas anunciadas: o

assassinato de João Diogo Galvão, a morte de Januário e o suicídio de

81 Cf. Introdução.

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Malvina. Rosalina e Malvina são personagens que transcendem seus limites:

Rosalina não enterra seu pai e faz dele presença viva e dolorida para a

cidade, e Malvina, com sua ‘memória do futuro’, pretende planejar e

controlar tanto o seu destino como o daqueles que lhe são próximos. Na

tensão entre limite (permanente) e não-limite (mutável) se faz presente a

tensão entre verdade e não-verdade, à medida que a transgressão do limite

pode ser interpretada como transgressão da verdade estabelecida pelos

detentores do poder e também como a adveniência da não-verdade como

devir. As interpretações do coro também contribuem para a contestação de

uma verdade única e absoluta e para a construção do real.

A teoria nietzscheniana da tragédia grega como tensão entre o apolíneo

e o dionisíaco está em consonância com o pensamento poético de

Hölderlin82. Apolo, deus da ordem (cosmos), do comedimento, presença que

evoca imagens oníricas, e Dioniso, deus da desordem (caos), da desmesura,

dialogam no espaço da criação artística da tragédia grega. Justamente por

formar uma unidade entre esses dois espíritos, aparentemente tão díspares,

o drama ático é um gênero que busca incessantemente a tensão harmônica

de contrários. O processo de criação se dá na e para a busca do entre. Por

isso Sófocles fala em ‘prudência’ ao final de Antígona. A ‘desmedida empáfia

nas palavras’ e também nos atos, é a hybris, o excesso, o ir além do limite,

mesmo que o personagem se reconheça limitado. Tomado pela hybris, o

herói trágico enfrenta o divino e deseja igualar-se com ele. A hybris é a perda

da dimensão humana, mas, importa observar, a essa perda não se segue o

82 Cf. SOUZA, Ronaldes M., Atualidade da tragédia grega, op. cit.

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arrependimento, e sim, a consciência da finitude e a necessidade da

aprendizagem da prudência – do entre – o espaço onde se localiza a

dimensão dos mortais com relação aos imortais. Não se trata de mudança de

ponto de vista após o ‘castigo’ aplicado pelos deuses, mas da aprendizagem

pela experiência – o pathei mathos. A transgressão é a experiência que

possibilita ao homem a aprendizagem da medida. Retoma-se o ensaio de

Heidegger para melhor compreender esta questão: ao levantar os olhos para

os imortais o homem mede o entre céu e terra, estabelece a dimensão de seu

habitar e passa a ter noção de seu espaço. O homem só é homem nesse

medir-se com o divino. Como bem observa Heidegger, ‘o homem pode

deformar essa medida, mas não pode furtar-se a ela’. O homem tomado pela

hybris adotou uma medida deformada com relação ao divino. Após as

experiências de eleos e phobos, advindas da emoção causada pelo

pressentimento daquele ‘algo que ainda não é’ de que nos fala Staiger83,

compreende-se a deformação, aprende-se a justa medida e essencializa-se

como mortal. Nesta mortalidade está a grandeza do homem, pois “só o

homem é capaz de morte como morte”.84 Se o homem morre continuamente,

enquanto se demora sobre esta terra, enquanto habita, a morte está ligada à

capacidade de experienciação e aprendizagem, como abertura de novos

horizontes, exclusivas da raça humana.

Relacionando essas considerações com a teoria nietzscheniana do

nascimento da tragédia - tensão entre apolíneo e dionisíaco – compreende-se

porque a tragédia, ao contrário de ser coercitiva, é interpretada como hino de

83 Cf. Capítulo 4.3 – Destruição de Mundo. 84 HEIDEGGER, M. ... poeticamente o homem habita, op. cit. p.173.

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louvor à vida: a disputa entre mesura e desmesura, desordem e ordem,

cosmos e caos, faz do drama ático um gênero cosmogônico: o cosmos nasce

do caos e não pode prescindir dele. Conforme Souza:

A interação poética do vigor dionisíaco da inspiração e do rigor apolíneo da composição, que se depreende do drama trágico, também se compreende como o postulado fundamental da essencialidade da poesia e, conseqüentemente, como requisito da autenticidade vocacional e da responsabilidade profissional de todo e qualquer poeta. (SOUZA, 1997, p.10)

Nesse sentido, pode-se falar na atualidade da tragédia grega.

Escritores modernos são partidários do extremo rigor formal, aliado à

extrema inventividade. O resultado é uma obra de forte apelo ao leitor, para

que ele deixe de lado as posturas que comumente adota, a saber, a

passividade que se pretende entretenimento ou a crítica armada dos

conceitos da estética tradicional que buscam rotular a obra, enquanto

esquecem o diálogo vivo e vivificante entre obra e leitor. A obra fundada na

interação entre apolíneo e dionisíaco faz com que o leitor experiencie a

revelação do ser durante o exercício de interpretação como salvaguarda da

obra.85

Observa-se que o gênero em questão não se explica pelo conceito

aristotélico, justamente porque transcende as leis da lógica fundada pelo

estagirita e perpetuada desde então até a atualidade. A tragédia grega não é

um gênero coercitivo ou moralizante, como quiseram crer as interpretações

da tradição ocidental. Trata, inquestionavelmente, de relações de poder, mas

traz a prudência como a grande virtude que os homens não aprenderam.

A propósito, a última fala da Antígona de Sófocles 86:

85 Cf. A origem da obra de arte, op.cit. 86 A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, op. cit.

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Destaca-se a prudência sobremodo como a primeira condição para a felicidade. Não se deve ofender os deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes contra os vaidosos que, já na velhice, aprendem afinal prudência.

O sentido da palavra prudência, porém, deve ser entendido como

eqüiponderância de vozes, de forças e poderes. Não pode haver uma verdade

que prevaleça sobre outra, todas devem conviver em tensão harmônica de

contrários. Não há síntese que solucione o conflito, pois a solução é

justamente o movimento pendular dos contrários. O drama ático surge como

a primeira instância destruidora de absolutismos. O destino de todos é a

morte, mas é a forma com que cada personagem percorre o caminho até ela

que promove sua queda ou ascensão.

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5 O BARROCO EM AUTRAN DOURADO: DIÁLOGO COM A ATUALIDADE

Narrativa, labirinto no tempo, em que não se pode perder o fio. O que impede a narrativa de

ser perfeito labirinto é ter um ponto de partida e um ponto de chegada. Mas o labirinto possui também uma entrada e uma saída. Ponto de

partida e entrada, ponto de chegada e saída, que podem ser os mesmos.

Autran Dourado

O objetivo deste capítulo é mostrar como o romance douradiano se

insere na tradição cervantina do gênero romanesco, que incorpora e atualiza

elementos do Barroco. Pretende-se demonstrar que o romance neobarroco

não é caricatura, tampouco cópia requentada do Barroco, mas, sim,

interpretação que propõe significado original ao movimento literário que se

baseia na crise de conceitos que pareciam consolidados, como, por exemplo,

o antropocentrismo. Alguns autores da atualidade, principalmente da

América Latina, vêm promovendo esta atualização do Barroco e

questionando conceitos estabelecidos de poder. Trata-se de propostas novas

e originais para as questões evocadas pelo Barroco. Apenas nesta

perspectiva de interpretação de questões se justifica a atualização de um

movimento literário. Também importa esclarecer a questão da época.

De forma alguma o Barroco é tomado no presente trabalho como estilo

de época, nos moldes dos tradicionais manuais de literatura. A época

importa, até porque não há obra de arte isolada de seu tempo, mas não

como um conjunto de condicionamentos que moldam e limitam a obra, e sim

como época originária ou ainda, época poética. Segundo Manuel Antônio de

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Castro, “tentar compreender as épocas é deixar-se atravessar pela pergunta

da mudança e da permanência enquanto experienciação da poiesis”.87 Isto

porque o tempo que passa permanece na obra de arte como memória. A

obra, ao atravessar períodos mais ou menos longos de tempo, se for obra

verdadeiramente artística, traz as interpretações de seu tempo para as

questões fundamentais. Desse modo, dialoga com outras épocas, que

também têm suas interpretações. Surge um diálogo poético: movimentos

literários e suas obras dialogam para a construção do real, que se manifesta

como campo para a realização da tarefa de determinado povo histórico.

Diálogo, como observa Castro, é a fala que acontece através (diá) do logos

(reunião e dizer). O logos, que por ser palavra traz a questão da memória,

reúne as várias vozes das várias épocas e diz, em outros termos, transforma

em palavra o que permanece, mesmo com a mudança das épocas. Ainda

segundo Castro, “ao que muda e permanece e, além disso, é linguagem,

desde sempre se chamou poiesis, que é o entrelaçamento de memória e

linguagem no verbo-palavra”.88 É assim que a obra de arte se faz

concretamente presente na vida humana e, como portadora de discursos

dialogantes de várias épocas que dialogam entre si, é capaz de produzir

época. É o que acontece com obras como: Dom Quixote, de Cervantes, A

Divina Comédia, de Dante, Os Lusíadas, de Camões, os Sermões, de Vieira,

entre outras. Essas obras fogem a classificações de estilo de época. Os

87 CASTRO, Manuel Antônio de. A poiesis: a essência do agir e do pensar. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/ 88 Ibid.

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manuais indicam, no máximo, mescla de estilos, mas continuam rotulando

as obras em vez de se disporem para a escuta do logos que se doa a elas.

A partir dessas considerações, não se pode pensar em Barroco ou

Neobarroco como estilos de época. Ambos só se sustentam como movimentos

literários articuladores do real no tempo e no espaço. O conceito de estilo de

época evoca uma literatura ornamental, reflexo, representação e mimesis de

condições históricas, sociológicas, econômicas e até mesmo biográficas e

essa idéia aniquila o poder criador original da arte. Segundo Castro:

Os estilos não podem ser restringidos a uma manifestação arbitrária do sistema de signos verbais pelo autor. Ao contrário, o estilo é o discurso deixando o homem se manifestar em sua discursividade. Os estilos são modalidades discursivas de tal manifestação. Só assim serão epocais. (CASTRO, 1982, p.138)

O Barroco, com seu ponto de vista pictórico e profundo traz a noção de

movimento entre pólos opostos que, pela linguagem poética, se configuram

em unidades: identidade e diferença, fala e silêncio, cosmos e caos. O

conceito de estilo de época não abrange tal movimento porque implica a idéia

de objeto de fruição estética e reflexo de condições históricas enquanto nossa

interpretação do Barroco e do Neobarroco entende que se tratam de

realizações da linguagem como casa do ser, na qual se dá a concretização do

real como poiesis.

A fusão de elementos diversos em uma unidade é a lei suprema do

Barroco. Criam-se transições e relações entrecruzadas que originam uma

narrativa labiríntica, que será, mais tarde, magistralmente arquitetada por

Autran Dourado. A aparente confusão é estruturada de forma que

personagens, eventos e cenários não sejam claramente descritos. O autor os

reflete nas consciências das personagens e se abstém de emitir julgamentos

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de valor, estabelecendo uma crise no conceito de verdade. Historicamente,

verdade sempre foi, como vimos anteriormente, ‘adequação da coisa com o

conhecimento’. O Barroco promove a inadequação e obriga o espectador a

mirar a não-verdade, como o que ainda não é, mas pode vir a ser, o que se

liga ao sentimento trágico. Observe-se o momento em que João Capistrano

orienta o mestre de obras quanto à reforma do sobrado em Ópera dos

Mortos: construção barroca, ele reúne Lucas Procópio e João Capistrano, pai

e filho, duplos um do outro, que se unem tanto na casa como em Rosalina:

Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. (...) e olhe, moço, eu não quero um sobrado que fique assim feito uma casa em riba da outra. Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos para sempre. O mestre viu aquele olho rútilo, parado, viu que o coronel já não falava mais com ele mas para alguém muito longe ou para as bandas do ninguém. (DOURADO, 1990, p.4)

A perspectiva, a profundidade e a fusão de elementos diversos,

característicos do Barroco, muito mais que recursos artísticos, são

constituintes da disputa entre mundo e terra. Terra como o que se fecha em

si mesma, como abrigo de todos os seres, tende a fechar-se. Mundo, como

amplitude de relações abertas, quer forçar a terra a abrir-se. Tal disputa

apenas fortalece a identidade de cada um pela diferença que guardam entre

si. Na literatura barroca, o mundo aberto pela fusão de elementos contrários

vem repensar o lugar do homem na terra com relação à divindade. A disputa

é incessante porque é ela quem deve ser a ‘vencedora’ como tensão

harmônica entre homem e divindade. Nos dois romances de Autran Dourado

aqui estudados observa-se essa tensão.

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5.1 Tradição cervantina do romance

Autran Dourado define Os Sinos da Agonia como “uma grande

montagem carnavalesca trágica, uma colagem de estilos, temas e

situações”.89 Essa definição nos levou a pesquisa da carnavalização.

Mikhail Bakhtin aborda a paródia e a carnavalização como temas

importantes para a construção do romance como gênero. Interessa para este

trabalho a contribuição do diálogo socrático e da sátira menipéia. Ambos

pertencem ao campo do cômico sério em oposição aos gêneros sérios como a

epopéia e a tragédia, por exemplo. O cômico-sério é um dos chamados

gêneros carnavalizados, aqueles que sofreram influência de várias formas de

folclore carnavalesco antigo ou medieval. O carnaval é um espetáculo em que

diferentes pontos de vista, visões de mundo e ideologias se confrontam

ritualisticamente e cuja linguagem é repleta de “formas concreto-sensoriais

simbólicas” que exprime o que Bakhtin entende por “cosmovisão

carnavalesca”.90 A literatura carnavalizada é o resultado da transposição

dessa visão para a linguagem verbal. Vale ressaltar que essa transposição

somente é possível para a linguagem literária, pois somente ela produz

imagens sensoriais concretas. Bakhtin enumera quatro categorias que

encerram idéias carnavalescas altamente influentes na formação de gêneros

literários. São elas: 1) o livre contato familiar entre os homens; 2) a

excentricidade; 3) as mésaliances carnavalescas e 4) a profanação.

A importância dessas categorias está no fato de que:

89 DOURADO, Autran. Uma poética de romance: matéria de carpintaria. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p.190. 90 Cf. BAKTHIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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Ao longo de milênios, essas categorias carnavalescas, antes de tudo, a categoria de livre familiarização do homem com o mundo, foram transpostas para a literatura, especialmente para a linha dialógica de evolução da prosa artística romanesca. A familiarização contribuiu para a destruição das distâncias épica e trágica e para a transposição de todo o representável para a zona do contato familiar, refletiu-se substancialmente na organização dos temas e das situações temáticas, determinou a familiaridade específica da posição do autor em relação aos heróis (familiaridade impossível nos gêneros elevados), introduziu a lógica das mésaliances e das descidas profanadoras, exerceu poderosa influência transformadora sobre o próprio estilo verbal da literatura. (BAKHTIN, 1981, p.106)

Com base nisso, voltemos às particularidades do diálogo socrático e da

sátira menipéia.

Sócrates concebia a verdade como dialógica, e não unívoca. O filósofo

não é o detentor da verdade, nem tem a missão de anunciá-la aos homens.

Quem imagina ter a posse da verdade apenas revela ingenuidade de

pensamento. O pensamento socrático entende que a verdade nasce a partir

do diálogo estabelecido entre os homens e, de acordo com isso, cria-se a

maiêutica, o método dialógico de busca da verdade. Sócrates se apresenta

como parteira da verdade, não portador dela. Se a verdade nasce a partir do

diálogo, na tensão entre ‘eu’ e ‘tu’, já estabelece tensão entre verdade e não-

verdade - saber e não saber - instaurando profundo e radical

questionamento acerca da pretensão da posse da verdade única.

Foi apenas no último período do platonismo que a verdade passou a

ser posse do filósofo, sem possibilidade de questionamento. A concepção

dialógica da verdade permite que pontos de vista diversos sejam

confrontados e que a idéia se una ao personagem de forma a transformá-lo

em portador de uma idéia, vale dizer, de um aspecto da verdade, e não

apenas uma figura.

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A sátira menipéia, em que predomina o elemento cômico, cria

situações extraordinárias, fantasias e aventuras para experimentar a idéia

da verdade. O que interessa neste trabalho é o fato de que a sátira menipéia

se caracteriza por ampla liberdade de criação, pela combinação de elementos

aparentemente incompatíveis, como por exemplo, os sagrados e profanos,

pelas observações feitas de ângulos de visão inusitados, intensos contrastes

e convivência de estilos múltiplos. Embora aparentemente imiscíveis, esses

elementos permanecem em forte unidade orgânica, integridade interna e

também em plasticidade externa e capacidade de absorver ou compor outros

gêneros. A menipéia trouxe para o gênero romanesco a cosmovisão

carnavalesca, além de ter preparado as condições para a polifonia, presente

na obra de Autran Dourado. Toda essa fusão de elementos contrastantes

funciona como experimentação da idéia da verdade. Os elementos

contrastantes põem essa idéia à prova e mostram que verdade e não verdade

são faces de uma mesma moeda. Não é pretensão deste trabalho interpretar

detalhadamente a sátira menipéia, mas vale citar a obra Diálogos, de

Luciano de Samosata91, em que a virtude é o despojamento do saber lógico e

formal, a favor da sabedoria advinda da experiência. Nessas obras, a verdade

tem natureza dialógica e deve ser experimentada tanto na terra, no inferno

ou no Olimpo. Não se cogita conectar a narrativa douradiana à sátira, pois o

próprio autor se denomina trágico. O que se pretende é pontuar algumas

contribuições da menipéia, bem como da carnavalização, para o romance

como gênero.

91 Cf .SAMOSATA, Luciano. Diálogos de los muertos. In: Diálogos de los dioses, Diálogos de los muertos, Diálogos marinos, Diálogos de las cortesanas.Traducción de Juan Z. Botella. Madrid: Alianza Editorial, 1987

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Miguel de Cervantes é o primeiro romancista a introduzir no gênero

romanesco o jogo entre ficção e verdade. A transformação de Quixote em

cavaleiro andante se dá pela escuta dos livros que lê, e da conseqüente

aprendizagem da dinâmica da vida. A loucura de Dom Quixote é, na verdade,

uma força criadora de uma realidade completamente inédita. O que importa

para a personagem é a experiência como base do conhecimento.

A partir da loucura de Dom Quixote, Cervantes instaura o diálogo entre

texto e leitor, que se opõe ao sujeito cartesiano, considerado representante

de todo objeto representado92. Estabelece-se uma relação verdadeiramente

hermenêutica, uma relação entre consciências. Surge a possibilidade de se

criar uma realidade que não existia até então, pois o sujeito assimila a

experiência existencial do outro, multiplicando suas possibilidades de ser. A

grande lição contida em Dom Quixote é a crença na realidade da ficção

criada, na possibilidade humana.

Para que se realize essa dialética, Cervantes insere em sua obra o que

mais tarde torna-se característica do gênero: o diálogo entre narrador e

leitor. Assim sendo, o leitor abandona sua postura passiva, de mero

observador, e passa a fazer parte do processo narrativo. É nesse sentido que

o romance propicia a aprendizagem do leitor e passa de entretenimento a

forma de conhecimento. Ao interromper a narrativa e comentar criticamente

o que está narrando, o narrador usa o enredo como um pré-texto para a

instauração do jogo de vozes. O ‘desocupado leitor’ de Cervantes deve

ocupar-se de construir a narrativa juntamente com o autor. A tensão entre

92 Essa interpretação para o “cogito ergo sum” cartesiano nos foi dada pelo professor Dr. Ronaldes de Melo e Souza no curso de Mestrado em Literatura, na Universidade de Brasília, em 1993.

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ente e ser liquida com a pretensão da subjetividade dando uma nova

dimensão à intersubjetividade. Está em jogo aqui a dimensão temporal do

ente e do ser como linguagem. Segundo Manuel Antônio de Castro:

O sujeito gramatical e o sujeito da subjetividade é um simulacro. Se o ser se diz, e diz, o sendo é o dizendo. Logo, o dizendo diz e não diz. Porque o sendo não é o ser, o dizendo não é a linguagem. Sendo é o ente. Mas o ser não é, pois se fosse seria ente e não ser. A fala, a língua é que é ente, não a linguagem. Porém, o que somos, somos a partir de e pelo ser. O que dizemos, dizemos a partir de e pela linguagem, pelo logos (...) Só podemos ser este e aquele ente, que é, e só pode ser a partir do ser, porque o que antes de tudo é, é o ser. Porque o que antes de tudo fala é a linguagem. (CASTRO, 2004)93

A posição na qual o narrador se coloca é de fundamental importância

para a composição do romance e do diálogo entre narrador leitor. Para o

estudo dessa questão toma-se como referência, sobretudo, Franz Stanzel.94

Para o autor, é a partir da situação narrativa que se dá a mediação entre

ambos. Definem-se assim três situações: a autoral, onde o autor interrompe

a narrativa para tecer comentários críticos sobre ela, como em Tristram

Shandy, de Sterne; a de primeira pessoa, em que há o desdobramento do

sujeito em ‘eu-narrante’ e ‘eu-narrado’, e a distância temporal entre os dois

possibilita o amadurecimento do sujeito, que narra criticamente sua

experiência passada, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de

Machado de Assis e, finalmente, a personativa, na qual o narrador

simplesmente desaparece da cena narrada, de maneira tal que o leitor

visualiza a realidade ficcional do ponto de vista de uma personagem do

romance, e não do narrador, como em Os Sinos da Agonia e Ópera dos

Mortos, de Autran Dourado. Os eventos ocorridos no passado são percebidos

93 Cf. em: www.travessiapoetica.com/ Aula Inaugural: Linguagem, nosso maior bem. 94 Narrative Situations in the Novel (Tom Jones, Moby Dick, The Ambassadors, Ulysses). T. James P. Pussack. Bloomington – London, Indiana University Press: 1971.

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como presente pelo leitor. São características do romance personativo a

técnica do refletor, a representação cênica e a presentificação dos eventos

passados. Trata-se da vertente dramática do gênero romanesco, que,

contemporaneamente, teve sua origem em Gustave Flaubert. Dorrit Cohn

cria o termo equivalente, ‘monólogo narrado’ (narrated monologue), para se

referir à manifestação do discurso interior da personagem (fluxo de

consciência). O monólogo narrado é uma técnica mais propícia ao romance

personativo do que o discurso direto (quoted monologue) exatamente porque

cria ambigüidade e consonância de vozes entre narrador e personagem, o

que, segundo Cohn, não pode ser atingido pelo discurso direto:

O monólogo narrado lança uma luz peculiarmente sombria na consciência figural, suspendendo-a no limiar da verbalização de uma maneira que não pode ser atingida pela citação direta. Esta ambigüidade é inquestionavelmente uma razão porque tantos autores preferem a técnica menos direta.95

O monólogo citado representa a consciência de forma mais direta, mas

ainda assim, há a presença plenamente identificável de um narrador e a

separação clara das vozes narrada e narrante. A menos que se trate de

monólogo citado não marcado, como na obra de James Joyce, é uma técnica

que se liga mais fortemente ao romance autoral que ao personativo, onde a

técnica de refletorização camufla a figura do narrador, e a cena, ou os

pensamentos da personagem, aparecem ao leitor pela perspectiva da própria

personagem. Segundo Dorrit Cohn, não somente a visão, mas também o

pensamento da personagem funde-se com o do narrador:

95 In: COHN, Dorrit. Transparent Minds: narrative modes for presenting Consciousness in Ficction. Princeton, N.J, 1978: The narrated monologue casts a peculiarly penumbral light on the figural consciousness, suspending it on the threshold of verbalization in a manner that cannot be achieved by direct quotation. This ambiguity is unquestionably one reason why so many writers prefer the less direct technique). Tradução nossa.

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O monólogo narrado em si mesmo, entretanto não é vision avec, mas o que poderíamos chamar de pensée avec: aqui a coincidência de perspectivas é composta por uma consonância de vozes, com a linguagem do texto momentaneamente ressoando na linguagem da mente figural. Neste sentido pode-se considerar o monólogo narrado como a quintessência da narração figural, se não a narração propriamente dita: como o momento em que a linha de pensamento está mais fortemente urdida no tecido da narração de terceira pessoa.96

Como o que se deixa desvelar aos olhos do leitor é o ponto de vista da

personagem, o romance personativo realiza uma intensa experienciação do

real fundado na poiesis. O real poético está em constante mudança, revela-

se e oculta-se simultaneamente. Como a finitude é uma característica

inerente ao homem, a realidade nunca será conhecida como um todo,

apenas facetas desta serão descobertas. O gênero romanesco, portanto, se

configura como a manifestação de possibilidades de experiências humanas.

Mas a questão que se apresenta é justamente a do gênero. O romance ainda

teria lugar na chamada era da comunicação, quando a imagem cada vez

mais substitui a palavra, um tempo de velocidade, tecnologia e informação

como fonte de poder? Em que medida Os Sinos da Agonia e Ópera dos Mortos

podem contribuir para a atualidade, se remetem ao passado?

É na própria reflexão sobre o tempo que está uma das grandes

contribuições do romance de Autran Dourado. Em Os Sinos da Agonia o

tempo é como uma roda, uma ciranda, em Ópera dos Mortos como o que

destrói, mas também o que constrói. O passado dialoga com o presente

96 COHN, Dorrit. Transparent Minds: narrative modes for presenting Consciousness in Ficction. Princeton, N.J, 1978:The narrated monologue itself however, is not vision avec, but what we might call pensée avec: here the coincidence of perspectives is compounded by a consonance of voices, with the language of the text momentarily resonating with the language of the figural mind. In this sense one can regard the narrated monologue as the quintessence of figural narration, if not narration itself: as the moment when the thought-thread of a character is most tightly woven into the texture of third person narration. Tradução nossa.

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enquanto memória atuante na arquitetura do presente. O autor elabora tal

reflexão promovendo uma leitura original de elementos da literatura barroca.

5.2 Barroco

O romance barroco concebe a verdade como plurissignificativa. Daí a

destruição de todas as formas de dominação, todos os dogmas. Ao

apresentar diversas visões de mundo, a polifonia barroca interage na

composição da obra, de modo que o todo se relaciona com as partes

ludicamente. O jogo das vozes que compõem a narrativa forma o

multiperspectivismo, onde não há fatos, apenas versões. Cada versão é uma

nova escuta, uma nova realidade ficcional.

Em Ópera dos Mortos encontra-se a radicalização do movimento lúdico

do barroco, o que promove a isomorfia entre forma e conteúdo. Já no

primeiro bloco tem-se uma teoria do barroco, quando o narrador (coro)

descreve o sobrado. As mudanças, os vários ângulos, a ilusão, o jogo de

movimento e repouso, fazem da obra também uma reflexão sobre o ato de

narrar. Ao parodiar o barroco, Autran Dourado une linguagem, estrutura e

forma, além de promover diálogo entre épocas; para ele, o barroco “não é

apenas um conceito histórico, capítulo da história da arte, mas alguma coisa

viva e atuante, que me estimula na elaboração da minha própria criação

literária”.97

97DOURADO, Autran, Poética de Romance, op. cit. p.37.

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A partir de Hatzfeld98, observa-se que o barroco tem, assim como a

tragédia, a marca da tensão harmônica de contrários. Tradicionalmente

conhecido como ‘arte da Contra Reforma’, o barroco revela, não a dúvida,

mas a própria unidade dual do ser humano: corpo/espírito, luz/sombra,

sagrado/profano, antropocentrismo/teocentrismo, entre outras. Há um forte

apelo para os sentidos e para a experiência humana. Quando Autran

Dourado abre Ópera dos Mortos com a frase: ‘O senhor querendo saber,

primeiro veja’, esse apelo se torna evidente. As figuras barrocas surgem

como produtoras de significado, o que vale dizer, de mundo, e não como

mera ornamentação da linguagem. A ambigüidade do neobarroco nasce da

tradição cervantina, que é, conforme observa Ronaldes de Melo e Souza99,

regida pelo princípio da ironia. A tensão de contrários: saber e não saber,

fala e silêncio, limite e não limite, estão sempre presentes nas imagens-

questões. Assim:

A condição inacabada ou incompleta da obra de arte não resulta do acaso, mas da movente presença de um horizonte sempre visível aos olhos do homem, e jamais acessível aos seus passos (...) O ser humano não reside no finito nem no infinito, mas, sim, no transfinito, que é o finito comensurado com o infinito, e que afonamente fala no autêntico diálogo da palavra e do silêncio. A ironia poética da linguagem consiste em apalavrar o silêncio e, simultaneamente, silenciar a palavra. (SOUZA, 2000, p.47)

O horizonte do homem barroco é a divindade. Nessa medida ele se

descobre humano e realiza a tensão entre identidade diferença. Entretanto a

medida que o faz enxergar e realizar esta tensão é tomada na discursividade.

Segundo Castro, “a discursividade ou linguagem é a instância onde o homem

98 Cf. HATZFELD, H. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1988. 99 SOUZA. Ronaldes de Melo e. A Poética da Ironia. In: Introdução à Poética da ironia. In: Linha de Pesquisa. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1-27/48 – outubro, 2000.

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vivencia a epifania do extraordinário, manifestando a verdade do real

enquanto história”.100 É nesse sentido que o Barroco se torna a coisa viva e

atuante de que fala Autran Dourado.

O transfinito como medida só é atingido no diálogo com a época, o que

revela a história, não como sucessão de fatos, mas como acontecer:

“Acontecimento vem de acontecer. E acontecer, verbo incoativo (ação

progressiva) de contingere, já traz no seu âmago a noção de estar, ter contato

ou relação com”.101

Dessa forma, rompe-se a percepção temporal pelas três instâncias

(passado-presente-futuro) e instaura-se a experienciação, que, fundada na

memória, re-interpreta o homem como ente.

A pergunta que persiste quando se pensa a questão do Barroco como

arte da Contra-Reforma é: Como o espírito conservador da igreja católica da

época pôde se valer de uma arte de espírito libertário, com elementos como a

polifonia e a tensão harmônica de contrários?

Na perspectiva hermenêutica proposta neste estudo, deve-se pensar

além das ferramentas da retórica e propor uma leitura poética para o

Barroco. A arte não se deixa revelar por rótulos, tampouco se submete a

condicionamentos históricos (e só por isso ela produz mundo). Manuel

Antônio de Castro mostra como o fenômeno literário se relaciona com o

histórico e faz questão de frisar a diferença e especificidade de cada um,

para, em seguida tratar da história literária.102 É neste caminho que se

100 CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético: a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982. p.115. 101 Ibid p.36. 102 Destaque nosso.

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pensa o Barroco como movimento literário. O autor estabelece a diferença

entre historiografia – o simples estudo dos fatos e das datas – e historicidade

– o estudo da história como acontecimento, a experiência humana pela qual

‘se faz a experiência histórica do Ser’. Retoma-se o sentido de história

proposto no primeiro capítulo deste trabalho: ‘o despertar de um povo para

sua tarefa, como inserção no que lhe está dado’. O que está dado é o mundo.

A experiência do homem (Ser) no mundo (histórico) é que deve ser

considerada no estudo da história, mas a tradição se esqueceu disso e

privilegiou os fatos. É como historicidade que a história se relaciona com a

literatura e é como experiência poética, e não como estilo de época, que a

literatura se relaciona com a história.

A profundidade pictórica própria do Barroco resulta, em linguagem

literária, na metáfora arabesca, que imprime à palavra a profundidade no

tempo e no espaço. Este caráter de profundidade tira a metáfora da categoria

de mera figura de linguagem retórica e a coloca no âmbito de produtora de

significado real, conseqüentemente, produtora de sentido simbólico. A

metáfora barroca aproxima significante e significado de tal forma que ambos

deixam de ser signos representativos da visão de linguagem como

instrumento - e passam a manifestação da disputa entre Terra e Mundo:

O texto-obra é onde a disposição adquire consistência, manifestando-se como presença/ausência. Esse manifestar-se como presença/ausência nas obras constitui mundo e o vir-a-ser do mundo é o que chamamos radicalmente de História. Texto-obra, leitor, autor e mundo mantêm entre si uma inter-relação histórica radical. (CASTRO, 1982, p.110)

Os termos de que se compõe a metáfora unem-se e transformam-se

em outra coisa distinta do que eram antes, formando significantes que se

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proliferam em cadeia, originando imagens questões e abolindo

definitivamente a retórica, conforme observamos na interpretação do toque

dos sinos em Os Sinos da Agonia, na segunda parte deste estudo.

Dessa forma, não se trata de considerar o Barroco como arte da

Contra-Reforma no sentido de reflexo literário de uma época em que o

homem estava em dúvida, entre antropocentrismo e teocentrismo, ou ainda

entre razão e fé. O Barroco lê poeticamente o movimento religioso e, em vez

de divisão, propõe a união de contrários em tensão harmônica, isto é, o

homem barroco (ou o homem que a literatura barroca se propõe a construir),

não está em dúvida entre razão e fé, mas em trânsito permanente entre dois

pólos. A literatura barroca não impõe a necessidade de decisão por uma ou

outra coisa, mas apresenta a convivência simultaneamente tensa e

harmônica de ambas, revelando que o homem habita enquanto se move

entre razão e fé, entre sagrado e profano. A arte é o que constrói a ponte

entre os contrários que, ao serem poeticamente revelados, não se anulam, ao

contrário, se completam.

A arte barroca foi além dos princípios morais e coercitivos da Contra-

Reforma e se tornou um dos movimentos mais libertários e emancipadores

da literatura. Para comprovar isso, basta lembrar autores que tiveram

problemas com instituições religiosas, tais como Cervantes, Pe. Antônio

Vieira e Gregório de Matos Guerra. O Barroco não é reflexo do espírito da

Contra-Reforma, mas interpretação poética dele. O exagero característico do

Barroco é o apelo aos sentidos, mas não porque preconize uma fé cega, e sim

porque crê no pathos, a aprendizagem a partir da experiência.

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Literatura como experiência é algo que pressupõe o diálogo a partir da

obra e transcende o estudo de estilos de época, características e biografia de

autores. É a realização da interpretação poética, que é essencialmente

ambígua e trata o texto não como objeto, mas como obra viva, sempre

operante, ainda que cronologicamente antiga. Uma obra antiga, estudada

como objeto, só vai mostrar o que significou na época em que foi escrita, sem

vigor na atualidade. Impossível, portanto, pensar o barroco como objeto,

caso se queria compreendê-lo na perspectiva de Autran Dourado. A obra de

arte barroca, pensada no sentido etimológico da palavra obra – o que opera –

produz um diálogo, fundado pelo logos como reunião e dizer. Assim o logos

se realiza como linguagem que já clama por uma escuta. Realizar esta escuta

deve ser a tarefa de quem se propõe a interpretar a obra de arte literária,

pois o estudo da estética, que fica nos limites do texto, que procura

responder perguntas como: ‘O que o autor quis dizer?’ têm, evidentemente,

sua importância, mas não atingem a dimensão poético-ontológica que

propomos aqui. Nessa dimensão, a leitura, seja do Barroco, seja de qualquer

outro movimento literário, acontecerá como lançamento do homem na

libertação para a ação. Libertação no sentido de saber fundado na tensão

entre verdade e não-verdade e na ação no sentido de poiesis. Diz Castro: “A

leitura dos textos poéticos nos lança na liberdade poético-ontológica: sermos

como caminhada de ascensão e descensão o que já desde sempre somos. É a

procura do ser”.103

103 CASTRO, O acontecer poético, op. cit. p.42.

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Na procura do ser somos conduzidos pela linguagem em direção ao

destino.

Por tudo isso o homem é um ser histórico, inscrito num tempo (época)

e num espaço. Mas a questão do tempo histórico também necessita ser

repensada. Para Castro, o passado histórico deve ser pensado em tensão

com o presente e com o porvir. “Esta dimensão integradora, essencialmente

histórica, se dá no acontecimento”.104 História como acontecimento é a ação

do homem no presente, “determinado pelo futuro, assumindo o pretérito

vigente”.105 O futuro determina a ação do homem no presente, e este homem

está impregnado do passado que ainda vige. Assim, vislumbramos duas

interpretações para o tempo:

1. O tempo historiográfico, que enxerga a obra de arte como influência

do contexto histórico, com significado para aquela época apenas;

2. O tempo originário, que se realiza como acontecimento

(experienciação) a partir da linguagem. Neste caso, a literatura de

uma época traz verdades e questões que dialogam com a atualidade

na construção da história.

É nessa perspectiva que se pensa Barroco e Neobarroco. Antes, porém

de prosseguirmos no diálogo entre as duas artes, propõe-se uma escuta do

Sermão da Sexagésima106, de Pe. Antônio Vieira.

Vieira pretende descobrir porque a palavra de Deus faz tão pouco

fruto. Concluindo que isso acontece não por culpa de Deus, nem dos

104 Ibid 105 Heidegger, Ser e Tempo, apud Castro, O acontecer poético, op. cit. p.59. 106 VIEIRA, Antônio, Pe. Sermões. São Paulo: Ed. das Américas, 1957. V.1.

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ouvintes, mas por culpa do pregador, toma a ‘parábola do semeador’ como

mote e procede ao que pode ser considerado uma poética do Barroco,

inclusive no contexto da Contra-Reforma.

O pregador prega de acordo com as seguintes circunstâncias: a pessoa

que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue e a voz com

que fala. “A definição do pregador é a vida e o exemplo”107; Vieira insiste no

fato de que o que define o pregador não é tanto o nome ‘pregador’, mas a

ação de semear:

As ações são o que dão ser ao pregador. (...) Antigamente convertia-se o mundo; hoje, por que não se converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiro sem bala, atroam, mas não ferem. (...) Quis Deus converter o mundo e o que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. (...) Verbo divino é a palavra divina, mas importa pouco que nossas palavras sejam divinas se forem desacompanhadas de obras. A razão disso é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se, as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.108

O que está em jogo aqui é a relação entre verbo e ação, em outros

termos, entre logos e physis/poiesis, que é o fundamento da construção do

real. O logos que Heráclito nos convida a escutar109 é reunião do que se

manifesta na physis, o que implica dizer que é a manifestação da alétheia. A

ambigüidade da alétheia se concretiza como tensão entre silêncio e palavra

no logos. É nessa tensão que o logos funda o diálogo como escuta do outro e

também como auto-escuta. Alétheia é a physis em seu permanente e

ambíguo movimento de velamento e desvelamento. Vieira fala do diálogo

entre physis e logos para a conversão. Esse diálogo é a experiência que irá

107 Ibid. p.54. 108 Destaques nossos. 109 “Escutando não a mim, mas ao logos, é sábio dizer com: tudo é um”. Fragmento 35.

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operar uma mudança real concreta no ser do homem (a conversão). Por isso

Vieira insiste nas ‘obras que entram pelos olhos’. Manuel Antônio de

Castro110 observa que ver, do latim, videre, tem por radical id, e concentra

três significados afins: ver, perceber, entender. Tais significados se

relacionam com a experienciação porque nela há a vivência de um

acontecimento no sentido de que o homem, além de ver, perceber e entender,

vive e assim aprende concretamente a ambigüidade do finito (humano) e

infinito (divino), do limite e do não limite. Essa aprendizagem dá ao homem

uma nova dimensão de sua relação com o divino/sagrado. Não cabe mais

escolher entre sagrado e profano ou virtude e vício, também não se trata de

pecar e se arrepender no dia seguinte, para no outro dia pecar novamente,

mas de mover-se em direção ao horizonte (limite) para a plena realização do

ser. A arte barroca propõe o diálogo do homem com o sagrado para a

aprendizagem da ambigüidade entre verdade e não-verdade, entre fala e

silêncio e limite e não-limite. O primado da experiência é o que importa para

a arte da Contra-Reforma. O poder criador do Barroco transcende seu

contexto histórico justamente porque cria imagens concretas que ainda

portam as questões fundamentais. Por isso podemos falar na atualidade do

Barroco que dialoga poeticamente com a atualidade.

110 Cf. Castro, O Acontecer Poético, op. cit.

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6 AS QUESTÕES DA ARTE EM OS SINOS DA AGONIA E ÓPERA DOS MORTOS DE AUTRAN DOURADO

6.1 A poética de Autran Dourado

Dédalo chegou à inevitável conclusão de que labirinto nada mais é do que a aventura da

ordem. Autran Dourado

A narrativa de Autran Dourado guarda profunda relação com o mito

grego. Tanto Os Sinos da Agonia como Ópera dos Mortos podem ser lidos,

segundo o próprio autor, não apenas como romances, mas como tragédias:

“Pense-se no livro [Ópera dos Mortos] como tragédia, mais do que como

romance e se terá uma melhor leitura”.111 Os Sinos da Agonia é definido pelo

autor como “variações em torno de temas dos grandes trágicos do

passado”.112 Dourado esclarece que variações são atualizações originárias

dos temas universalmente abordados na arte, que são, neste estudo, aquilo

que se entende por questões.

Os temas do passado trazem uma questão crucial para o autor: o

tempo. Ao falar do passado, Dourado já o concebe em relação dinâmica com

presente e futuro – “literatura é o eterno presente, o passado constante”.113

Nos Sinos da Agonia, a partir do antigo ritual da morte em efígie, o homem

moderno ocidental reconhece sua finitude e busca nela sua grandeza. Em

111 DOURADO, Autran. Uma poética de romance, op. cit., p.151. 112 Ibid. p.188. 113 Ibid. p.189.

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Ópera dos Mortos as leis não escritas fazem com que o leitor pense

originalmente a respeito do tempo em relação com a memória. Tempo que

para a atualidade é considerado apenas como presente e futuro devido aos

avanços da tecnologia e da sociedade globalizada que não costuma levar o

passado em conta. Atualização de temas passados não é, reafirma-se, cópia

requentada, mas pensamento original:

Picasso usa não só motivos, mas nomes de quadros famosos, como As Meninas de Velásquez. Não está inventando nada, é muito difícil inventar qualquer coisa em arte: o melhor que se pode fazer é ser autêntico, tentar. Às vezes a obsessão do novo é um desastre. Por ser o mesmo tema, nem por isso Picasso deixa de ser Picasso, não está fazendo Velásquez. Apesar de gênio, ele nada mais fez do que seguir uma tradição. Antes dele, Manet e Cézane pintaram a mesma Olímpia, que não é outra senão a Maja Desnuda, de Goya. (DOURADO, 2000, p.188)

Não é por incorporar temas trágicos em seu romance que Autran

Dourado deixa de ser Autran Dourado, nem tampouco deixa de ser um

escritor contemporâneo. Os temas trágicos, na poética douradiana, são

retomados no sentido de criticar a modernidade que se julga tão poderosa

devido a seus avanços tecnológicos, por exemplo, mas ainda não se libertou

do espírito cartesiano. É o que o leitor de Os Sinos da Agonia percebe ao

encontrar a chave do labirinto construído pelo autor, conforme exposto

anteriormente.

Mais uma vez, é o próprio Autran Dourado que nos fala da relação

entre presente e passado na obra de arte literária:

sou um homem do meu tempo, não um alienado. Penso primeiro no Brasil, na minha língua, produto de uma cultura, e procuro modestamente me situar na grande corrente universal. Não é por ter vários livros traduzidos que vou dizer essa bobagem de ‘literatura brasileira de exportação’. Herman Broch escreveu um romance sobre a morte de Virgílio e nem por isso deixou de ser moderno (...) Joyce usou como modelo a Odisséia. Não é por falar em mísseis e foguetes, napalm, coca-cola e Watergate, que um escritor é moderno. Um escritor dá um depoimento de sua época. Kafka, falando de inseto e

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castelo barroco, disse tudo sobre a alienação do homem moderno. Um escritor pode falar de coisa atuais, usar recursos gráficos e técnicas de comunicação em voga e ser um espírito acadêmico, sem nenhuma capacidade inventiva ou criadora. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Quando situo ‘Os Sinos da Agonia’ na ambiência do século XVIII, em Vila Rica, não estou fazendo romance histórico, que é uma página virada do romantismo. Não há no corpo mesmo do livro uma só data, um só personagem histórico. Mas se você conhece Minas e a literatura, se conhece a tradição absolutista portuguesa e brasileira, verá a sombra de Tiradentes, Gonzaga, Cláudio, tantos outros. Sombras, não nomes ou personagens. (DOURADO, 2000, p.189-190)

Os temas, porque são questões, permanecem. Por isso Dourado diz ser

‘difícil inventar’. O que muda é a interpretação das diferentes questões e, no

dizer do autor, a ‘expressão’. E na narrativa labiríntica, a maneira de narrar,

a expressão, modifica também a interpretação do conteúdo. O labirinto é o

caminho (aparentemente caótico) que deve ser percorrido, não só pelas

personagens, mas também pelo leitor. O percurso dentro do labirinto é a

experienciação que oferece novos ângulos de visão acerca de um mesmo

tema. Observe-se que Os Sinos da Agonia são três pontos de vista diferentes

sobre a mesma história. Em Ópera dos Mortos tem-se apenas um foco

narrativo, mas há freqüentes interrupções através de vários narradores, e a

atualização do mito de Antígona (Rosalina) inova a interpretação sobre as

questões do tempo e do destino.

Destacam-se alguns mitos:

- Tirésias, que, por ter matado a fêmea de um casal de cobras em

copulação foi transformado em mulher e, tempos depois, passando pelo

mesmo local, vendo o mesmo casal e matando o macho voltou a ser homem,

de forma que experienciou os dois sexos; e que, conforme outro mito, por ter

visto a deusa Atena se banhando foi castigado por ela com a cegueira e com

o dom da profecia em que ninguém acreditaria - é o que fala

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enigmaticamente. Entretanto, o enigma se desvela velando-se para quem se

propõe a medir-se com o divino e tomar a poesia como medida, já que a fala

profética e poética do adivinho revela a voz dos deuses. A cegueira de

Tirésias aconteceu porque ele viu em demasia, porém o que viu foi a

aparência. Após a cegueira passa a ver a essência das coisas e é por esse

motivo que ninguém acredita nele: os mortais só enxergam a aparência e não

conseguem se abrir para a escuta da essência.

- Fedra, que se apaixona pelo seu enteado, Hipólito, e não sendo

correspondida, se enforca e deixa uma carta que o acusa de seduzi-la;

imagina que tem o controle do destino e vê seu mundo destruído quando

descobre que não tem.

- Hipólito, filho bastardo de Teseu, dedica-se unicamente à caça,

cultua a deusa Ártemis e é puro e casto.

- Antígona, filha de Édipo e Jocasta que, contrariando as ordens de

Creonte, mas obedecendo às leis não escritas dos deuses, enterra o irmão e é

condenada a ser sepultada viva, mas se mata antes que Creonte,

arrependido, fosse libertá-la e lamenta apenas morrer sem ter tido filhos.

Quando o mundo desses mitos é destruído, constrói-se outro fundado

na experiência humana e na linguagem mítica que os narra. Tal linguagem

não pode ser compreendida pelos princípios da lógica, pois pluraliza

sentidos, deixa de ser signo e torna-se símbolo, não remete a um significado,

mas a outro significante, que por sua vez remete a outro e assim

sucessivamente até ocorrer o desvelar e velar e consumar-se a tensão ente e

ser. O simultâneo velar-se e desvelar-se dessa linguagem mitopoética realiza-

se na disputa entre Terra e Mundo. Mundo como abertura, ‘amplitude

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reinante de referências abertas’, confronta-se a todo momento com Terra,

como abrigo, o que ‘clareia ao mesmo tempo aquilo sobre o que e em que o

homem funda seu morar’. A obra funda mundo, abre perspectivas originais,

mas abriga-se na Terra e para ela se retira. Como a Terra, a obra também se

esfacela diante de tentativas de análise e conceituações. A disputa como

linguagem coloca em tensão memória – aquilo em que se acreditava e que foi

destruído – e tempo presente - aquilo que vigora atualmente. Por exemplo, a

destruição dos valores de Malvina, que acreditava controlar o destino. Na

narrativa trágica, a memória (do que se tinha como real) não encontra mais

eco no que se faz presente, e a tensão se radicaliza até atingir a harmonia de

contrários. Por abrir perspectivas originais, a obra que se queira

verdadeiramente obra não pode se ater a regras de composição válidas para

obras em geral, ao contrário, o artista deve procurar o procedimento de

composição válido para aquela obra específica, que se doará no exercício de

escuta do apelo da arte. O mesmo exercício deve fazer o intérprete.

Há leis rígidas de composição na narrativa douradiana. O autor se

revela como um arquiteto da palavra chegando inclusive a compor plantas

baixas para seus romances. Cada um deles recebe um tratamento original

da palavra. N’Os Sinos da Agonia, o labirinto, o narrador coral e os três

pontos de vista distintos da mesma história tratam da questão da

interpretação e do caráter ambíguo da verdade. Em Ópera dos Mortos, evoca-

se a questão da memória como o que modifica o presente. Há vários focos

narrativos, além do narrador coral, o que traz a questão do tempo como

condutor da interpretação. Há também traços comuns que devem ser

considerados, pois ainda que presentes em todos os romances de Autran

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Dourado são interpretações originais das questões do trágico e do barroco: a

narrativa em blocos e a falsa pessoa. Ambos os recursos conferem

movimento e ambigüidade ao texto. Embora rígidas, as leis de composição de

forma alguma limitam a interpretação a uma análise teórica, abstrata e

conceitual, porque estão comprometidas com a alétheia. A linguagem

dinâmica e ambígua de Dourado é sua própria poética. No exercício de

escuta da obra, o real se manifesta em tensões que se revelam como a

própria vida em seus caminhos: verdade/não-verdade, saber/não saber,

morte/vida. A propósito, leia-se Manuel Antônio de Castro:

A criatividade é o problema central da história literária. Porque querer historiar a literariedade é discursá-la (institucionalizá-la), logo, não a apreender. Não se trata, porém, de a dizer. Nem as obras a dizem, mas de a pensar e deixá-la manifestar-se ao se velar como tensão e força da história da literatura e história das funções literárias. (CASTRO, 1982, p.129)

Quando a técnica de composição entra em consonância com a

alétheia, a literariedade fala na obra, também como tensão entre aparência e

essência. A aparência é o que o senso comum chama de realidade, e a

essência é aquilo que se revela aos olhos do leitor que percorre o círculo

hermenêutico da interpretação. Na obra de arte, o estranho se torna familiar

e o familiar se torna estranho para que o leitor atinja a dimensão do ser que

estava oculta sob a máscara e os automatismos do cotidiano. A literariedade

traz ao leitor a experiência do ser.

A questão da técnica de há muito entra em conflito com o fazer

poético. Em que medida a técnica de composição limita a inventividade da

obra de arte?

Houve momentos na história literária quando o excesso de técnica fez

com que alguns movimentos se reduzissem a justificativas de teses

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sociológicas ou psicológicas (caso do Realismo/Naturalismo no Brasil) ou

ainda a complicados exercícios estéticos que deceparam a liberdade de

criação dos poetas (caso do parnasianismo). Em outros momentos, porém, a

técnica caminha de mãos dadas, ao lado, e não à frente da inventividade em

direção ao desvelamento da verdade poética e da construção do real. É o

caso de Autran Dourado.

O real na obra de arte inclui a possibilidade e não apenas o que já está

visto e imposto como o ‘real concreto’ ou ‘a vida real’ distante da ficção. A

relação entre arte e realidade é complexa, sobretudo, porque toca no

problema da serventia tão cara aos tempos atuais e à sociedade de consumo.

A obra não serve a fins práticos, como um programa de computador, um

remédio, uma estante. Ela serve a quê, então?

Aprofundando o pensamento, entende-se que, se a obra não tem

serventia, ela não é serva de esquemas limitadores da capacidade criativa,

não se submete aos ditames da lógica cartesiana e constrói o real poético,

que é o real da vida, o real que apresenta possibilidades e não imposições.

Nas palavras de Alberto Pucheu:

A literatura é uma serva das intensidades de vida, tornando-se, assim, um caminho vital intensivo. E progressivo. A literatura é um caminho vital intensivo e progressivo de vida (...) Criando, no nosso, outros corpos, a literatura torna possível vivenciar vida e, tornando vida vivível, a literatura torna a vida real. (PUCHEU, in CASTRO, 2004, p.225)

A pergunta sobre a serventia não só da literatura como também da

arte em geral é oriunda da metafísica, que sempre pensou o ente a partir de

sua serventia. Ao localizar a obra de arte no âmbito das coisas, Heidegger

expõe os três conceitos tradicionais de coisa: suporte de características,

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apreensível através de sensações e matéria enformada114. A coisa é uma

matéria (madeira, couro, granito, etc) a que se dá uma forma (escultura,

sapato, machado, etc.). Tal conceito é aparentemente irrefutável, mas, assim

como os outros dois, não alcança o ser coisa da coisa (a coisidade), uma vez

que a combinação forma – matéria regula-se a partir da serventia (‘traço

fundamental a partir do qual este ente nos olha, quer dizer, reluz e com isso

se faz presente, e assim é este ente’). A serventia subordina o ente. A partir

da serventia se escolhem matéria e forma. O ente se torna um utensílio

fabricado para determinado uso, portanto, matéria e forma pertencem à

essência do utensílio, não da coisa.

Os três conceitos de coisa alcançaram amplitude tal que valem para

todo ente, não só para utensílio, coisa e obra, e é na observação desta

passagem que decorre, pois, o pensamento atual sobre o ente em geral. Não

se habituou a refletir sobre cada ente singular. Dessa forma, constituem

obstáculo, e não acesso “ao caráter de coisa da coisa, ao caráter de utensílio

do utensílio e mais ainda para o caráter de obra da obra”.115 Porém, a grande

dificuldade de apreensão da coisidade da coisa está no fato de que ela se

retrai: “É que a discreta coisa subtrai-se da maneira mais obstinada ao

pensamento”.116 O utensílio é impelido para o uso, já a mera coisa e a obra

não são impelidas a nada, daí a dificuldade de se apreenderem por

conceitos. Como o primado da razão, marco da modernidade, necessita tudo

conceituar e medir, criou postulados que valem para generalidades, mas não

114 Cf HEIDEGGER, A origem da obra de arte, op. cit. 115 Ibid. p.20. 116 Ibid.

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para particularidades. Porém, cada obra de arte é única, e apenas por esse

motivo pode abrir mundo e evocar questões.

Dos três conceitos, o que gozou maior primazia foi o último, pois o

utensílio está muito próximo do homem, porque ‘chega ao ser através de

nosso próprio criar’. Como a obra também é criada, tem sido pensada em

vista do uso, como esse uso não é encontrado, pelo menos não como o uso

do sapato e do machado, a obra tem sido vista como algo de menor

importância, cujo uso pode consistir no máximo em enfeite ou fruição

estética. Porque o utensílio (impelido para o uso) se localiza numa posição

intermediária entre a coisa (não impelida a nada) e a obra, Heidegger chega

ao utensílio sapatos e ao exemplo do quadro de Van Gogh e mostra que a

obra, longe de ser utensílio, é narrar inaugural, desvelamento (alétheia) e

abertura de mundo. O quadro de Van Gogh faz surgir o ser do sapato ao

revelar mundo e abrigar-se na Terra (que se retrai). A disputa entre Terra

(fechamento) e Mundo (abertura) faz com que tanto um como outro seja o

que é essencialmente. A obra serve ao resgate do ser e nesse sentido deve ser

pensada como ‘caminho vital intensivo’ e ‘serva da vida’, que realiza uma

profunda experiência de ser no mundo: isto é o habitar poeticamente a terra,

a tomada da poesia (linguagem que desvela o velado e vela o desvelado,

fazendo o divino surgir para o homem como mistério) como medida e a

reunião da quadratura céu, terra, mortais e imortais.

Se é preciso escutar o texto, faz-se necessário escutar também o que o

autor tem a dizer sobre sua obra. Autran Dourado presenteia seus leitores

com sua Poética de Romance: Matéria de Carpintaria, onde fala,

generosamente, de seu fazer poético.

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Questão central para a compreensão da poética de Autran Dourado é

seu processo de criação de personagens. Refutando fortemente as análises

de personagens que se baseiam na sociologia ou na psicologia, o autor

desenvolve sua idéia de personagem como metáfora, não sem antes lembrar

Antonio Candido e suas considerações sobre personagem, realidade empírica

e realidade poética. Para o crítico, a verdade da personagem depende “antes

do mais, da função que exerce na estrutura do romance, de modo a

concluirmos que é mais um problema de organização interna que de

equivalência à realidade exterior”.117 A palavra estrutura, na narrativa de

Autran Dourado, equivale a arquitetura, a processo de composição do

romance, e não a modelos sociais e econômicos determinantes da obra de

arte. Devido à estrutura arquitetônica, Dourado desenha plantas baixas para

seus livros. Elas são como ponto de partida para a narrativa labiríntica, que

é aparente desordem e criação de nova ordem (narrativa). É nesta

perspectiva que a obra douradiana se converte em corpo. Segundo Manuel

Antônio de Castro,

corpo somos o que somos enquanto realização do ser como poiesis. Daí sua ligação com todas as artes. O corpo palavra é corpo do sentido do ser que somos, doação da Cura118 e das questões. (CASTRO)119

A obra de Autran Dourado é corpo porque constrói o real poeticamente

e dá sentido à vida como experiência de ser, não apenas como sobrevivência.

Suas personagens são metáforas. Metáfora é uma palavra que tem origem

117 CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2005. p.75. 118 Segundo o mito, Cura foi quem primeiro fingiu/friccionou o homem a partir da terra. É a doadora da poesia e da linguagem ao homem. 119 Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/

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grega, é composta pelo prefixo meta, que significa: no meio de, atrás, em

seguida, depois, entre, e pelo sufixo phorá, que é ação de levar, de conduzir à

frente. E são as personagens douradianas que conduzem o leitor pelo

labirinto da narrativa entre as questões que evocam.

O mestre imaginário do autor esclarece que:

Labirinto não significa confusão, mas nova ordem. Uma ordem codificada e cifrada, sistema de signos. Uma construção arquitetônica de forma rígida e cerrada, geométrica, pura cristalografia. Quando se aplica a palavra a qualquer outra forma, natural ou desorganizada, o que se faz nada mais é que usá-la metaforicamente.

É nessa arquitetura labiríntica que se inscrevem as personagens de

Autran Dourado, e é com ela que a personagem se relaciona, não com

contextos exteriores ao romance. A realidade empírica, para o autor, é

matéria prima “para criar uma outra realidade que obedece à complicada

geometria literária, ao seu sistema de forças, que nada tem a ver com as

ciências físicas, naturais ou sociais”.120 Percebe-se que a obra, embora não

pertença à realidade empírica, por outro lado, não se divorcia dela, uma vez

que dela faz uso. As palavras em destaque despertam interesse: a realidade

criada na obra não se liga às ciências porque é poética, como a vida é

poética, vale dizer, é uma realidade que inclui possibilidades e na qual a

verdade é revelada e simultaneamente velada. Enquanto a realidade das

ciências físicas, naturais ou sociais tem, com seus conceitos e classificações,

a idéia de que a verdade é aquilo que é certo, em oposição àquilo que é

errado. A verdade das ciências é orthotes, a correção do olhar, a adequação

120 DOURADO, Uma poética de romance, op. cit., p.95. Destaque nosso.

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ao ideal platônico. A realidade poética é alétheia, narrar inaugural, fundação

de mundo, desvelamento:

No que a linguagem nomeia o ente pela primeira vez, tal nomear traz então o ente para a palavra e para a manifestação. Este nomear nomeia o ente em seu ser a partir deste. Tal narrar inaugural é um projetar do iluminar em que é anunciado como o ente, no que ele é, advém do aberto. Projetar é o livre delinear de um projeto, em que o desvelamento se configura como tal no ente. O enunciar projetante se torna imediatamente a recusa de toda surda confusão, na qual o ente se oculta e se retrai. (CASTRO, 2006, p.43)

Por desvelar o ente e trazê-lo para a manifestação, a linguagem poética

não se prende a nenhum tipo de modelo ideal. Cada obra é uma nova

realidade que conduz o leitor entre os caminhos da linguagem original que a

constrói.

Da mesma maneira acontece com as personagens de Autran Dourado.

Não são pessoas ‘reais’, muito menos representações de pessoas, mas

imagens-questões, ou, nas palavras do autor, metáforas – “o personagem

tem no romance a mesma função que a metáfora na frase”121 – do tempo, do

destino, da memória, do ser, do saber. É como metáfora que as personagens

douradianas se relacionam com mitos gregos e também os interpretam

originalmente. A personagem como imagem-questão, criada através de

‘recursos técnicos e objetivos’ tem muito mais força do que as ‘idéias e as

filosofanças do autor’. Para Dourado: “a sua função [do romancista] é bem

mais modesta [que a dos filósofos] e por isso mesmo mais grandiosa”.122

Mais modesta porque mais próxima da vida humana, que inclui errância e

possibilidade e, por isso mesmo, mais grandiosa porque é construtora do

121 DOURADO, Uma poética de romance, op. cit., p.102. 122 Ibid. p. 98.

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real poético. Os recursos técnicos e objetivos importam para a construção de

imagens-questões, mas nunca se convertem em recursos de retórica, que

podem dotar a narrativa de beleza estética, mas a esvaziam de significado

poético, construtor do verdadeiro habitar humano.

No centro do labirinto está a chave para a compreensão da obra, “mas,

sem a chave, como entrar? Como sair?”.123

Chave é o que abre portas. A chave abriria o caminho ‘correto’ do

labirinto, mas aqui se trata de possibilidades de caminhos. Vários caminhos

levam ao monstro (fim ou centro do labirinto), mas monstro é o que se

mostra, é o estranho se revelando. Tanto é o reconhecimento da finitude

como o do problema da fixação no ente e o esquecimento do ser. A questão

aqui é –sempre- o ser. Há chave para ela?

Não se trata de uma chave para um único caminho. Vários são os

caminhos e o encontro da chave vai-se dando ao longo deles. Riobaldo,

criação magistral de Guimarães Rosa, diz: ‘Viver é muito perigoso. Porque

ainda não se sabe’. Não há uma chave que leve ao conhecimento pleno do

ser, porque não se pode conhecê-lo plenamente. A chave aqui mencionada

leva ao conhecimento de que o ser é o que se revela velando-se e que o

homem é ser (não-limite ou possibilidade), mas também ente (limite ou

finitude). Esse reconhecimento é como enxergar o monstro.

É justamente neste ponto que está a importância da situação narrativa

escolhida por Autran Dourado. A mediação que se estabelece por esse

narrador ‘presente, mas invisível’, que reflete os eventos narrados nas

123 DOURADO, Uma poética de romance, op. cit., p.192.

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consciências das personagens, é como o fio de Ariadne, conduzindo o leitor

no desvelamento do labirinto, muito embora o fio não elimine possibilidades,

ao contrário, faz com que o leitor as vislumbre.

É a partir do labirinto que se dá a isomorfia entre a forma e o

conteúdo: tanto a estrutura do romance é um labirinto, como a própria

trama é o percurso que as três personagens principais realizam dentro do

labirinto da vida. Labirinticamente construído, o romance instaura vários

caminhos, que levam ao desconhecido, ao estranho, ao não-ser, ao

Minotauro. Cada personagem é único e único é o caminho que percorrem. O

cruzamento dos caminhos estabelece diálogos. O encontro com o Minotauro

simboliza a alteridade. Manuel Antônio de Castro concebe três alteridades: o

outro como interlocutor; o outro que cada um é, onde se dá o encontro com

o não-eu, o Minotauro – por isso Autran Dourado pode construir

personagens como metáfora - e o logos, a terceira alteridade, que, como

reunião e dizer, sustenta as outras duas. O homem só é em relação a si

mesmo e aos outros, simultaneamente. O fundamento dessa relação é a

linguagem, o diálogo - conforme expõe Castro: ‘Diálogo se compõe de um

prefixo: dia, que tem três significados; dois, através de e entre, e de logo,

provindo do grego logos’.

Para a poética de Autran Dourado, é relevante a questão do diálogo

estabelecido entre as personagens ao longo do labirinto: cada uma delas

encontra o não-eu - o Minotauro - e realiza também o diálogo com outras

personagens. N’Os Sinos da Agonia, Malvina, Januário e Gaspar dialogam na

construção da narrativa, que é um labirinto, posto que a narrativa em blocos

distintos uns dos outros forma o labirinto que o leitor deve percorrer. Esses

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blocos frustram a expectativa do leitor e o conduzem a novas possibilidades

de leitura, de diálogo, de ser. Januário e Gaspar encenam o diálogo mais

instigante, porque não se conhecem. É apenas pelo recurso do personagem

como metáfora que Dourado faz com que Januário e Gaspar sejam duplos, o

que mostra que não se trata de recurso retórico e sim da própria fala da

linguagem. A linguagem que cria unidade entre os dois possibilita que seus

destinos se cruzem através da linguagem. No percurso pelo labirinto a

diferença entre os dois opera em tensão com a identidade. A narrativa

labiríntica é o fundamento dessa tensão porque promove o diálogo entre o

filho bastardo e o legítimo, o mestiço e o branco, o amante fogoso e o casto.

Em Ópera dos Mortos, Rosalina, mesmo se isolando da cidade, dialoga

com ela, sustentada pela tensão entre fala e silêncio. Tensão esta que

também está presente na relação entre Quiquina e a cidade. Quiquina é

muda, mas não surda. Por causa de sua mudez, também é portadora da

tensão entre saber e não saber. Ela não só sabe, como participa da vida no

sobrado, mas não pode (e nem deseja) contar à cidade sobre o mistério que é

a vida de Rosalina. O diálogo entre Rosalina e Juca Passarinho,

aparentemente impossível, porque ele é falastrão e ela contida, assemelha-se

a uma caça de Juca Passarinho: ele tenta alcançar a essência de Rosalina,

mas não consegue porque é um ‘caçador sem munição’, e não atinge a

complexidade da patroa. Ela se lhe apresenta como um ‘guará’, animal difícil

de ser caçado por ser visonho. O diálogo se funda na tensão entre fala e

silêncio: muitas vezes Juca Passarinho fica sentado apenas observando a

patroa confeccionar suas flores de seda, sem trocar uma palavra sequer com

ela, mas nesses momentos as questões vão surgindo, tanto para ele, como

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para o leitor. Rosalina se move entre o duplo domínio do dia e da noite: de

dia patroa e empregado com suas funções e distâncias muito bem

demarcadas, de noite, amantes, e uma Rosalina diametralmente oposta à

Rosalina diurna. Ronaldes de Melo e Souza observa:

O Cosmos é fundamentalmente o Caos momentaneamente detido no incontido ímpeto do movimento intempestivo. A constrangedora razão diurna jamais se absolve da avassaladora paixão noturna. (SOUZA, 2001, p.31)

A obra, escrita sob vários focos narrativos, cria ambigüidade e propicia

um olhar original a cada bloco, assim como nas pinturas barrocas, a cena se

modifica conforme a posição do observador.

O cruzamento desses caminhos dá início à agonia de cada um. Esse

conteúdo trágico, narrado de forma trágica, mantendo-se, entretanto, o

estatuto do gênero romanesco, está em consonância com as correntes

filosóficas atuais, sobretudo porque desconstrói o conceito cartesiano de

sujeito e revela que essa desconstrução é o caminho para que o ser humano

se liberte de suas características demasiado humanas e da reificação

imposta pela sociedade moderna ocidental. É preciso que o homem

reconheça sua finitude não como um fracasso, mas ao contrário, como sua

grandeza. É somente a partir desse reconhecimento que será percebida a

importância das relações intersubjetivas para a realização do ser humano.

Pertinente se faz tomar como exemplo a busca de Malvina pelo suicídio. É

evidente que o leitor não assimilará tal experiência como sua a ponto de

buscar, também ele, o suicídio, mas a epifania de Malvina, que revela que a

‘filha do sol, da luz’ não pode governar seu destino a menos que se mate e

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torne sua palavra imune a qualquer contestação, essa sim, é também a

epifania do leitor.

Em Os Sinos da Agonia a epifania do leitor revela que a morte é origem

de uma nova possibilidade de ser, no exemplo dado, a possibilidade da

exaltação de Malvina. A morte buscada pelo leitor não é a morte física, mas a

morte de uma determinada experiência e início de outra. O título da obra

convida à reflexão: Os sinos da agonia são os sinos da igreja matriz da

cidade, anunciando a agonia de algum habitante. A questão é que, no

percurso da leitura, eles soam ora mais ora menos sombrios conforme o

drama interior da personagem. Quando da morte de João Diogo Galvão, na

quarta jornada (A Roda do Tempo), Malvina, arquiteta do assassinato, após

escrever a Gaspar confessando sua culpa, tem seu drama agônico

intensificado pelos sons dos sinos:

Uma, disse Malvina ao ouvir a primeira pancada do sino-mestre do Carmo. (...) Esperava a segunda para confirmar o que já sabia. A primeira vez que ouviu, manhãzinha ainda, perguntou a Inácia o que era que estavam tocando. Inácia disse agonia. Ela, Malvina, estremeceu. Havia na voz rouca e arrastada de preto sombra e premonição. (DOURADO, 1991, p.169)

A premonição da agonia de Malvina que, momentos depois desta cena,

comete suicídio, é anunciada por Inácia. Entretanto, a premonição é de

Malvina, não da escrava.

A segunda pancada. Malditos sinos que antes apenas a enervavam. Enlouqueciam um cristão. (...) ensurdeciam. Tocavam dentro da sala, a cabeça enfiada na campânula, um enorme e dolorido badalo. Tonta, desesperada, vontade de chorar, de gritar. (...) Reza, pediam reza. Alguém que ia morrer, não morria. Carecia de reza, muita reza. Não ela, alguém agonizando. Antes fosse ela, assim teria a certeza da morte, por mais arrastada que era a agonia. Encontrava a paz, o silêncio de Deus. (...) E veio a terceira, ela sempre contando (...) Malditos! Não se cansava de dizer, como se os sinos fossem os culpados de tudo que aconteceu. Quando os sinos só dobravam depois do acontecido. Ou não? Que nem agora a agonia. Quem sabe antes das coisas acontecerem, não tocavam tão em surdina, o ouvido da gente é que

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não escuta, anunciando agourentos o que vinha? (DOURADO, 1991, p.169)

Antes de experienciar o drama, os sons dos sinos não eram percebidos

com tanta intensidade por Malvina.

E a quarta e a quinta. Aquelas pancadas não acabavam mais. Como um tempo tão curto podia durar uma eternidade. (...) Esperava a sexta (veio), e finalmente a última pancada da agonia. Não vinha, custava. Depois tudo recomeçava, a agonia. Até o desinfeliz encontrar a sua paz. Ela não encontraria nunca, jamais. E o sino-mestre vibrou a sétima pancada. Mais longa do que as outras, se dissolvia redonda e demorada demais no ar. Porque era a última suspirou aliviada. Enquanto não vinha outra vez, daí a pouco. Até o fim. Se morresse antes, não vinha mais. De repente, contraditoriamente, o terror branco do grande silêncio. O agonizante encontrava a sua paz, ela não. (...) E o sino do Carmo começou novamente a bater. A mesma pancada, a mesma toada, a mesma agonia. (...) Alguém está morrendo, disse Malvina a si mesma dentro de sua voluntária surdez. Os ouvidos tapados, não tinha escutado o que a preta falou. Ela morrendo enquanto ele vivia. Morrendo desde que o conheceu. (DOURADO, 1991, p.169-175)

A cena se passa durante um diálogo que Malvina tem com a escrava

Inácia, que conta a reação de Gaspar à carta (rasgou-a e se recusou a ir à

casa de Malvina). À medida que os sinos tocam, os sentimentos de eleos e

phobos, por perceber que não controlava o destino – ‘Nunca comandou, via

agora’ - vão se apossando de Malvina de forma tal que seu próximo passo é

escrever outra carta, desta vez ao capitão general dizendo que os culpados

pela morte de João Diogo Galvão são ela e Gaspar. Em seguida, comete

suicídio.

A narrativa em blocos, em vez de capítulos, propicia a abertura da

obra nos moldes do barroco. Segundo Autran Dourado:

Estrutura aberta segundo os princípios de Wölfflin (as formas abertas do barroco) e não segundo os de Umberto Eco (o conceito de obra aberta). Faço essa distinção a fim de que não se confundam coisas diferentes, agora que a obra de Eco está em voga no Brasil. (DOURADO, 2000, p.27)

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A estrutura aberta torna possíveis ordens de escrita e leituras

diversas, diversos focos narrativos para a mesma obra e, como

conseqüência, a constante mudança de posição do olhar do leitor. A postura

passiva que o leitor assumia nos romances tradicionais não tem mais lugar,

uma vez que a expectativa é frustrada a todo o momento. O melhor exemplo

de obra barroca aberta é, de acordo com Dourado, Dom Quixote, escrito mais

de uma vez, inclusive por narradores diferentes. Exemplo de exploração de

elementos barrocos é o jogo metafórico a partir do qual Autran Dourado cria

imagens que se desdobram em outras, formando uma rede de sentidos e

significados que fazem da obra corpo constituinte do real, “poiesis, ação que

se cria continuamente”124, e não mero objeto de fruição estética. Na terceira

parte da quarta jornada, Dourado faz uma montagem de vocábulos que se

substituem, fundem-se e proliferam-se, revelando Malvina para Januário:

Na surdina, passos em pantufas, gata esperta veludosa (...) Ela era muito embuçada, de mil folhas. Cebola, caramujo. Mulher, uma gata, muitas capas. Filha do sol, rainha. Filha do fogo, danação. Ronronava e mordia. Híbrida, monstro. Como os anjos danados, monstruosa. Como seus irmãos no corpo. Os pés de cabra escondidos. (DOURADO, 1991, p.210).

O autor expõe a maneira como interpreta o Barroco, sobretudo no

quarto capítulo de sua Poética de Romance. O que importa são “as volutas e

curvas sensoriais”.125 Os blocos narrativos permitem maior mobilidade à

narrativa. Cada bloco é uma vivência que traz uma aprendizagem. A

memória da personagem fez da experiência narração. Os blocos narrativos

são imagens-questões de vivências que se entrelaçam para construir a

124 Cf CASTRO, Método e ação: passagens. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/ 125 DOURADO, Poética de romance, op. cit., p.55.

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história. O leitor pode até inverter a ordem da leitura dos blocos sem que se

altere o plano geral da obra. Os blocos são, junto à incorporação de

elementos trágicos, a condição para a estrutura labiríntica da obra. O que

aparentemente é confusão é, na verdade, possibilidade de nova ordem; o

saber do leitor é sempre questionado, não há certezas porque elas se

pretendem eternas, e homem é mortal. A verdade se vela e se desvela

simultaneamente no labirinto da narrativa e o limite humano é a condição

que possibilita novas experienciações do real.

Na chamada falsa pessoa, no caso, falsa terceira pessoa, o autor

escreve inicialmente em primeira pessoa e depois passa para a terceira.

Consegue assim a ambigüidade: “obscuridade de assunto, através de

expressão e elementos claros e simples, é o que busco. Obscuridade de efeito

e não de forma”.126 A alteração não é só gramatical, pois questiona o saber

do narrador e também das personagens, ao mesmo tempo em que coloca

todos em eqüiponderância, pois o recurso cria uma terceira pessoa sem a

onisciência do narrador. Há um discurso de terceira pessoa, mas sob o

ponto de vista de primeira. Pode-se ter uma mesma história sob pontos de

vista distintos, como em Os Sinos da Agonia e Ópera dos Mortos. Não há

solução para os conflitos apresentados, justamente porque a verdade se

apresenta como questão e como poiesis.

Ao revelar o processo de composição de Tempo de Amar, Dourado

conduz o leitor pelo labirinto de sua poética e diz que as alterações feitas na

126 DOURADO, Poética de romance, op.cit., p.29.

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ordem dos blocos implicaram alterações internas. Percebe-se como o autor

elabora a questão da linguagem:

Pois foi através dele [Tempo de Amar] que comecei a tomar conhecimento de que o importante é o movimento e a linguagem. Como ‘no princípio era o Verbo’, o verbo é que era importante. E não o adjetivo que eu vivia cortando (...), trocando por sinônimos. Verifiquei que o importante era o verbo, a pessoa e o tempo do verbo, não o verbo como eu o considerava até então, pois pensava no verbo como palavra e não como origem e fim do movimento. (DOURADO, 2000, p.33-34)

Além da noção de verbo como origem e fim do movimento, são

relevantes as considerações do autor acerca do substantivo:

É sobretudo com o substantivo que se fazem as imagens e as metáforas. As coisas são substantivos. O personagem, seu nome e seu corpo. O personagem como imagem ou metáfora. O personagem é substantivo. (...) aprendi que as imagens são superiores às idéias abstratas. (DOURADO, 2000, p.35)

Verbo e substantivo aqui, nota-se, vão além de classificações

gramaticais e se tornam suporte de imagens questões que remetem à

questão do ser, pois, no dizer de Manuel Antônio de Castro:

A relação da gramática com a linguagem é muito complexa, porque ela nasce junto com a escrita, a sofística e a metafísica. (...) A complexidade surge da própria riqueza vocabular e de pensamento dos gregos. O legein que origina o logos é o dizer enquanto reunir do propor e por adiante. Mas já para o dizer ligado aos deuses, o dizer sagrado, os gregos têm duas palavras que se originam da mesma raiz indo-européia wer ou wre. São elas: Hermes e eiro. Hermes é a imagem-questão mítica da fala do sagrado aos mortais. (...) Contudo, a gramática grega nomeia a ação do dizer não com Hermes, mas com eiro. (...) um dizer ligado à força e ação divinas, um proclamar o que é próprio dos deuses. (...) De eiro se forma rhema, que diz: palavra de ordem, fórmula, frase ou proposição. Por isso para os gramáticos vai indicar a ação o “verbo”, por oposição à simples palavra ou “onoma”. Na retórica já se perdeu o caráter sagrado de eiro. De qualquer maneira, indica a ação de dizer enquanto ligado ao vigor da palavra divina, à poiesis da physis/ser. Este agir se dá no Rhema, ou seja, no verbo, como foi denominado pelos gramáticos. (CASTRO, 2004)127

127 Aula inaugural, segundo semestre, 2004. Faculdade de Letras UFRJ. Ensaio publicado em: www.travessiapoetica.com/ Grifos do autor.

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A gramática ensina que verbo é ação, mas, como o caráter sagrado de

eiro se perdeu, não se percebe que essa ação se refere ao agir poético como

abertura de mundo, elaboração de terra e disputa. Por isso Dourado

considera verbo como origem e fim do movimento: é por ele que se dá o agir

da poiesis. A importância do substantivo decorre do fato de que o fazer/agir

poético se revela nas coisas. O substantivo em linguagem poética é muito

mais do que ‘a palavra que dá nome às coisas’, pois ao nomear a coisa ele a

presentifica desvelando o velado. É nesse sentido que se entende a

superioridade das imagens sobre as idéias abstratas. Abstrações caem no

problema dos conceitos: ficam nas generalidades e esquecem as

particularidades, de modo que não apreendem a essência de cada coisa. As

imagens fogem a conceituações e apresentam as questões diante dos olhos

do leitor.

Retornando ao fragmento 50 de Heráclito: ‘auscultando não a mim,

mas ao logos é sábio dizer com: tudo é um...’ Na poética de Autran Dourado,

o logos reúne e diz ambigüidades que apresentam ao leitor a tensão entre

verdade e não-verdade sob a forma de mitos originalmente interpretados que

conduzem o leitor entre os caminhos do ser (labirinto) até o encontro com o

mistério metaforizado na figura do Minotauro.

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7 OS SINOS DA AGONIA

Narrativa labiríntica, desenho de linhas puras, convite à razão através do segredo e do mistério.

Autran Dourado

Especificamente para o universo ficcional d’Os Sinos da Agonia, a

incorporação de elementos do drama ático é de fundamental importância. A

obra rompe com a estrutura padrão de enredo e funda, ao longo da

narrativa, sua própria estrutura: o labirinto, resultado da interpretação que

Autran Dourado faz da tragédia grega. O que está em jogo não são

acontecimentos que acabam por guiar as personagens. Há na obra uma

profunda meditação sobre o destino de ser de cada uma delas.

Labirinticamente construída, a obra promove uma reflexão sobre o

tempo, o destino e o próprio ato de criação literária. Tal reflexão é pautada

pela experiência que as três personagens principais, vale dizer, três imagens-

questões, têm ao longo do labirinto de suas vidas. Assim como na tragédia

grega, no romance dramático é preciso sofrer para conhecer. A experiência

humana é privilegiada em detrimento de teorias filosóficas preexistentes.

A obra questiona a pretensão da posse de uma verdade única acerca

de tudo e de todos, tanto no plano da expressão, como no plano do

conteúdo. A rede labiríntica e a modulação do ponto de vista são as

principais colunas de sustentação do romance. Uma vez desvelados tais

elementos, a obra converte-se em interpretante de si mesma e propõe um

diálogo poético. Faz-se necessário, portanto, encontrar e interpretar no texto

de Os Sinos da Agonia as técnicas de incorporação de elementos trágicos ao

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gênero romanesco e seu vigor poético. Tais técnicas são: o emolduramento

mitopoético, a modulação do ponto de vista e a introdução do coro como

narrador.

7.1 O emolduramento mitopoético

Januário, Gaspar e Malvina são imagens-questões de personagens

trágicas, Fedra, Medéia e Hipólito.

Malvina é imagem-questão de Fedra, a que se apaixona por seu

enteado (Hipólito), e de Medéia, a que é possuída pela átê 128, pratica um feito

que contraria sua vontade, sua razão e seu sentimento. Malvina é Fedra -

pela paixão por seu enteado e pelo ciúme, e é Medéia - pela ira que a faz

planejar e executar, ainda que por mãos alheias, o assassinato de seu

marido, João Diogo Galvão. Ambas - Fedra e Medéia - descendem de Hélios,

ou Sol, por isso Malvina é chamada de filha do sol, da luz. Ela é ‘paciente

tecedeira’ e deseja controlar o destino. Essa é, além do saber, a grande

questão que Malvina nos traz.

Januário e Gaspar são o emolduramento mitopoético de uma mesma

personagem: Hipólito, o filho bastardo de Teseu e Antíope (ou Hipólita, a

amazona). Hipólito é um rapaz casto e puro que cultua a deusa da caça,

Ártemis, e nega-se a cultuar Afrodite, a deusa do amor. Na tragédia de

Eurípides, Hipólito foge do amor de Fedra, sua madrasta. Em Os Sinos da

Agonia, o lado bastardo de Hipólito é representado por Januário e o lado

128 Segundo Mário da Gama kury: “O Erro personificado, divindade esvoaçante cujos pés pousam nas cabeças dos mortais sem que eles percebam. Em Hesíodos, Ate era irmã de Êris (a Discórdia) e de Anarquia”. KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.49.

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puro, casto e misógino, representado por Gaspar. Januário e Gaspar são,

portanto, o duplo um do outro. Não é por acaso que Malvina vê concretizada

em Januário a imagem do homem que havia idealizado para esquecer

Gaspar. Ela chega mesmo a misturar os dois em sua imaginação:

Não que Malvina tivesse se esquecido de Gaspar. Por artes diabólicas, a tudo seu espírito se acomodava. Tudo fazia para preservar aquela parte tão delicada da alma que Januário jamais podia satisfazer. E como antigamente via nos olhos de João Diogo as sombras de Gaspar, só atingiu o ritmo que o coração e a carne pediam quando viu: Januário era por fora o que Gaspar era por dentro. Aqueles olhos selvagens não podiam enganar. E fundia os dois numa só figura: Januário e Gaspar se completavam, eram uma só pessoa (...) Quando se entregava a Januário, não sabia mais qual dos dois a possuía. Na verdade ela é que os possuía a um só tempo, os fecundava e paria. (DOURADO, 1991, p.123-124)

Januário e Gaspar formam uma unidade dual, são aspectos de uma

mesma realidade, e a identidade entre ambos se dá no âmbito da diferença:

Januário não vive sem Gaspar, e Gaspar não vive sem Januário. Daí a morte

do segundo significar a morte do primeiro. Com essas duas imagens-

questões, pensa-se a questão do ser.

7.2 A Modulação do Ponto de Vista

A modulação do ponto de vista pertence à estrutura labiríntica em Os

Sinos da Agonia, uma vez que cada ponto de vista apresentado nas três

jornadas iniciais, e na quarta, simultaneamente, revela a sabedoria que as

personagens adquiriram durante a caminhada pelo labirinto. O privilégio da

experiência sobre a ciência é um dos pontos chave para a narrativa de

Autran Dourado.

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7.3 Januário

O ponto de vista de Januário é narrado na primeira jornada. Januário

teve sua morte decretada em efígie pelo Capitão General. Autran Dourado

chama atenção para esse rito:

Os Sinos da Agonia nasceram de uma visão ritualística e mítica de um procedimento comum no Brasil colônia – a morte em efígie e suas conseqüências, magia, magia por contágio e magia por similitude (...) Lei da similitude e lei do contato ou contágio. Se se destrói a imagem de uma pessoa se destrói essa pessoa. Se se martiriza um objeto ou imagem de uma pessoa, mesmo à distância ela sofrerá. (DOURADO, 2000, p.172-173)

O decreto do Capitão General é o que coloca Januário em contato com

o nada. “O nada, em última instância revela o âmbito dentro do qual a

essência do homem acha-se suspensa”.129 Mesmo com a possibilidade de

fuga oferecida pelo escravo Isidoro, Januário não consegue senão se dirigir

para a praça - ir ao encontro do nada que é sua morte, mas aqui ela não tem

um sentido negativo, adquire o sentido trágico: o nada como condição e

possibilidade de aquisição de uma nova experiência. Januário é Janus, o

deus bifronte que olha para o que foi e para o que será, é aquele que morre

em vida e tem consciência disso, quer renascer, tornar-se outro; contudo,

sente-se atraído pelo passado (Malvina). Por isso vai em busca de sua

‘verdadeira morte’. Observe-se a fala de Januário com Isidoro:

Eu voltei para aceitar tudo (...) Voltei porque não podia suportar mais a espera de uma bala assassina. Qualquer bala pode me matar, sem perigo de crime. Voltei porque quero escolher minha hora. Quem vai decidir a minha vez sou eu, não eles. Eu vou ter o comando de minha morte. (DOURADO, 1991, p.18)

129 MICHELLAZO, José Carlos. Do Um como Princípio ao Dois como Unidade: Heidegger e a construção Ontológica do Real. São Paulo: Annablume, 1999. p.79.

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A tragicidade de Januário é clara nesse trecho, pois a espera provoca

as emoções de aflição e terror. O perigo eminente da bala assassina causa

em Januário o sentimento de aflição que aumenta de forma tal que culmina

em terror. É esse o terror que faz com que Januário vá voluntariamente ao

encontro de sua morte verdadeira. Sua angústia e sua agonia se dão

justamente porque sua ligação com o passado é tão forte que o impede de se

tornar outro; daí a busca consciente da morte verdadeira:

Aquele que ele era tinha morrido, precisava aceitar a sua morte de outra maneira, ser outro. Mas como, se estava magicamente preso àquela cidade, àquela casa, àquela mulher? Tinha vindo ao encontro de sua verdadeira morte. De manhã enfrentaria os soldados na praça. (DOURADO, 1991, p.18)

A morte verdadeira de Januário é a única possibilidade que ele tem de

se libertar de seu passado e tornar-se outro. Voltar ao passado não é mais

possível, já que a morte em efígie desligou Januário desse passado. A

questão é que o passado da personagem ainda está presente como memória

e destino.

O passado que tanto prende Januário à cidade é Malvina. De fato, o

próprio título da primeira jornada é uma referência à trama de Malvina: “A

Farsa”. Malvina significa, inclusive etimologicamente, a ‘má-sina’ de

Januário. É ela que o induz a praticar o ato que representaria sua morte:

matar João Diogo Galvão (embora haja uma grande ambigüidade em torno

do assassino, esse é o ponto de vista de Januário). Desde a primeira vez que

vê Malvina, sente-se irremediavelmente atraído por ela. Impossível fugir, pois

Malvina é o caminho pelo qual, no intrincado labirinto da vida, Januário se

encontra com a morte, que, para ele, adquire o valor de liberdade e catarse.

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7.4 Gaspar

Ao contrário de Malvina, que tinha a memória do futuro, Gaspar

possuía um ‘destino do passado'. Vivia sempre voltado para a lembrança da

mãe e da irmã mortas. É preciso notar que passado não é mera classificação

gramatical, antes se relaciona com memória. Memória é a potência cósmica

que, na Teogonia de Hesíodo, nasce da união entre Terra, ‘de todos sede

irresvalável sempre’ e Céu, gerado pela própria Terra ‘para cercá-la toda ao

redor’. Tal união não é por acaso e traz profundas implicações: Terra, como

sede irresvalável, gera memória, que decide o que vai permanecer ao abrigo

de Terra, como presença e o que permanecerá como esquecimento. As

considerações de Jaa Torrano possibilitam essa compreensão.

Memória, filha da Terra e do Céu, está na raiz da natureza da Terra e do Céu, esses fundamentos eternamente presentes em si mesmos, e está na raiz de todos os entes e eventos com os quais se configura a Totalidade Cósmica (...). (TORRANO, 2003, p.72)

Porque traz as lembranças passadas para o presente com o mesmo

vigor de outrora, a memória revitaliza o passado como memória narrativa e

faz com que ele se converta de instância cronológica a fundamento

ontológico. Trata-se de uma concepção de tempo semelhante a que se

encontra na Teogonia, conforme explica Jaa Torrano ao refletir sobre os

problemas advindos da união de Zeus com Memória:

o [problema] de uma concepção de tempo que se estrutura sobre a concomitância e simultaneidade sem quaisquer indícios da relação de causa e efeito; o de uma concepção segundo a qual o tempo sob o aspecto qualitativo se apresenta ricamente diversificado enquanto sob o aspecto quantitativo ele dificilmente se deixa apreender pelo rigor da medição. (TORRANO, 2003, p.71)

Gaspar está irremediavelmente preso ao passado porque é nele que a

personagem é: a experiência da perda da mãe e da irmã marcou o

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personagem tão fortemente que agora ele é essa perda e é nela que se

fundamenta sua existência. Gaspar vive da e pela memória. O tempo é como

uma roda sempre a girar que dinamiza e sobrepõe as três instâncias

(passado, presente e futuro). Apenas nesse sentido é que se pode falar em

‘destino do passado’. O destino caminha para o futuro, mas o horizonte de

Gaspar é o passado que a memória não deixa apagar. Gaspar segue seu

destino guiado pela memória, mirando o passado que para ele é vivo,

portanto, presente. O amor de Malvina era contrário a esse caminho que tem

por guia a memória porque é presente e mira o futuro. É uma força contrária

que puxa Gaspar para o futuro, o que soa como traição ao próprio ser de

Gaspar. Por isso a forte recusa.

“Gaspar tinha o culto dos mortos, era duro de esquecer” 130 – e recorria

a esse passado/memória, não para corrigir os erros, como Malvina, mas

para aceitá-los. Nesse sentido, Gaspar é mais trágico que Malvina, pois

reconhece que ele é o erro. Não porque é culpado por ter feito algo

condenável, mas porque é finito, é pouco. Gaspar sabia que o que

encontraria ao final do labirinto de sua vida era a morte e caminhava

consciente e tragicamente para ela:

Por isso, mesmo sabendo, contraditoriamente voltava, não para mudar, mas para avançar mais e mais na escuridão e na imutabilidade, e no passado viver até encontrar a morte. Viver então se transformava para ele quase numa silenciosa cerimônia propiciatória, um ato mítico e cósmico, que punha em perigo a própria existência e cujo fim era o túmulo. Desprotegido e de mãos vazias, sem os instrumentos e as falas mágicas, no silêncio e na solidão, era para ela (a morte) que voluntariamente caminhava. (DOURADO, 1991, p.148)

130 DOURADO, Sinos da Agonia, op. cit.,p.69.

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Por ter escolhido o passado como destino, Gaspar recusa-se a viver no

mundo que avança para o futuro, que na verdade, é o mundo de Malvina.

Sua recusa ao amor de Malvina não é somente por causa da presença do

pai, João Diogo, mas também devido à presentificação do passado – “Depois

da morte de minha mãe não há mais mulher que eu possa amar”.131 Gaspar

faz com que sua vida seja guiada pelo passado, pelo culto aos mortos. Daí

qualquer ligação com o mundo dos vivos parecer-lhe desprezível. A cena em

que, após dias trancado no quarto, Gaspar entra na sala da casa de João

Diogo, decorada por Malvina, e começa a tocar o cravo, mostra o conflito de

sentimentos em que ele vive:

E tirou o primeiro acorde. Horrendo, como estava sem treino! Desistiria, fechava o cravo com raiva, ia embora. Mas decidiu insistir no acorde. Melhor, muito melhor, riu satisfeito (...) De novo o mesmo acorde. Mais seguro de si, mesmo agora, se quisesse, podia tirar o adágio de uma sonata. Os olhos foram se alagando, uma mansidão, uma vaga ternura na alma. (...) De repente se sentiu dividido. Não, não podia se permitir aquele sentimento, ele que antes queria morrer. (DOURADO, 1991 p.154)

O grande drama de Gaspar é a atração e, ao mesmo tempo, repulsão

que sente por Malvina e seu mundo: o mundo da luz. Gaspar se sente um

novo homem após conhecer Malvina, mas esse novo homem não apaga o

Gaspar do passado. Os dois lados vivem em tensão harmônica – e é nessa

tensão que se encontra a agonia da personagem. O casamento com Ana,

pura e casta como ele, é a solução prévia, mas não final, pois o drama de

Gaspar permanece até o momento em que o suicídio de Malvina é anunciado

por um escravo (fim do segundo capítulo, quarta jornada). A morte de

Gaspar é propositalmente deixada em suspenso, mas como ele é o duplo de

131 DOURADO, Sinos da agonia, op.cit., p.130.

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Januário, que efetivamente morre no último capítulo da quarta jornada,

pode-se compreender que as duas mortes se equivalem.

7.5 Malvina

Malvina, com sua memória do futuro, julga-se capaz de traçar não só o

seu destino como o de todos que a rodeiam. É assim que planeja seu

casamento com João Diogo:

Além de saber muito mais nova e bonita do que Mariana, confiava nos seus encantos e chamarizes, no poder infalível de suas maquinações. É verdade que os seus santos padroeiros eram muito fortes, ajudavam muito, mas ela confiava na sua própria fortidão e sina. Assim, apesar dos seus vinte anos, Malvina era paciente tecedeira (...) Quando os enganosos desistissem e o bom e verdadeiro pretendente aparecesse, ela saberia como proceder. (DOURADO, 1991, p.72)

Entretanto, Malvina não podia prever sem ter a vivência das coisas.

Por isso, a partir de seu primeiro encontro com Gaspar, sua vida ‘vai num

crescendo’ e as coisas começam a fugir de seu domínio. Ela também sente

atração e repulsão simultânea por Gaspar, o que provoca seu sofrimento,

seu drama:

Daquele dia em diante tudo na vida de Malvina foi num crescendo. Desde o primeiro olhar que a varou de estremecimento e dor, afogando-a na escuridão, que ela, filha da alegria, da vida e da luz, desconhecia (...), desde aquele encontro na sala as mudanças que começaram a se processar em Malvina escapavam inteiramente ao seu domínio. Sim, ela sofria. A partir daquela hora passou a sofrer e sangrar, Se queimava no silencioso, impossível e pecaminoso amor. Ela mesma sabia que a sua paixão era pecaminosa e sem continuidade possível. Condenava-se severamente o incesto e se punia. Afinal ele era filho do seu marido (DOURADO, 1991, p.99-100)

O sofrimento de Malvina culminará na atè, que a levará a planejar a

morte de seu marido, mas, ainda assim, seu drama não se resolve.

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É preciso interpretar cuidadosamente o vocábulo atè, para que não se

impregne o pensamento grego com a visão cristã, posterior a ele. Erro, no

pensamento ocidental cristão tem a acepção de pecado (falta grave). Na visão

grega, contudo, o erro é próprio do ser humano, porque ele tem a finitude

por limite. Trata-se menos de falta que de errância: a personagem distancia-

se da eqüiponderância enquanto tensão harmônica de contrários - a

verdadeira busca da tragédia grega, pelo desejo de se igualar aos imortais. O

desejo de fazer seu ponto de vista prevalecer sobre os outros provoca um ato

excessivo da personagem, oposto, portanto, à tensão harmônica de

contrários.

O desejo de Malvina de governar o destino é tão grande que ela comete

suicídio para que sua palavra permaneça incontestável. Como alude Autran

Dourado, “Malvina julga que sua destruição é a destruição de Gaspar”.132 A

morte de Malvina, portanto, é sua exaltação. Malvina é imagem do homem

moderno, que imagina poder controlar seu destino e termina por se perder

em dramas e conflitos interiores, porque o desejo de poder suplanta o de ser,

como acontece no mito de Édipo, que quanto mais procurou fugir de seu

destino, mais apressadamente caminhava em sua direção.

7.6 O Coro como narrador

Em Os Sinos da Agonia, as três personagens principais, imagens–

questões do destino, do saber, do ser e da memória, percorrem, de forma

trágica, o labirinto da vida para descobrir a morte como origem. Ao fim do

132 DOURADO, Uma poética de romance, op. cit.,p.181.

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labirinto, o que há é a morte, mas, se o fim do labirinto confunde-se com seu

princípio, tem-se a morte como instauradora de um novo sentido para a

existência. Quem percorreu por inteiro o labirinto sofreu a experiência,

adquiriu, portanto, o conhecimento trágico: somente se sabe quando se sofre

e somente após o sofrimento pode-se antecipar a visão das coisas ainda por

acontecer. Para privilegiar o pathei mathos - o saber universal que afeta o ser

e se torna experienciação da manifestação do real, preconizado pela tragédia

grega, Autran Dourado retira a figura do narrador do romance. Dessa forma,

a carga dramática adquire maior intensidade.

A novidade trazida por Autran Dourado na vertente dramática do

gênero romanesco é a inserção do coro como narrador. É o coro quem

interpreta as ações, que são apenas pretexto para desencadear a reflexão

acerca das emoções, do destino, do tempo, do ser, do saber e da memória.

O segundo capítulo da terceira jornada, O Destino do Passado, inicia

com a seguinte meditação:

Assim como em Malvina havia uma memória do futuro e em Gaspar uma memória do passado, pode-se dizer que havia para ele um destino do passado e para ela um destino do futuro. Embora essas palavras, assim juntas, sobretudo memória do futuro e destino do passado, possam parecer contraditórias e arbitrárias, e na verdade o são e os seus conceitos e significados se chocam e se contradizem (comumente a memória diz respeito ao passado e às coisas ausentes mas vivas, ou melhor – mortas, porque acontecidas, a matéria do destino é sempre o futuro e as coisas latentes, lívidas, ainda por acontecer), só recorrendo a uma arbitrária e contraditória aproximação, a um símile ou metáfora, poderemos entender e amar dois seres tão diferentes e tão próximos, de encontro difícil, senão impossível, a não ser pela destruição, e tudo que com eles se passou e ainda passará. Por isso sobre eles nos debruçamos, mergulhados na sua memória do futuro e no seu destino do passado, na sua memória do passado e no seu destino do futuro, e acompanhamos as suas angústias e desesperos, as suas ânsias e agonias, e assistimos ao mover do engenho acionado e velamos e ouvimos os oráculos e pelos dois imploramos aos deuses cruéis e vingativos, impávidos ou indiferentes às nossas súplicas e ameaças inúteis. Tão acima e tão perto de nós estão os deuses. (DOURADO, 1991, p.146)

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A partir do que foi exposto anteriormente sobre o ponto de vista de

Malvina e Gaspar, compreende-se que as duas personagens são metáforas

do tempo. O tempo na concepção da tragédia grega é o que governa os

deuses, os homens, o cosmos - a totalidade do real.

Autran Dourado, tomando como base essa perspectiva, constrói a idéia

de tempo em Os Sinos da Agonia como uma roda, que define o ciclo trágico

da existência: nascimento, vida e morte. A alegria do nascimento está em

tensão harmônica com a tristeza da morte. O ciclo só se compõe se os dois

contrapontos existirem em eqüiponderância de forças. O desejo de

compreender o destino em consonância com a roda do tempo leva o coro a

invocar Tirésias, o grande adivinho da tragédia sofocleana, o cego que vê

além da aparência:

Ó, Tirésias, iluminado interiormente pela luz da tua escuridão, nos ajude a desvendar e entender, porque essa é a nossa humana ânsia indagadora; mesmo sabendo que é impossível ao homem alterar o intrincado tecido. Às vezes, Tirésias, cuidamos, e por isso a ti recorremos, no Hades ou quando ainda vivias, e ainda agora, antecipadamente sabendo que não se pode evitar e mesmo assim desesperadamente querendo, com a ilusão de que tuas falas, tão carregadas de lutos, presságios e significados, possam nos dizer e orientar em nossas tarefas e atos, como os antigos, não tão antigos como tu, mareavam segundo as estrelas e o simples rumo do agulhão. Te pedimos porque és e foste humano e não um ser divino, e sabemos que ao Senhor dos oráculos, não a ti a quem só é dado ver, somente esta velhíssima prece podemos balbuciar: Nos livre, Senhor, das dores e cicatrizes, e se impossível, nos dê força e coragem para suportar. (DOURADO, 1991, p.147)

‘Desvendar e entender’, descobrir o que há por trás das paredes do

labirinto, é o grande desejo humano, mas o homem só conhecerá partes

desse labirinto, as partes que escolher durante a caminhada, e essa escolha

não pertence ao homem, mas ao ser, pois é uma doação. É impossível ao

homem alterar o traçado do labirinto, mas, à medida que ele próprio decide

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por onde seguir nesse ‘intrincado tecido’ está agindo no sentido da poiesis,

do velar e desvelar do ser, na esfera da tensão entre identidade e diferença.

É interessante notar ainda que o coro pede ajuda a Tirésias porque ele

é um ser humano. É através do humano que o coro pretende ver o divino.

Tirésias é o sábio que fala por enigmas, portanto, apela ao estranho, o que

significa que fala poeticamente. A linguagem de Tirésias só é enigmática para

quem se distanciou de seu ser, durante a busca de méritos, no sentido

hölderliniano do termo.133 Ele sabe que o destino de todos os homens é o

encontro com o nada, mas é justamente esse nada que mostrará novas

possibilidades de existência ao homem, é no encontro com o não ser que se

configuram as diversas formas do ser. A passagem do não ser para o ser,

revelar o ente, fazer existir o que não existe são realizações da arte. A arte é o

que abre mundo, ela apaga os automatismos cotidianos e coloca o homem

em contato com a essência primordial. Nesse sentido, pode-se afirmar que a

trama da obra em questão confunde-se com o próprio ato de narrar, é um

construir, propicia um habitar.

Os Sinos da Agonia é uma narrativa em blocos. Narra-se a mesma

história sob três experienciações diferentes, sendo que o autor deixa o final

de cada bloco em suspenso propositalmente para formar o quarto bloco.

Imagina-se que aí os pontos de vista conflitantes chegariam a um consenso,

mas não é o que ocorre. É assim que a obra questiona a pretensão da posse

do saber universal. A rede labiríntica da obra impede totalmente sua

interpretação por meio de pré-concepções, pois, para usar os termos de

133 Cf HEIDEGGER, ... poeticamente o homem habita, op. cit.

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Heidegger, é preciso escutar o labirinto para encontrar sua ‘chave’, leia-se,

suas possibilidades.

Os temas trágicos falam incessantemente na obra e são eles que

possibilitam o revelar da essência da divindade, dos homens, da terra e do

céu. Conclui-se que é pela interpretação da linguagem trágica da obra que é

revelada a quadratura céu – terra – mortais – imortais; uma ciranda que,

como linguagem, provoca o diálogo poético e, como alétheia, o desvelamento

ao homem do real como mundo. As reflexões sobre a quadratura implicam

também pensamentos sobre o construir e o habitar do homem sobre a Terra.

Os elementos da quadratura formam uma dupla dobra (Zwielfalt), de forma

que só se pode pensar um deles pensando na simplicidade dos outros

quatro134. Entretanto, o que garante a reunião dos quatro em uma tensão

recíproca é a coisa. A coisa, como aquilo que se revela essencialmente, reúne

a quadratura e garante sua tensão.

Heidegger busca no antigo alemão a palavra ‘thing’, que significa coisa

como origem integradora. A coisa reúne a quadratura a medida que os

homens (mortais) habitam a terra e demoram-se sobre ela. E esse demorar-

se se dá junto as coisas. Os mortais salvam (resguardam) a terra porque se

reúnem junto às coisas, que se revelam em sua simplicidade. Para

Heidegger: “enquanto resguardo, o habitar preserva a quadratura naquilo

junto a que os mortais se demoram: nas coisas”.135 A coisa se relaciona com

o habitar porque funda um lugar e a partir dele abre espaço para o habitar

humano. O espaço não está além do homem, pois:

134 Cf. HEIDEGGER, Construir, habitar, pensar, p. 125-141. 135 Ibid. p. 131.

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Ao se dizer “um homem” e ao se pensar nessa palavra aquele que é no modo humano, ou seja, que habita, já se pensa imediatamente no nome “homem” a demora, na quadratura, junto às coisas. (HEIDEGGER, 2002, p.136)

O homem habita um espaço aberto por um lugar, por sua vez, fundado

por uma coisa construída. Diz Heidegger:

A referência do homem aos lugares e através dos lugares aos espaços repousa no habitar. A relação entre homem e espaço nada mais é do que um habitar pensado de maneira essencial. (HEIDEGGER, 2002, p.137)

Entende-se, a partir destas considerações, porque o construir pertence

ao habitar: construir significa edificar lugares e lugares propiciam espaços.

Ao fundar espaço, o lugar deixa ser a quadratura uma vez que devolve cada

um de seus elementos à sua essência e, ao mesmo tempo, ensina o homem a

compreendê-los com relação à dupla dobra (Zwiefalt).

Contudo, para receber e compreender a revelação da coisa como o que

se mostra em sua essência e em sua simplicidade, o homem deve abandonar

os automatismos que o cotidiano lhe impõe e reaprender a olhar coisas,

terra, céu, mortais e imortais.

Portanto, para pensar a simplicidade dos quatro elementos, e também

das coisas, é necessário escutá-los, deixá-los ser. Ora, essa reaprendizagem

do olhar se dá por meio da linguagem poética que, ao desfamiliarizar as

coisas, obriga o homem a um novo olhar: justamente aquele que enxerga a

essência, o ser coisa da coisa. É nesse sentido que se compreendem a

quadratura, o habitar e o construir.

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É por isso que o pensar pertence ao habitar: o homem pensa porque

habita; constrói porque habita. Pensar e construir não se confundem, mas

relacionam-se com o habitar na unidade promovida pela quadratura.

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8 ÓPERA DOS MORTOS

Memória e imaginação, labirinto no tempo. Quando se reduz a memória e a imaginação

(tempo) a espaço, tem-se o perfeito labirinto. Autran Dourado

Em Ópera dos Mortos a ambigüidade característica do barroco

radicaliza-se, a ponto de unirem-se casa e personagens barrocas (o sobrado

e Rosalina). Os elementos do barroco, interpretados pelo autor já na primeira

parte, são imagens que constroem e construirão a casa:

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagine; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado, veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo veja: a casa ou a história. (DOURADO, 1990, p.06)

O rio (repouso e movimento), o jogo de luz e sombra, de cheios e

vazios, de retas e curvas, constroem a casa, a habitação das personagens

principais. O habitar de Rosalina é feito desse jogo de contrários que compõe

o sobrado. É a partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que

faz com que a quadratura se manifeste em um jogo de movimento e repouso.

Ele não é habitação por ter sido construído, ao contrário, teve de ser

construído por ser e para ser habitação. Heidegger esclarece que uma coisa é

uma coisa “à medida e enquanto coisifica, no sentido de reunir e recolher,

numa unidade, as diferenças”.136 O sobrado é uma coisa enquanto

136 HEIDEGGER, Construir, habitar, pensar, op. cit., p.155.

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habitação, é fundação de mundo, não só para as personagens que nele

habitam, como também para a cidade, que se rege por ele. Rosalina é a

união permanente entre Lucas Procópio e João Capistrano porque apenas

como essa unidade dual pode ser.

O sobrado é também imagem-questão da linguagem, pois, ao se

habitar o sobrado, constrói-se a linguagem como a casa do ser. A linguagem

barroca não está em Ópera dos Mortos com a função de descrever o sobrado.

Não se trata de falar sobre a casa, mas de construí-la com a linguagem

compatível com essa habitação plural e, simultaneamente, una.

Observa-se a questão do poder da linguagem de trazer os seres à luz

da presença, conforme exposto no capítulo 3, na cena em que Rosalina,

sozinha em casa, aflige-se com sua solidão enquanto aguarda a volta de

Quiquina, que havia saído para vender as flores de pano fabricadas pela

patroa:

Aí estava ela de novo sendo empurrada para as sombras. Com alguém que não quisesse dormir (o sono amortecia as pálpebras) força num susto voltar ao tempo acordado à existência fria das coisas, assim ela agora procurava apalpar os objetos, sentir a sua dureza (...) Para vencer a angústia que agora vinha fundo, varando a carne, começou a dizer os nomes das coisas, a nomeá-las, litúrgica. (DOURADO, 1990, p.39)

A nomeação litúrgica das coisas em volta de Rosalina é o que a

arranca do reino das sombras porque linguagem é desvelamento: traz das

sombras para a luz.

8.1 Rosalina – Memória - Tempo

Rosalina, como personificação do sobrado, é imagem-questão da

memória dos mortos que compõe o sobrado. Segundo Antônio Jardim:

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146

A palavra memória provém do grego Μνεµωνε diz, mais imediatamente, ação de se lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos, preceito, prescrição. Se se descompusesse Μνεµωνε - em Μνε -, que diz em última instância, unidade, e Με que pode dizer, se derivado do indo-europeu *med, governar, pensar sonhar ou medir, teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na sua forma alongada, já no grego, Μνε , diz meditar, inventar, mas também velar. A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a unidade. É pela memória retrospectiva e prospectiva, que a unidade se configura realidade. (...) Por outro lado a memória está associada a Μνεµωςινε (Mnemósine), filha de Іορανόν” (Céu) e de Gai-a (Terra). Ela é, a um só tempo, personificação da memória e a mãe das musas. Ela é onisciente. Segundo Hesíodo, ela sabe “ tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será”. (JARDIM, 2005, p.166)

Memória cuida das coisas e dos seres, realiza a salvaguarda. Filha do

Céu e da Terra, é quem detém o domínio do Visível e do Invisível, pois é ela

que decide entre esquecimento e lembrança, ocultamento e aparição,

velamento e desvelamento. Memória mantém os seres na luz da Presença,

enquanto se dão como não-esquecimento, como alétheia, conforme a

concepção de Jaa Torrano.137 Rosalina é quem mantém Lucas Procópio e

João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas não

pode porque a filha não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela

cidade. Essa foi uma das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é

Lucas Procópio e João Capistrano, mas Rosalina é a memória dos dois.

Entende-se nesta perspectiva porque Autran Dourado compara os mortos de

Rosalina aos mortos de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses - “Não

esqueço, ninguém deve esquecer” 138 - que se opõe à lei da pólis. Enterrar

João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para

137 Cf . TORRANO, Teogonia, op. cit., p.70. 138 DOURADO, Ópera dos Mortos, op. cit., p. 32.

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Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar

Polinices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.

A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São

símbolos do tempo em Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas.

Os relógios, embora parados, referem-se à dinâmica do tempo. Para

Autran Dourado, o tempo não é concebido como mera sucessão de passado,

presente e futuro, mas uma ciranda, uma roda. É continuidade e

contigüidade, não causalidade, pois, segundo Torrano, é composto de

“momentos imóveis, presenças permanentes em si mesmos”.139 Isso implica

a recíproca imanência entre todas as questões aqui apresentadas:

linguagem, ser, memória e tempo. Nesse diálogo manifesta-se o real poético.

Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo

contínuo dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a

vida do sobrado e de Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu

isolamento Rosalina e o sobrado participam da vida da cidade.

Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo, igualzinho relógio de repetição. (...) Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida. (DOURADO, 1990, p.28-29)

Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda

do tempo.

Para o narrador: “Os relógios da sala estavam todos parados, a gente

escutava as batidas do silêncio. Só na copa ouviam a pêndula no seu

139 Cf. TORRANO, Teogonia, op. cit., p.71-72.

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trabalho de aranha”.140 As batidas do silêncio se fazem ouvir como a

memória que traz o remorso. A pêndula ‘no seu trabalho de aranha’ tece o

tempo, a história e a memória da cidade.

A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a

cidade, e a de João Capistrano, o estabelecimento desse silêncio, mas o

silêncio não cessa a comunicação, pois o sobrado determina, em certos

aspectos a vida da cidade, como observado na citação anterior. Ainda a

respeito da questão da memória, leia-se Ronaldes de Melo e Souza: “A

memória do ser é a memória da origem que origina o originado, mas se

conserva como origem eternamente originante”.141

A memória de Rosalina origina uma nova cidade, uma vez que aquela

nunca mais será a mesma depois da morte de João Capistrano, mas essa

criação não anula o poder criador da memória de Rosalina, que junto com a

cidade, origina também as imagens de Lucas Procópio e João Capistrano.

Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina, dado

que são as questões do tempo, da linguagem e da memória:

Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa (...) (DOURADO, 1990, p.41)

O tempo é como um rio: mesmo parado continua em movimento.

Rosalina não pode mexer nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas

como memória pode fazer com que aquilo que já não é retorne a ser, pode

tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente e que se transforma

140 Dourado, Autran. Opera dos Mortos, op.cit.,p. 29. 141 Souza, Ronaldes de M. Atualidade da tragédia grega, op.cit. p.28

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também no tempo da cidade. O sobrado é o que guarda esse tempo-ciranda

e, em seu silêncio, fala à cidade.

As voçorocas são imagem-questão do trabalho do tempo, que

transforma as coisas em ruínas. Segundo Antônio Houaiss142:

Escavação no solo ou em rocha decomposta causada por erosão do lençol de escoamento de águas pluviais; boçoroca, buracão, vossoroca. Etimologia (segundo Nascentes); tupi: mbo-so’rococa, gerúndio de mboso’rog: ‘romper’.

Elas rompem a terra, abrigo irresvalável do homem. Se esse abrigo

pode romper-se com a ação do tempo, onde o homem encontra sua

segurança? Daí o medo que causam. Elas provocam estranhamento em

quem as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza do homem, mas

que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de ‘encarar as

goelas de gengivas vermelhas das voçorocas’ é a dificuldade de defrontar-se

com a finitude humana, o limite. Por isso elas assustam tanto Juca

Passarinho, sempre alegre e falante: elas o colocam de frente para o nada e

provocam a experiência da escuta do silêncio:

Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanhão, nunca na minha vida! Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas goelas de gengivas vermelhas e escuras (...). Que coisa mais medonha, seu Silvino. Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta fome toda de terra. (DOURADO, 1990, p.60)

As voçorocas, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo:

são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é, mas não

indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade,

assim como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada

142 HOUAISS, Antônio & VILAR, Mauro de S. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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pelo trabalho – ópera – dos mortos, que Rosalina/memória cuidou de manter

presentes tanto para si como para a cidade. Tudo é determinado pelo

sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao

narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As voçorocas estão para a

cidade assim como os relógios estão para o sobrado: “O sobrado era o

túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias”.143

8.2 Rosalina - Verdade

Rosalina também é imagem-questão da verdade. A fusão do pai com

avô, respectivamente, João Capistrano, ‘grande e ponderada figura’, e Lucas

Procópio, ‘homem de muito respeito, de muito despropósito, de muita

loucura braba’,144 é a fusão entre a soprhosyne (comedimento) e a hybris

(desmedida).

Esclarece Autran Dourado que, Honório Cota tem origem em Honório,

que significa “honra, (do lat. honor, oris); posteriormente em ‘Cota d’armas,

vestidura que levarão os Reis d’Armas nas funções públicas, nas quais está

bordado o escudo real’. Escudo, heráldica, nobreza. Linhagem”.145 E

Capistrano - “Capistrana em Minas, calçada alta, em desnível, na rua.

Protege e separa a casa”.146 A honra e a elevação demonstram-se pelo

comedimento de Coronel João Capistrano Honório Cota. Essa é uma das

descrições que o narrador faz da personagem:

De pé, o coronel Honório Cota não se encostava nas pilhas de sacas; sentado, não arriava o corpo na cadeira, raras vezes apoiava as

143 DOURADO, Autran. Ópera dos mortos, op. cit., p.99. 144 Ibid. p.109-110. 145 DOURADO, Autran. Uma poética de romance, op.cit., p.149 146 Ibid. p.150

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espáduas no encosto. Ficava como se tivesse fincado no chão, entre as pernas abertas, uma grande espada em que a mão direita apoiasse. Aquele homem antigo não descansava dele mesmo.147 (DOURADO, 1990, p.11.)

O homem comedido é antigo pela memória do pai (Lucas Procópio) que

não se mostra em sua aparência, mas que está latente e se manifestará,

tanto no sobrado: “Eu e ele juntos para sempre” 148, como em Rosalina.

Até mesmo a demonstração da alegria de João Capistrano é comedida:

Era raro Quincas Ciríaco ouvir uma risada de João Capistrano, não se lembrava mesmo de tê-lo visto alguma vez sorrir escancarado. Apenas um ligeiro repuxar de lábios, as pontas dos dentes aparecendo, os olhos brilhando: Quincas Ciríaco sabia que ele estava rindo. Riso de quem engoliu a alegria.149(DOURADO, 1990, p.11)

Quincas Ciríaco é, segundo Autran Dourado, um duplo de João

Capistrano. É o amigo fiel e confidente que, mais tarde, batizará Rosalina.

Seu nome vem de “Simão Cirineu (nos evangelhos é quem ajuda Jesus a

carregar a cruz, carrega por Ele)”.150 É pelo ponto de vista de Quincas

Ciríaco que o leitor enxerga João Capistrano.

A presença de Lucas Procópio é tão latente em João Capistrano que ele

“tinha nos olhos a tristeza macerada de homem que luta com as

sombras”.151 A luta com as sombras é a luta com a memória que, em sua

criatividade, constrói o sobrado e gera Rosalina. “Só mesmo sabendo é que a

gente vê que aquele sobrado são duas casas. O pai dele é ele mesmo, dizia

Quincas Ciríaco nos seus silêncios. João Capistrano se afastava”.152 A

identidade entre Lucas Procópio e João Capistrano dá suporte à diferença

147 Destaque nosso. 148 DOURADO, Autran. Uma poética de romance, op. cit., p.4 149 Destaque nosso. 150 Ibid. p.150 151 Ibid. p.13 152 Ibid.

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aparente entre os dois. A duplicidade de pai e filho surge quando João

Capistrano descobre a traição política de que foi vítima:

Com quem pensam que estão lidando? Eu sou filho de Lucas Procópio Honório Cota! E não mais falando para Quincas Ciríaco: ele sim, eu era contra, achava que ele estava errado, quis ser um outro. Ele sim sabia lidar com esta cambada! Esta cambada só a pau, só mesmo a pau, os filhos da puta! (...) Os olhos vidrados de João Capistrano na verdade não fitavam ninguém, vinham de um outro mundo, carregados de sombra. (DOURADO, 1990, p.25)

João Capistrano, em seu comedimento, trava uma luta silenciosa com

a cidade: rompe relações com os moradores, no que é acompanhado pela

filha:

Rosalina, já moça, procurava ampará-lo, e a sua maneira de amparar era assumir o silêncio do pai, aquele mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele ódio em surdina, duradouro, de quem nunca se esquece. Às vezes ela arriscava um carinho tímido, tomava-lhe as mãos magras e compridas, alisava-as. Ele olhava para ela e nos seus olhos escuros havia uma ponta de luz feito um princípio de lágrima. Ele retirava as mãos, não se permitia tanto sentimento. (DOURADO, 1990, p.26)

Mas a luta silenciosa é tão ou mais poderosa do que se travada

abertamente. É o que se percebe pela fala carregada de remorso do narrador:

E vinha gente de longe ouvir o relógio-armário, regalar a vista (os mais ousados chegavam a tatear meio a medo, como se decifrassem uma escrita na pedra, com a ponta dos dedos, os arabescos dos motivos chineses), deliciar os ouvidos com a música prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia marcar as horas do nosso remorso.153 (DOURADO, 1990, p.17).

Segundo Autran Dourado, Rosalina não é dual, e sim múltipla, como o

pêndulo do relógio que, quando em movimento, vai de um pólo a outro, mas

não se fixa em lugar nenhum. A personagem se mostra e se oculta entre o

duplo domínio do dia e da noite. José Feliciano (Juca Passarinho), o

empregado da casa, esforça-se, mas não consegue entender o mistério: de

153 Destaque nosso.

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dia a patroa exigente, de noite a amante que se entrega sem pudores. Por

isso a comparação:

Dona Rosalina, me perdoe a comparação, mas a senhora às vezes parece um guará (...) E como ela dissesse que não, não conhecia, é um bicho assim mudador, a gente nunca sabe direito onde é que ele está, fujão, nos ares (...) guará é assim, dona Rosalina, visonho. Quando a gente pensa ele aqui, vai ver está ali, quando a gente vai ali, ele está lá longe, arteiro, esperto, que nem se rindo da gente, na brincadeira de esconde-esconde. É um bicho danado de visonho... (DOURADO, 1990, p.173)

Ao que Rosalina responde:

Eu, visonha? (...) Eu sou sempre a mesma, estou sempre quieta no meu lugar. Eu nunca mudo, José Feliciano, a minha vida até que é por demais igual. (DOURADO, 1990, p.173)

Rosalina pode falar da igualdade de seus dias porque sua constância

reside justamente no movimento do pêndulo. José Feliciano não compreende

isso porque, com seu jeito alegre e falante, só percebe a aparência. Trata-se

de uma personagem de vários nomes, o que indica sua evolução no romance.

Segundo Autran Dourado, o caçador sem munição é:

(...) o adventício, o arrivista, o mensageiro de outro mundo, de outra cultura, o profanador do reino sagrado da casa, de Rosalina, rainha. Rito e mito, liturgia. Postura e gestos hieráticos, de esfinge, de perfil egipcíaco. José Feliciano (felicidade), Zé do Major (o mandado, o agregado), Juca Passarinho (José da infância, o alegre, o gaiato). (DOURADO, 2000, p.150)

Os vários nomes indicam a evolução da personagem ao longo do

romance. Rosalina se multiplica e faz com que José Feliciano também se

multiplique, na tentativa de entendê-la. Como ele, em sua simplicidade, não

compreende a mudança, é o narrador coral quem interpreta:

(o próprio corpo, tomado ou visto ou lembrado separadamente parecia três corpos distintos conforme a alma que nele habitou ou habita ou habitava), aquele mesmo corpo que servia de traço de união e pouso (como podia haver muitas outras, se ele tivesse mais olhos e acuidade para ver assim naquela imagem dos muitos pêndulos sucessivos, ou aquela outra antiga, da flecha - mas para esta necessitaria, impossível para ele, de uma capacidade sofística e

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racional de dissecar - ou então ele esta agora, não antes mencionada mas sentida nas entrelinhas, do óvulo fecundo que se divide em 2, 4, 8, 16... uma infinidade de células que se agrupam para chegar à unidade final, se chegar, a hora do parto chegando), foi quando ele descobriu e pôde separar as três (para cada uma delas era um conforme o desejo de aproximar e conhecê-as); também ele se dividia e se modificava: oh, ele nunca reparou nisto, só nela é reparava a divisão (...) (DOURADO, 1990, p.177)

A imagem da flecha de Zenão, que está em repouso mesmo quando em

movimento, é semelhante à imagem pendular de Rosalina, que, mesmo em

repouso se move no duplo domínio do dia e da noite. José Feliciano não

percebia sua própria mudança porque era um “homem simples”.154 Simples

diz o que não tem desdobramentos. Embora se modificasse, não reparava na

mudança, nem a compreendia, porque era levado a ela por Rosalina, e não

por sua própria disposição anímica. Rosalina age como ‘as voçorocas de

goelas vermelhas’, levando a todos para o encontro com o trágico.

Se Rosalina é pêndulo e transita entre pólos opostos, move-se nas

esferas da verdade e da não-verdade, do ser e do não ser. Rosalina em sua

ambigüidade nunca se dá a conhecer por completo. Assim como a alétheia,

se oculta e se revela, muda e permanece. O movimento do pêndulo constrói

Rosalina, assim como constrói a narrativa. O conhecimento que se tem da

personagem, da obra, da realidade nunca é total porque oriundo do não-

saber. O círculo não se fecha porque a parada do pêndulo é não só a morte

de Rosalina, mas o cessar do saber.

154 Cf. Ópera dos Mortos, op.cit., p.173.

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8.3 Narração, tempo e obra

O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção

de tempo como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob

vários focos narrativos, o que implica dizer que não há um, mas vários

narradores. Por ser, segundo o autor, uma obra mais trágica do que

romanesca, destaca-se aqui o narrador coral, que interpreta os eventos à

moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro,

como nos parênteses do seguinte trecho:

Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.(DOURADO, 1990, p.02)

Principalmente a partir do Bloco 8, intitulado “A Semente no Corpo, na

Terra”, quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem

discurso, só presença, tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as

muitas Rosalinas, que Juca Passarinho não consegue entender:

Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a escuridão total? (...) Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos de imagens concretas (...) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(...) que tinham de comum entre si o traço de união, o corpo... (...) E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (...), a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente ele ficava (...) Essas distinções eram demais para ele, homem simples. (DOURADO, 1990, p.172-173)

E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la:

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Como desistiu de entender, aceitou a sua vida partida ao meio: as noites e os dias. De noite Rosalina, de dia dona Rosalina. Não buscava mais unir no mesmo ser as duas figuras, juntar as duas metades. Chegava mesmo a pensar que elas nunca se encontravam: cada uma seguia o seu caminho sem encontro possível a não ser na morte. A morte de uma significaria o fim da outra? (DOURADO, 1990, p.173)

O bloco 8 é fundamental na arquitetura da obra, pois é nele que se

revela, paulatinamente, a gravidez de Rosalina: é dessa forma que ela passa

a ser três na visão de José Feliciano, embora ele não perceba a gravidez,

apenas a mudança que se opera em sua patroa/amante. A relação entre os

dois se vai modificando, e a sisudez da filha de João Capistrano e neta de

Lucas Procópio dá lugar à serenidade. A narração também se multiplica: há

a narração da obra pelo narrador e a das histórias da família Honório Cota,

feitas por Rosalina a José Feliciano. Esta última interfere na memória do

empregado, de modo a recriá-la a partir da narração de Rosalina:

(...) de tanto sobre ela ouvir falar, e quando ela recontava um caso dos tempos da Pedra Menina ele fechava os olhos e parecia se lembrar. (...) Porque as histórias agora eram diferentes não apenas por ele vivê-las mentalmente mas por ser ela uma outra que estava contando, pareciam a sua própria vida (dele) que ela contava e de olhos fechados ao pé de dona Rosalina ele via as horas passarem pelas pancadas da pêndula na copa. (...), as pancadas da pêndula que lhe lembravam que havia uma outra vida, que o acordavam para a realidade (...) (DOURADO, 1990, p.174)

Ponto de vista também fundamental para a composição da obra é o de

Quiquina. Ela é a ponte entre a cidade e Rosalina, porém, não se pode

atravessá-la porque a criada é muda. Ela não pode (nem deseja) contar à

cidade o que se passa no sobrado. É mediadora da relação entre Rosalina e

os moradores da cidade e também da que existe entre Rosalina e José

Feliciano. Durante o longo trabalho de parto de Rosalina, Quiquina é

parteira e o refletor da cena. Apresenta um longo monólogo interior,

cogitando, inclusive, no que faria caso o parto de Rosalina se complicasse

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Chamaria a parteira com quem aprendera a tarefa, D. Aristina, mas havia o

problema da permissão para a entrada no sobrado:

Agora não podia chamar dona Aristina para ajudar. Ninguém, mesmo tudo dando errado. Não podia chamar ninguém. Ninguém podia entrar no sobrado, agora ela é que não deixava. Tinha de enfrentar tudo sozinha, mesmo tudo dando errado. (DOURADO, 1990, p.180)

Rosalina, em trabalho de parto, está indefesa: experimenta a ruína de

seu mundo, pois um filho representa o olhar em direção ao futuro, enquanto

Rosalina olha apenas para o passado (Autran Dourado observa que não há

no livro um único verbo no futuro) e é para sua manutenção que ela vive. É

Quiquina quem toma as rédeas nesse momento, é ela quem não permite a

entrada de ninguém no sobrado e é ela quem passa a enfrentar tudo

sozinha.

Tanto a Rosalina diurna como a noturna estão presentes no bloco 8:

ambas enfrentam as dores do parto. Entretanto, a diurna quer negar a

noturna:

Quando a dor passa, ela fecha os olhos pra não ver. Carecia disso não. Só bastava encostar a cabeça no seu ombro, abrir o coração e chorar, ela entendia. Sempre não entendeu? Alguma vez falou alguma coisa? Não estava ali pra ajudar? Sem ela como é que Rosalina ia se arranjar? (DOURADO, 1990, p.184)

Quiquina se posta como a mediadora entre as muitas Rosalinas, mas a

reconciliação não vem porque seria a parada do pêndulo e a conseqüente

morte de Rosalina. A mediação de Quiquina importa para a manutenção das

forças contrárias, uma vez que ela sabe de tudo o que ocorre com Rosalina,

mas age em silêncio, acolhendo as mudanças e reações da patroa, faz

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petiscos e quitutes para a Rosalina grávida sem que esta tenha dito uma só

palavra sobre seu estado.155

Os relógios continuam, ainda que parados, marcando o tempo da

presença dos mortos de Rosalina/memória:

Agora só a pêndula marcava as horas no sobrado. Com certeza esperando uma delas morrer. Mas não ia morrer antes de Rosalina. Ela é que pode morrer agora. Ela morrendo, ia parava a pêndula. A barriga estufada, o tambor batendo surdo, um relógio batia na memória. Aí então nesta casa vai acabar tudo que é relógio. (DOURADO, 1990, p.189)

A criança mexendo-se no ventre de Rosalina provoca a tensão entre

passado e futuro. A parada da pêndula é a morte de Rosalina porque ela vive

como movimento. Se no sobrado acaba-se ‘tudo que é relógio’, acabam-se a

memória, o tempo e a própria obra.

A multiplicidade de Rosalina se fundamenta no movimento do

pêndulo: a pergunta do coro já prenuncia a resposta; o fim de uma Rosalina

implica o fim do movimento, portanto o fim da multiplicidade, que, por sua

vez, implica a morte de Rosalina, que só é na multiplicidade.

Como Juca Passarinho não pode interpretar a multiplicidade de

Rosalina, é o coro quem interpreta, porque um narrador onisciente seria

contraditório com a concepção de linguagem dessa obra barroca que dialoga

com a tragédia. Se a tensão harmônica dos contrários é a base da narrativa,

não pode haver certezas universais exclusivas de um narrador.

155 Cf. Opera dos mortos, op, cit., p.180.

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9 CONCLUSÃO

A globalização atual se apresenta como um período histórico complexo,

contraditório e, por isso mesmo, convidativo à reflexão e ao debate. Dentre

as inúmeras dificuldades que se colocam diante desse tema, está o fato de

ser um movimento em curso: ainda não é possível o distanciamento histórico

que contribua com a análise e a compreensão mais acuradas sobre tão

instigante realidade, entretanto, seria leviandade para estudiosos fugir às

questões contemporâneas. É função de intelectuais, artistas e pesquisadores

refletir sobre seu tempo e contribuir para a construção crítica que norteie as

ações humanas, em qualquer circunstância ou lugar.

A arte como acontecer poético conduz à real compreensão do processo

e indica caminhos para que este período seja mais favorável ao habitar

humano. Não se trata de negar, utopicamente, a globalização, mas de

questionar seus rumos e resgatar a soberania nacional, a cultura de um

povo, o papel dos intelectuais e artistas, enfim, tudo aquilo que parecia

obsoleto. Essas questões devem ser repensadas, não extintas.

O delicado momento em que o homem se encontra, exige novos

questionamentos que contribuam para a compreensão da nova realidade que

o cerca. Os outrora consagrados – ‘ismos’ - não mais satisfazem, justamente

porque os conceitos por eles explicados assemelham-se, no momento atual,

a um cobertor curto, que, se cobre os pés, deixa o peito descoberto e, se

cobre o peito, descobre os pés. O papel dos intelectuais, dos artistas e da

cultura, no contexto da globalização, se revela não apenas como um

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ornamento ou um discurso mudo para as inquietações humanas, mas sim

como contribuição para a produção do presente e do futuro.

O momento histórico atual contém uma intensa crise de valores. O ter

tomou o lugar do ser, a quantidade tomou o lugar da qualidade e os seres

humanos, embora se sintam desconfortáveis assim, não conseguem

construir novos valores que substituam os atuais. O excesso de técnica

abafa a manifestação do real e confunde o homem quanto aos seus

referenciais, quanto à medida essencial. Parece que a ética nunca esteve tão

distante e, paradoxalmente, nunca foi tão desejada. Heidegger, ao pensar a

verdade do ser e relacionar obra de arte, coisa, quadratura e medida,

convida-nos a pensar a ética:

Se portanto, de acordo com a significação fundamental da palavra ήθος o nome Ética diz que medita a habitação do homem, então, aquele pensar que pensa a verdade do ser como o elemento primordial do homem enquanto alguém que ek-siste já é em si a Ética originária. (HEIDEGGER, 1991, p.38)

No mundo atual, dito ‘globalizado’ - em que, sob a capa da

universalização, da diversidade e do convívio de culturas, se esconde o

totalitarismo e a perda de identidade do ser humano - o romance dramático

surge como uma possibilidade de resgate do ser para quem se propuser a

percorrer o labirinto da construção poética. A arte, por não conceber uma

verdade única nem se deixar interpretar por teorias a ela preexistentes,

possibilita ao indivíduo a vivência de uma nova experiência que leva ao auto-

conhecimento. Interpretar é interpretar-se. Nesse sentido, a arte, dialoga

com a história, ao mesmo tempo em que adquire a possibilidade de fundá-la

em uma relação extremamente dinâmica. A linguagem poética, manifestação

e morada do ser, tem papel fundamental na condução pelo caminho da

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construção de um tempo histórico em que o homem possa habitar

poeticamente. É nesse sentido que a linguagem plurissignificativa, a tragédia

grega, com seu drama de paixões e o romance como epifania da experiência

humana constroem uma poética em consonância com o momento histórico

atual.

Os Sinos da Agonia e Ópera dos Mortos são romances que incorporam

elementos do gênero trágico e radicalizam a neutralização do enredo regido

pela causalidade de acontecimentos. A ausência de um narrador onisciente

em ambas as obras propiciam maior intensidade dramática, e a fala do coro

recria os grandes autores trágicos ao interpretar os eventos. A fusão entre

romance e tragédia faz com que se questione o conhecimento tão caro à

contemporaneidade. O grande problema acerca desse conhecimento é que

ele se assemelha ao de Édipo: o viajante decifra o enigma da esfinge e livra

Tebas da peste, mas não conhece a si próprio.

Os Sinos da Agonia revela a atualidade da tragédia grega à medida que

mostra que a pretensão do controle do destino é falta de sabedoria. Apenas é

sábio quem aceita o duplo domínio da vida e da morte, ciclo em que gira a

roda do tempo. As três personagens principais da obra adquirem sabedoria

quando se encontram com seu destino e aceitam seu drama agônico. A

linguagem trágica de Os Sinos da Agonia promove o desvelamento da

divindade em sua própria estranheza. É no âmbito da estranheza, que o

divino se mostra ao homem.

Conforme observado no transcorrer do presente trabalho, o divino se

revela na obra de Autran Dourado pela fala poética do coro, que, por sua vez,

invoca a fala poética de Tirésias – o humano que sabia escutar os deuses. No

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nível das personagens, observa-se que não há uma verdade única, portanto,

não se pode considerar os méritos humanos um fim em si mesmo, é preciso

buscar neles um sentido. No nível da linguagem, o leitor, ao percorrer o

labirinto da obra, recebe a revelação de seu limite, toma sua medida e mede

sua dimensão. A rede labiríntica e trágica promove o resgate do ser.

Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e

tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os

conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem

barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em

sua originalidade. Nesse sentido é um acontecer poético e cria mundo, mas

não um mundo paralelo ao chamado ‘real’. O mundo magistralmente criado

em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: o jogo entre

elementos barrocos e trágicos, interpretando originalmente as questões que

inquietam a humanidade desde seus primórdios.

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