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Geraldo Dantas Poderoso

 Nos Porões daDitadura, umaFlor...

1ª Edição

Setembro de 2009Edição do Autor 

São Paulo – Brasil

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 Nos Porões daDitadura, uma

Flor...Geraldo Dantas Poderoso

E-mail para contato com o autor:

[email protected]

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Nos Porões da Ditadura, uma Flor... Página 3

 Prefácio do autor 

Memória nacional, nós temos? Em se tratando de futebol, sim.Qualquer fato envolvendo esse esporte fica registrado como parte

indispensável da nossa história.

Os ingleses criaram o futebol moderno, mas coube aos brasileiros soprar, dando alma. Se algum dia tornar-se feriadonacional o dia do futebol, o número de bandeiras do Brasil seriasuperior ao do dia da independência. Com a diferença de o destaquenão ser o de armamentos de destruição em massa, com soldadosmarchando, e sim os jogadores levando as taças das cinco copasmundiais conquistadas por nossa seleção. Lamentavelmente a sortenos tirou a taça de 1950, realizada em nosso próprio território. Era para ser a nossa primeira grande conquista. Essa frustração perduraaté os dias de hoje. Porque o Brasil fez uma campanha extraordinária jogando duas partidas a mais que o já consagrado campeão da primeira edição da copa em 1930, o Uruguai. O nosso jogador Ademir foi o artilheiro com nove gols. Era tamanha nossasupremacia, que um dos médicos da seleção uruguaia, dois dias antesda final, comentou que se eles perdessem por um placar de “4 x 0”

teriam cumprido suas obrigações com o país deles. A incógnita dofutebol é que nem sempre o melhor vence. E foi justamente isso que prevaleceu naquela partida decisiva do dia 16 de julho no estádio doMaracanã. O primeiro tempo terminou “1 x 1”, Friaça fez pelo Brasile depois o Schiaffino pelo Uruguai. No segundo tempo Ghiggia foi ocarrasco que nos calou ao fazer o gol da vitória. O nosso país choroucopiosamente feito uma criança que perde sua mãe. Na copa de 1978na Argentina, éramos tricampeões mundiais. Novamente tínhamos

uma seleção, imbatível, favorita a taça. A seleção peruana já estavafora da disputa, apenas cumpria tabela. A seleção anfitriã daquelaedição só se classificava para próxima fase se ganhasse por umadiferença mínima de “4” gols do Peru. A ditadura militar Argentinaenfrentava um povo politizado e para aliviar a tensão assegurou que

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 essa façanha fosse possível. A Argentina venceu o Peru por “6 x 0”.Curiosamente o goleiro Quiroga do Peru era argentino de nascimento.O fato concreto é que foi roubada a nossa vaga, possibilitando aArgentina consagrar-se pela primeira vez campeã mundial. Graças ao

método Maquiavel: “os fins justificam os meios”. É uma regraabsoluta entre os tiranos, usar o esporte para propaganda política.Isso vem desde os tempos remotos da Grécia antiga, do impérioRomano, chegando ao terceiro Reich de Adolf Hitler.

O presidente Médici, eleito pelo sistema golpista, exigiu queJoão Saldanha, técnico da seleção brasileira, fosse destituídosumariamente do cargo. Utilizou-se do pretexto da não convocaçãodo jogador Dadá Maravilha, mas na realidade a diferença era políticacomo sempre. Essa mesma diferença resultou na cassação demilhares de brasileiros. Os que não aceitaram o exílio feito através dafrase “Brasil, ame-o ou deixe-o” foram caçados como animais,torturados até a morte.

A nossa seleção brasileira trouxe do México o título detricampeão mundial. Concomitantemente, a década de “70” foi decomemorações e inúmeros casos de violações dos direitos humanos.

Era simplesmente o apogeu da ditadura militar. No qual o termocarrasco não era para designar o jogador que decide a partida. O pleonasmo da palavra “nosso ou nossa” contida neste texto é parafocar a pergunta: “Qual é a nossa responsabilidade como cidadãos brasileiros de um período ditatorial extinto?”.

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Nos Porões da Ditadura, uma Flor... Página 5

Capítulo 1

O povo brasileiro saiu às ruas no dia primeiro de Abril de 1964a fim de protestar pacificamente a ação golpista dos militares, quemais uma vez rasgaram deliberadamente a constituição deste país.

As ordens dos generais que deflagraram o golpe eram de conter quaisquer manifestações contrárias ao regime que se instalava pelaforça das armas.

Os protestos de norte a sul do Brasil foram inibidos a base detiros fatais, espancamentos com extrema selvageria e prisõesdesumanas. O aterrorizante era que isso apenas se tratava de umsimples ensaio, pois o pior estava por vir.

 Na capital sergipana, estudantes universitários foram presos no28º BC (batalhão de caçadores) do Exército. Celas imundas quetinham a capacidade de no máximo quatro pessoas chegavam a ter o

triplo. Os universitários que reclamavam da lotação das celas eramretirados e surrados de cassetetes nos corredores. A fim de que osoutros assistissem, em seguida colocados nas mesmas celas. Essasatitudes dos militares não silenciaram os universitários. Pelocontrário, fez aumentar a revolta. A situação ficou fora do controlequando os militares levaram mais pessoas. Dessa vez a causa principal não era por lotar ainda mais as celas. E sim por umaestudante ser gestante. Mesmo diante de um terremoto de protestoindignado, os militares colocaram-na em uma cela, já abarrotada de

 pessoas. Eles continuaram a exigir que a moça fosse libertada ou osgritos por justiça não cessariam.

Os militares responderam com mais surras violentas, causandoà gestante total descontrole emocional, devido às cenas horripilantes

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 que presenciava de sua cela. Perceberam que os militares não iamceder. O protesto só havia piorado o estado clínico de suacompanheira naquela prisão. Decidiram silenciar-se a fim deconseguir, por meio de um diálogo com o comandante, a libertação

dela. Apenas um universitário tentava falar com os soldados para quefosse ouvido pelo comandante. Porém ninguém lhe dava atenção,deixando-o mais desesperado que os demais. Pois se tratava de suanamorada, presa ao lado de sua cela. Correndo o risco de perder acriança e a sua própria vida se não fosse levada ao hospital.

Justamente ele havia sido o primeiro a ser surrado por ter reclamado da lotação das celas. E foi surrado novamente após ter chamado os militares de bandidos fardados. Por prender suanamorada estando grávida. Os militares fizeram questão de surrá-loem frente à cela onde ela se encontrava presa. De todos, ele era o quetinha sido mais espancado. Por toda parte do seu corpo sangrava: nacabeça, nos braços, pernas, dedos, no nariz, na boca. Porém, não seabateu, manteve-se firme, conseguindo transmitir coragem aosdemais companheiros. E tentava acalmar a sua namorada, dizendo oquanto a amava. Infelizmente aquelas palavras sinceras de amor nãoalteraria o drástico fim que estava preste a ser consumado. Ao saber 

que ela se encontrava à beira de um parto prematuro de alto risco, passou a implorar aos soldados que a levassem ao hospital. Aindaassim continuaram indiferentes, não dando a mínima àquelas duasvidas.

Um tenente que acabara de chegar ficou horrorizado ao ver agestante na cela, deitada no chão, contorcendo-se de dor de parto.Perguntou furioso aos soldados por que ainda não haviam socorrido

aquela mulher. Um dos soldados respondeu que recebeu ordensdiretas do comandante para não prestar socorro a qualquer um dos presos. Ele pediu que ela aguentasse, em poucos minutos iria tirá-ladali. Foi correndo conversar com o comandante. Ouviu do próprioque não pretendia autorizar remoção dela para um hospital, pois ofilho dessa raça não deveria nascer. O tenente repudiou aquelaatitude nazista. O comandante o advertiu que não se atrevesse a

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infringir a hierarquia militar ou seria energicamente punido. Otenente já estava a par de todo mecanismo golpista, questioná-losignificava punição ou deserção. Ele saiu da sala do comandantemais revoltado do que entrou. Foi consultar a opinião de outros

oficiais. A maioria era contrária a ação golpista, porém faltavacoragem para enfrentá-la a fim de que fosse desarticulada. Ele nãoconseguia parar de pensar naquela mulher sofrendo, trancafiadanuma cela imunda de um regime ditatorial ainda mais imundo.

Os universitários tinham esperança que aquele tenenteretornasse há tempo à prisão. Com a autorização para transferi-la aum hospital. Na medida em que os minutos passavam, ampliavam-seas vozes, ecoando pelo corredor sombrio daquela prisão. Pedidosaflitos de ajuda para a gestante, tão linda e jovem, esvaindo-se emsangue.

O único consolo era a presença de um estudante de medicina.Acomodando-a deitada no chão, pôde conduzir aquele partodificílimo. Sem ter ao menos um simples par de luvas cirúrgicas.Faltava até espaço para ela ficar deitada. Mesmo seus companheirosde cela se apertando ao máximo entre si, ficando uns sentados em

cima dos ombros de outros.

 Nos instantes decorrentes do parto todos ficaram em silêncio.Apenas ouviam-se os gemidos lancinantes dela e a voz do estudantede medicina, realizando o seu primeiro parto.

O guerreiro forte não suportou mais, pois pressentia a morte desua amada, desmoronou em pranto. Naquele momento só havia um

soldado de vigia no portão principal do presídio. Foi justamentenessa hora que o tenente retornou, ordenando que o soldado abrisse acela onde estava a gestante. O soldado perguntou se estava com aautorização por escrito do comandante. Respondeu que sim e fingiu pegar a autorização no bolso da calça, sacando sua arma, apontando

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  para a cabeça do soldado. Ironizou dizendo que a vida dele era aautorização. Ele abriu a cela, assustado, depois o tenente mandou queabrisse as demais, possibilitando ao pai assistir naquele exatoinstante seu melhor amigo puxar o seu filho do ventre de sua mulher.

Ela nem ao menos pode maravilhar-se em ver seu lindo bebê. Deuseu último suspiro de vida, morrendo às dez horas da noite. O choroda criança e do pai se misturavam numa completa desolação. Apesar de ter sido um parto de alto risco, naquela condição desumana, omenino não apresentou nenhum quadro de complicação de saúde.Era como se o destino exigisse a presença dele para escrever seunome na história do Brasil.

O tenente amarrou e amordaçou o soldado dentro da cela. Elehavia armado um esquema para tirar todos dali. Apenas uma pessoanão queria fugir, era o pai da criança que queria ficar ao lado docorpo da mulher para chorar sua dor. Seu melhor amigo com muitocusto o convenceu a fugir com eles. Não havia mais nada a fazer.

Um caminhão defronte ao portão da prisão era o passaporte para a liberdade. Todos entraram na carroceria coberta com uma lona.O tenente dirigiu evitando mostrar seu rosto, passando pelo portão

 principal sem sequer ser parado. Ele mesmo já havia comunicado asaída de um caminhão para buscar mantimentos.

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Capítulo 2

Vinte e cinco anos depois. Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de1990. Num apartamento de classe média alta em Ipanema, de frente para o mar, Vicente trabalhava nos originais do livro em sua antigamáquina portátil de escrever. A campainha tocava insistentemente hávários minutos. Abriu a porta, bastante irritado.

- É você, Celso!

- Pensou que fosse quem? Agentes do DOPS ou do DOI-CODI?

- Pensei que fosse o síndico do prédio. Ele não para de tocar essa campainha. Quando não é a campainha, é o telefone. Por contadisso passei a usar algodão dentro dos ouvidos a fim de poder conseguir me concentrar para escrever o livro. Entre Celso, antes queo chato do síndico apareça.

- Ah! Então é por isso que há dias você não atende ao telefone.- disse Celso após se sentar no sofá - Perdi a conta das ligações quefiz para aqui. Fiquei tão preocupado com você que pedi a um colegaque me substituísse hoje.

- Na certa imaginou que os agentes do DOPS ou do DOI-CODIestiveram aqui e me levaram para mais uma sessão de tortura!

- Mesmo depois de ter terminado o inferno da ditadura militar não consigo acreditar que esses algozes deixaram definitivamente denos perseguir. Talvez quando o Brasil tiver com sua democraciarealmente consolidada, esse fantasma pare de nos assombrar...

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 - Nem um exorcista consegue exorcizar esses fantasmas de

nossas vidas.

- O que o síndico quer com você?

- O pagamento dos quatro meses de condomínio atrasados.

- O Filipe antes de viajar me disse que havia deixado umcheque com você para efetuar o pagamento de seis meses decondomínio. Até que ele retornasse da missa de paz da ONU emAngola.

- Ele deixou, mas houve uma emergência e eu tive de usar essagrana.

- Vicente, por que esperou quatro meses para contar-me que ocondomínio está atrasado? Se tivesse dito logo no começo dava paraeu arranjar o dinheiro. Quatro meses de condomínio eu não tenho.Todas as economias que eu possuía, usei para comprar o meuapartamento. E só foi possível com o empréstimo do banco.Provavelmente vão levar uns quinze anos para quitar essa dívida.

- Não se preocupe, Celso. Eu vou arranjar o dinheiro e pagoantes do Filipe chegar. Faltam dois meses ainda para terminar sua permanência em Angola. Pretendo concluir o livro nesse período ouserei obrigado a arranjar outro lugar. Aquele fascista bloqueia todasas minhas fontes inspiradoras...

- É seu filho... Não seja injusto com ele.

- Alguma vez o Filipe foi justo comigo?

- Vicente, desse jeito jamais conseguirá se aproximar dele.Depois que o Sr. Emmanuel e a Dona Nair faleceram, orelacionamento de vocês piorou. Eu achava que fosse acontecer o

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contrário. Afinal de contas, só são vocês, pai e filho morando nomesmo apartamento.

- Celso, eu não sei até quando vou suportar dividir este

apartamento com o Filipe.

- Eu também tenho minhas diferenças com o meu filho,contudo supero... O amor fala mais forte.

- Nem poderia ser diferente, Miro é um filho que todo paigostaria de tê-lo. Ao mesmo tempo é filho, irmão, amigo, é tudo.Contentar-me-ia se o Filipe fosse ao menos meu amigo. Você maisdo que ninguém sabe que fiz de tudo para conquistar o carinho dele,infelizmente não consegui.

- Quem ama sempre está encontrando um jeito de conquistar a pessoa querida. Tenho de admitir, o Filipe mudou muito, depois deentrar para o Exército. Mas se o lapidar com um jeito especial de pai,será possível resgatar o lado bom que ele sempre teve.

- Desde quando começou a assistir novelas?

Ambos se descontraíram.

- Vicente, assistiu os telejornais de hoje?

- Não! Faz dias que não ligo a televisão nem o rádio.

- Então vou te dar uma ótima notícia: mais um grilhão

vergonhoso se esfacelou diante do grito universal de justiça. NelsonMandela foi libertado, hoje.

- Viva! Essa primeira vitória irá conduzir a outras, levando o bravo Nelson Mandela à presidência da África do Sul. Pondo fim aos

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 trezentos anos do poder racista que se instalou como uma gangrenaantidemocrática. Vamos brindar!

Vicente foi até a cozinha, retornando com duas latas de

cervejas. Após terem brindado, Celso leu algumas páginas, recém-escritas.

- Fico feliz por você ter recebido a proposta de um editor paraescrever esse livro. Contando uma parte da história que nós vivemosno período nefasto do regime militar. Você é a pessoa certa paraescrevê-lo. Por ter sido personagem e principalmente por ser umescritor excepcional. Sabe provocar nos leitores dois sentimentosantagônicos: fúria aos tiranos e respeito aos democratas. Foi assimdesde os tempos que escrevia no jornal da Universidade Federal deSergipe, chegando a eleger dois reitores. Seu estilo singular deescrever acabava revelando o autor dos artigos, enviados aos jornaisusando pseudônimos.

- Celso, essa proposta de escrever o livro chegou em boa horaem minha vida. Primeiro, por poder escrever sem ter que me preocupar com a censura de outrora. Finalmente vamos poder contar 

todas as atrocidades que os militares e seus colaboradores fizeram aeste país. Somente resgatando este tenebroso passado poderemos ter um futuro digno de uma nação soberana. Segundo, por ter merestabelecido o prazer de escrever, com qualidade. Passei anosescrevendo coisas sem conteúdo, chegava a ser desconexo, como setivesse escrito completamente bêbado. Você pode não acreditar, masisso ocorreu após meus pais terem falecido, passando a morar nesteapartamento, apenas o Filipe e eu.

- Vicente, é comum um escritor passar por um período crítico,sem ter inspiração alguma para escrever. Principalmente no seu caso,amargou tantas coisas na vida.

- Quer dizer que o amigo além de ser um grande obstetra étambém um psicólogo.

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-... E o melhor jogador de vôlei de Ipanema. Ao lado desteamigo aqui, formamos a dupla invencível das praias cariocas. Bom, já que estou de folga hoje, que tal uma partida de vôlei?

- É justamente disso que estou precisando para relaxar. Chegade se esconder do síndico. Coloco um short em um minuto e já volto.

Celso ficou aguardando o Vicente, observando da janela omovimento na praia. Um táxi parou chamando sua atenção.

Um jovem tenente do exército desceu do táxi com uma mala.Enquanto esperava o troco, olhou em direção a um grupo de moças erapazes que conversavam no calçadão da praia. Dentre as pessoasdesse grupo havia um homem de um metro e noventa de altura, forte,cabelos curtos, vinte e cinco anos de idade. Era o mais velho de todos,e o mais brincalhão. Ele havia esgotado o seu repertório de piadas.Resolveu então sacanear o porteiro do seu prédio, que estava noquiosque, bebendo uma água de coco. Entregou-lhe um cigarro e pediu que acendesse com uma turista estrangeira, sentada sozinhanum banco do calçadão, lendo um livro. Fez o porteiro decorar uma

curta frase em inglês. Segundo ele, traduzindo para o português era:“por favor, dá para acender o cigarro”. A sacanagem consistia justamente naquela frase, pois a correta tradução era: “estou louco para transar com você”. Ingenuamente o porteiro se dirigiu à turista erepetiu exatamente a frase em inglês como havia lhe ensinado. Elaficou extremamente irritada, mas não disse uma palavra, apenas lheencarou com repugnância. Ele tornou a repetir a frase. Ela entãofechou o livro, acertando-lhe o nariz. O ingênuo porteiro caiu

sentado no chão. O grupo que assistia atentamente aquela sacanagemriu com deboche. A turista se levantou do banco e foi embora.O tenente recebeu o troco do motorista do táxi, dirigiu-se

àquele grupo que se encontrava em volta do porteiro.

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 - Eduardo, o que você disse àquela gata? - perguntou o autor da

sacanagem com o maior cinismo.

Ele tornou a repetir a frase, provocando mais risadas.

- Então, por que ela ficou tão brava, a ponto de lhe acertar onariz com o livro?

- Não sei, Miro! Ela deve odiar cigarro, mas isso não eramotivo para acertar meu nariz. Que estrangeira agressiva!

- Eduardo, eu tenho impressão que ela não é chegada a Paraíba.- zombou Leonardo

- Mas eu não sou da Paraíba, sou de Pernambuco...

- Dá no mesmo, tanto um quanto outro tem a cabeça chata.

Leonardo continuou zombando do porteiro de maneirahumilhante. Nesse momento o tenente já havia se aproximado deles.

- Gostaria de entender um pouco... O que passa na mente dessa juventude ociosa, para não dizer vagabunda, da classe média, carioca.Adora se divertir humilhando, batendo, se drogando...

- Dá um tempo, Filipe! Você mal chegou, e já está frontando agalera.

- Leonardo, é afrontando, e não frontando - corrigiu o tenente.

- Tanto faz! Em gramática há uma coisa chamada prótese quesignifica: aumento de uma letra ou sílaba no começo da palavra.Exemplo: é correto dizer acariciar ou cariciar; acostumado oucostumado; acalmar ou calmar. E assim por diante. É o caso dessa palavra, tanta faz dizer afrontar ou frontar, ambas estão corretas, poiso “a” é protético.

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Seus amigos aplaudiram-no, acreditando que Leonardo tivessedito o correto. Filipe teve um pequeno ataque de riso, pondo dúvidasnaqueles que o apoiavam. O porteiro sem querer riu deles.

- Há uma palavra no vocabulário italiano e no português com omesmo sentido... Asno! Além de cretino tu és um Asno!

- Filipe, em vez de ficar me corrigindo por que não vai pagar osquatro meses de condomínio atrasado do seu apartamento. Se nãotem condições de pagar, é melhor vender o apartamento e comprar uma casa no subúrbio, ou então, se quiser morar nesse bairro, compreum barraco na favela do morro do Cantagalo. Morar na AvenidaViera Souto é privilégio nosso, da classe média alta.

- Leonardo, você está pegando pesado. - repreendeu, Miro - Ofato de seu pai ser o síndico do prédio não lhe dá o direito de sair contando quem está com o condomínio atrasado.

- Quem começou foi ele, se intrometendo na nossa brincadeirae nos ofendendo.

- Seu asno, você chama de brincadeira humilhar as pessoas? Não sou xenófobo, porém fico transtornado de ódio quando vejo umimigrante ou mesmo um descendente, no seu caso de Italianos,discriminando um brasileiro no seu próprio país. É só no Brasil queacontece esse absurdo. É preciso deportar pessoas desse tipo, a fimde impor respeito. Os imigrantes têm de agradecer ao povo brasileiro por sempre os receber de braços abertos.

- Como diz meu pai: “esse é um discurso verdadeiramentefascista”. Foi justamente do fascismo que ele fugiu da Itália, e veio para o Brasil recomeçar a vida. Teve de vir sozinho, pois seus pais e

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 os seus quatro irmãos mais velhos foram fuzilados pelo exército deMussolini.

- Lamento, Leonardo, que seus avós e tios tenham sido vítimas

dessa tragédia. Porém o que eu disse não é um discurso fascista...

- Claro que é, Lipe. - disse, Miro, num tom enérgico – É um perfeito clichê de um discurso fascista.

- Não me chame de Lipe! Militar não tem essa frescura de civilde reduzir o nome. Além do mais, gosto do meu nome, o que não é oseu caso, Casimiro.

- Sim senhor, tenente Corrêa! – zombou Miro, fazendocontinência.

Riram do Filipe, deixando-o furioso.

- Se eu fosse mesmo fascista, mandaria lhe prender por desacatar um oficial do exército brasileiro. Se Celso tivesse deixadovocê, Miro, entrar para as forças armadas, ele não teria que carregar 

 pelo resto da vida um filho vagabundo.

- Sou muito grato ao meu pai por ter me proibido de ingressar nas Forças Armadas. É horrível, Filipe, ver o tipo de pessoa que vocêse transformou. Prefiro ser um vagabundo a um fascista. Galera, quetal uma partida de vôlei para tentar levantar o astral?

- Miro, vai ser difícil! O tenente Corrêa poluiu a praia,

exalando sua arrogância habitual. - disse Leonardo.

Foram jogar, ficando apenas o porteiro e Filipe conversando.Celso e Vicente viram tudo da janela do apartamento. Naquelemesmo prédio, no primeiro andar, outra pessoa o observava. Umasenhora macérrima, cabelos brancos, de setenta e cinco anos de idade,mas que aparentava mais idade devido às agruras da vida. Quando

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Filipe atravessou a avenida em direção ao seu prédio, as pessoasdaquele grupo que zombaram do porteiro pararam de jogar. Ficaramolhando como se soubessem que algo iria acontecer ao jovem tenente.

 No momento que ele estava a alguns passos para entrar no seu prédio, a senhora macérrima jogou-lhe um balde de água fria,atingindo-o em cheio. Ficou completamente molhado e furioso, paraalegria de todos que o observavam. Leonardo e Miro acharam aquilomuito mais engraçado que a pancada de livro no nariz do porteiro.Celso e Vicente também caíram na gargalhada, aumentado aindamais sua irritação.

- Dona Lígia - gritou Filipe, olhando para senhora - qualquer dia desse mando prendê-la por esse tipo de agressão!

- Faça isso filhote da ditadura. - gritou ela - Não tenho medo devocês.

 No momento que ele chegou ao seu apartamento todo molhado,Celso e Vicente riram. Ele não disse uma palavra sequer, apenas osolhou zangado.

- Filipe, está chovendo?

- Vicente, você leva jeito para palhaço. Aproveite esse dom para arranjar um emprego num circo. Só assim poderá contribuir comas despesas deste apartamento. Não pense que eu vou ficar bancandosozinho toda a despesa. Enquanto você fica vagabundeando pelomundo com essa sua mania de revolucionário latino-americano.

- Tenha calma, Filipe. Vicente apenas brincou com você. Nãose pode nem mais brincar com você? Como foi sua viagem aAngola?

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 - Foi uma maravilha! – respondeu num tom irônico - Andei na

montanha russa, no tobogã e em outros brinquedos. Celso, eu nãoviajei de férias para um parque temático da África. Fui para Angolanuma missão de paz da ONU, descobrir minas terrestres e detoná-las

com segurança. Porém nem sempre isso foi possível. Dois soldados perderam as pernas e um morreu.

- Celso, ele voltou ainda pior do que já era. Mal chegou e foilogo arranjando confusão com a rapaziada.

- Rapaziada a qual se refere são aqueles vagabundos que ficamsacaneando o novo porteiro daqui do prédio. Não fui arranjar confusão, apenas fiz com que deixassem o porteiro em paz.

- Acho muito difícil alguém conseguir sacanear o Eduardo, eleé muito esperto.

- Tão esperto que seu filhinho o mandou acender um cigarrocom uma turista estrangeira. Ensinou-lhe uma frase em inglês quenão era pedindo para acender o cigarro, mas sim para transar com ela.Conclusão recebeu uma pancada no nariz com um livro.

Vicente e Celso riram.

- Por conta dessa sacanagem com o porteiro, acabei medesentendendo com Leonardo. Ele disse uma coisa que eu fiqueimorrendo de vergonha e ódio ao mesmo tempo. Comentou na frentede todo mundo que este apartamento está com quatro meses decondomínio atrasados. Vicente, consegue explicar isto?

- Posso! Ou melhor, não posso! Porque tudo que eu disser nãovai fazer você compreender as razões que me impediram de pagar ocondomínio. Entretanto não há motivo para ficar preocupado. Porqueantes de completar os seis meses que iria permanecer em Angola,terei dinheiro para pagar os condomínios atrasados.

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- Como você é cínico! - disse Filipe com bastante agressividade- Essa foi a primeira e a última vez que depositei confiança nesteinútil. Confesso, não estou surpreso. De você só poderia esperar isso.Foi muita idiotice da minha parte, achar que se desse um voto de

confiança, conseguiria corresponder. Na certa, usou o dinheiro paracomprar drogas e fez deste apartamento um antro de viciados.

- Filipe, em parte não tiro sua razão de ficar com raiva. Porémnão tem o direito de desrespeitar o seu pai desta maneira.

- Celso, que besteira é essa agora... Meu pai é o Emmanuel eminha mãe, a Nair. Infelizmente estão mortos.

- Não são! Esses são seus avós paternos. Seu pai é o Vicente ea sua mãe é a Cleonice que infelizmente está morta. Se sua raiva éapenas pelo condomínio estar atrasado, eu pago e não se fala maisnisso.

- Celso, até quando você vai ficar pagando as contas deste seuamigo que nunca trabalhou na vida? Meus pais perderam tododinheiro que possuíam, bancando as utopias deste revolucionário

latino-americano. O pior não foi por terem perdido todo dinheiro, foi por terem perdido a alegria de viver de tanto sofrer de preocupaçãocom este seu amigo.

Por alguns segundos permaneceram num silêncio sepulcral.Vicente, visivelmente arrasado, não tinha reação para discutir com oFilipe. Seu único gesto foi se retirar, indo às pedras da praia doArpoado. Era o lugar que ele sempre ia quando estava triste.

- Vicente tem razão quando diz que você bloqueia todas asfontes inspiradoras dele.

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 - Não sabia disso! Quer dizer que para Vicente ser vagabundo é

 preciso de inspiração?

- Filipe, a cada dia vai ficando mais difícil ter uma conversa

amigável com você.

- Celso, serei eu mesmo quem tem de mudar? Estou vivendodentro dos padrões sociocultural e econômico deste país. Aocontrário do Vicente que parou no tempo. E pretende viver eternamente como um rebelde estudante universitário. Alguém precisa dizer a ele que os anos sessenta ficaram para trás, o mundomudou. Eu o incomodo justamente por tentar trazê-lo para realidade.

- É ridículo você dizer isso. Vicente viveu a realidade maiscruel que um homem possa suportar. Dedicou sua juventude, lutando para transformar o Brasil num país com justiça social. Você oincomoda, ou melhor, perturba-o porque sabe pouquíssimo da vidadele. Se soubesse como eu sei, saberia respeitá-lo e amá-lo. Tenhocerteza... Depois que você ler o livro que Vicente está escrevendo irámudar completamente o conceito que tem dele.

- Se ele for mencionar as orgias e o uso de drogas, serãonecessárias milhares de páginas.

- Não seja desprezível! Vicente jamais usou drogas...

- Isso não é verdade! Apesar de eu nunca tê-lo visto fazer usode drogas, o seu comportamento o incrimina.

- O que você presenciou foram os sintomas traumáticoscausados por várias sessões de torturas. Por favor, quero que atendaum único pedido... Conceda uma trégua ao Vicente a fim de que eletenha tranquilidade para concluir seu livro. É um trabalhominucioso... Importantíssimo às gerações futuras do Brasil. O qualrevela fatos monstruosos daquele período...

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- Não seria melhor esquecer este período conturbado?

- Melhor para quem? Para os que deram o golpe... Torturaram,mataram, corromperam! Aquele período é indelével às pessoas que

têm dignidade e principalmente aos que foram vítimas bem comoseus familiares.

- Nesse livro que Vicente está escrevendo, ele fala sobre a...Cleonice?

- Nas páginas que eu já li, ainda não a mencionou. Por quê?

- Por nada! Tudo bem, Celso, vou fazer de tudo para nãoincomodá-lo, ou melhor, perturbá-lo. É curioso que uma pessoa tãosensível como o Vicente, não fique com sua fonte inspiradora bloqueada pelo excesso de sujeira deste apartamento. Que por sinal,nós combinamos dele pagar a uma empregada para trabalhar aqui eeu arcava com a despesa do condomínio. Simplificando, souobrigado a morar numa pocilga, terei de pagar o condomínionovamente e ainda sou tachado de intolerante, de não ser uma pessoaamigável.

- Filipe, quanto a isso você tem razão, este apartamento estáempoeirado. Conversarei com Vicente a respeito disso. Tenhocerteza que ele vai fazer uma boa faxina e vai se responsabilizar pelalimpeza daqui por diante. Troque de roupa e vá passear um pouco pela praia. Há uma pessoa que vai ficar muito contente em revê-lo.

- Faço ideia de quem seja: o síndico do prédio, Sr. Bertolucci

 para cobrar-me o condomínio atrasado.

- Não! Graças a Deus que você ainda conserva um pouco doseu humor. Agora tenho certeza, Lipe, o menino risonho que conhecicontinua habitando você, mesmo depois de ter posto esta farda...

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 - Conclua a frase… Esta farda, o quê?

- É melhor deixá-la incompleta para não aborrecê-lo.

- Então diga de uma vez, quem vai ficar contente em me ver novamente. É exatamente disso que estou precisando ou vou acabar num divã de um analista. Com complexo por ninguém mais nestemundo gostar de mim. Também não é Dona Lígia!

- Filipe, apesar de tudo, nós gostamos muito de você.

- Nós? Você se refere a quais pessoas?

-... Ao Miro, à dona Lígia, ao Vicente, a mim...

- Celso, você acha que eu sou tonto para acreditar nisso? Mirofoi a pessoa que fez a pior sacanagem comigo. Dona Lígia sem maisnem menos passou a detestar-me e eu sequer sei o motivo. Todas asvezes que me esqueço de olhar para cima, ela acaba me dando um banho de lá do seu apartamento. Tenho minhas dúvidas se Vicentegostava de verdade dos nossos pais. Quanto mais de mim, que só foi

conhecer-me depois de eu já estar bastante crescido. Na verdade só passei a conviver de fato com ele, alguns anos antes dos nossos paisfalecerem. E você, Celso, expulsou-me do seu apartamento sem maisnem menos. É muito difícil acreditar que essas pessoas gostem demim. Só há uma pessoa que gosta de mim verdadeiramente. É ovelho amigo do meu pai, o capitão Uchôa. Pretendo visitá-lo logomais.

- Nunca o expulsei do meu apartamento, apenas pedi que nãoentrasse lá, novamente, fardado. Tenho meus motivos para enojar-mede fardas militares como a sua. Será que você não se dá conta de suatransformação de personalidade após passar a usar esse uniforme? ASarah ficará bastante contente em revê-lo, era dela a quem me referia.

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- Sarah... O único grande amor de minha vida! Ela representavatudo de maravilhoso em minha vida. Até o momento que seu amigo,Vicente, chegou e destruiu esse amor. Por puro capricho,simplesmente para provar sua superioridade de galã revolucionário.

Tenho de admitir, ele é um velho sedutor insaciável. Não teve amínima consideração por mim. Fez questão de levá-la para sua camacom o intuito que eu soubesse...

- Filipe, eu lhe aconselho a procurar imediatamente umexcelente analista, mas tem que ser mesmo excelente. Só assim elevai conseguir sanar essa sua perseguição implacável e injusta quetem contra Vicente. Qual o grau de leviandade você pretende atingir?Como pode duvidar do caráter da Sarah, sendo ela filha de Inês...

- Está tentando me dizer se eu tivesse casado com a Sarah, elatambém teria me abandonado com um filho, igual fez essa Inês?

Quem ouve você falar dessa mulher imagina ser uma santa que partiu em peregrinação. Felizmente Sarah teve um pai dedicadocomo o Frederico que a criou com princípios...

- Basta! Não dá mais para ouvir suas insanidades. Sua técnicade sugar as nossas energias é algo impressionante. Estou exaurido, sóme resta ir embora para um lugar tranquilo, recarregar minhatolerância.

- Sarah, está na praia?

- Para ser mais preciso, está no quiosque do pai dela. Há quatro

meses vem trabalhando sozinha feito uma condenada, de dia e noite,sem descanso.

- Frederico nunca deixou que ela o ajudasse no quiosque. Oque houve para mudar de ideia?

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 - Câncer! Frederico está com câncer na próstata. Tudo indica

que é irreversível.

- Que desgraça! Isso é muito injusto! Ele é um homem tão

novo, não deve ter sequer cinquenta anos de idade.

- Tem cinquenta e cinco anos! É justamente nessa faixa etáriaque acomete o maior índice de câncer de próstata nos homens. Umsimples exame preventivo poderia ter diagnosticado a tempo decombatê-lo. Por ignorância há ainda muito preconceito em fazer umsimples exame.

- Sarah, com certeza, está arrasada.

- Bastante! Todos nós temos dado apoio a ela, espero que vocêfaça o mesmo.

Celso disse esta frase, saindo em seguida. Filipe foi para a janela da sala de visitas e ficou olhando em direção ao quiosque do pai da Sarah. Ele estava bastante indeciso se descia para conversar com ela. Mas assim que a avistou deixou seu orgulho idiota de lado e

foi para seu quarto trocar-se de roupa para ir até lá. Ao passar pelocorredor que leva ao seu quarto, parou em frente a porta do quarto deVicente, verificando se estava trancada a chave como de costume.Ele sentia um desejo incontrolável de ler os originais do livro a fimde obter informações de sua verdadeira mãe. O jeito mais práticoseria perguntando ao próprio Vicente. Isto para ele seria comoadmitir que seus pais não fossem o Sr. Emmanuel e dona Nair quetanto os amou. Subitamente veio a sua mente consultar as páginas

amarelas do catálogo telefônico. Encontrou um chaveiro nasimediações de seu prédio que atendia em domicilio. Dez minutosapós ter telefonado, o chaveiro já estava no seu apartamento, levandoapenas alguns minutos para abrir a porta e fazer uma cópia da chavedaquela fechadura.

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Desceu junto com o chaveiro, pois aquele não era o momentoapropriado para vasculhar o quarto. Vicente poderia chegar e haveriana certa uma enorme confusão entre eles. O problema maior era nãorevelar a razão de ter feito aquilo. Filipe se aproximou do quiosque,

meio sem jeito, debruçando-se no balcão. Sarah se quer o percebeu, pois estava muito ocupada atendendo várias pessoas. Quando sevirou, pegando um coco no freezer, alegrou-se ao vê-lo.

- Nossa que surpresa! Como vai, tenente Corrêa?

- Até você, Sarah! Fiquei sabendo da doença do seu pai,lamento muito. Sempre tive uma profunda admiração por Frederico.Pode contar comigo, farei o que precisar para ajudá-lo.

- Desculpe-me, Lipe. Nem mesmo eu posso brincar com você?

- Comigo, pode! Mas não com meus sentimentos.

- Jamais brinquei. É uma pena que não acredite.

- Gostaria de marcar um dia para ir a sua casa, fazer uma visita

ao meu amigo Frederico.

- Não precisa marcar, basta você ir. Meu pai vai ficar muitocontente de receber sua visita, ele também gosta muito de você.

- Ter fechado a matrícula da faculdade de sociologia, justamente no último período para se formar, foi um erroimperdoável.

- Foi preciso. Primeiro, porque temos gastado muito dinheirocom o tratamento do meu pai. Segundo, não iria ter cabeça paraestudar, sabendo do estado clínico que ele se encontra. Você vai ter 

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 um choque ao vê-lo... Perdeu vinte quilos, encontra-se bastantedebilitado. Não sei onde tirei forças para suportar esta barra...

- Gata, cadê o meu coco gelado!

Sarah abriu um coco, levando-o ao seu freguês. Nessemomento chegou o porteiro, vestindo uma sunga de praia totalmenteridícula. Não havia quem não olhasse e risse dele, inclusive o Filipe ea Sarah.

- Eduardo, onde comprou esta sunga de praia?

- Ganhei do Miro. Por quê? Está esquisito, Sarah?

- Digamos que está fora de moda, essa sua sunga estampada.

- Eduardo essa sunga é um presente de grego.

- É mesmo, Filipe? Eu também gostei!

- Quis dizer que está extravagante. E se deixar levar por tudo

que Miro e a sua galera diz, é melhor trocar o uniforme de porteiro por um de palhaço. Já se esqueceu da pancada da turista?

- Como poderia esquecer-me se até agora meu nariz dói quandorespiro. Nunca mais pronuncio uma palavra sem antes me certificar do seu significado. Domingo vou à igreja, mas antes vou consultar osignificado da palavra “amém”, vai que estou xingando a Jesus.

Foi dar seus mergulhos no mar na maior naturalidade. Ao passar perto de Miro e seus amigos houve gozação, ele nãodemonstrou irritação ou vergonha.

- Lá vem minha querida amiga, dona Lígia. - disse Sarah,olhando para a avenida - Lipe não a aborreça, por favor.

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- Esqueci-me dos ataques dela e acabei mais uma vez levandoum banho.

- Posso garantir-lhe que os ataques não são direcionados a

você...

- Sim, eu sei disso. Ela ataca o que eu represento. Mas quemfica encharcado sou eu, e também não represento a ditadura militar,mas o nosso país.

- É muito difícil para uma pessoa que perdeu seu único filho brutalmente, conseguir discernir tais coisas. E principalmente nãohavendo uma sepultura para por flores nos dias de finado. Devido àocultação do cadáver por parte dos militares.

- Está falando igualzinho ao Vicente. Não sei como eleconseguiu introduzir tais ideias na sua cabeça. E por fim tirou vocêde mim.

- Não nos víamos há bastante tempo e bastaram alguns minutos juntos para nos desentendermos como antes. Essa foi a verdadeira

causa de nossa separação. Lamentei muito o nosso namoro ter terminado, mas foi você quem quis assim. Vicente jamais teve culpaalguma. Como sempre tudo de errado em sua vida é a ele que vocêculpa. Sabe qual é a principal diferença entre vocês dois? É que eleme considera uma mulher digna e inteligente, e você, não. Teria deser uma pessoa muito imbecil para traí-lo no seu próprio apartamento.

Eles pararam a discussão quando dona Lígia se aproximou.

- Olá minha querida amiga! Deixe-me limpar uma mesa para asenhora se sentar.

- Não precisa, meu anjo! Quero apenas tomar um coco gelado.

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- Como vai, dona Lígia?

Ela olhou para os lados, como se não tivesse visto a pessoa que

a cumprimentou, benzendo-se.

- Minha nossa! Ouvi a voz do Lúcifer cumprimentando-me.

- Não foi ele, fui eu, Lipe!

- Ouvi novamente! Só que não é o Lúcifer, é um dossecretários dele, com um nome parecido, mas de boiola.

Sarah serviu-lhe o coco, rindo.

- A senhora acha pouco molhar um oficial do exército brasileiro, e resolveu agredir-me com palavra de baixo calão. Isso éuma falta de respeito muito grande a alguém que defende a nossa pátria com a própria vida.

- Em que filme enlatado americano tirou esta frase cretina?

Com certeza foi num filme de guerra no qual ensinam o amor à pátria,e por ela dar-se a própria vida. Está na hora de processá-los por  propaganda enganosa. Sarah, guarde meu coco, retorno outra hora para bebê-lo.

Ela saiu a passos curtos, lentos, pegando um táxi a algunsmetros do quiosque, na Avenida Viera Souto.

- Olhando-a com essas roupas simples, com os cabelos quasedespenteados, sem maquiagem, nenhuma vaidade, não há comodesconfiar a fortuna que possui. Na década de sessenta era conhecida pela alta sociedade carioca como a dama da elegância.

- É mesmo! Sempre ela sai nessa mesma hora. Aonde será queela vai?

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- Pensei que soubesse Lipe! Ela vai ao Comando Leste nocentro da cidade.

- Fazer o quê?

- Protestar a sua maneira. É um protesto solitário, pacífico,silencioso. Pela morte do seu filho e a ocultação do seu cadáver.

- Esses dias todos ela sai à mesma hora para ir ao ComandoLeste?

- Exato! Esse protesto teve início no dia que um amigo de seufilho, chamado Ismael, comunicou a morte dele.

- Quem é esse Ismael?

- Um dos líderes revolucionários. Esteve preso no mesmoaparelho de repressão com o filho de dona Lígia.

- Como soube disso?

- A própria dona Lígia contou-me. Isso e muito mais, osuficiente para dar um livro igual ao que Vicente está escrevendo.

- Conte-me mais sobre o filho da dona Lígia. Talvez eu possaajudar a localizar o lugar onde permanece o cadáver...

- Lipe, se conseguisse isso seria um enorme consolo para donaLígia. O único sonho dela é poder ser enterrada ao lado dos restos

mortais de seu filho.

- Daqui por diante vou me engajar em desvendar o local.Apesar de a dona Lígia ter passado a desprezar-me por eu entrar para

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 o Exército, mantenho o mesmo carinho por ela. Mesmo com os banhos de baldes.

- Fico feliz que pense assim, Lipe. Porém não posso contar 

mais nada sobre o filho dela. Sinto-me traindo sua confiança. Terá de procurá-la e dizer-lhe suas intenções. Faça isso hoje, vá aoapartamento de dona Lígia...

- É inacreditável você não ter assistido a maneira como ela metratou aqui. Se eu tocar a campainha do apartamento dela, é bemcapaz de acertar-me um tiro na testa.

- Não se preocupe com isso. Sempre, ela me pede para dormir em seu apartamento a fim de ter com quem conversar. Hojecombinamos de eu ir dormir lá. Sendo assim, posso convencê-la a lhereceber de forma amigável. Esteja lá por volta das dez horas da noite.

- Combinado! E quem vai fazer companhia ao seu pai?

- Jamais deixaria meu pai sozinho do jeito que está. Minha tiaMarta toma conta dele e da casa e quando durmo na dona Lígia, ela

fica para dormir lá.

Depois de um tempo, o porteiro retornou da praia, molhado, ecom um sabonete na mão.

- Eduardo o que faz com esse sabonete? - perguntou Sarah,espantada.

- Deixe-me adivinhar - disse Filipe - Miro lhe deu essesabonete dizendo que era especial. Próprio para tomar banho na praia.

- Ah, também já usou? Eu nem sabia da existência de umsabonete bronzeador.

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Sarah caiu na risada, já o Filipe olhou em direção a praia,avistando Miro e seus amigos gozando de mais uma sacanagem.

- Se quiserem, empresto o meu sabonete bronzeador. É melhor 

que esses bronzeadores vagabundos vendidos na praia.

- Eduardo, eu não duvido que haja um sabonete bronzeador.Hoje em dia se fabrica de um tudo, mas esse ai é um sabonetecomum. - disse Filipe.

- Como sabe disso?

- Olhando para o Miro e sua galera.

- É mesmo! - disse o porteiro ao constar a gozação - Miro é umsujeito legal, mas tem esse defeito de ficar me sacaneando com seusamigos.

- Legal coisa nenhuma! Se fosse não andava fazendo este tipode molecagem.

- Filipe, ele não faz por mal, já o Leonardo, sim, faz comintuito de humilhar as pessoas. Miro é de fato uma pessoa legal.

- Quando mudou sua opinião a respeito do Miro? Sempre oachou insuportável, pelo menos naquela época...

- Era pura implicância da minha parte, ou melhor, ciúme, por você passar mais tempo junto com ele que comigo. Assim que

terminamos o namoro, ele veio me pedir para eu não desistir de você.Justificou suas atitudes como mera criancice, mas que no fundo vocêera uma pessoa sensacional. Foi a partir daí que comecei a notar todas as qualidades humanas que ele possui. A todo instante ele vem

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 aqui perguntar se estou precisando sair ou de alguma coisa. Nasemana passada, precisei sair e ele ficou o dia todo aqui no quiosque.

- No mês passado, só não perdi o emprego de porteiro graças

ao Miro. Andei cochilando na portaria. Leonardo me delatou ao seu pai por eu ter recusado lavar o carro dele. Miro o fez desmentir ao Sr.Bertolucci ou contava que ele andava obrigando os funcionários do prédio a lavar seu carro.

- Tudo bem! Convenceram-me... Miro é um cara legal. Seráque há outra pessoa legal aqui para tomar conta do quiosque.Enquanto Sarah e eu vamos dar uns mergulhos?

- Podem ir! Eu tomo conta do quiosque.

Os dois pararam onde Miro e seus amigos estavam. Filipe jogou o sabonete no meio das pernas deles.

- Este sabonete é de vocês, pois tem as siglas “GVP”, grupodos vagabundos da praia.

- Demorou, mas acabou voltando aos braços da suburbana.Fique esperto com o garanhão Vicente.

- Dessa vez você passou dos limites, Leonardo. - repreendeu,Miro.

- Mas ela não é de São João de Meriti? Então é correto chamá-la de suburbana. Não estaria se eu a chamasse de Carioca.

- Leonardo, não se faça de besta! - gritou Miro, puxando acamiseta dele. - Não vou deixar Filipe lhe arrebentar porque eu façoquestão disso.

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- Admito, extrapolei! Fui grosseiro com a Sarah e o Filipe. Nãotenho culpa de ser um carioca gozador. Desculpem-me! Assim é osuficiente ou vou ter de me ajoelhar na areia para obter o perdão?

Os dois se deram por satisfeitos e foram mergulhar no mar. Aoretornarem, Eduardo foi trabalhar na portaria. Após o fechamento doquiosque, subiram juntos no mesmo elevador. Sarah desceu no andar da dona Lígia. Filipe, alguns andares acima. Ao entrar no seuapartamento ficou espantado com a limpeza geral realizada por Vicente. Ele se encontrava sentado no sofá da sala de visitas com oespanador numa mão e na outra uma lata de cerveja. Ainda eravisível sua tristeza, mas tinha argumentos para contra-atacá-lo.

- Espero que a limpeza esteja ao seu agrado?

- Está! Pelo menos o apartamento não se parece mais com uma pocilga.

- Agora tenho de me limpar das imundices de suas acusações.Se alguém provocou a tristeza nos meus pais, causando-lhes a morte,não fui eu, mas você.

- Não vou perder meu tempo, discutindo com um bêbado.

- Não é minha intenção fazê-lo se sentir culpado, porém vocênão me deu escolha, acusando-me de ter sido o responsável pelasmortes das pessoas que mais amei nesse mundo.

- É difícil acreditar que realmente os amasse com tanto afinco

como acabou de mencionar. Sou testemunha do quanto os fez sofrer  por sua ideologia política e social. A vida deles se resumia a comprar  jornais, ouvir noticiários de rádio e televisão, rezando sempre paraque seu nome não estivesse na relação dos mortos. Foi por isso quemeu pai perdeu sua concessionária de carros. Ele entregou toda

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 administração da empresa ao seu gerente. Que ao longo dos anos oroubou de forma descarada, levando-o a falência. Por sua causa nós passamos um bom período como ciganos, mudando de tempos emtempos. Para nos livrarmos dos agentes do Governo que desejavam

capturá-lo. Como eu tinha ódio de você por ver meus paisapavorados por sua culpa. Agora lhe pergunto: adiantou sair da casados seus pais para fazer uma revolução que resultou emabsolutamente nada?

- Sem querer acabou admitindo não ter sido eu o responsável por falir os meus pais. Bancando a conta das minhas utopias.

- Indiretamente, foi! Meu pai não tinha mais cabeça para gerir os negócios da família.

- Se eu fosse o responsável, a eles isso não faria diferençaalguma. O dinheiro teria sido usado em uma causa nobre. Arevolução para meus pais era de vital importância. Em sua opiniãonão deu em absolutamente nada. Fomos derrotados, mas lutamos bravamente até a última batalha. Mesmo diante da frustraçãosentimos orgulho de termos cumprindo com nossos deveres. Lutamos

contra a desigualdade social, injustiça, que se perpetua neste paísdesde os tempos remotos da colonização portuguesa. Foi uma guerramuito desigual. Os caudilhos possuíam aparatos bélicos. Nossa principal arma era a coragem. Por isso deixamos nossos laresdispostos a enfrentá-los custasse qual fosse o preço.

- Essa revolução foi um verdadeiro suicídio.

- No Japão, em certos casos, o suicídio é considerado umasolução honrosa. Preferimos optar por ela em nome da democracia. E para não termos que viver humilhados, acovardados pelo regimemilitar. Esta lição importante, deixamos às gerações futuras, damesma forma que minha geração aprendeu com a do meu pai, e elecom a do meu avô e assim por diante. Chegará um dia, todos oscidadãos brasileiros terão plenos conhecimentos dos seus direitos e

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obrigações. E aí se fará uma revolução vitoriosa neste país. O únicoda nossa família a não aprender nenhuma lição, é você.

- Está querendo dizer o quê com isso?

- Se eu disser, achará mentira. Pergunte a alguém que vocêconfie. Como o seu mentor intelectual, o capitão Uchôa. É um velhoamigo de nossa família. Ele sabe como atuaram politicamente papai eo vovô em suas épocas. Só então entenderá o quanto tinha apoiodeles em lutar contra a ditadura militar. Os pais geralmente sofremquando veem seus filhos numa guerra. Contudo isso não significaque os filhos sejam responsáveis por este sofrimento. Nuncaimaginou minha tristeza em vê-los sofrer? É um absurdo ter meodiado por achar-me o responsável pelo sofrimento deles. Não se deuconta do enorme desgosto que você causou-lhes entrando para oexército.

- Não vou cair nesse seu plano diabólico para fazer-meacreditar nessa sua mentira... É melhor desistir. Meus pais nãoqueriam que eu entrasse para o exército porque você mantinhadomínio sobre eles. O principal motivo de eu lhe odiar não é por ter 

feito meus pais sofrerem...

- É eu sei! Acha que seduzi a Sarah no meu próprio quarto. Serealmente acredita nisso, por que então voltou a se aproximar dela?

- Não tenho que lhe dá explicação!

Filipe foi para seu quarto bastante irritado. Aquele era o ponto

fraco dele. Vicente também tinha causado uma tempestade em suamente. Pondo à deriva suas convicções sobre quem era o verdadeiroculpado por causar tamanho sofrimento aos seus pais. A dúvida já osufocava de tal maneira, que ele não estava suportando esperar. Senão fosse o encontro marcado para ir ao apartamento de dona Lígia,

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  procuraria o capitão Uchôa de imediato a fim de esclarecer aqueleimpasse familiar.

Após se trajar como se fosse a uma festa, pensou em algo

contundente para dizer ao Vidente. Ao chegar à sala de visitas oencontrou dormindo na poltrona. Como já estava atrasado, não oacordou. Dirigiu-se ao apartamento de dona Lígia. Sarah abriu a porta para ele entrar e o levou à dona da casa. Ela lia um livro queabordava a solidão. Sua atitude foi fingir não ter notado a chegadadele.

- Boa noite, dona Lígia!

- Sarah... Ouço novamente a voz do secretário do Lúcifer...

- A senhora prometeu-me recebê-lo cordialmente em seuapartamento.

- Só você mesmo, meu anjo, fazer-me prometer o impossível. Na certa este sujeito veio aqui apenas me roubar.

- Acho melhor você desistir de querer conversar com a donaLígia.

- Não desisto! – disse, ajoelhando aos pés dela, segurando assuas mãos - Esta conversa é muito importante para mim. Não é justo... A senhora tratar-me dessa maneira. Nosso relacionamentosempre foi como de mãe e filho, lembra?

- Mas você preferiu destruí-lo, associando-se ao covil dosditadores.

- As forças armadas do Brasil na sua grande maioria sãoformadas por homens dignos, contrários às diretrizes impostas por militares golpistas.

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- Isso não os isenta da covardia destes homens dignos aos quaisse refere. Pois se calaram diante dos métodos animalescos praticados por colegas golpistas. Quem cala consente, sendo assim, todos fazem parte da mesma imundice.

- Após eu ter perdido os meus pais, li esse livro. A minha vidase tornou tão solitária quanto a da senhora. Esse livro justamente nosensina a estreitar o relacionamento com as pessoas que convivemos, pondo de lado as divergências.

- Em prática você não aprendeu nada. O Sr. Emmanuel e adona Nair morreram e ao invés de você romper as divergências,estreitando os laços de sangue com Vicente, fez foi piorar.

- A senhora sabe que isso é impossível...

- Não sei! Por que é impossível?

- Por todo sofrimento que causou aos meus pais e a mimtambém.

- Isso não é verdade! O Sr. Emmanuel e a dona Nair foram osamigos com quem mais aprendi. Eles fizeram-me entender que oamor aos nossos filhos não nos dá o direito de impedi-los de lutar por seus ideais, mesmo correndo todos os riscos de uma guerra desigual.

Filipe ficou chocado ao constatar que Vicente não haviamentido. E já caía em seus ombros o peso de ter feito seus paissofrerem. Dona Lígia notou o quanto ele havia ficado arrasado,

sentindo pena dele. Porém se fazia necessário não suavizar suas palavras.

- Os golpistas, esses sim nos fizeram sofrer por trucidaremnossos filhos, sem piedade alguma. Não sai da minha mente o dia

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 que vieram a este apartamento para prender meu filho. Eram trêshoras da madrugada quando ouvi a campainha tocar. Levantei-me decamisola e ao abrir a porta dei-me de cara com quatro elementos comaparência de marginais, fortemente armados com metralhadoras.

Dizendo ser policiais, para prender meu filho. Pedi que meapresentassem o mandato judicial de prisão. Eles me empurraram,invadindo o meu apartamento e um acertou-me uma mãozada noouvido, dizendo: toma o mandato. Caí tonta e só após alguns minutos pude ouvir os gritos do meu filho sendo espancado em seu quarto por aqueles selvagens. Tamanha era a confiança da impunidade dos seuscrimes. Por isso nem se preocupavam se por ventura os vizinhostestemunhassem nos tribunais militares ou comuns. Trouxeram-noaqui, já todo ensanguentado, continuaram a espancá-lo, para euassistir aquela violência contra meu filho. Disseram-me ser melhor  para ele contar o paradeiro do ex-tenente do exército, Ismael Nunesdo 28º Batalhão de Caçadores em Aracaju. Acusado de ter libertadouniversitários presos por protestarem contra o golpe militar. Como eunão disse nada, eles partiram para tortura moral, obrigando-me adespir-me na frente do meu filho. Nunca imaginei passar por momentos tão ignominiosos como naquela madrugada. Reviraram oapartamento de cabeça para baixo, roubando todas as minhas joias e

dinheiro que estavam aqui. Levaram a única joia preciosa que eutinha que era o meu filho. Algum tempo depois, ele foi um dos presos políticos libertados, em troca do embaixador Suíço,sequestrado. Passou a viver na clandestinidade, sendo novamentecapturado por agentes de repressão. Num aparelho, na capital paulista, juntamente com outros procurados. Por meu filho, iniciei aminha própria revolução a fim de salvá-lo das garras mortais daditadura militar. Contratei um grupo seleto de advogados que

impetraram vários recursos judiciais na tentativa de localizá-lo.Obtendo apenas negativas de sua prisão ou que se encontravaforagido por ser militante da organização esquerdista revolucionária,ALN (Ação Libertadora Nacional). Passou-se um bom tempo até eu perceber minha ingenuidade. Em querer fazer valer meus direitos decidadã num país tomado pelo caudilhismo. Resolvi então contratar um advogado de porta de cadeia, mas esse já havia sido investigador 

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do DOPS de São Paulo. E lá, presos políticos me disseram ter visto omeu filho.

Paguei uma verdadeira fortuna a este advogado. Conseguia

apenas trazer recados do meu filho, dizendo estar bem. Quando lheexigi que trouxesse um bilhete escrito por meu filho, passei a ser extorquida por investigadores do DOPS.

Simplesmente não faziam cerimônia em dizer-me que a vida domeu filho estava nas mãos deles. Entrei em desespero, pagando asmais diversas quantias em dinheiro. Quase todos os dias um deles me procurava com um valor em espécie, usando a mesma chantagem.Por fim, um desses que me extorquia pediu uma quantia exorbitante.Dava para comprar este apartamento. Esse era o preço da liberdadedo meu filho. Concordei prontamente e estava disposta a lhe pagar toda minha fortuna se assim preciso fosse. Contudo, antes teriam deatender minha exigência de receber o bilhete. Desconfiava que jáestivesse morto, por isso, desta vez não me deixei levar pelasameaças deles. Fiquei cheia de esperança ao receber uma carta domeu filho, dizendo-me que não me preocupasse com ele, poisconfiava na sua libertação. Por acreditar ser mais uma vez trocado

 por outro embaixador, sequestrado. Três dias antes do prazocombinado para realizar o pagamento, recebi um telefonema do ex-tenente Ismael Nunes, lamentando comunicar-me a morte do meuúnico filho. De posse da carta que recebi, voltei a procurar a justiça.O promotor requereu que fosse oficiado ao DOPS, solicitando acertidão de óbito, sendo isto também negado. Depois de tantos anosde sua morte, consta ainda seu nome na lista de desaparecidos políticos. As famílias têm os nomes de seus entes queridos nesta lista

e amargam ainda o sofrimento de não terem o direito sagrado desepultar seus mortos. Isso porque os caudilhos pensam que somenteocultando os cadáveres ficarão isentos do registro histórico de todosos crimes bárbaros que cometeram. O que eu vou dizer agora não é para lhe magoar, e sim fazer você enxergar os fatos: sou testemunha

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 da decepção dos seus pais por você ter ingressado no Exército. Mas atristeza maior deles era a sua raiva por Vicente. Filipe ficouemudecido com a dureza dos fatos narrados por dona Lígia. Dessavez ela havia pingado nos olhos dele o colírio da realidade,

conseguindo desobstruir as suas retinas, que estavam cobertas deescamas das suas verdades subjetivas.

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Capítulo 3

 No dia seguinte, ao acordar pela manhã, encontrou a mesa pronta para o café e havia suas comidas prediletas do mesmo jeitoque arrumava dona Nair.

 Na sala de visitas, Vicente e Celso conversavam, sendointerrompidos por Filipe.

- Dá para vocês falarem num tom menos paredista! Isso não é

uma conversa, é uma greve!

- Vá para cama dormir! - gritou Vicente, furioso - Ou ao localaonde vão os cretinos como você.

- Prefiro ir à Praça dos Paraíbas, jogar xadrez com o capitãoUchôa. Celso, depois você me acusa de ofendê-lo gratuitamente.

- Estamos indignados com o que acabamos de saber...- Do que se trata Celso? Foi anunciado outro golpe militar?

- Vivemos num país onde a ditadura é endêmica, porém elesnão são tolos de anunciar outro sem antes ter um novo pretextoaparente.

- Celso, permita-me explicar a este jovem desinformado como

funciona a ação golpista no nosso país, utilizando uma fábula. Aditadura é uma enorme, cruel, insaciável raposa da selva. Ela primeiro chega disfarçada de patriota, honesta, religiosa eextremamente rigorosa na aplicação da justiça. O pastor é o povoforte, trabalhador e corajoso, o suficiente para enfrentar qualquer 

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 animal que deseje devorar seu rebanho de ovelhas, que nesta fábularepresenta o país. A raposa passa a estudar o ponto vulnerável etermina por descobrir que a miopia é o calcanhar de Aquiles do pastor. A raposa, então, rouba os óculos dele para quando anoitecer 

vir apoderar-se de todas as ovelhas. Desta maneira a raposa consegueatingir seu objetivo. Só não mata o pastor porque precisa dele parasobreviver. Desfazer esse ciclo vicioso, será necessário o pastor caçar a raposa, exterminando-a.

- Com esta fábula que acabou de contar-me, você apenas provou não ter competência alguma para exercer o magistério desociologia, mesmo na pior faculdade...

- Sua observação pode estar correta, entretanto, Sarah achaexatamente o contrário.

- E qual a finalidade de envolver o nome da Sarah nestahistória?

- A opinião dela é mais qualificada que a sua! Você é um peritoem bombas e um leigo no tocante aos problemas sociais e políticos.

Já a Sarah é praticamente uma socióloga, altamente politizada.

- Graças a você! Não se cansa de ficar esfregando na minhacara o poder que exerce sobre a Sarah.

- Vicente, não transfira sua fúria para o Filipe... Ele não temculpa dos cafajestes terem o desplante de homenagear o carrasco,Dan Mitrione. Colocando o nome dele numa das ruas de Belo

Horizonte.

- Nunca ouvi falar nesse sujeito.

- Era um policial, exportado para o Brasil pelos Estados Unidos.Com o objetivo de ensinar as técnicas avançadas de torturas do seu país, aos agentes de repressão do regime militar.

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- Filipe, se trabalhasse na alfândega, - disse Vicente, num tomsarcástico - talvez soubesse quem é esse sujeito. Certamente ele trariauma etiqueta no pescoço, dizendo: “Professor de torturas, Made inUSA”. Celso, eu não consigo entender por que fica protegendo este

milico. Ele se quer o respeita.

- Posso às vezes ser ignorante com Celso, mas o respeito, porque ele é um exemplo de caráter. Perdeu tragicamente sua esposanum acidente de carro e mesmo com toda dor ao perdê-la, nãoabandonou seu filho. Desempenhou o papel de pai e de mãe, dando-lhe amor, carinho e uma vida feliz. Não se deixou abater por nada,transformando-se num dos melhores médicos obstetras deste país.

Filipe sabia em poucas palavras arrasá-lo, era o que tinha feito.Vicente estava tão transtornado, suas mãos e pernas tremiam.

- Não há nada que se possa fazer para os dois viverem em paz?

- Sim há, Celso! Basta Vicente vender-me sua parte desteapartamento, comprando um menor e mudando o mais rápido possível. Se ele quiser, ou melhor, puder, vendo-lhe minha parte.

Acho isso improvável, não tem dinheiro para pagar o condomínio do prédio.

Tocou a campainha, indo Celso abrir a porta e retornando asala com o síndico.

- Já ia descer, Sr. Bertolucci, levar-lhe o cheque dos quatromeses de condomínio atrasados. - Disse Filipe, tirando o cheque do

 bolso de seu short e entregando-o - Como não sabia o valor da multae dos juros, não os inclui. Basta o senhor calcular o valor restante.Retornando da rua, eu pago a diferença em espécie. Não se preocupe,daqui por diante não haverá mais atrasos, continuarei a fazer o pagamento, pessoalmente.

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 - Não estou preocupado com isso, e nem vim aqui lhes cobrar o

condomínio. Vim apenas me desculpar pelo meu filho, Leonardo, ter feito mais uma das suas molecagens. Mencionando o débito docondomínio de vocês, em atraso, na frente dos colegas vagabundos

dele. Não há necessidade de calcular a multa e nem os juros.

- E por que não? - perguntou Filipe.

- Eu tomei a liberdade de pagar do meu bolso. Até Vicentereceber o dinheiro que emprestou ao seu amigo, a fim dele poder  pagar a operação de sua esposa.

- Vicente justificou o atraso do nosso condomínio dessamaneira, Sr. Bertolucci?

- Não me deu nenhuma justificativa! A pessoa que pediudinheiro emprestado foi meu cunhado, Danilo. Não conversamos háalgum tempo por questões banais. Por isso ele falou com a minhaesposa. Ela tentou convencê-lo a pedir diretamente a mim. Esqueceu-se o quanto seu irmão é orgulhoso. Como não me pediu, minhaesposa telefonou para casa dele dizendo emprestar o dinheiro.

Vicente já tinha lhe emprestado. Por várias vezes o procurei paracomunicá-lo que seu condomínio estava em dia. Mas nunca tinhaninguém aqui.

Após o síndico ter saído, chega o tal Danilo com um cheque preenchido e entrega ao Vicente. Agradece-lhe imensamente, indoembora em seguida. Filipe, envergonhado por ter agido mais umavez levianamente, apressou-se em sair.

- Filipe! - gritou Vicente - Aqui está o seu dinheiro!

- Deixe-o em cima da estante... Quando eu retornar, eu oapanho. - disse ele sem olhar para trás, saindo imediatamente.

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Foi até a garagem do prédio, subiu em sua bicicleta, e dirigiu-se à Praça dos Paraíbas em Copacabana. Local provável de encontrar o capitão Uchôa. Pois passava a maior parte do dia jogando xadrez e bebendo com velhos amigos. Sua condição de paraplégico

 provocava-lhe uma neurastenia, entretanto ele sabia transformá-la emhumor. Por isso ninguém conseguia se ofender com suas aparentesgrosserias, acompanhadas de um vasto repertório de palavrões.Algumas coisas o deixavam à beira de um ataque de nervos. Umadelas era se oferecer a empurrar sua cadeira de roda. Considerava uminsulto grave a sua pessoa. Na sua concepção, aquilo demonstrava pena e isso não tolerava jamais. Ostentava com orgulho, aos setenta etrês anos de idade, morando sozinho, dispensava os serviços de umaempregada doméstica em seu apartamento. O inacreditável erarealizar tais tarefas com a maior perfeição. No momento que Filipefreou sua bicicleta, quase de frente para o capitão Uchôa, ele seencontrava bastante compenetrado naquela partida de xadrez. Mas pouco adiantava, pois não tinha como evitar receber um xeque-matedo seu adversário. O pneu dianteiro da bicicleta apenas esbarrou nacadeira de rodas dele. Foi o suficiente para o astucioso viciado emxadrez, que odiava perder, simular uma cena extraordinária. Elesimplesmente multiplicou aquele esbarrão, fazendo seu corpo se

 jogar bruscamente para frente, derrubando todas as pedras do xadrez.

- Miserável! - gritou ele, após ter caído sobre a mesa fixa da praça.

- Desculpe-me, capitão Uchôa! - disse Filipe, jogando-se da bicicleta para ajudá-lo a se ajeitar na sua cadeira de rodas.

- Ah, é você, Filipe! - disse ele no maior cinismo - Eu juravaque nós fossemos amigos!- Peço desculpa mais uma vez por tê-lo atropelado e

desmanchado o jogo de vocês.

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 O Senhor que estava jogando xadrez não disse nada, apenas

ficou encarando o capitão Uchôa.

- Filipe, não precisa tantas desculpas! Nós sabemos, não foi

intencional... Não é verdade, coronel Molina?

O homem permaneceu calado.

- Agora quem tem de pedir desculpa sou eu, por não os ter apresentado. Filipe, ou melhor, tenente Corrêa, este é o meu grandeamigo, coronel Molina.

Após se cumprimentarem, o homem então soltou a voz, furioso.

- É claro que não houve a intenção, nem tão pouco a trombadaque esta raposa velha fingiu ter sofrido...

- Não estou lhe entendendo! O amigo insinua algo?

- Não insinuo nada, velhaco! Estou afirmando...

- Velhaco, não!

- Velhaco, sim! Velhaco, ardiloso, trapaceiro...

- Minha nossa! Este homem enlouqueceu...

- Se eu não parar de jogar com pessoas da sua laia, vou acabar fincando...

- Eu continuo não entendendo este seu desatino, coronelMolina.

- Só tenho mais uma coisa a dizer-lhe, não jogo nem falo maiscom vigarista.

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O homem desapareceu daquele lugar em frações de segundos,tal era sua fúria.

- Vamos jogar uma partida?

- Não quero correr o risco de perder dois amigos num mesmodia.

- O coronel Molina falava sério?

- Eu o conheço desde os tempos da segunda guerra mundial,éramos do mesmo regimento. Pouquíssimas vezes o assisti brincar com alguém.

- A princípio, cheguei mesmo a acreditar ter batido na suacadeira de rodas com o impacto que o senhor havia simulado.

- Não comece você também! O que houve para ter retornado damissão de paz em Angola antes do prazo previsto.

- O comandante Vasconcelos cometeu uma imprudência

imperdoável que custou a vida de um soldado e dois tiveram suas pernas mutiladas por uma mina terrestre. Eles não estavam preparados tecnicamente para desativar nenhuma mina terrestre.Muito menos daquele modelo, altamente sofisticado. Questionei seuabuso de poder, nós nos desentendemos feio. E ao invés dele ser afastado do comando, mandaram-me de volta.

- Não se pode esbarrar na velha hierarquia militar, esqueceu-se

disso.

- Eu deveria ter ignorado tal situação?

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 - Em algumas coisas você é inteligentíssimo, em outras não

consegue entender por mais simples que seja. E eu não tenho mais paciência para explicá-lo.

Do outro lado da rua, um mendigo, sentado na escadaria daigreja, observava-os conversar. Ele usava uma peruca ruiva, ummacacão de jardineiro e botas de militar, velhas. Pedia apenascigarros e os guardava numa caixinha de sapatos que seguravaembaixo do braço. Ficava quase todo tempo falando sozinho em voz baixa, pronunciando com tanta rapidez, sendo impossível seuentendimento. O capitão Uchôa foi logo contra a ideia de Filipe,tentar descobrir o local onde havia sido ocultado o cadáver de CarlosChagas, filho de dona Lígia.

- Por que esse súbito interesse de desvendar o local dosepultamento?

- Porque eu não conhecia toda a história do filho de dona Lígia.Só sabia que o nome dele fazia parte da lista de pessoasdesaparecidas do golpe militar de sessenta e quatro.

- E o que você sabe a respeito deste golpe?

- Não consigo entender o senhor! Achei que fosse me apoiar em por fim ao tormento de dona Lígia. Essa é única maneira,descobrindo o local...

- Responda minha pergunta, seu palerma!

- Sei o suficiente...

- Este suficiente se refere às prisões de subversivos, de gruposterroristas a serviço da União Soviética. E todas as falácias,roteirizadas pelos Estados Unidos, encenadas por um grupo seleto de brasileiros mercenários?

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- Às vezes o senhor se parece mais mentor do Vicente que demim.

- Se eu realmente tivesse sido seu mentor, não teria se

transformado no que é hoje.

- Tornei-me militar por ouvir as suas bravuras na segundaguerra mundial.

- O fato de eu tê-lo influenciado a se tornar um militar não fazde mim seu mentor. Fui um mero contador de histórias, das quaisvocê retirou apenas o que lhe convinha para montar seu própriomodelo de bravura. E chega a ser bem semelhante a dos caudilhos.Emmanuel e eu tivemos o mesmo mentor que era o pai dele. Vicente, por sua vez, tinha o próprio pai, isso nos faz ter posições bastante parecidas no tocante a várias questões políticas.

- Se os nazistas não o tivessem colocado nessa cadeira de rodas,o senhor teria agido como o capitão Lamarca: roubaria um caminhãocom armas e munições das forças armadas, com o propósito de criar um exército revolucionário nacional?

- Como me arrependo de ter lhe influenciado a entrar para oexército. Seria mais interessante se fosse um surfista.

- Não lhe parece abominável, transformar seu solo pátrio numimenso campo de guerra para combater seu próprio povo?

- Em primeiro lugar, gostaria de fazer uma correção na palavra

roubo que você se utilizou, pois a correta é: expropriação. O capitãoLamarca arquitetou e executou uma ação de expropriação de armas emunições do quartel de Quitaúna. Com o objetivo de combater osverdadeiros traidores da pátria. Eles não fazem parte do povo brasileiro, e sim de mercenários. Se eu não estivesse nesta cadeira de

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 rodas, teria lutado contra eles, com a mesma determinação que luteicontra os nazistas.

- Se eu soubesse que o senhor era tão contrário à idéia de se

desvendar o local do sepultamento do filho de dona Lígia, não terialhe contado minha intenção de descobri-lo.

- Antes de morrer, eu gostaria de ver todas as famílias terem aomenos o direito de saber o local onde foram sepultados seus maridos,esposas, pais, mães, irmãos, irmãs, filhos...

- Então por que se opõe?

- Você corre o mesmo risco de desaparecer numa vala de umcemitério clandestino.

A conversa foi interrompida com o retorno do coronel Molina,entregando um pequeno embrulho ao capitão Uchôa.

- Parabéns!

- O que é isso?

- É um presente pela sua extraordinária atuação. Não no xadrez,mas na cena teatral que fez para não receber um xeque-mate.

- Filipe, por favor, verifique se este embrulho não é uma bomba explosiva ao ser desembrulhado.

Ele examinou com bom humor.

- Está parecendo uma cerveja em lata, estupidamente gelada.

Tratava-se de uma batida de limão que o capitão Uchôa nãodeixava faltar em sua geladeira. Os três deram boas risadas. Nestemomento, o mendigo estava bem próximo deles, olhando o Filipe

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com uma enorme admiração como se já o conhecesse. Ao notar omendigo lhe olhando, encarou-o, ele então saiu dali, sentando-se emum dos bancos da praça.

- Coronel Molina, antes de começarmos a partida de xadrez,comente os riscos a este jovem tenente dele iniciar uma investigação para descobrir o cemitério clandestino a fim de localizar os restosmortais do filho de dona Lígia Chagas.

- Essa senhora e eu em várias ocasiões nos esbarramos peloscorredores de diversos órgãos públicos. Ela procurando saber o paradeiro do seu filho e eu o da minha filha. Ambos foram mortossob tortura nas dependências do DOI-CODI.

- Que absurdo! Eles tinham conhecimento que se tratava deuma filha de um oficial das forças armadas?

- Filipe, eles não só sabiam como me prenderam, para que eunão pudesse evitar o destino cruel já traçado para minha filha. Comoeu conhecia o pseudônimo que ela usava na sua militância política,fiquei sabendo da sua prisão, através de uma notícia da imprensa.

Apressei-me em viajar para São Vicente, cidade esta onde elamorava num apartamento. Chegando no mesmo dia, à noite, fuidiretamente a esse lugar, encontrando-o ocupado por cinco homensque eram membros das forças de segurança. Fui agredido por eles eainda ameaçaram metralhar-me e jogar-me pela janela daqueleapartamento, que ficava no terceiro andar. Com muito custo conseguique eles me deixassem falar por telefone com o superior de dia do 2ºExército, em São Paulo. Obtive dele a autorização para me

libertarem, porém com a condição de eu ir para um hotel, ficando adisposição para prestar depoimento no DOI-CODI, no dia seguinte.Retornei ao Rio de Janeiro após ter sido interrogado. E procurei umvelho amigo general, que era o chefe do Estado Maior do Exército.Ele fez uma carta, na qual pedia que me dispensassem de ficar a

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 disposição do DOI-CODI, pois dirigia um Colégio aqui no Rio. E por fim, o mais importante, que era a liberação do corpo de minha filha para que se realizasse um sepultamento cristão. De posse dessa carta,fui ao quartel do 2º Exército entregá-la ao general a quem meu amigo

fazia o pedido. Para minha surpresa, ele recusou receber-me,restando-me apenas que fosse entregue por intermédio de um coronel.Surpresa mesmo eu tive quando ele retornou do gabinete do generalcom a seguinte resposta: “o general manda dizer-lhe que, por causadesta carta, você está preso a partir deste momento” e, como seuvelho companheiro de Realengo, faço questão de, pessoalmente,levá-lo para o batalhão da polícia do Exército. Após quatro diasestando preso, fui libertado, sem maiores explicações, mas com arecomendação de que regressasse ao Rio, nada falasse, não pusesseadvogado e aguardasse em casa o atestado de óbito de minha filhaque seria remetido pelo 2º Exército e, quanto ao corpo, não poderiavê-lo, pois havia sido sepultado. Mesmo com todas as ameaças queeu e minha família sofremos, continuamos firme no propósito dedesvendar toda a história que envolveu a sua morte. Somentedecorridos muitos anos, eu pude entender minha prisão, ou seja,naqueles dias minha filha estava viva e sendo torturada e, na medidaem que era mantido preso, era possível evitar minha interferência, ao

mesmo tempo em que, com essa prisão, buscavam amedrontar toda afamília. O comandante do DOI-CODI do 1º Exército nos mandou um presente inusitado, “um cassetete da polícia do Exército” e exigindoque parássemos de falar no assunto, pois todos estavam falandodemais. Na ocasião a família guardou o cassetete sem lhe dar maior importância. Porém ficamos em comoção ao descobrir que aqueleinstrumento havia sido usado para provocar a morte da minha filha. Nas dependências do DOI-CODI do Rio de Janeiro, ela foi torturada

 por 48 horas, culminando as torturas com a introdução dessecassetete em seus órgãos genitais, provocando hemorragia interna.Em seguida, foi conduzida para as dependências do DOI-CODI deSão Paulo. E novas torturas lhe foram aplicadas, ficando seu corpomutilado de tal maneira que um general, revoltado, arrancou suasinsígnias e as atirou sobre a mesa do comando do 2º Exército, sendo punido por esse ato. A partir da morte de minha filha, todo final de

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semestre, nas declarações de herdeiros que prestava ao ministério doExército, colocava o nome dela como minha herdeira, assinalandosempre que presumivelmente morta pelas forças de segurança do 2ºExército, deixo de apresentar a certidão de óbito porque não me foi

fornecida ainda, conforme o prometido. Essas declarações causavammal-estar entre os militares, mas só aquilo não bastava, era precisocontinuar procurando a justiça em meio a um vasto vale de tiranos.Eu e minha família continuamos com a mesma determinação ecoragem. Só daremos este caso por encerrado quando tivermos umasepultura com os restos mortais de minha filha. E não ficandonenhuma dúvida sobre qualquer dos fatos que envolveram sua morte.

- Esse seu testemunho só reforça o meu interesse emdesvendar...

- Filipe, é muito nobre de sua parte querer descobrir o local docemitério clandestino. Onde foi sepultado o filho de dona LígiaChagas. Principalmente não sendo da família. Porém é preciso ter  plena consciência dos perigos que estará sujeito, no primeiro instanteque se rebelar contrário a qualquer das atrocidades praticadas peloscaudilhos.

- Não estamos mais sobre a tutela dos caudilhos. No dia 15 demarço deste ano, elegemos o Presidente da República do Brasil,através do voto do povo. A democracia está consolidada no nosso país. Não entendo essa paranoia.

- Filipe, ainda é muito cedo para fazer tal afirmação. -questionou capitão Uchôa - O presidente Fernando Collor é um

filhote da ditadura. Por isso deve fidelidade aos militares golpistas. Não é só ele, há centenas de outros políticos. Todos em exposiçãonas vitrines eleitorais deste país. Como sendo os prováveissalvadores da pátria. Nenhum deles quer seu nome mencionado aosmilhares de crimes cometidos no período da ditadura. E para que isso

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 não aconteça, farão outros se for necessário. É ingenuidadesubestimar o poder em vigor dos golpistas.

Filipe os deixou jogando xadrez na praça. Tudo que foi dito o

fez refletir bastante. Agora ele tinha dimensão do perigo em questão.

Ao passar pelo mendigo, tocando fogo com jornal em todos oscigarros que tinha ganhado, parou alguns instantes. E teve vontade de perguntá-lo por que estava fazendo aquilo, depois de todo trabalho de juntar mais de cinco carteiras de cigarros. Percebendo tê-lo assustado,apenas fez um gesto de reprovação, seguindo a caminho do seuapartamento em sua bicicleta.

Assim que atravessou a Avenida Atlântica, avistou Eduardo, porteiro do seu prédio, conversando com a mesma turista que havialhe acertado o rosto com um livro. Ele parou bem perto de onde osdois estavam a fim de poder ouvir o que falavam com tanta afinidade.Com o inglês que dominava, deu para entender perfeitamente que oassunto era sobre livros. Após alguns minutos, despediram-se com beijos no rosto. Ela atravessou a avenida, entrando no hotel Olinda. Eele foi jogar vôlei de dupla na praia. Nenhum dos dois percebeu sua

 presença. Eduardo só foi notar que ele assistia à partida quando fez ponto, com um saque fenomenal. Filipe vibrou gritando: “saquedestrutivo”. Só então Eduardo o acenou meio sem graça, terminou a partida e foi cumprimentá-lo.

- Filipe, não me diga que veio invadir a minha praia, a sua é ade Ipanema.

- É, mas Copacabana também é minha praia. Sempre que ficoentediado de esbarrar com aquela turminha de idiotas, venho aqui.Você faz o mesmo.

- Não vi você chegar! Fazia muito tempo que assistia ao jogo?

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- Está querendo saber se eu realmente descobri que você não énada ingênuo... Os dois ficaram tão entretidos falando em livros, nãose deram conta que eu parei ao lado de vocês. Fiquei impressionado por ambos lerem praticamente os mesmos livros, coincidentemente

os que Vicente possui.

- Muitos deles, Vicente, emprestou-me para ler.

- Então ele sabe...

- Eu o conheço desde quando eu era criança, em Recife. Meus pais escondiam pessoas procuradas pelo regime militar, uma delasera o seu pai.

- Está fazendo confusão, meu pai jamais precisou se esconder...

- Não compreendo essa sua rejeição... De não aceitar o Vicentecomo seu verdadeiro pai.

- Pensei que essa maldita história, poucas pessoas soubessem.É inacreditável, virou um dramalhão mexicano.

- Pode me confessar se antes de saber que era filho do Vicente,gostava dele como irmão?

- Por favor, Eduardo, poupe-me o constrangimento de falar sobre este assunto. É muito mais interessante falar sobre sua vida.Por que se fez passar por ignorante e qual o motivo de estar trabalhando de porteiro?

- Sou de uma família pernambucana em que quase todos sãodocentes; eu faço parte da exceção. Cheguei a concluir o magistério pela universidade federal do meu Estado, porém jamais exerci a profissão. Se meus pais fossem vivos, certamente eu teria sido, não

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 com tanto brilhantismo como eles obtiveram, exercendo o magistério.Meu pai foi reitor da Universidade Federal de Sergipe, graças aoapoio do grande líder estudantil Vicente Corrêa. Papai tinha umaenorme admiração por ele, não escondia isso nem no período que os

militares começaram a caçá-lo. Esse motivo foi suficiente para ser levado ao 28º batalhão de caçadores, interrogado pelo Pastor dasTrevas. Tal codinome já era temido no início do golpe militar. Aosquatro anos de idade, associei a palavra interrogar a tortura. Pelosimples fato de mamãe ter ficado apavorada ao ser comunicada por nossa empregada que papai fora levado para ser interrogado. Atémesmo uma criança era capaz de entender a perversidade queenvolvia aquela palavra, usada corriqueiramente naquela época. Nodia seguinte, os militares retornaram a minha casa, desta vez, paralevar minha mãe e eu. Chegando lá, tivemos que assistir o meu paiser torturado no pau-de-arara. O pastor das trevas queria que minhamãe convencesse o meu pai a revelar o paradeiro de Vicente. Essacena durava horas, repetindo-se por três dias consecutivos. Depois os papéis se inverteram, meu pai assistia minha mãe sendo torturada eameaçaram jogar-me num poço, chegando a suspender-me de cabeça para baixo. Finalmente nossa estadia teve o seu fim, no sexto dia de prisão do meu pai. Depois desta terrível passagem pelos porões da

ditadura, voltamos a morar em Recife. Meu pai disputou a reitoria daUniversidade Federal de Pernambuco e venceu com bastantefacilidade. Todos haviam se cansado dos métodos retrógrado do ex-reitor que tentava ser reeleito. O que ninguém esperava era que elefosse se tornar ministro da justiça e com poderes tirânicos,concedidos pelo AI-5. De posse disso, começou a perseguir  professores e estudantes que haviam sido contrários às suasconvicções políticas, em particular o meu pai, que defendia uma

reforma no ensino brasileiro, bem como a reforma de base. Quandoos militares foram à universidade para prendê-lo, ele conseguiu fugir com a ajuda de seus amigos. Por muitos anos fui submetido a umtratamento psiquiátrico a fim de superar o trauma da primeira vezque havia ficado preso com meus pais. Novamente fui preso juntocom minha mãe, estava com dez anos de idade e a pessoa que elesqueriam capturar era o meu pai. Usaram um telefone de campanha do

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Exército, que possuía dois fios longos, para seviciar minha mãe. Osfios eram ligados nos ouvidos, dentes, dedos, língua, nos órgãosgenitais, aplicando-lhe eletrochoques através deles. Chegava ummomento que eu não suportava assistir tamanha selvageria,

impossibilitando até mesmo eu chorar. Ela foi submetida a váriassessões de eletrochoques. Depois eles me bateram com uma palmatória de borracha, nas minhas nádegas e nos pés com tanta brutalidade, ficando em carne viva. Chegaram também a nos ameaçar de sermos molestados sexualmente. Ao tomar conhecimento de nossa prisão, papai entregou-se ao departamento de repressão política. Elefoi julgado por um tribunal militar, sendo considerado inocentedepois de permanecer cinco anos preso. Saiu de lá completamentecego e com distúrbios mentais, devido à sevícias sofridas. Desculpe-me, Filipe, esqueci... Não gosta de dramalhão mexicano. Eu deveriater dito antes que minha vida não é nada interessante como vocêimaginou.

Eduardo havia ficado bastante emocionado, de modo a não ter mais condições de continuar a falar da sua vida. Virou-se a fim deretornar a praia, porém parou ao ouvir Filipe.

- Também me julga um insensível?

 Não lhe respondeu, apenas o encarou, fazendo-o perceber queele é quem deveria esclarecer se era ou não.

- Hoje eu tomei conhecimento de fatos tenebrosos do regimemilitar que abalou profundamente meu respeito e admiração pelasforças armadas do Brasil. Como foram capazes de praticar tamanha

desonra ao nosso país. Não sei mais se vou permanecer no exército.Eduardo, eu não sou essa pessoa insensível que todos pensam.

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 - Agora eu tenho certeza que não é... Fiz questão de lhe contar 

a minha história. E tirar de vez essa dúvida ao seu respeito. Vicente evocê têm opiniões equivocadas um do outro.

- Vicente jamais respeitou os meus sentimentos. Sequer foicapaz de revelar-me ser meu pai, ou melhor, genitor. Sr. Emmanuel edona Nair permanecerão eternamente em meu coração como os meus pais verdadeiros. Somente em l982, três anos depois de ter sido promulgada a lei de anistia, ele veio morar conosco. Nesse mesmo período eu havia entrado no Exército, quatro meses antes dele chegar. Num belo dia, chego em casa e presencio um clima de festa, pela primeira vez em minha vida. Aquilo me deixou transbordando dealegria. Fui até ele para abraçá-lo, porém, o modo indiferente comose comportou ao me ver, deixou-me totalmente sem graça. Apenastive coragem para cumprimentá-lo e sua frieza foi capaz de congelar a minha mão. Eu já namorava a Sarah e ele aos poucos foi seaproximando dela, cada vez mais com segundas intenções. Issocontribuía para nosso relacionamento ir de mal a pior. Passou a nãoter um instante de trégua entre nós dois e isso atormentava a vida dosmeus pais. Ao chegar do exército, ouço através da porta do quarto doVicente. Ele dizendo ao Celso, completamente bêbado, preferir eu ter 

morrido no parto. Para não ter que viver sentindo vergonha de ter-mecomo filho. Somente nesse dia tomei conhecimento da verdade queme foi escondida por anos. Minha genitora morreu após ter dado aluz a mim e o Vicente entregou-me a eles para criar-me. Temendoque me fizessem algum mal por ser filho de um foragido, eles semudaram para o Rio de Janeiro e me registraram como filho legítimo.Aquela foi a pior fase de minha vida, pois não houve um intervalo para superar as desgraças que foram acontecendo uma após outra.

 Naquele mesmo ano minha mãe faleceu e um ano depois foi a vez domeu pai. Comprei um par de alianças, disposto a me casar com aSarah o mais breve possível. A resposta foi um par de chifres.Adivinhe com quem ela me traiu... Com o Vicente, no quarto dele.Diante de tudo isso eu te respondo com toda sinceridade a perguntaque me fez: além de amá-lo, sentia um orgulho imenso em ser irmãodele. Filipe encontrou no Eduardo confiança suficiente para

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confidenciar os segredos mais íntimos de sua vida. Conversaramsobre as questões mais conflitantes de suas vidas. Depois jogaramalgumas partidas de vôlei em parceria, ganhando todas. Foramembora juntos, em suas bicicletas.

- Quero estar perto quando aqueles idiotas souberem que vocêé quem estava o tempo todo curtindo com a cara deles. Só mesmosendo um ator para interpretar um ingênuo porteiro com tanta perfeição. Ainda não me disse a razão de estar trabalhando de porteiro tendo um ótimo currículo para conquistar uma vagacompatível a sua capacidade?

- Em Recife, sustentava-me trabalhando como ator profissional,não era um cachê milionário, mas dava para levar a vida. Decidiarriscar tudo a favor da minha carreira, vendendo a casa onde moravae vindo morar no Rio de Janeiro. Fiz centenas de testes para trabalhar em peças teatrais, cinema, televisão e mesmo em propagandas. Nãoconsegui nada, chegando a duvidar do meu talento. Depois de muitotempo me dei conta que o meu sotaque era o empecilho em minhacarreira aqui na cidade maravilhosa. Vivendo num país comdimensão continental como o Brasil, é ridículo que tenhamos de nos

curvar diante do sotaque carioca e paulista. Foi necessário submeter-me a aulas a fim de perder o meu sotaque. Só valeu a pena passar por essa humilhação por ter finalmente voltado aos palcos dos teatros.Mesmo interpretando papéis pequenos, porque pude expor meu potencial, obtendo reconhecimento, juntamente com um grandioso papel. Alguns dias antes da estreia da peça, eu entrei em criseemocional. Devido a um surto de lembranças do tempo em que estiveencarcerado com meus pais. Fui internado numa clínica para um

rigoroso tratamento psiquiátrico, que durou bastante tempo. Após ter sido curado, enfrentei outra crise, a financeira. Havia ficado muitotempo sem trabalhar e perdi o contato com as pessoas que poderiamarranjar-me um novo papel. Minha sorte foi encontrar, por acaso, oVicente e o Celso, jogando vôlei na praia. Eles falaram com o Sr.

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 Bertolucci e conseguiram o emprego de porteiro pra mim. Chegou nahora certa, pois já havia recebido ordem de despejo do apartamentoonde morava e não tinha dinheiro para pagar uma única refeição.Achei um bom desafio me passar por ignorante, foi a forma que

encontrei para estar atuando como ator fora dos palcos. É tambémuma boa maneira de conquistar a simpatia das pessoas. O tipointelectual, quase sempre acaba ganhando a antipatia... Você é um bom exemplo disto.

Chegaram bem humorados, porém, Filipe logo ficou de carafechada ao ver Vicente e Sarah retornando juntos de um mergulho nomar. Ele a ajudou a amarrar o sutiã do biquíni bem próximo de ondeestavam. Filipe se sentiu provocado, desceu da bicicleta atirando-ano calçadão com força. Os dois ficaram abismados com aquelaatitude, inclusive quem se preparava para jogar vôlei. Celso, tentandoevitar mais uma discussão entre pai e filho, chamou Vicente paraformar uma dupla. Filipe também se dirigiu ao local do jogo odesafiando.

- Você quer jogar? Pois bem, vamos jogar! Ganhar de você nãoé uma possibilidade, é um fato.

Ele chamou o Eduardo e o apresentou como seu novo parceirode vôlei. Seu antigo parceiro, Miro, ficou espantado e ansioso paraassistir aquela partida, bem como as demais pessoas presentes.Leonardo se antecipou em formar uma torcida contra aquelanovíssima dupla.

 No começo da partida Celso e Vicente até tiveram um bom

desempenho, mas bastou Filipe e Eduardo acertarem o passo,detonando seus adversários. Que sucumbiram, diante do superior vôlei apresentado. Venceram com uma esmagadora vantagem de pontos. E o último feito por Filipe, de bloqueio em cima do Vicente.Foi algo desconcertante, com sabor de provocação, desagradando profundamente Sarah. Havia caído areia nos olhos do Vicente. Ela,com uma garrafinha de água mineral, lavou cuidadosamente os olhos

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dele. Aquela cena tirou a empolgação de Filipe em comemorar,saindo em seguida para seu apartamento. Sem receber oscumprimentos pela vitória, pois tinha ficado incompleta.

 No isolamento do seu quarto ele pôde presenciar da janela os

dois conversando. Notou que aquele era o momento ideal para entrar no quarto do Vicente. E obter as informações de sua verdadeira mãe.Finalmente pôde penetrar no quarto, deparando-se com uma

infinidade de coisas antigas que descrevia nitidamente o passado deum homem feliz. Porém foi levado ao outro extremo por repudiar ogolpe militar.

Filipe vislumbrou-se com a possibilidade que aquele acervo decoisas pessoais do Vicente podia revelar. Iniciou primeiramente à procura dos originais, evitando ser surpreendido pelo dono do quarto.

Sobre uma escrivaninha, um antigo projetor direcionado a umatela, preso à parede, pronto para ser usado. Uma velha máquina deescrever contendo a primeira folha do último capítulo. Abrindo asgavetas, encontrou as outras folhas dos originais do livro, que tinhacomo título: “Nos porões da ditadura, uma flor...”. De posse delas,tornou a fechar a porta do quarto, seguindo imediatamente a uma

 papelaria mais próxima, a fim de fazer uma cópia dos originais quelevara. Retornando, procurou deixar tudo exatamente como estava, pois sabia o quanto Vicente era observador. Deixou a cópia bemescondida em seu quarto, para logo mais à noite lê-la.

Quando se preparava para tomar banho, ouviu a campainhatocando repetidamente.

Enrolou-se numa toalha, indo atender a porta. Era a mulher quehabitava em seu coração. Não sabia como deveria tratá-la, apenas buscou em seu lindo olhar feminino, o que de fato ela sentiu por ele.

- Vai ficar parado me olhando ou vai me convidar a entrar?

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 - Não vejo porque convidá-la a entrar, se a pessoa a qual

 procura não se encontra. Mas se quiser aguardá-lo em seu quarto,fique à vontade. Não há necessidade de dizer-lhe onde fica, pois jáconhece bem este apartamento, não é verdade, Sarah?

- Encontro-me bastante frágil com a possibilidade de perder omeu pai a qualquer momento. Não estou disposta a ouvir as suasofensas.

- Não me pareceu frágil ao lado do Vicente, lá na praia.

- Deve ser a grandeza humana que ele possui e consegue metransmitir, fortalecendo-me. Ao contrário de você que me julga umavadia. Capaz de traí-lo com seu próprio pai.

- Ele não é meu pai! Se eu fosse o maior idiota do mundo,ainda assim, seria impossível acreditar que vocês não transaram.Estando você deitada na cama dele, completamente nua. Não percaseu tempo repetindo a história de ter entrado no quarto do Vicenteapenas para assistir a um filme com sua mãe na universidade. E por esse motivo, sentiu-se emocionada e acabou ficando bêbada de tal

maneira que vomitou em si própria. O senhor cavalheiro tirou suasroupas enquanto dormia. Com intuito de lavar, estender para secar,retornando ao quarto somente pela manhã para entregá-las.

- Estou farta de tentar lhe provar minha inocência. Nãomerecemos ser julgados levianamente por você, por ter ciúmes denossa amizade. Só agora vejo o tempo que eu desperdicei de minhavida, esperando-o voltar para mim. Se pudesse escolher a pessoa para

me apaixonar, certamente eu preferiria o Vicente, infelizmente nãofunciona assim. Mas posso tirar definitivamente você dos meus planos de sermos felizes juntos. De agora em diante não quero nemmesmo ser sua amiga. Não se atreva mais a me dirigir a palavra.

Filipe não fez nada para impedi-la de ir embora.

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Após tomar banho, trancou-se em seu quarto, iniciando aleitura do “Nos porões da ditadura, uma flor...”. Esse era o nome deuma das poesias do Vicente. Escrevera quando esteve preso pelasegunda vez. E justamente com essa poesia iniciavam-se os originais

do livro.

 Nos porões da ditadura, uma flor...

Foi submetida a requintes de crueldade por seus algozes

E por serem animais homens, conspurcaram-na

Insatisfeitos a mutilaram

 Nos porões da ditadura, uma flor...

Foi silenciada pelos agentes de repressão

Com uma rajada de fuzil FAL

À queima roupa, estraçalhando-lhe o corpo

 Nos porões da ditadura, muitas flores

Foram ceifadas barbaramente

Em nenhum momento calaram-se

 Nem diante do pavor e da dor 

 Nossos jardins jamais serão os mesmos

Sem a presença delas

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 Mesmo sabendo que outras nascerão

Para florir este país de beleza e bravura

Vicente mencionava que tal poesia fora escrita minutos depoisde ter sido seviciado por militares. Nesse mesmo capítulo ele falavaque tinha plena consciência, desde o princípio, dos riscos quecorreria. E também da mínima chance de vencer os mercenários quederam o golpe, a serviço dos Estados Unidos e das multinacionais.Pondo fim à tão sonhada reforma de base que traria desenvolvimentoao nosso país, priorizando os interesses do povo brasileiro.

Filipe ficava estupefato a cada página que lia, porque estavamrepletas das mais diversas formas cruéis de aniquilar um ser humano.Eram histórias que abrangiam professores, médicos, advogados,sindicalistas, lavradores, alunos, jornalistas, políticos e etc. Todostiveram suas vidas ceifadas por se imporem ao regime militar. Anarrativa com riqueza de detalhes evidenciava claramente longos períodos excruciantes até culminar em suas mortes. Havia relatossobre a filha do coronel Molina, do filho de dona Lígia, dos pais doEduardo e das mães do Miro e da Sarah. Versões bem diferentes da

qual ele tinha conhecimento.

Por volta das seis horas da manhã, Filipe concluiu toda leitura.Sua concentração se fez tão profunda que só notou o amanhecer noúltimo ponto final, sem sono algum.

Uma pergunta perturbava continuamente sua mente, era o fatodo Vicente sequer ter mencionado o nome da mulher que tanto amou,

falecendo logo após lhe dar um filho.

Vestiu seu uniforme de oficial do exército e foi ao ComandoLeste, decidido, mais do que nunca, dar início a sua investigação.

Um mês depois, foi à Praça dos Paraíbas rever o amigo, capitãoUchôa, que aguardava sozinho outra pessoa para jogar xadrez.

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- Se o senhor não roubasse tanto no xadrez, não ficaria semadversários para jogar. - brincou Filipe ao chegar em sua bicicleta.

- Sou um jogador de elite e não de penitenciária. E fique você

sabendo, estou esperando justamente um excepcional jogador paraum confronto de gigantes do xadrez. Deve estar chegando, mas,enquanto isso, sente-se. Vamos brincar um pouco.

- Primeiro vai ter de prometer que não vai se aborrecer apósvencê-lo.

- Não seja pretensioso, seu fedelho. Agora me diga, andafazendo o quê de tão importante a ponto de ter sumido daqui?

- Tenho jogado com mestres excepcionais de xadrez. Comintuito de aperfeiçoar minha técnica para neutralizar suas jogas.

- Passou uma temporada no manicômio?

Filipe iniciou a partida com muita convicção da sua vitória.Provocando certo aborrecimento em seu adversário, transformando-

se em fúria ao notar que não tinha mais chance de vencer, pois erainevitável receber um xeque-mate. Sua expressão ardilosa desenhavaseu rosto.

- Capitão Uchôa, é mais honroso dar-me os parabéns pelavitória que trapacear cinicamente como está tentando fazer.

- Respeite-me! Já disse que não sou disso. Aprenda uma coisa,mesmo os grandes jogadores de xadrez não são invencíveis. Por que

diabos eu seria diferente?

Pela primeira vez capitão Uchôa se comportou tranquilo aoreceber xeque-mate. Cumprimentou e elogiou o vendedor.

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 - Realmente, você jogou brilhantemente.

- Obrigado. Se tiver fôlego, podemos jogar outra partida?

- Derrotas são insuficientes para abalar minha resistência.

Ambos começaram a ajeitar as peças do xadrez em suas posições, a fim de reiniciar uma nova partida. Filipe estava achandomuito engraçado o comportamento atípico do capitão Uchôa,mostrando-se um adversário nobre.

- Você desistiu de fazer a desatinada investigação sobre o filhode dona Lígia?

- Decidi ouvir o seu conselho. Afinal de contas, o senhor é omeu mentor intelectual.

- Ainda bem! Fico despreocupado em saber...

 Nesse momento chega o Miro e os cumprimenta.

- Vim para jogar uma partida com o senhor...

- Ele está pensando que isto aqui é jogo de dama. - debochouFilipe.

- Cheguei em péssima hora. Eu volto outro dia para nós jogarmos, capitão Uchôa.

- Nada disso! Não aceito sua desistência de jogar, sente-se,Miro.

- Não sabia que o senhor jogava dama.

- Filipe, eu não admito seus insultos com as pessoas que medão a honra de vir jogar comigo.

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- O fato de eu achar engraçado ele confundir o xadrez com adama, não significa, de forma alguma, que eu esteja o insultando.Miro, você sabe jogar?

Miro tirou seu relógio do pulso, botando sobre a mesa,desafiando-o.

- Aposto meu relógio contra sua bicicleta, numa única partidade xadrez entre mim e você.

- Minha bicicleta vale pelo menos o triplo de seu relógio, aindaassim, aceito a aposta. Estou mesmo precisando de um relógio, poiso meu perdi há alguns dias.

O capitão Uchôa cedeu seu lugar ao Miro, dizendo:

- Boa sorte, Filipe!

- Agradeço, entretanto é ele que vai precisar de muita sorte para vencer-me no xadrez.

- Seu nível de jogadas melhorou, mas sua arrogância piorou. -criticou capitão Uchôa

Foi uma partida bastante acirrada, a ponto de despertar interesse em outros xadrezistas. Rodearam a mesa para assistir aquela partida empolgante. Ao final dela, os aplausos foram para oMiro, dando um dos mais belos xeques-mates. Filipe ficou perplexo.

- Miro, agora você não tem mais a desculpa de não poder vir 

 jogar comigo por terem roubado sua bicicleta. Com essa aí, gastaráno máximo cinco minutos de Ipanema até aqui. Não é mesmo,Filipe?

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 - Não sei, só sei que eu estou atrasado para um encontro

importante. E por este motivo, peço ao Miro que apanhe a bicicletana garagem do nosso prédio.

- Minha bicicleta só sai daqui comigo. Vá de táxi!

- Não posso ir de táxi, pois esqueci minha carteira no meuquarto. O local do encontro é no Leme.

- Se você teve disposição para menosprezar-me, terá em ir correndo até o Leme.

- Concordo com Miro, por isso sinto-me obrigado a não lheemprestar o dinheiro para pagar o táxi. Além do mais, o Leme nãofica tão longe daqui e andar faz bem a saúde.

Sem se despedir, seguiu em direção ao Leme. Tendo andadoalguns metros, ouviu o capitão Uchôa chamá-lo. Parou achando quefosse lhe emprestar o dinheiro.

- Agora você já sabe quem é o excepcional jogador que eu

aguardava. Miro é meu fabuloso aluno. Não conte para ninguém,quem sabe não aparece outro trouxa.

Depois fez sinal permitindo-lhe seguir seu caminho.

Chegando à praia do Leme, foi disputar uma partida de vôlei deduplas ao lado do Eduardo. Eles retornaram a Ipanema caminhando pelo calção da praia.

- É bom você já ir se preparando para a onda de gozação que oespera.

- Não o subestimei... Sequer sabia que ele jogava xadrez. Foium xeque-mate fabuloso.

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- Vicente já terminou de escrever o último capítulo do livro?

- Não sei. Ainda não tive oportunidade de entrar novamente emseu quarto desde o dia que fiz a cópia dos originais. Ele não sai do

apartamento, há um mês.

- Sai sim, mas depois que você vai para o exercito. Ele deveestar desconfiado que você esteja invadindo o quarto dele.

- Aposto que Sarah vai visitá-lo quando eu vou para o exército.

- A última vez que ela entrou naquele prédio foi para conversar com você.

- Ela não quer conversar comigo de forma alguma.

- Ela tem seus motivos! Sarah não merecia ouvir as suasgrosserias...

- Preciso urgentemente fazer análise, porque não consigo viver com a Sarah e nem sem ela. Na metade do caminho, os dois foram na

 bicicleta do Eduardo, Filipe sendo levado na garupa.

Em torno do quiosque de Sarah, uniu-se um grupo com o únicointuito de zombar do Filipe. E bastou ser visto na garupa da bicicleta para dar início às risadas.

- Estou louco para faturar uma bicicleta de um otário, igual estaaqui - gritou Leonardo.

- Que tal uma partida de vôlei, eu e o meu parceiro aqui, contravocê e o Miro. Se vencerem, ficam com minha bicicleta e o meurelógio. Se perderem, ficamos com a bicicleta do Miro e com seurelógio.

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 - Não acredito! Subitamente perdeu o sotaque de Paraíba, mas

continua otário. Pensa que pode derrotar a dupla invencível só porque venceram o Vicente e o Celso.

- Não exagere, Leonardo! Somos apenas uma dupla bem prepara. Ninguém é invencível!

- Como não? Desde que formamos uma dupla, não perdemos para ninguém e não vai ser agora.

Leonardo e Miro venceram o primeiro set com uma enormediferença de pontos. E parecia que venceriam com facilidade o jogo. No segundo set, Filipe e o Eduardo praticamente neutralizaram ossaques, convertendo em pontos de bloqueios, derrotando-os com umadiferença de dois pontos. E no set decisivo, os seus saques precisoscegaram seus adversários, consolidando a vitória. A turista que haviadado uma pancada com um livro no nariz do Eduardo tinha chegadono início do último set e ficou torcendo, causando estranheza talatitude. Porque ela foi reconhecida por eles. Assim que terminou o jogo, ele foi até ela, beijou-a na boca e comemoram falando eminglês.

- Não estou entendendo qual é a desse Paraíba?

- Eu lhe explico, Leonardo. - disse Filipe com certa satisfação -É muito simples. Eduardo é uma pessoa formada, porém optou pelasartes cênicas, ou seja, ele é ator profissional. Mas por motivo desaúde, teve que se afastar por um longo período dos palcos. E acabou perdendo contato com diretores com quem costumava trabalhar. Com

a sua saúde restabelecida e ciente que não seria fácil um papel deimediato, aceitou humildemente o emprego de porteiro que Vicente eCelso arranjaram. Para se manter preparado para atuar nos palcosquando surgisse uma oportunidade, decidiu sabiamente aproveitar-seda ocasião, criando o personagem do porteiro ingênuo...

- Quer dizer que o Paraíba nos fez de otários?

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- Parabéns, Leonardo, você foi o primeiro a se tocar. - zombouFilipe.

- Como Eduardo pode ter me feito de otário – disse Miro - se

era eu quem dava a deixa ao personagem dele. O único erro que elecometeu foi de não ter escondido bem sua coleção de livros, dentreeles consta: O Capital, de C. Marx, O Príncipe, de Maquiavel, Guerrae Paz, de L. Tolstoi etc. Isso sem contar os livros que Vicente vivialhe emprestando. As obras eram incompatíveis a um porteiro ingênuo.Fui ao seu quartinho e encontrei a porta aberta, e não resisti a bisbilhotar suas coisas. Encontrei seu diploma e uma pasta cheia descripts, das várias peças encenadas por ele. Daí em diante, eu passei acriar situações, ficando mais divertido a atuação dele. Enquanto osotários do Leonardo e sua galera riam por acreditarem que fosserealmente uma pessoa simplória. Eu ria da sua genialidade emenganá-los.

- Filho, de certo modo você também me surpreendeu bastante.Jamais disse que jogava xadrez, tão bem a ponto de vencer o Filipe.Ainda descobriu o papel do porteiro ingênuo do Eduardo.

- Celso, sempre lhe disse o quanto você é ingênuo, ao não notar a grande inteligência que se esconde no Miro.

- Concordo com o Vicente! Miro sempre escondeu suainteligência... Escondeu várias coisas, inclusive seu lado traíra.Tenho de admitir, eu sou mesmo um otário. Sempre acreditei sermosamigos... Da mesma galera. Quando você precisou esconder do seu pai que havia entrado para Marinha, na mesma época que Filipe

entrou para o Exército, contou com minha ajuda. Não é verdade,tenente Ribeiro?

- Miro... Leonardo, não está falando sério?

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 - Estou, Celso! O seu filho traiu sua confiança esses anos todos.

Só agora vejo que também fui usado por ele ao aceitar formamosuma dupla de vôlei de praia. Era o pretexto perfeito de inventar torneios para disputarmos. Assim, ele podia fazer o curso de oficial

da Marinha, sem despertar a sua desconfiança. A minha parte erasomente me ausentar nesse mesmo período. Geralmente ficava emuma praia do litoral fluminense, aprimorando meu surf. Os uniformes,ele deixava guardado no apartamento do capitão Uchôa.

- Não precisa contar mais nada! Já deu para entender todo ardildesse traidor...

- Pai, não queria fazer isso. Mas foi o jeito de realizar meusonho de criança sem magoá-lo.

- Celso, você chama de traição – disse Filipe - a realização dosonho de seu filho? É compreensível que não compartilhe o orgulhode ser militar, porém é inadmissível desprezá-lo por isso.

- Pensávamos, Vicente, que havia apenas um agente infiltradoentre nós. São dois agentes, um do centro de informações do Exército

e o outro da Marinha. Quando eu retornar do Arpoador não queromais encontrá-lo no meu apartamento. Não se esqueça de deixar asua chave na portaria do prédio. É melhor eu trocar o segredo dafechadura, sabe-se lá até onde chega a sua traição...

Celso saiu a passos lentos de cabeça baixa.

- Miro, há dois quartos vagos no meu apartamento, escolha um

e se instale pelo tempo que desejar.

- O apartamento é meu também! E infelizmente sou obrigado anão concordar que Miro vá morar lá, depois dessa traição... Celsonão merecia isso de você.

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- Vicente, quem não arca com as despesas do apartamento nãotem direito de decidir nada. Essa atitude desprezível como os doisestão tratando o Miro é desumana.

- Deixei um cheque na estante, o valor é suficiente para lhereembolsar toda a parte do dinheiro que me cabia desembolsar. Etornei a contratar uma empregada do jeito que combinamos derepartir as despesas. Só se tem respeito a alguém quando se fazmerecedor dele.

Vicente foi ao local onde se encontrava Celso. E os olhares sevoltaram para Leonardo com repugnância.

- Miro, você me forçou a fazer essa idiotice!

- Sua única habilidade é cometer idiotices, Leonardo. Suafilosofia de vida é se dar bem a qualquer preço. Tentei mudar seumodo de pensar para transformá-lo numa pessoa decente. Sua máíndole é algo irrevogável. Hoje, finalmente me libertei de você.

Bastante contrariado, foi ao apartamento ajeitar suas malas

 para sair de lá. Filipe, inconformado com a situação do seu amigo deinfância, montou na sua bicicleta e foi insistir com Celso quereconsiderasse sua posição.

Sarah somente ficou a par dos acontecimentos através doEduardo. E imediatamente foi dar seu apoio ao Miro.

À noite, no apartamento, Filipe e Eduardo comentavam o

ocorrido.

- Pela primeira vez vi Celso agir como uma pessoadesequilibrada. Ao tentar dissuadi-lo da ideia de mandar Miro

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 embora, gritou comigo. Faltou pouquíssimo para agredir-mefisicamente. Agiu igualzinho ao Vicente.

- Já se aproveitou da ausência do Vicente para novamente

entrar no quarto?

- Não. A empregada que ele contratou já está morando aqui.Onde ele arranjou dinheiro para pagar o salário dela e mereembolsar?

- Provavelmente pediu um adiantamento do livro à editora.

- Neste caso, já deve ter entregado os originais por completo.Mesmo assim preciso entrar naquele quarto, lá dentro se esconde boa parte do passado dele. Mas nesse momento minha curiosidade édescobrir onde Miro está.

- Pensei em perguntá-lo onde ia ficar morando, mas não tivecoragem ao vê-lo arrasado indo embora.

- Provavelmente tenha ido ficar no apartamento do capitão

Uchôa. Aquele velho é mais astucioso que eu imaginava. Suanamorada não deve ter entendido nada do que aconteceu.

- Deve ter entendido um pouco, Sandy fala espanhol que já setransformou no portunhol. Apresentei-lhe a Sarah e as duas se derammuito bem.

- Ela exerce qual profissão na Austrália?

- É antropóloga, mas trabalha de fotógrafa numa revistafeminina. Ela é dessas pessoas obcecadas pela profissão. Não sesepara da sua câmara fotográfica um instante sequer.

- Deu para notar, ela vive tirando fotos de tudo e de todos.

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 No dia seguinte, Filipe foi à Praça dos Paraíbas saber o paradeiro do Miro. O capitão Uchôa informou o número doapartamento que ele se encontrava. Era no seu prédio, mas em outroandar. Apesar de abatido, ficou satisfeito em receber sua visita.

- Acabei de chegar da Marinha. Sente-se, Filipe.

- Você fica muito bem de uniforme. Nem se parece com ovagabundo que erroneamente eu acreditava você ser. Sinto-meenvergonhado por ter subestimado seu intelecto e até mesmo seucaráter.

- Se hoje estou na marinha, muito devo a você e ao capitãoUchôa, ambos foram decisivos, incentivando-me a entrar, mesmomeu pai não tendo concordado. Foi ai que eu passei a levar a sériomeu futuro.

- Não o incentivei, praticamente lhe obriguei. Quando me disseque não ia fazer as provas de admissão. Brigamos na base da porrada.

- Foi mesmo. Chamou-me de bebezinho covarde. Foi a partir 

daí que paramos de sair juntos, desfizemos a parceria de vôlei edeixamos de agir como dois grandes amigos que sempre fomos um para o outro.

- E justamente por não contar com sua amizade, amargueimaus momentos, sozinho.

- Pelo menos essa situação serviu pra nos unir novamente?

- É verdade. Seria bom se pudesse ficar lá no meu apartamento,mas infelizmente é do Vicente também e ele não concordou. Vimsaber como você está e lhe emprestar dinheiro para alugar umapartamento e mobiliá-lo.

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 - O que há de errado com esse apartamento e com a mobília?

- Nada. É até bastante requintando, porém morar numapartamento de temporada pesa no seu ordenado.

- Comprei esse apartamento há mais de dois anos, já prevendoque um dia o meu pai descobriria a verdade e me expulsaria do seu.Há muito tempo venho alugando para temporada e rendeu-me um bom lucro.

- Realmente, você levou a sério seu futuro. Tornou-se uma pessoa econômica e investidora de sucesso. Já minha vida está uminferno dantesco. Agradeço se você puder me orientar.

- A sua felicidade depende de algo muito simples. A primeira étransformar Sarah em sua mulher. E a segunda, é procurar enxergar oVicente, como de fato ele é... Sentirá tanto orgulho dele, tornando-seimpossível esconder seu amor por ele.

- Não consigo mais dizer para mim mesmo que não o admiro.E só não lhe pedi perdão por todas as coisas injustas que eu o acusei

 por ainda restar dúvida em minha mente sobre ele e Sarah teremtransado. Esse mesmo motivo me impede de torná-la minha mulher.

- É notório o dom de Vicente em despertar nas mulheres paixões incontroláveis. Meu pai conta que sempre foi assim.Entretanto, no caso da Sarah e ele é um sentimento mútuo deamizade... Próximo ao de pai e filha. Sabe a razão porque ele sedeixa abater tanto com suas acusações levianas? É o imenso amor que tem por você.

- Há muito tempo venho me esforçando ao máximo, a fim deacreditar nessa verdade.

- Convença-se o mais rápido possível. Sarah pode a qualquer momento se esgotar. Então só lhe restará amargar o terrível sabor doarrependimento.

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- E você, quando vai lá tentar uma reaproximação com oCelso?

- No meu caso se faz necessário dar um tempo para ele refletir 

melhor sua posição. Enquanto aguardo, vou a Belo Horizonte passar minhas férias. Sinto-me completamente abandonado sem acompanhia dele.

- É desse mesmo jeito que Celso está se sentido, sem a suacompanhia. Quando irá partir de férias?

- Amanhã mesmo. Assim que eu retornar, entro em contatocom você, Lipe.

Miro foi a Ipanema logo após ter chegado das suas férias. E aosair do prédio do seu pai, assustou-se ao levar um banho de água fria.

- Dona Lígia, sou eu, Miro. Não está enxergando? - gritou ele,olhando para cima.

- Posso ser tola por confiar em pessoas do seu tipo, mas não

sou cega, milico traidor.

- Quer dizer que a senhora também vai me hostilizar como fazcom o Filipe?

- Não haveria de ser diferente, seu cínico. Ambos fazem parteda mesma corja.

- A senhora só o molha ao passar por aqui uniformizado...Estou à paisana.

- Além de cínico, é engraçadinho.

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 Ele atravessou a avenida em direção ao quiosque. Sandy, Sarah,

Filipe e Eduardo se divertiram assistindo àquela cena hilária. Miro oscumprimentou todo encharcado.

- Pelo jeito, você também foi descoberto por uma nuvemchamada dona Lígia. Seja bem vindo ao nosso clube das vítimas dos banhos inesperados.

- Já imaginava essa reação por parte de dona Lígia, mas nãoquando eu estivesse à paisana. Fui exclusivamente ao apartamentodela tentar convencê-la a não ficar chateada comigo. Ela fingiu nãoestar em casa e eu caí direitinho em sua armadilha.

- E o seu pai? - perguntou Sarah

- Esse aí não quer falar comigo nem por telefone. Mas ele vaiter que, pelo menos, me escutar. Lipe, você sabe onde ele está?

- Não está na clínica, trabalhando?

- Vim de lá, agora. Disseram-me que não foi trabalhar e vem

faltando, com frequência. Deve estar no Arpoador com o Vicente.

- Vicente está na universidade, dando aula.

- Que novidade boa é essa, Sarah?

- Faz quase um mês que ele leciona. - respondeu ela com muitoorgulho - E em muito breve o livro dele será lançado.

- Finalmente, uma ótima notícia de se ouvir. Não vejo a hora deler esse livro.

- Eu também, Miro. - disse Filipe.

Sarah o encarou, analisando-o se estava ironizando.

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- Posso ter sido muito injusto com Vicente, porém sempre lhedesejei o bem.

Ela se deu por convencida que ele estava realmente sendo

sincero e se desarmou.

- Perguntei por você, Eduardo, ao novo porteiro do prédio. Eleme contou que não está trabalhando mais lá. Não me diga que oLeonardo arquitetou alguma armação para o Sr.Bertolucci o despedir.

- O Sr. Bertolucci responsabilizou o Leonardo pelo Celso tê-lomandado embora. Aplicou a lei de talião, expulsando-o de casa,como castigo. Pedi as contas porque consegui um bom papel numa peça teatral. Em breve irei reestrear, conto com sua presença na plateia.

- Estarei lá, na primeira fila! O aplaudirei com muito orgulho.

Os três foram tomar banho na praia, ficando Filipe e Miroconversando.

- Pensei que você e a Sarah já tivessem pelo menos voltado aconversar.

- Por mais que eu insista, ela se recusa a falar comigo. Sintoque ela está se distanciando de mim, a cada dia que passa.

- Vou tornar a repetir: abra seu coração para ela antes que sejatarde demais.

- Como foram suas férias? Namorou alguma belo-horizontina?

- Não tive tempo para isso...

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 - Como não teve?

- Fui a Belo Horizonte, exclusivamente, investigar ascircunstâncias do assassinato da minha mãe. A versão do meu pai,

sobre ela ter morrido num acidente de carro, nunca me convenceu.Procurei nos jornais da época como ocorreu o acidente. Em todos,apenas constava que estava passando pela estrada da Gávea, e nasaída do túnel, dois irmãos, quando houve o acidente. O médicolegista que assinou o laudo necroscópico confirmava a versão oficialda repressão. Por muito tempo tentei localizá-lo, mas eu obtiveinformações de que ele havia se mudado para os Estados Unidos,outros me disseram Europa. Continuei minha linha de investigação,lendo jornais da época. E acabei descobrindo que seis semanas antesde ser divulgada a sua morte, fora presa no DOI-CODE de BeloHorizonte, uma mulher chamada Maria da Penha. Consideradaterrorista pelos órgãos de segurança do regime militar. Era esse pseudônimo que minha mãe usava. Por várias vezes fui a BeloHorizonte procurar os arquivos do DOI-CODE daquela cidade. Nessas idas só podia ficar no máximo dois dias. Resolvi, então, passar minhas férias procurando. No penúltimo dia do meu retornoao Rio de Janeiro, encontrei a ficha policial dela. Constava o seu

nome verdadeiro e o pseudônimo. Depois de uma semana presa, elafoi transferida para a cidade de Petrópolis. Era lá que funcionava amonstruosa Casa de Petrópolis, onde os presos políticos passavam por todo tipo de torturas. Conheço um torturador que seviciava nesselugar. Tenho certeza que ele não fará objeção de revelar-meinformações pertinentes sobre o assassinato de minha mãe.

- Como ele se chama?

- Conheço-o apenas pelo seu apelido: “Zé Gavião”.

- Não vejo necessidade disso. É correr risco à toa. Basta vocêaguardar a publicação do livro do Vicente.

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- E como você tem tanta certeza que ele mencionará asverdadeiras circunstâncias que culminaram com a morte dela.

- Sua mãe foi uma revolucionária muito atuante para ficar de

fora de qualquer livro que seja escrito, falando sobre os verdadeirosheróis que combateram a tirania da ditadura militar.

- Vicente ficaria assombrado ouvindo o que você acabou de medizer. Mas eu não estou surpreso, porque nunca tive dúvida de quelado você sempre esteve. Acho que você tem razão; já esperei tantosanos, posso esperar mais alguns meses, a publicação desse livro. Lipe,você não sente nem um pouco de curiosidade de saber sobre amulher que lhe trouxe ao mundo?

- Tenho tanto, a ponto de mandar um chaveiro fazer uma cópiada chave do quarto do Vicente. E num momento oportuno, entrei,retirei os originais do livro e fiz uma cópia deles.

- Então você sabe se ele contou sobre o assassinato da minhamãe?

- Ele... Não estava com todos os capítulos. Até onde eu li, nãomencionava nenhuma das duas.

- Deixe-me ler a cópia que você fez?

- Depois que li, toquei fogo para Vicente não descobrir. Noteique ele estava bastante desconfiado.

- Se você tem a chave, podemos fazer outra cópia de todos osoriginais. E a essa altura, ele já deve ter concluído o livro.

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 - Tal é a sua desconfiança de mim que ele deve ter levado os

originais para editora ou escondeu em outro lugar. E é bem provávelque tenha trocado a fechadura.

- Se eu estivesse no seu lugar, não esperaria o livro ser  publicado, para saber a respeito de sua mãe biológica. Falariadiretamente com o Vicente. Tenho certeza que ele não se recusaria ater essa conversa com você. Vou até o Arpoador, ver se eu encontroo meu pai, daqui a pouco estou de volta.

Sarah retornou sozinha da praia, encontrando Filipe, atendendoos fregueses do seu quiosque, com bastante humildade. Ela nãodemonstrou estar grata por ele ajudá-la, porém não ficou aborrecida por tal gesto. Sequer perguntou aonde o Miro tinha ido, pois era a eleque havia deixado a incumbência de tomar conta do seu quiosque.

Depois de ter atendido todos os fregueses, abriu um coco e aentregou.

- Esse é seu, beba.

Ela aceitou, mas não agradeceu. Enquanto bebia, encarava-ocom um olhar que dizia: “não entendo a sua insistência em querer seaproximar depois de tudo que havia me dito”.

- Há um procedimento jurídico que diz: na dúvida do crime,deve-se sentenciar inocente. Pois o erro de condenar um réu inocenteé maior que o erro de absolver um réu culpado. Lamento por não ter agido dessa maneira em relação ao episódio que provocou a nossa

separação. Teria me livrado de tantos anos de sofrimento. Sarah, eunão tinha noção do quanto eu te amo. Sou dependente do seu amor,não consigo viver sem ele. Pode parecer uma frase tirada de umamúsica melosa, mas é a pura verdade.

Por alguns minutos ela analisou, cautelosamente, tudo o queele havia lhe dito. Tinha de ter certeza se ele realmente merecia outra

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chance. E quando estava prestes a dar sua resposta, Eduardo e aSandy, retornaram da praia. Ele ficou visivelmente decepcionado por acreditar que ela havia ficado indiferente ao seu pedido de perdão.Inventou que ia ao seu apartamento, tomar banho. Prometendo

retornar em seguida. Assim que entrou em seu quarto, olhando parasua cama, veio-lhe outro pensamento. Se ele estava agindo certo ounão, por ter mentido para Miro. Pois a cópia dos originais que ele pediu para ler encontrava-se debaixo do seu colchão.

 No outro dia, assistindo o telejornal da noite, fica sabendo doassassinato de um banqueiro do jogo do bicho. Conhecido por seuapelido, Zé Gavião. O crime ocorrera no Leblon, na própriaresidência da vítima, por volta das dezesseis horas e quarentaminutos, daquele mesmo dia. O assassino desferiu dois tiros nacabeça da vítima, à queima-roupa. A polícia descarta a possibilidadede um assalto, pois nada de valor foi roubado. Assim que terminouaquela reportagem, foi ao apartamento do Miro, levando um grandeenvelope. Encontrou-o bebendo e com duas pistolas na cintura. Eleas retirou após sentar-se no sofá, depositando-as sobre uma mesinha.Uma das pistolas estava com um silenciador. Algo o havia deixado bastante abalado. Tudo parecia tão óbvio que Filipe não via

necessidade de perguntá-lo se era ele o criminoso. Entregou-lhe oenvelope.

- Aqui está a cópia dos originais que fiz.

- Agora não precisa mais, já descobri o que queria saber.

- É, eu sei... Eu poderia ter evitado se tivesse lhe entregado

quando me pediu. Naquele momento, não tive coragem, mas depois pensei melhor e cheguei à conclusão que mesmo querendo poupá-lode tamanha dor, não tinha o direito de lhe esconder a verdade.Quando me preparava para trazer esse envelope, assisti no telejornalque o Zé Gavião havia sido assassinado no seu apartamento, no

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 Leblon, com dois tiros na cabeça. Obviamente o criminoso usou umsilenciador, pois não foi ouvido nenhum disparo pelos moradores do prédio. Apesar da polícia não ter ainda um suspeito, descarta a possibilidade de um assalto, pelo fato de nada de valor ter sido

levado. Quando você mencionou que poderia convencê-lo a falar sobre a morte de sua mãe, não imaginei que fosse dessa maneira.

- Se tivesse sido ele o responsável pelas torturas que causarama morte da minha mãe, teria sido eu o assassino, ou melhor, o justiceiro. Quando ele foi assassinado?

- Hoje à tarde, por volta das dezesseis horas e quarenta minutos.

- Essa casa de jogo do bicho que há aqui na Praça dos Paraíbas, pertencia ao Zé Gavião. O capitão Uchôa apresentou-me a ele, comosendo seu neto. Eu então pude frequentar o bar que ele costumava sereunir com seus amigos, lá no Leblon, sem despertar desconfiança. Amaioria dessas pessoas fez parte dos departamentos de repressão política. Sempre dava para ouvir algumas das histórias dos caçados pela ditadura, que eles contavam como se fossem anedotas. ZéGavião era o que mais gostava de revelar suas façanhas monstruosas,

depois de ter bebido a quinta dose de uísque. Por isso eu lhe disseque ele não se recusaria a contar-me os fatos que envolveram oassassinato de minha mãe. Encontrei-o ontem à noite nesse tal bar, eele já tinha bebido bastante, o suficiente para responder-me qualquer  pergunta. Só precisei esperar alguns deles irem embora, para puxar oassunto que ele mais gostava de falar. Bastei lembrá-lo o nome deMaria da Penha, para fazê-lo contar em detalhes tudo o que sabiasobre o assassinato da minha mãe. De posse dessas informações, hoje,

finalmente pude encontrar a ficha dela nos arquivos de repressão política, juntamente com as fotos do IML do Rio de Janeiro. Sequiser dar uma olhada nelas, pegue-as em cima da estante.

Filipe levantou-se do sofá, trêmulo de medo, já prevendo asimagens da perversidade aplicada a um ser humano. Ao vê-lasassombrou-se, pois ia muito além da sua imaginação.

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- Meu Deus... É inconcebível permitir que um ser humanomorra nessa circunstância.

- Hoje eu descobri que Deus não existe... Mas o pastor das

trevas sim, pelo menos até eu encontrá-lo e matá-lo. - Não suportou prender o choro - Esconda essas fotos de mim, antes que eu acabecometendo suicídio.

- Nem pense nisso, Miro. Não morremos enquanto nãodescobrirmos quem se esconde por detrás do codinome pastor dastrevas, e matá-lo. Ficaram bebendo por mais de uma hora sem dizer nada, apenas pensado no quanto ela havia sofrido até morrer. Por fim,Filipe rompeu o silêncio.

- O que Zé Gavião lhe contou sobre o pastor das trevas?

- Que ele fez questão de seviciá-la no período que ela permaneceu na Casa de Petrópolis. Depois a transferiu para outroaparelho, ou seja, para outro lugar de tortura. Que ficava no Rio deJaneiro, e era conhecido como a Casa de São Conrado. Lá, ela passousuas últimas quatro semanas de seu calvário nas mãos do pastor das

trevas.

- Vicente narrou a história dela exatamente como você acaboude me contar. Mas também desconhece quem se passava pelo pastor das trevas.

- O pastor das trevas ao lado do americano, Dan Mitrione,foram os professores de grande parte dos torturadores da América

Latina. Os primeiros a ensinar aos agentes de repressão as técnicasmais avançadas de seviciar. Felizmente a carreira de Mitrione foiinterrompida após transferir-se para Montevidéu. Lá, ele foisequestrado e acabou sendo eliminado. A humanidade se livrou dessemonstro, mas há milhares deles no continente americano. Eles gozam

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 de privilégios concedidos por governantes deste país e de outros, emque houve golpes militares. Todos apoiados pelos Estados Unidos.

- Não há nada mais estapafúrdio que clamar democracia, e ao

mesmo tempo fornecendo armas e treinando aqueles que são contraela. O que será que eles entendem por democracia?

- Não faço a mínima ideia. Só sei que essa é a velha posturados Estados Unidos.

- Estou relutando em admitir que perdi o respeito e o orgulhode incorporar às forças armadas.

- Tínhamos noção da forte rejeição que enfrentaríamos, por  parte do meu pai e do Vicente, em tornarmos militares. Porém issonão foi o suficiente para nos deter, porque acreditávamos nosensinamentos do nosso mentor, capitão Uchôa. Ele nos mostrouclaramente que só através das forças armadas teríamos condições delutar com igualdade, a fim de extinguir a desigualdade que é a maior fonte de miséria do povo brasileiro. Para isso, temos que primeirofazer uma revolução dentro das forças armadas, destruindo todos os

 pilares que dão sustentação a essa alta hierarquia que está a serviçodos interesses dos empresários imperialistas, promovedores dadesigualdade social. Apesar de eu estar revoltado com o que fizerama minha mãe, sinto-me ainda mais convicto de ter tomado a decisãocerta, e é assim que você deve pensar.

- Será? Tenho minhas dúvidas.

 Naquela noite eles debateram bastante sobre aquele assunto, pois o peso da farda começava a incomodá-los.

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Capítulo 4

 No dia 01 de setembro de l990, Filipe chegara ao seu prédiotrazendo documentos altamente secretos do Ministério do Exército,sobre o caso Ciro Chagas, filho da dona Lígia Chagas. Neles,constava, entre outras coisas, que o aparelho onde ele se encontravaescondido fora localizado devido à informação de um agente dogoverno infiltrado numa das maiores organizações esquerdistarevolucionária do Brasil, a ALN (Ação Libertadora Nacional), daqual ele era membro. Aqueles documentos punham fim à longa

espera da dona Lígia para saber o lugar onde fora enterrado seu filho.

Filipe se esquecera de tomar os devidos cuidados. E novamenteacabou molhado. Desta vez, sequer deu-se o trabalho de olhar paracima, pois já sabia quem tinha sido. Entrou no prédio, indodiretamente ao apartamento da dona Lígia. Ela abriu a porta comuma faca de mesa na mão.

- Se tentar me agredir, eu não hesitarei em abri-lo ao meio, seufilhote da ditadura.

Ele retirou de dentro de sua pasta executiva os documentos e aentregou.

- Demorei, mas cumpri a promessa que lhe fiz.

Só depois que ele foi embora, ela teve coragem de verificar do

que se tratava. Lendo: “Ministério do Exército” e abaixo, “Caso desubversão, Ciro Chagas”, pode acreditar o que possuía em suas mãos. Não perdeu tempo, telefonou para um velho amigo advogado. Juntostomaram um avião com destino à capital de São Paulo.

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 Filipe tirou o uniforme, pondo um short, camiseta, tênis, e saiu

com sua bicicleta. Parou no quiosque e juntou-se à conversa a qual participava Eduardo, Sandy e Sarah.

- Quando se dirigia ao seu prédio, você não me ouviu lhechamar? - perguntou Eduardo

- Não! Por quê?

- Porque eu tentei livrar-lhe de tomar mais um banho de baldeda dona Lígia. Daqui nós vimos quando ela correu e se preparou parasurpreendê-lo.

- Ela tem suas razões para agir dessa maneira.

- Quer dizer que você não ficou com raiva dela?

- É claro que não, Eduardo! Se não fosse o susto do forteimpacto da água, molhando-me, seria até refrescante nesses dias decalor.

- Se ela souber disso, é capaz de suspender os banhos, pois ointuito é agredi-lo e não refrescá-lo. Desta vez ela já ficou um tantosem graça por você não ter lhe dito nada.

- Há momentos em nossas vidas em que a ação se faz maiseficaz que as palavras.

- Por que você veio de tênis, esperava-lhe para uma partida de

vôlei; eu e a Sandy contra você e a Sarah.

- Em outra hora... Agora vou dar umas pedaladas por aí!

Eduardo estranhou a atitude do Filipe, porque ele mesmo havialhe pedido para propor essa parceria, a fim de restabelecer o diálogo

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com a Sarah. Foi direto à Praça dos Paraíbas, encontrando capitãoUchôa e o Miro, jogando xadrez.

- Posso saber por que você tem frequentado regularmente o

apartamento do Miro? E sequer vai ao meu, saber ao menos se estouvivo, seu ingrato.

- A consideração tem de ser recíproca! O senhor nunca teve por mim!

- Do quê você está falando? Sinceramente não estou lheentendendo!

- Refiro-me ao dia que fui caminhando daqui ao Leme, porquenão teve um amigo que me emprestasse dinheiro para pagar o táxi.

- Não acredito que seja tão rancoroso assim! Além do mais, foiuma brincadeira inocente e ao mesmo tempo uma lição que estavamerecendo.

- Filipe, o coronel Molina telefonou há pouco para o capitão

Uchôa, contando que você entregou a dona Lígia, documentossecretos do Ministério do Exército. Nos quais revelam o local ondeestá enterrado o filho dela. Parabéns por esse grandioso feito. Ele,aqui, não acreditou!

- Não dou importância se este velho neurastênico, trapaceiro,continua pensando que sou um rato.

- Aí está a confirmação! - disse Miro, estendendo a mão - Osenhor já pode me pagar o dinheiro da aposta que fizemos.

O capitão Uchôa abriu sua carteira e pagou-lhe chateado, poisodiava perder em qualquer coisa que fosse.

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 - O que apostaram?

- Se você iria desistir de fazer a investigação ou não! -respondeu, Miro – Disse que você além de não desistir, localizaria os

documentos secretos ainda esse ano. E é bom lembrar que nós doisainda não tínhamos feito as pazes quando foi feita essa aposta.

- Qual a razão de tanta confiança em mim?

- Conheço você mais que qualquer pessoal. Por isso tenhorazão de sobra para confiar e admirá-lo, tanto quanto tenho peloVicente.

- Agora está explicada a falsa preocupação que o senhor sentiu por mim. Somente tinha intenção de me fazer desistir para ganhar aaposta.

- Agora já chega! É minha vez de falar, ou melhor, defender-me! Admito que há algum tempo tenho ficado bastante decepcionadocom sua postura medíocre de atuar no Exército. Preparei vocês dois para servir com honra e fidelidade a Constituição Brasileira.

Resgatando o respeito, confiança, admiração, do nosso povo, àsforças armadas. Miro vem atuando conforme os meus ensinamentos,mas você não. Cheguei a pensar que estivesse lendo na cartilha dosgolpistas. Quando me disse que iria fazer essa investigação, tivevontade de abraçá-lo de tão contente que fiquei. Entretanto, era daminha responsabilidade prepará-lo bem, psicologicamente, para umamissão bastante perigosa. Se eles desconfiassem de sua intenção, erao suficiente para eliminá-lo. Posicionei-me contra para ter a certeza

que não estava agindo com intuito de me impressionar. Em seguida,mostrei-lhe nitidamente o que eles são capazes de fazer. Seu feitorealmente foi extraordinário, por isso custei a acreditar. Parabéns por ter conseguido desvendar o local onde fora enterrado Ciro Chagas.Você conseguiu me enganar ao dizer que havia desistido dainvestigação. Hoje é um dia vitorioso pra mim. Porque tenho acerteza de ter conseguido transformá-los em grandes estrategistas.

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- Que homem modesto! - brincou, Miro.

- Essa minha incumbência poderia ter sido mais fácil se vocêsdois não tivessem brigado. Ensinaria ambos, juntos. Mas o Miro se

acovardou...

- Acovardei-me, do quê?

- De contar ao Celso que entraria para as Forças Armadas,como fez o Filipe. Ele, sim, agiu de maneira honesta e soubeenfrentar sozinho toda a pressão familiar. E não me venha mais comessa conversa que foi a maneira encontrada para não magoar seu pai.Em parte pode ser verdade, mas o fato concreto é que você não teve acoragem de passar por toda hostilidade que passou Filipe. Usou o pretexto de ter ficado profundamente magoado com ele, por tê-lochamado de covarde. E me fez prometer que não contaria a ele a suaadmissão na Marinha. Sabia perfeitamente, mesmo não falando comvocê, não contaria ao Celso. O incômodo era não admitir suacovardia.

Miro levantou-se tão violentamente que esbarrou o braço no

tabuleiro do xadrez, derrubando-o no chão. Saiu furioso em direção à praia. Os dois deram início a outra partida.

- Acho que o senhor acabou de perder mais um adversário!

- Espero que você tenha percebido de uma vez por toda que jamais privilegiei Miro. Nem tão pouco aprovei a atitude dele deesconder que era militar. Simplesmente aceitei, porque minha

intuição dizia que ele não suportaria a pressão.

- Pode parecer demagogia, mas eu fiquei com pena da maneiratriste como Miro saiu daqui. O senhor foi muito duro com ele, não

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 havia necessidade disso. A descoberta da verdadeira circunstânciacomo morreu a mãe dele o deixou bastante traumatizado.

- Sem dúvida que está! Porém Miro é um brilhante aluno e até

isso aprendeu comigo... Ou seja, ele só saiu daquele jeito, porquesabia que já havia perdido o jogo.

- Duvido que tenha sido isso!

- Realmente ele conhece você mais do que ninguém. Mas a ele,quem conhece sou eu. Quer apostar uma nota de cem?

- Apostado!

- O coronel Molina acredita que sua filha também estejaenterrada nesse cemitério clandestino. Ele marcou para encontrar-secom a dona Lígia em São Paulo.

- Tudo indica que esteja. Preferi não dizer, porque poderiacausar-lhe outra frustração, se de fato não estiver.

- Como você chegou até esses documentos?

- Primeiro, procurei ficar a par de todos os fatos pertinentes àrepressão política do regime militar. Fiz uma vasta pesquisa dentrodas Forças Armadas. Os generais golpistas, durante o processo dereabertura política, iniciaram vários incêndios criminosos nosarquivos dos órgãos de segurança, a fim de destruir todos osdocumentos comprometedores. Entretanto, alguns ficaram perdidos,

espalhados pelos quatro cantos deste país. Através de um general, por quem tenho profunda admiração, por ser ele um homem idôneo,contrário a violação dos direitos do homem. Conheci outro, que forachefe da CGI (Comissão Geral de Investigações), esse representantefiel da ditadura. Ele perguntou-me, de cara, se sabia jogar xadrez,respondendo que sim, convidou-me a disputarmos uma partida. Nomeio dela, comentou que se eu fizesse o jogo certo, chegaria sem

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muito esforço ao general e ofereceu-se para ensinar-me. Demonstreiestar muito interessado em tornar-me seu aluno. Daí em diante, eu passei a frequentar a casa dele como se fosse da própria família.Percebi que era do gosto dele que eu namorasse sua neta, chamada

Olívia. Que por sinal é uma mulher linda. Passei então a cortejá-la, porém ela não me sinalizou positivamente, apesar de tratar-me com amaior doçura. Mesmo assim, ele sentiu-se à vontade para tocar emassuntos ligados ao golpe militar. E não se recusou a responder as perguntas que eu ia fazendo ao longo de nossas conversas. Mas o quede fato levou-me a descobrir esses documentos foi uma conversadele, por telefone. Na qual ordenava que os restantes dos móveisvelhos da Rua Barão de Mesquita fossem imediatamente queimados.Ele falava do telefone que há no escritório de sua casa. Como o tomde sua voz é alto, facilitou para que eu ouvisse através da porta. Nãofoi difícil decodificar o que ele disse, porque o DOI-CODEfuncionava naquela rua que havia mencionado. Os restantes dosmóveis velhos eram documentos que ficavam nos armários dearquivos daquela sede. E que foram transferidos para uma salatrancada, no Comando Leste. Consegui entrar lá sorrateiramente,encontrando a pasta suspensa do caso de nome: Ciro Chagas. Nessemesmo dia foram esvaziados esses armários, pondo todos os

documentos em caixas de papelão, lotando uma Kombi. E dirigindo-se, em seguida, a um incinerador. Infelizmente não houve tempo paraque eu esquematizasse uma ação para apanhar as caixas e levá-las aum lugar seguro.

- É realmente uma pena que não tenha sido possível! Teriaesclarecido centenas de outros casos, como o do filho de dona Lígia. No final do Estado-Novo aconteceu um desses incêndios criminosos

que destruiu os documentos da polícia política, chefiada por outrosanguinário, Felinto Müller. Sempre foi assim, os algozes matamcom a maior frieza, mas jamais tiram seus capuzes.

- Cabe a nós arrancá-los!

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 - Filipe, o chefe da CGI a quem se referiu é o general Cícero

Paranhos! E o outro quem é?

- General Teófilo Fontes!

- Nunca ouvi falar nele! Convide-o para almoçarmos juntos norestaurante Bocage qualquer dia desses.

- Convidarei! Se for verdade que os opostos se atraem, vocêsdois vão grudar um no outro. Ele é exatamente o contrário do senhor:não bebe, não fuma, não fala palavrão, calmo e religioso.

- Fique você sabendo que quando me grudava era com umamulher, não com um pederasta. Pelo menos ele sabe jogar xadrez?

- Nisso ele se parece com o senhor, é viciado em jogar xadrez e,diga-se de passagem, é um mestre no assunto.

- Pelo menos uma qualidade ele possui! Estou curioso paraconhecê-lo. O que achou dele?

- Apesar de sua amizade com o general Paranhos, ele me pareceu íntegro! Irei trazê-lo aqui e o senhor mesmo dirá o que achoudele.

Retornando a Ipanema, Filipe encontrou o Miro sozinho numadas mesas do quiosque. Sentou-se e de pronto perguntou-lhe:

- Está chateado pelo que o capitão Uchôa disse-lhe?

- Não!

- Analisando a maneira como saiu de lá, achei que estivesse!

- Foi apenas uma cena bem interpretada para escapar do xeque-mate que eu estava prestes a receber daquele genial xadrezista. Já

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esperava que ele tomasse essa atitude. Nunca concordou em esconder que eu havia me tornado militar. E sempre me jogou na cara essaminha covardia. Capitão Uchôa não achava justo você receber ashostilidades de todos eles, sozinho. Nesse ponto fui covarde o

suficiente para segurar-me num falso pretexto, persistindo até o diade ser desmascarado por Leonardo. O capitão Uchôa falou aquilo afim de que eu lhe pedisse perdão em sua frente. Na hora fiquei commuita vergonha, mas agora me sinto à vontade para pedi-lo. Perdoa-me?

- Quem sou eu para não perdoá-lo por uma coisa tãoinsignificante perto das injustiças que cometi com o Vicente!

- Sarah disse-me, meio sem querer, que está impressionadacom o tanto que você mudou nesses últimos meses, em particular, emrelação ao Vicente.

- Aonde ela foi?

- Dar uns mergulhos no mar com uma amiga da Universidade!

- Qual amiga?

- Não a conheço! É simplesmente uma beldade, deixou-meenfeitiçado com tanta perfeição. Conversamos bastante e deu paraver que ela é sensacional como pessoa. Agora adivinha quem é o professor dela?

- Vicente!

- Ele mesmo! E foi através dele que ela soube localizar a Sarah.

- Como assim?

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 - Ao tomar conhecimento que a amiga havia trancado a

matrícula do curso de sociologia, subitamente, devido ao estadoclínico do Frederico. Procurou, sem sucesso, alguém que soubesse otelefone dela. Mas Olívia descobriu que seu novo professor era o

amigo que tanto ouviu Sarah falar.

- Ela chama-se Olívia?

- É. Por quê?

- Por nada! Apenas achei curioso, porque a neta do tal generalParanhos o qual lhe falei também se chama Olívia.

- Não é possível que seja a mesma! Mas se for, acho melhor você tirar o seu time de campo. Porque essa ninguém põe a mão, anão ser eu. Dessa vez não vou dar mole como dei com a gata daSandy, que o sonso do Eduardo acabou levando, na maior. EssaOlívia já me deu até o número do seu telefone para eu ligar,marcando um encontro...

- Da minha parte, você pode ficar tranquilo! Primeiro, porque

amo a Sarah e ainda não desisti de ficar com ela. E caso seja amesma Olívia, ela não ficou nem um pouco interessada por mim.

 Nesse momento, as duas voltavam da praia conversando.

- Ainda bem! Veja, lá vêm elas. Por acaso é aquela beldadeloira, bronzeada, e diabolicamente voluptuosa?

- Não é possível... É ela mesma.

Mesmo antes de elas chegarem, Olívia comentou algo comSarah sobre o homem que fazia companhia ao Miro.

- Pela maneira como ela me olhou só pode ter falado ao meurespeito!

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- É mesmo! E se for o que eu estou pensando, você vai ter muito mais dificuldade de ter a Sarah de volta que está tendo.

Ao chegarem à mesa que os dois estavam sentados, Olívia o

cumprimentou.

- Como vai, tenente Corrêa!

- Bem, obrigado! Como está a temperatura da água?

- Gelada! É uma pena que já tenho de ir embora, adoro pegar ondas.

- E por que a pressa? - perguntou Miro

- Tenho de ir à Universidade e moro um pouco longe daqui, emJacarepaguá! Não se esqueça de telefonar-me um dia desses parasairmos juntos.

- Jamais me esqueço de uma pessoa como você!

- Miro, vou acompanhá-la até o carro dela e já volto!

Sarah retornou em poucos minutos e praticamente ignorou a presença do Filipe.

- Miro, a Olívia gostou muito de você! É a primeira vez que avejo se interessar por um homem.

- Também gostei muito dela! Só não sei se vale a pena investir nesse relacionamento, sendo ela neta de um dos homens maisdesprezível deste país. O general Paranhos, ex-chefe da ComissãoGeral de investigações.

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 - Ela é totalmente diferente desse homem! E mesmo sendo neta,

não deixou de ser mais uma vítima dele.

- Como assim?

- O pai da Olívia, filho do general Paranhos, desejava apenasser médico. Mas, devido à forte imposição, acabou tornando-semédico, mas também militar, como ele exigia. Só que não faria partedos tiranos golpistas. Além de se recusar a ser mais um médico aserviço das práticas de torturas aos presos políticos. Denunciouvários colegas de profissão ao Conselho Regional de Medicina por atuarem em tal prática criminosa. Que consistia em reanimar, comdrogas, os torturados, durante as sessões de sevícias. Eles osdeixavam ainda mais sensíveis à dor, prolongando suas vidas, com oúnico intuito de prorrogarem sofrimentos extremos, fazendo com queas vítimas implorassem a morte. No Conselho de Justiça Militar deJuiz de Fora, ratificou essas denúncias. Algum tempo depois foi julgado por um tribunal Militar, sendo expulso das Forças Armadas, por insubordinação. Nesse dia houve uma discussão entre eles dois,na qual o general Paranhos chamava-o de fraco, que lhe faltavavirilidade, e por isso sua esposa o traiu com outros homens,

terminando por deixá-lo. Essa foi a última discussão. Ele se trancouno escritório de sua casa, sentado á escrivaninha, suicidou-sedisparando um tiro na cabeça. Olívia presenciou do lado de foraatravés da janela entreaberta. E tinha ela apenas quatro anos de idade.Olívia nunca superou esse trauma. Seu avô ficou com sua guarda e orelacionamento deles se deu com constantes conflitos. Chegando ao ponto dela tentar o suicídio em duas ocasiões; primeiro, pulando dasacada do seu quarto. Mesmo não sendo bastante alto, teve muita

sorte ter escapado com vida, com apenas algumas fraturas. Asegunda, tomou um frasco cheio de comprimidos de coração de suaavó. Felizmente foi socorrida a tempo. Somente dessa última vez, ele prometeu que não se intrometeria de maneira alguma na vida dela.Tendo a liberdade de conduzir sua própria vida, não teve maismotivos para suicidar-se. Até hoje ela o responsabiliza pelo suicídiodo pai. Olívia não é uma pessoa desequilibrada, o demônio daquele

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homem é que a levou ao extremo do desespero. Ela notou algo demuito especial em você, Miro. Ela não é do tipo de mulher que seimpressiona com cantadas de homens bonitos.

- Sem dúvida alguma Olívia tem uma personalidade forte, do jeito que eu gosto!

- É verdade! Ela contou-me que um jovem tenente do Exército,com pose de galã, há algum tempo vem frequentando sua casa aconvite do seu avô. Tem se esforçado ao máximo, a fim deconquistá-la. Coitado, ela não se agrada com bajuladores, principalmente os que seu avô leva para sua casa.

- Sarah, eu posso explicar!

- Não me interessa a sua explicação! Não somos namorados esabendo da sua amizade com o general Paranhos, não seremos nemmesmo amigos.

- Sabe de uma coisa, por mim, tudo bem!

Ela vestiu seu short e camiseta, indo atender os fregueses doseu quiosque. Os dois continuaram na mesa, conversando.

- O que houve, Miro? Estava tão empolgado por ter conhecidoa Olívia, já desencantou?

- Não! E o problema é justamente este.

- O que a Sarah contou a respeito da Olívia não foi o suficiente para convencê-lo de que ela não tem nada a ver com seu avô?

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 - É claro que sim! A questão é se por acaso eu vir a me

apaixonar por ela, e mais tarde se comprove que seu avô é, de fato, oPastor das Trevas...

- Há essa possibilidade?

- Segundo tudo que já desenterrei desse general Paranhos, hágrandes possibilidades de ser ele. Ainda não o matei porque me faltaconfirmar. Mesmo ele tendo-a feito sofrer, repudiará minha atitudede justiça.

- Se de fato for o Pastor das Trevas, é correto chamar de justiçao que pretende fazer?

- Se no Brasil houvesse um tribunal capaz de julgar todos essescriminosos do regime militar, não seria justiça matá-lo. A lei deanistia promulgada em 28 de Agosto de 1979, por força da opinião pública, não era a que se desejava. Porque apenas fora incluída uma proposição, concedendo um atestado de paradeiro ignorado ou demorte presumida aos familiares dos desaparecidos políticos.Resumindo, a anistia só serviu para atender aos interesses dos

golpistas, isentando-os de todos os crimes praticados na ditadura.Eles não aceitariam ser submetidos a um tribunal do tipo Nuremberg,que julgou os nazistas pelos massacres dos Judeus. Filipe, se vocêtivesse perdido a sua mãe como eu perdi, não teria dúvida algumaque matar o algoz dela, é fazer justiça.

- Não tenho mais dúvida! E é claro que faria a mesma coisaque pretende fazer. Só em pensar que minha mãe... biológica, possa

ter tido um destino tão cruel quanto o da sua mãe, já me deixatranstornado de ódio. No seu caso é ainda mais doloroso, pois chegoua conviver com a sua mãe o suficiente para recordá-la.

- Pelo que eu pude perceber, você desconfia que a história desua mãe ter morrido ao dá-lo à luz seja inventada?

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- E por que não pensaria nisso, uma vez que eles esconderam por tanto tempo a verdade? Há anos tenho vivido sufocado por nãoconhecer toda a história da mulher que me gerou.

- Já possui uma cópia da chave. Está esperando o quê paraentrar no quarto do Vicente?

- Uma oportunidade! Vicente não é nada bobo, ele deve ter ficado desconfiado que eu possa ter entrado no seu quarto. E arranjouuma empregada de sua total confiança. Ela só sai do apartamentoquando ele está presente. Estou pensando seriamente em fazê-laadormecer por algumas horas com sonífero.

- Eu tenho uma ideia melhor!

- E qual é?

- Peça ao Vicente para entrar no quarto dele!

- Não faça brincadeira com um assunto tão sério!

- Não estou fazendo! Sua humildade é a chave para abrir aquela porta. Não tenha medo de demonstrar seu verdadeirosentimento por seu pai.

A princípio achou a ideia um completo absurdo, porémanalisou, ponderando, deixando de lado todo tipo de orgulho quecarregou por longos anos de convivência. E chegou a conclusão queaquela seria a maneira correta de obter a verdade sem a necessidade

de travar uma guerra. Subitamente levantou-se compenetrado, buscando as palavras adequadas para um diálogo amistoso. E dirigiu-se ao seu apartamento, sem dizer uma única palavra.

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 Miro ficou intrigado sem saber se o Filipe teria ficado chateado

com seu conselho ou se realmente havia concordado.

Vicente encontrava-se na sala de visitas elaborando um teste

 para seus alunos da faculdade de sociologia. Filipe havia chegado tãosilencioso que a sua presença demorou a ser notada. Só então tevecoragem de tentar iniciar a tal conversa, porém ficou num: “oi”, enada mais, devido à indiferença do Vicente.

 Na medida em que os minutos se passavam, ele era tomado por um desespero sufocante. Aquele silêncio tornava-se corrosivo,rompê-lo era preciso. Lembrar-se das palavras do Miro, de não ter medo de demonstrar seu verdadeiro sentimento por seu pai, foifundamental, dando-lhe total serenidade para falar com o coração.Filipe sentou-se à mesa ao lado dele e finalmente Vicente parou oque estava fazendo e deu-lhe atenção.

- Não quero de maneira alguma lhe aborrecer! Somente um pouco do seu tempo para conversarmos sobre algo que considero degrande importância. Tenho vivido sufocado por saber quase nada davida da mulher que me trouxe a esse mundo. Foram tantas as vezes

que imaginei a fisionomia dela por não ter uma foto sequer. Chegueia ter vários sonhos com ela. Eu estava disposto a qualquer coisa paraconseguir saber tudo sobre ela. Chamei um chaveiro e mandei fazer uma cópia da chave de seu quarto. Entrei lá e fiz cópias dos originaisdo seu livro “Nos porões da ditadura, uma flor...”. Infelizmente suaobra não se encontrava concluída e no material copiado nada foimencionado sobre ela. Vicente, você é realmente um paradigma dadignidade e bravura. Eu também sempre achei, apenas não admitia.

Hoje tenho consciência do quanto me comportei mal em relação anossa convivência. Lamento profundamente por todas as vezes queeu fui injusto com você. Porém, em algumas circunstâncias foi tão perverso comigo quanto fui com você.

Ele tirou do bolso de seu short uma chave e o entregou.

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- Aí está a chave do seu quarto que mandei fazer. Dou minha palavra que jamais tentarei invadir o seu quarto novamente. Só peçoque avalie se você agiu corretamente em impedir-me de ter o direitode pelo menos possuir uma foto da minha mãe biológica.

Essas foram as últimas palavras que Filipe tinha para dizer.Cabia agora ao Vicente dar sequência ou não àquela conversa. Por alguns minutos se fez silêncio naquela sala de visitas. E acreditandoque o silêncio fosse a resposta do Vicente, levantou-se, dando os primeiros passos para ir ao seu quarto. Só então ele se apressou em pronunciar-se.

- Espere... Filipe!

Ao olhá-lo, fez um gesto pedindo para sentar-se no sofá, ele oatendeu de imediato. Agora era Vicente que tinha dificuldade paraencontrar as palavras. Fechou e abriu os olhos rapidamente, evitandoque alguma lágrima escorresse por seu rosto. Mas o brilho do seuolhar emocionado, ele não conseguiu esconder.

- Jamais cerceei seu direito de saber quem era Cleonice... A

mulher que o deu à luz numa prisão no início do golpe militar. Oimpedimento de revelar a vida dela era tão somente o seu aparentedesinteresse. O único erro que meus pais cometeram foi o de criá-losem lhe revelar quem eram seus verdadeiros pais. Eles achavam quenão fosse demorar tantos anos o período da ditadura. Que logo euestaria em casa para exercer o meu papel de pai. Porém, algumacoisa me dizia que não seria assim tão fácil. Por isso, sempre que podia enviava uma carta pra eles. Através de uma pessoa que fazia

todo o contato entre nós, os perseguidos políticos, e nossos familiares.Perguntava-lhes se você sabia que eu era seu pai e que sua mãe haviafalecido. Eles sempre deixavam essa pergunta sem resposta. Quando pude retornar para minha casa, você já era praticamente um homemadulto. E havia escolhido um caminho bem diferente do meu.

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 - Nunca me esqueci desse dia! Foi uma das vezes que você me

tratou com bastante perversidade. Era a primeira vez que via meus pais alegres, também fiquei muito alegre com a sua chegada. Suareação foi recusar o meu abraço caloroso e apenas cumprimentou-me

com um aperto de mão glacial.

- Como você queria que eu me sentisse vendo o meu própriofilho vestido com o uniforme do exército? O mesmo que os homensusavam enquanto torturavam-me, bem como vários companheiros.Quase todos não estão presentes nesse mundo, por terem sidotrucidados. Filipe, você recusou minha condição de pai por não tê-locriado. Porém, pai não é somente aquele que cria nem tampouco oque põe no mundo, e sim aquele que ama intensamente mesmoestando distante. A distância que nos separava só aumentava o meuamor por você. Desde seu nascimento naquela prisão, não houve umdia que eu não pensasse em você. O meu quarto está aberto hoje esempre para você olhar o que quiser. Inclusive o último capítulo de“Nos porões da ditadura, uma flor...”. Recentemente pude concluí-lo.Dediquei esse último capítulo exclusivamente á sua mãe. O projetor de filme ainda funciona e já está preparado para rodar, basta ligá-lo.

Filipe não fez nenhuma cerimônia, levantou-se do sofá e foi aoquarto do Vicente. Sentou-se à escrivaninha, lendo o último capítulo.

Tamanho era seu desejo de saber quem fora Cleonice, que seu batimento cardíaco acelerou a ponto de ficar com as mãos trêmulas.O impacto foi assustador ao saber as circunstâncias em que ela o deuà luz, presa numa cela do 28º BC do exército da capital sergipana.Ele interrompeu a leitura, pois havia ficado bastante abalado. Agora

ele tinha noção da revolta que Miro sentira ao descobrir o modocomo a mãe dele morrera. Esforçando ao máximo os seus limites psicológicos, pôde terminar de ler aquele último capítulo. Emseguida, ligou o projetor, vendo pela primeira vez a sua mãe comoera encantadora. Notando como eram grandes as suas semelhançasfisionômicas com as dela. E também como Cleonice e Vicente seamavam. No outro filme que ele pôs para rodar, ela estava no sexto

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mês de gravidez. E constatou o imenso amor que sentiam por essacriança que ia nascer. A partir desse momento, foi inevitável represar as lágrimas que vinham de dentro de seu coração.

Permaneceu lá dentro do quarto por mais de quatro horas,vasculhando tudo a respeito de sua mãe. Seriam necessários dias paraver tudo sobre Cleonice, pois aquele quarto era como se fosse o dela.Vicente guardou até mesmo as roupas de gestante. Filipe retornou asala de visitas, encheu a metade de um copo de uísque, bebendo numúnico gole.

- Não sabia que bebia uísque.

- Sempre há uma primeira vez!

- É uma bebida forte para uma pessoa que não tem o hábito de beber como você!

- Só os fortes sobrevivem... No meio de tanta tirania. Ela eralinda e sentia uma alegria imensa em viver. Como eu pareço com elaem fisionomia!

- Parece tanto que talvez por isso nunca consegui odiá-lo pelassuas ofensas!

- Como vocês se conheceram?

- Cleonice nasceu na capital do Rio Grande do Norte, filha deum oficial militar do exército, extremamente conservador. Ela era o

oposto dele, estava à frente do seu próprio tempo. Gostava de bailes,cinema, de ir à praia de biquíni, mas também era engajada nosmovimentos sociais. Não havia uma pessoa mais atuante do que ela.Conhecendo o pai que tinha, teve de se manter uma noviça aos olhosdele, para ir estudar num colégio de freiras em Salvador. E lá, ela

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 conheceu Susane, mãe do Miro e a Inês, mãe da Sarah. Tornaram-se,de imediato, amigas, pois tinham muito em comum. Elas duas eramde Sergipe, eu e o Celso já as conhecíamos. Nas férias, as duas passavam na casa da Cleonice, e também tinham de fingir-se beatas

 para conquistar a confiança do pai dela. Foram tão convincentes queele autorizou a filha a vir estudar sociologia na Universidade Federalde Sergipe. Quando Susane e Inês apresentaram-me a Cleonice, jáhaviam lhe dito que eu não simpatizava nem um pouco com militares. No dia seguinte, nós começamos a namorar num baile. Só vim saber que ela era filha de militar quando ficou grávida. Como era menor devinte e um anos de idade, precisávamos pedir autorização dos paisdela para casarmos. Cleonice não deixou que eu fosse com ela a Natal fazer o pedido de casamento. Temia que o pai dela seenfurecesse comigo. Naquela época, engravidar uma moça era umacoisa séria, e pior sendo filha de militar. Ele não concordou com ocasamento e a princípio não deixaria que voltasse a Sergipe. Elaentão lhe revelou que estava grávida e ele a expulsou para sempre desua casa. Nem mesmo no enterro dela, ele compareceu.

Eles conversaram e beberam por muitas horas. E pela primeiravez comportaram-se naturalmente como pai e filho. No dia seguinte,

Filipe saiu no horário habitual para ir ao seu batalhão do exército.Porém, retornou bem mais cedo, vestido à paisana, acompanhado doMiro. Reuniram-se à mesa do quiosque onde estavam Vicente, Sarah,Eduardo e Sandy.

- Não foi trabalhar hoje, Filipe? – perguntou Vicente.

- Miro e eu a partir de hoje fazemos parte da lista dos

desempregados deste país! Mas não se preocupe com minha partenas despesas, já estou procurando outro.

Todos ficaram bastante espantados, até mesmo a Sandy.

- Deram baixa do Exército e da Marinha? - perguntou Sarah

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- É óbvio! – respondeu Miro – Quando Filipe telefonou-medizendo que ia dar baixa no exército, sequer perguntei a razão, poisera exatamente minha decisão. Não vale a pena ter tudo nesse mundo,se faltar a amizade, respeito e amor do meu pai. Não há felicidade em

minha vida sem a companhia dele.

 Notava-se que Filipe também compartilhava com aquelas palavras, mas desta vez a timidez era o empecilho para falar. Sarahlhe sorriu orgulhosa, demonstrando seu amor por ele.

- Miro, é exatamente isso que seu pai precisa ouvir para poder voltar a viver! Filipe, não se preocupe em arranjar emprego, não vouchamá-lo de vagabundo. Será um prazer arcar com todas as despesas.Essa é a oportunidade de lhe provar que também sou responsávelcomo você sempre foi.

- Vicente, não tem de me provar mais nada, pois isso você já ofez com exatidão. É minha vez de lhe provar minhas virtudes.

- Não há prova maior que um abraço seu.

Filipe se levantou e abriu os braços diante de Vicente. Não sóse abraçaram afetuosamente como cada qual deu um beijo no rosto,realizando um antigo desejo de ambos. Sandy, com sua inseparávelcâmera fotográfica, registrou esse lindíssimo momento, tirando fotos.Algum tempo depois, Vicente, Miro e Filipe foram juntos à praia doArpoador. Celso encontrava-se sentado numa das pedras. Sua barba por fazer, bem como a perda total de sua vaidade demonstrava o profundo estado de depressão. Ao avistar o Miro aproximando-se

dele, levantou-se para ir embora. Vicente pediu que ficasse. Ele aindarelutou, mas a confiança no amigo era maior. Sem delongas, Mirodisse que já sabia como a mãe dele havia morrido, pois haviadescoberto a pasta secreta da polícia de repressão, nela contendofotos do IML. Era inevitável tocar naquele assunto sem vir à tona

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 todas as imagens traumatizantes das fotos. O choro era o antídoto para aliviar a dor da alma. Sobre os ombros do Celso, derramou suaslágrimas. Isso foi o suficiente para predominar o amor de pai,deixando de lado a mágoa por ter sido enganado.

Após os dois se entenderem, Filipe fez questão de agradecê-lo por estar vivo pela graça de Deus e pelo brilhantismo do jovemmédico obstetra Celso Ribeiro. Ele ficou comovido com o elogio.Ainda mais, ao receber um abraço carinhoso daquele que, para ele,era também como filho.

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Capítulo 5

 No dia 04 de Setembro de 1990 foi divulgado por todaimprensa brasileira a abertura da vala de Perus. Localizada nocemitério dom Bosco, na periferia de São Paulo. Lá foramencontradas 1049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimasdos esquadrões da morte. A prefeita Luiza Erundina, de imediato,criou uma comissão especial de investigação das ossadas de Perus,com a participação de familiares e médicos legistas da UNICAMP.

A partir da abertura da vala – um marco na luta pelo resgatedos mortos e desaparecidos – os familiares passaram a reivindicar demaneira mais contundente o acesso aos arquivos policias da ditadura.

 Nas duas semanas que se seguiram, Filipe só se preocupou em procurar emprego, distribuindo currículos nas empresas. A falta de perspectiva de arranjar um emprego deixava-o desconsolado. Aochegar de mais um dia exaustivo, na entrada da porta do seu edifício,

ouviu uma voz chamando seu nome. Olhou para cima, e mais umavez foi despejado sobre ele um balde. Não havia água, e sim milharesde pétalas de flores de todos os tipos, formando uma linda nuvemcolorida, que caiam lentamente. Dona Lígia acabara de chegar daviagem a São Paulo e aquele foi seu jeito de agradecê-lo por ter localizado os restos mortais de seu filho. De seu apartamento, elamandava vários beijos para Filipe, ele retribuiu com outros. Do outrolado da avenida, Vicente, Celso, Miro e Sarah assistiam tudo commuita satisfação. Por fim, eles o chamaram aos gritos, sendo recebido

com abraços, menos por Sarah que teve de atender aos clientes doquiosque.

- Somente hoje, Miro nos contou que foi você quem entregou a pasta suspensa à dona Lígia. Contendo a ficha secreta da polícia de

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 repressão política do saudoso companheiro Carlos Chagas. Talvezvocê não possa avaliar a importância do seu gesto. Não me refiroapenas em ter atenuado o sofrimento de dona Lígia, mas em ter fomentado a sociedade Brasileira a pressionar o governo federal para

 prestar conta por toda barbárie cometida em nome da lei desegurança nacional.

- Celso, o Filipe tem noção do gesto grandioso que praticou. – disse Vicente com imenso orgulho – Isso só foi possível pela suaextraordinária coragem e determinação. Seu filho também não fez por menos. No futuro, o Brasil enaltecerá as pessoas quecontribuíram em desvendar o paradeiro dos desaparecidos e os perfisdos torturadores da ditadura sem suas máscaras. Vicente e Celsosaíram juntos após meia hora de conversa, Filipe e Miro continuaramali.

- Seu pai não deixou que você voltasse a morar com ele? Por que então não retornou?

- Tem a ver com certa loira...

- Diabolicamente voluptuosa chamada Olívia!

- Essa mesma! No meu apartamento podemos ficar mais àvontade, sem sermos incomodados.

- Quer dizer que vocês já estão juntos?

- Bem juntinhos! Quanto a você e a Sarah?

- Cabe a ela decidir se quer realmente ficar comigo!

- Marquei uma partida de vôlei para nós jogarmos. Corra, vá setrocar, falta menos de uma hora...

- Não dá pra se divertir estando desempregado.

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- Pior é ficar trancafiado, causa estresse. A minha receita desucesso é se descontrair bastante. Isso facilita nossa desenvoltura nasentrevistas de emprego.

- Isso faz sentido! Vou trocar de roupa e já desço. Cadê a Sarah,não está no quiosque?

- Ela me acenou para tomar conta do quiosque, enquanto davaum mergulho no mar.

Filipe subiu para seu apartamento, dirigindo-se logo ao seuquarto. Na medida em que ia se trocando, notava um leve barulho, porém sem distingui-lo. Após ter posto uma sunga de praia, ficouimóvel, escutando atentamente aquela sonoridade. Não demorou aidentificá-la, tratava-se do chuveiro de seu quarto, ligado. Pensou:antes de sair pela manhã, esqueceu-se de desligar o registro. Poishavia se atrasado para uma entrevista de emprego. Ao abrir a portado banheiro, teve uma surpresa exuberante, Sarah, totalmente nua,tomando banho. Ela afastou-se um pouco da ducha do chuveiro,deixando uma vaga para ele entrar. O convite foi aceito de imediato.A ducha fria caindo sobre eles era insignificante diante do fogo do

desejo dos seus corpos, envolvidos intensamente. Os beijosmolhados provocavam uma sede insaciável de prazer. Foram paracama sem se enxugar, inundando os lençóis de amor. Após Filipe ter saído pela manhã, Sarah aprontou um almoço especial para os doiscom o apoio do Vicente e do Miro. Ela ainda se prontificou a servir acomida dele como fazia sua mãe de criação. Depois, deitaram-se nosofá da sala de visitas.

- Como entrou no apartamento, se a empregada não veiotrabalhar hoje?

- Vicente emprestou-me a chave dele quando esteve noquiosque pela manha! E deu folga a empregada para nós dois

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 ficarmos a sós. Ele não se cansa de lhe fazer elogios por você ter conseguido localizar a vala de Perus na periferia de São Paulo.

- Tive sorte, mais nada!

- Discordo! Todos nós sempre admiramos sua capacidade. Nunca desisti de você, porque sempre vi inúmeras qualidades... Amais linda foi a da humildade. O Sr. Emmanuel e Dona Nair agoraestão em paz por você e o Vicente viverem em harmonia.

- Ter a amizade do Vicente era um velho sonho meu etransformou-se em realidade!

- No dia que você procurou Vicente para conversar, ele contou-me ter ficado surpreso com a pureza das suas palavras.

- Disse-me uma frase profunda a ponto de eu realmentecompreender o quanto, de fato, sou importante para ele. E isso aboliudefinitivamente o resto da imagem negativa que eu havia criado.

- Está se referindo ao episódio no qual pensou ele ter me

seduzido?

- Exatamente! Isso me perturbou por tantos anos. Masfinalmente me libertei disso, graças ao próprio Vicente.

- Posso saber qual foi essa frase milagrosa?

- Claro! Pai não é somente aquele que cria nem tão pouco o

que põe no mundo, e sim aquele que ama intensamente mesmoestando distante.

- Sendo assim, ponha-se nesse lugar de filho... Esse é o maior sonho de Vicente!

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- A questão não é tão simples assim... Por mais que eu estejafeliz por tê-lo como amigo, ainda o vejo como um irmão. Não possorenegar os meus pais que faleceram...

- Lipe, não se trata de renegá-los, mas retificar uma falha dodestino. O senhor Emanuel e a dona Nair, se estivessem vivos,abençoariam sua louvável aproximação como filho.

- Acho que daqui por diante o tempo se encarregará de fazer essa correção!

- Tenho certeza que fará!

Ao retornarem ao quiosque, Miro não ficou nem um poucosurpreso por eles terem reatado o namoro, pois Sarah já confessaraque estava convicta da mudança do Filipe.

 Naquele mesmo dia, ele fez questão de levá-la a sua casa, a fimde visitar o seu pai. Que lutava sem muita garra contra o câncer de próstata. Por mais que sua filha o encorajasse, ele não acreditava que pudesse haver cura. Passava a maior parte do tempo trancado no seu

quarto. A tia que havia criado a Sarah, em São João de Meriti, eraquem tomava conta dele quase o dia todo.

Sarah já chegou perguntando a sua tia como seu pai estava passando, clinicamente, pois seu maior temor era chegar e encontrá-lo morto. Sua preocupação se desfez ao ouvir de sua tia queFrederico acabara de subir para seu quarto. Ela levou o Filipe até lá e,ao bater na porta, sem ouvir uma resposta desesperou-se. Começou a

 bater como se quisesse arrebentá-la. Por fim ele gritou, pedindo queo esperasse abrir a porta. Ela aliviada cobriu seu pai com umafetuoso abraço, beijando-lhe o rosto.

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 Era debilitante o estado físico daquele homem. Um simples

abraço fez suas pernas fraquejarem, a ponto de sua filha ter desegurá-lo para ele não cair. Com ajuda do Filipe, sentaram-no em suacama. Tamanha foi a satisfação dele em receber a visita do Filipe,

que chegou a apresentar de súbito uma ligeira melhora. Pediugentilmente que se sentassem nas poltronas. E lhes fez várias perguntas sobre o cotidiano deles. Naquela conversa falou-se de tudomenos em sua doença, pois isso o deprimia.

Filipe retornou ao seu apartamento por volta da meia-noite. Eno dia seguinte, pela manhã, abriu o quiosque para o funcionamento.Algumas horas depois, chegaram juntos, Miro, Celso e Vicente.

- É, Filipe, você leva jeito para balconista de quiosque. Quecara de sorte! Ganhou uma namorada e um emprego ao mesmotempo.

- Miro, não perturbe o rapaz.

- Não me importo, Celso. Sabem por quê? Estou de bem com avida!

- Estou contente por você e a Sarah estarem juntos novamente. – disse Vicente.

- Tenho certeza que está! Obrigado, Vicente, por ter colaborado. Espero um dia retribuir...

- Quando eu arranjar uma namorada lhe aviso. Cadê a Sarah?

- Ela não vem hoje! Pedi para ela ficar um dia fazendocompanhia a Frederico. Ontem, quando estive em a sua casa, pudever a dimensão da gravidade da doença dele. Não é mais aquelehomem forte que saía com duas caixas enormes de isopor, lotadas decervejas, refrigerantes e água mineral. Para sair vendendo nas praias.

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Restou um farrapo de gente, que faz um esforço descomunal para semanter em pé. O câncer dele evoluiu muito depressa.

- Por um acaso, conheci o médico que está tratando do

Frederico. – disse Celso - Ele me revelou que o câncer foidiagnosticado tardiamente. Por isso tornou-se impossível reverter ocâncer de próstata. Temos que preparar a Sarah, pois ele não temmuito tempo de vida.

- Vicente, no passado você e Frederico se desentenderam por causa da Inês, mãe da Sarah. Não sei o que exatamente houve, só seique ele me confidenciou seu desejo de esclarecer algo a você. Seriaum gesto nobre de sua parte fazer-lhe uma visita enquanto há tempo.

- Se ele deseja me esclarecer algo, tenho interesse em saber.Pode avisá-lo, Filipe, irei à casa dele em breve.

- Também vou com você! Estou curioso se de fato ele podemesmo esclarecer algo. Mesmo que não possa, não representa mais perigo algum.

Filipe e Miro ficaram bastante intrigados com aquela últimafrase do Celso. Vicente notou que os dois iam lhes fazer perguntas.Imediatamente chamou seu velho amigo para dar alguns mergulhosno mar. Eles se dirigiram à praia, e sentaram na areia, próximo aomar.

- Celso, você não devia ter dito aquilo na frente deles. Revelar quem foi Frederico pode causar desentendimento com a Sarah...

- Ela não é responsável pelos atos do pai! Será que elerealmente pode nos provar sua inocência?

- Pensei que tivesse acreditado na inocência de Frederico!

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 - Nunca acreditei que ele tivesse matado a Inês, ocultando seu

cadáver, entretanto, sempre desconfiei de suas atitudes...

- Ele próprio contou que estava junto com a Inês no dia do

suposto sumiço dela no Chile. É bastante inverossímil a história deela ter deixado Frederico com febre num quarto de hotel. Para buscar remédio numa farmácia, desaparecendo inexplicavelmente.

- Vários outros companheiros desapareceram em circunstânciassemelhantes, no exterior. Em duas ocasiões, presenciei Frederico se jogar no meio de um tiroteio com os agentes de repressão, salvando avida de Inês. Em ambas as vezes ele foi alvejado, não morrendo por milagre. Ninguém pode negar o grande amor que ele sentia por ela.

- É justamente baseado nesse amor que nasce minha suspeitadele ter matado a Inês. Ela não o amava e Frederico sabia disso...

- É, eu sei, Inês amava você, bem antes de surgir Cleonice emsua vida! O próprio Frederico já sabia disso desde o início, quando passou a manter um caso com ela.

- E foi a partir daí que eu percebi o quanto estava apaixonado por Inês. Depois que ela teve a Sarah não deu mais para fingir esseamor, joguei-me em seus braços. Ela correspondeu com o mesmoamor e decidimos ficar juntos. Coincidência ou não, fomoscapturados no esconderijo pelos agentes do DOI-CODE e barbaramente torturados. Ela foi libertada primeiro, na troca por umembaixador sequestrado. E eu, de outro, após nossos companheirossaberem que eu estava vivo, exigindo minha libertação. A própria

irmã do Frederico que tomava conta da Sarah, contou-me que Inêstinha aparecido na casa dela para levá-la embora. Só que ele não permitiu, obrigando-a a ir com ele para o Chile. No exterior, ela deveter ficado sabendo que eu não morri e havia saído da prisão. Foi aíque ele a matou, para ela não ficar comigo.

- Eu não acredito em conjecturas, só em fatos concretos!

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Retornando ao quiosque, Vicente pediu o endereço da casa doFrederico ao Filipe, indo até lá com Celso.

A casa era grande, havendo um portão de ferro enorme, dando

a ideia de uma fortaleza. Ficava próximo da via Dutra, rodoviainterligando Rio a São Paulo.A Marta, tia da Sarah, recebeu-os com a maior honra. Vicente

entrou na casa um tanto assustado. E na medida em que observava oseu interior, aumentava seu pavor. Sarah e Frederico tinham ido aohospital, enquanto isso, Marta fazia sala para eles. O comportamentodo Vicente preocupou o Celso ao notar que seu amigo estava tendouma crise esquizofrênica, ouvindo gritos fantasmagóricos. Ele pediuao Celso que o levasse embora, imediatamente. E no mesmo instantesaiu correndo num surto de loucura. Celso pediu desculpa a Marta,alegando que Vicente havia bebido álcool em excesso. Chegou a vê-lo entrar num táxi como se tivesse fugindo de um assalto. Celsotentou segui-lo no seu carro, mas o táxi já havia sumido na via Dutra.Só ficou aliviado quando o encontrou já no seu apartamento. Celsonão lhe fez perguntas, deixando-o à vontade para falar. O silêncio perdurou por meia hora.

- Celso, você pode achar que é loucura minha... Naquela casaas paredes ecoavam gemidos de torturas. Lá, eu ouvi os meus próprios gritos. Nas outras vezes, eu estava sozinho, dentro do meuquarto. E nunca foi tão pavoroso assim.

 Nesse instante toca o telefone, Vicente atende, fala por algunsminutos, depois conta ao Celso que o capitão Uchôa está vindo lheentregar uma carta. Não revelou quem havia mandado. Os dois

desceram para o aguardarem chegar ao quiosque.

- Retornaram rápido! Como foi a visita ao Frederico, Vicente?- perguntou Felipe.

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 - Ele tinha saído com a Sarah, ao hospital. Como eu tenho de

dar aulas hoje à noite, não pudemos esperar mais. Prometo ir emoutra ocasião, desta vez telefonarei antes para não haver outrodesencontro.

- Vi quando você desceu do táxi. – Disse Miro – Fiquei preocupado, sua expressão era de pânico. Tinha ido com meu pai eretornou sozinho...

- O capitão Uchôa ficou de passar aqui para entregar-me umacarta. Seu pai deixou-me na clínica e de lá tomei um táxi até aqui.

- Continuo não entendo! Assim que você chegou, passou unsdez minutos e chegou meu pai. Notava-se que estava muito preocupado com você.

- Miro, não houve nada. – Disse Celso – Pensei que eu fosserealizar um parto de emergência, mas foi um alarme falso. Vicente játinha ido embora de táxi.

- E que carta é essa que o capitão Uchôa está vindo lhe entregar,

Vicente? – Perguntou Filipe – O remetente não sabe o seu endereço?

- Essa carta, com certeza, foi enviada por um companheiro!Que, provavelmente, ainda se encontra no exterior. Como não possuio meu endereço, utilizou nosso velho e eficiente sistema secreto decorrespondência que é através do capitão Uchôa.

- Quer dizer que era o capitão Uchôa o responsável pelos

contatos dos cassados políticos com suas famílias. Agora se explica porque quando meus pais recebiam uma carta do Vicente, momentosantes ele surgia em casa.

- Nem aquela cadeira de rodas impede a eficiênciaextraordinária do capitão Uchôa – elogiou Miro – Ele sempre diz quecerto tipo de segredo não se revela jamais.

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- E foi por isso que você, Vicente, não mencionou o nome deleem seu livro? – perguntou Filipe

- Foi! Ele me fez prometer não revelar o seu nome até o dia que

estivesse vivo. Acreditava que dessa maneira, ainda seria possívelalgum companheiro no exterior mandar uma carta para ser entregueatravés dele. Mesmo discordando, acatei sua exigência... Agora vejoque ele tinha toda razão!

Um táxi se aproximou do quiosque, trazendo o capitão Uchôa.Filipe e Miro foram ajudá-lo a descer do táxi.

- Saiam de perto de mim, seus traidores! Não preciso da ajudade vocês – esbravejou ele – Celso e Vicente, vão ficar aí parados?

Ambos riram e foram ajudar a colocá-lo em sua cadeira derodas.

- Capitão Uchôa, até quando vai ficar com raiva por Miro e eutermos nos desligados das forças armadas?

- Não tem justificativa a traição de vocês! Nem ao menostiveram a consideração de me consultar.

- Pois bem, estamos consultando agora. Qual a sua opinião? –  perguntou Miro

Silenciaram aguardando a sua resposta. Ele olhou para o chão, ponderando, tornou a erguer a cabeça, encarando-os.

- Deus, pátria e família! É nessa ordem.Era tão óbvia a opinião dele que soou engraçado, provocando

risadas.

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 - Se vocês vão ficar rindo de mim, prefiro ir embora.

- Mas antes o senhor vai tomar uma caipirinha caprichada queeu aprendi recentemente.

- Posso ficar mais alguns minutos somente para não fazer essadesfeita com o Vicente... Gosto das bebidas que ele prepara.

Só após ter provado a caipirinha, tirou do bolso da calça a talcarta. Todos estavam ansiosos para saber de quem era. Entregou aodestinatário.

- Posso assegurá-lo não se tratar de uma carta póstuma.

Mesmo antes de ler a carta, já imaginava de quem fosse. E aoconstatar, ficou petrificado de emoção. Celso, vendo Vicenteemudecido, deduziu que algo trágico havia acontecido. Tirou de suasmãos, a carta, e leu. Seu rosto se cobriu de alegria, festejaramabraçados, aos pulos.

- Eu e o Filipe não podemos saber do que se trata?

- Claro que vocês podem, Miro! – respondeu Celso – Uma pessoa muito importante para nós... Um companheiro de várias batalhas não morreu! Tudo indicava que realmente estivesse morto.

- E como se chama essa pessoa? – perguntou Filipe.

- Ismael! É o ex-tenente Ismael Nunes, citado no meu livro.

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Capítulo 6 

Após o reconhecimento das ossadas de Carlos Chagas, por  peritos da UNICAMP. Foi, finalmente, realizado um enterro cristãocom os seus restos mortais. No dia 10 de Outubro de 1990, nocemitério São João. Somente os amigos mais próximoscompareceram. Dona Lígia Chagas fez questão que Filipe ficasse aoseu lado no momento do sepultamento do seu filho. Vicente iniciou ahomenagem ao companheiro com a frase do mesmo, ao ser torturado:“é isso que vocês querem saber? Pois é comigo mesmo, só que eu

não vou dizer”. Morreu sem revelar nada, a não ser um homemextraordinário. Que foi capaz de subjugar seus algozes, mesmo presoaos grilhões da covardia. Fazendo de sua arma devastadora, suacoragem e resignação.

Uma mulher bem vestida, usando um chapéu e óculos escuros,chegou despercebida na hora do enterro. Somente após o discurso doVicente foi sendo notada pelos demais. Ela foi embora sem falar com

ninguém. Sarah foi conferir com a dona Lígia quem era a tal mulher misteriosa. Ao ouvir que não tinha noção de quem fosse, saiu atrásdela. Mas de nada adiantou, ela já havia sumido.

Retornando do cemitério, Sarah não abriu o quiosque parafuncionamento, foi passear pelo calçadão da praia com Filipe.

- Por que você foi atrás daquela mulher?

- O perfume que ela usava despertou-me a curiosidade de saber quem era aquela mulher misteriosa.

- Eu também tive curiosidade, nem por isso sai correndo atrásdela. Você pensou que fosse a sua mãe?

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 - Como sabe?

- Meu amor, essa não foi a primeira vez que você fez algosemelhante. Uma vez você saiu correndo atrás de uma mulher que

fazia cooper, achando ser sua mãe. Em outra ocasião, achou que umamendiga fosse sua mãe, por ela dizer: “minha filha, me ajude”.

- Não posso negar! Tenho fixação em reencontrar minha mãedesde a minha infância. Só que desta vez foi bem diferente. Aquelamulher usava um perfume idêntico ao predileto de minha mãe.Infelizmente só fui notar isso quando ela já havia saído dali.

 Na praia do Arpoador, sentaram num banco e ficaramnamorando. De repente, Sarah olha em direção às pedras da praia,avistando Vicente abraçado a uma mulher.

- Filipe, veja só quem está lá nas pedras...

- É o Vicente com uma namorada! Ela está segurando umchapéu na mão?

- Está! É a mesma mulher que esteve no enterro.

Filipe sequer teve tempo de falar, ela saiu correndo em direçãoa eles. Ainda tentou acompanhá-la na tentativa de impedi-la de passar outro vexame confundindo aquela mulher com sua mãe. Sarahsó parou diante deles, causando um susto enorme na mulher queimediatamente pôs os óculos e chapéu, ocultando sua identidade.

- Mãe! Eu te amo! - disse num grito ofegante

A mulher se aproximou dela, tirou o chapéu, os óculos. Aemoção deixou cair as lágrimas.

- Também te amo... Filha!

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Elas choraram abraçadas.

- Filha, como pode me amar eu tendo a abandonado?

- Tenho certeza que você não teve escolha.

- Eu lhe disse, Inês, não precisava ter medo da reação de suafilha.

- Um dos meus maiores temores em retornar ao Brasil era deenfrentar sua rejeição, Sarah!

- E o meu era de nunca revê-la, mãe!

- Filha você é maravilhosa!

- Eu concordo com você, futura sogra!

- Que genro lindo! Também pudera, é idêntico à mãe! Olhar  para você me faz recordar a sua mãe... Que saudade imensa da minhaamiga Cleonice. Quando nós fugimos do 28º Batalhão de Caçadores,

num caminhão, fui eu quem o levou nos braços, enrolado numa blusaminha.

- Hoje eu compreendo a satisfação que Sarah sempre teve deser sua filha. É uma guerreira, imbatível, capaz de sobreviver a tantas batalhas desiguais.

Filipe a abraçou tomado por um sentimento de gratidão,

aumentando a emoção de Inês. A beleza e elegância escondiam asagruras indeléveis daquela mulher.

Vicente propôs todos irem a um restaurante em Copacabana, próximo ao hotel que Inês estava hospedada. A princípio pediram

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 uns drinques, ouvindo as diversas perguntas que Sarah fazia a suamãe.

- Mãe, onde você morou todos esses anos?

- Filha, eu não vou esconder nada de você, mas só faça uma pergunta se estiver preparada para saber a verdade!

- Prefiro sofrer com os fatos a viver uma mentira no mundo defantasia. Por que você fugiu deixando meu pai febril numa cama deum hotel no Chile?

- Frederico me levou para o Chile sob ameaça de eu não poder mais vê-la. Ele não se conformava com a nossa separação, principalmente, com o fato de Vicente e eu termos assumido umrelacionamento amoroso. Aceitei manter um caso com seu pai, masnunca o iludi dizendo que o amava. No princípio o admirava bastante, porém, nossas ações revolucionárias se diferenciaram de tal modoque era impraticável minha convivência com ele.

- Quais eram essas diferenças?

- Após passarmos por algumas organizações de esquerda,Frederico não suportava mais receber ordens. Alegava que os lídereseram amadores. Ele, então, formou uma pequena organização, sendoo líder absoluto. Praticamos alguns assaltos a bancos. Eu imaginavaque o dinheiro fosse para causa revolucionária. Mas não era, foidividido para ser gasto em uso próprio. Só então me dei por contaque os integrantes alistados por Frederico não tinham nada derevolucionários, mas sim de bandidos. Nosso rompimento ocorreu

nesse período. Algum tempo depois, vivendo na clandestinidade comVicente, fomos capturados por agentes do DOI-CODE. Fui trocada por um embaixador sequestrado, exilando-me na Argentina. Retorneiao Brasil na calada da noite como um imigrante ilegal. Procurei aMarta para poder levar minha filha. Ela deixou-me esperando em suacasa, dizendo ir buscá-la. Confiava na Marta, mas ela não voltou.Havia avisado ao seu irmão. Ele chegou com um jornal, noticiando a

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morte de Juca Aguerrido, pseudônimo usado por Vicente. Choreimuito, mesmo assim não desejava voltar a viver com Frederico.Queria levá-la comigo para bem longe dali. Então, ameaçou-me. Seeu não fosse com ele para o Chile, jamais poria os olhos novamente

na minha filha. Fui forçada a ir, porém, eu já tinha em mente retornar sozinha e levar você, na marra, caso Marta se recusasse a me entregá-la. No Chile, ele contraiu uma febre e foi exatamente isso que proporcionou minha fuga. Procurando meios para voltar ao Brasil,fui confundida com uma revolucionária chilena, chamada Rosita.Prenderam-me numa delegacia, dando início a sevícias, a fim de queeu lhes contasse o paradeiro do marido dela, chamado Pablo Smith.Ele possuía dupla cidadania e estava prestes a fugir com ela paraInglaterra juntamente com a filha. Por descuido, tinha um cartão no bolso de minha calça, do hotel onde estávamos hospedados. Osagentes chilenos até então acreditavam que eu fosse mesmo essa talRosita. E, ao irem ao hotel capturar Pablo Smith, inacreditavelmente,a verdadeira encontrava-se hospedada lá, utilizando um pseudônimo.Obviamente, ela reagiu à ordem de prisão, sendo alvejada váriasvezes. A mesma tirania que havia se instaurado no Brasil, instaurara-se no Chile, Argentina, e em toda a América Latina, diferenciavam-se apenas nos nomes dos déspotas. Em vez de conduzi-la ao hospital,

levaram-na àquela delegacia, trancando-a na mesma cela que eu meencontrava presa. Ainda foi possível trocarmos algumas palavrasantes dela falecer segurando minha mão. Eles não imaginavam aaudácia de Pablo e seus companheiros, invadiram a delegacia, a fimde resgatá-la. Infelizmente não foi com vida. Levaram-me junto, e por algum tempo vivi com aqueles revolucionários. Os agentes dogeneral Pinochet faziam prisões em massa. Foi aí que convenci oPablo a fugirmos com sua filha. Nós três fomos para Inglaterra. E

dois anos depois mudamos para a Austrália. No ano passado, Pablofaleceu de infarto fulminante. Antes mesmo da morte dele, eu jáhavia entrado em contato com o capitão Uchôa, pedindo informaçõessobre a minha filha. Estava determinada a me reaproximar de Sarah,mesmo correndo o risco de ser odiada por ela. No inicio desse ano

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 recebi uma carta do capitão Uchôa, contando tudo que precisavasaber. A minha filha de criação convenceu-me a deixá-la vir primeiro.Para conhecê-la e preparar minha chegada.

- Sandy é sua filha de criação? – perguntou Sarah, já convictada resposta.

- Sim! Sandy ficou encantada com você e não lhe poupaelogios. É sua admiradora.

- Também gostei muito dela! Agora se explica a rapidez comque ela aprendeu a falar o português.

- Por isso Sandy vivia tirando fotos de nós. – comentou Filipe

- Ela tirou fotos de toda minha casa quando a levei para dormir lá. Meu pai ficou irado por tê-lo fotografado.

- Frederico estava irreconhecível nessa foto! Espantada mesmofiquei ao ver a foto do Vicente. Capitão Uchôa mencionou o nomedele quando me escreveu, mas eu não acreditei que estivesse vivo.

- Viveu esses anos todos sem saber que Vicente não haviamorrido?

- Foi! Pablo e eu fizemos um pacto de não tocarmos emnenhum assunto referente ao Brasil ou Chile. E assim permaneceu por longos anos. Somente algum tempo antes dele falecer admitimosesse erro infantil.

- Esse erro pode ter assegurado suas vidas. Muitos dos nossoscompanheiros foram capturados no exílio e aniquilados pelo regimemilitar. Inês, eu também acreditava que você estivesse morta. Leveium choque quando o capitão Uchôa foi me entregar uma carta sua.Tive de dizer que era do ex-tenente Ismael Nunes por você ter me

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 pedido segredo, provisoriamente. Até que estivesse pronta para procurar a Sarah.

- Vicente, mesmo você negando dava para notar que achava

meu pai o assassino de minha mãe.

- Não era gratuita essa minha desconfiança! E nem justocontaminá-la com ela. A sua fé em reencontrar Inês dava-me uma pequena esperança.

Passaram horas conversando no hotel onde Inês hospedou-se.Somente Vicente e Filipe foram embora. Sarah permaneceu paradormir com sua mãe.

De volta ao apartamento em Ipanema, os dois sentaram-se nosofá da sala de visitas.

- É interessante! Pai e filho apaixonados por mãe e filha! Nãoacha?

- Acho! Acho ainda mais interessante você ter me citado como

 pai. Sempre tive inveja de Celso ouvindo Miro o chamar de pai.

- É difícil para mim, chamá-lo de pai... Mas não é impossível.O mais importante é que hoje lhe tenho amor como meu pai.

- Acredita que eu já sonhei acordado com você me dizendoexatamente isso? Finalmente a vida tornou a me presentear com afelicidade. E como diz o poeta Vinicius de Morais: e seja eterno

enquanto dure.

- Suas poesias são belas, mas correm o risco de não ser conhecidas, pois você nunca as declama, apenas as escreve.

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 - É mesmo! Faz bastante tempo que perdi a empolgação de

declamar minhas poesias.

- No restaurante você deixou escapar que suas diferenças com

Frederico não são somente por Inês. Há outras razões, estou certo?

- Há sim!

- Incomoda-se de falar sobre isso?

- Não! Desde que você não comente com a Sarah. Não hánecessidade de ela saber.

- Dou a minha palavra!

- Lá no restaurante, Inês omitiu várias coisas sobre Frederico.Como por exemplo: “se ela não vivesse com ele, não viveria commais ninguém”. Inês contou-me que ele soube que ela estavamorando em Londres. E foi até lá, chegando a bater na porta da casadela. Por isso, mudou-se para Austrália. A mente dele é tãomaquiavélica a ponto de deixar-me pensar que ele havia matado Inês.

Com o intuito de não procurá-la, funcionou do jeito que ele queria.

- Com qual dinheiro viajou para Londres?

- Com o dinheiro dos assaltos aos bancos! No início éramos damesma organização revolucionária de esquerda, ALN. Notei que elesempre estava telefonando de um orelhão, às escondidas. No dia queos agentes de repressão descobriram o esconderijo no qual se

encontrava Carlos Chagas, o ex-tenente Ismael Nunes e outroscompanheiros, presenciei Frederico telefonando horas antes.Comuniquei o fato em reunião. Ele alegou simplesmente que euestava com ciúmes dele com a Inês. Todos acreditaram, inclusive oCelso. A Inês chegou a discutir comigo, defendendo-o. Cheguei a pensar que ela estivesse tão apaixonada por ele, a ponto de ter ficadocega. Outros esconderijos foram descobertos e a partir daí levantou-

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se suspeitas de Frederico ser agente duplo, infiltrado no meio de nós.Perdemos vários companheiros para depois sua presença se tornar repudiada. Ele percebeu que foi montado um esquema para pegá-lonos traindo. Safou-se ardilosamente, mostrando-se indignado por 

desconfiarmos dele, retirando-se em seguida. Levou com ele a Inês,uma das mais atuantes companheiras em combates. O respeito a elaera o que tinha garantido a vida dele. Frederico formou umaquadrilha de ladrões, passando-se por uma organizaçãorevolucionária de esquerda. Inês finalmente se convenceu da falta deescrúpulo dele, retornando ao nosso lado. E mais tarde elacomprovaria, de fato, que ele era agente duplo.

- Como ela chegou a esses fatos?

- No hotel no Chile, ele tresvariou febril, dizendo o local ondeeu e a Inês nos encontrávamos escondido. E mais, citou o nome da pessoa para a qual ele nos delatava. O agente de repressão do DOI-CODE, conhecido pelo apelido de Zé Gavião, responsável por noscapturar. Recentemente, ele foi assassinado em seu apartamento.

- Já ouvi falar dele! Sarah ficaria arrasada se tomasse

conhecimento dos fatos que envolvem seu pai. Até pra mim, estásendo difícil aceitar. Tinha uma enorme admiração por ele, achandoque fosse uma pessoa digna. Não passa de um farsante perigoso.

- Ele é perigosíssimo! E um perito em criar emboscadas detodo tipo.

- Será que ele realmente ama a Sarah?

- Não ama! Sarah sempre foi o chamariz para trazer Inês devolta, o único amor de sua vida. Frederico sempre se esforçou aomáximo para dar tudo de melhor para sua filha e jamais permitiu que

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 ela trabalhasse. Isso fazia parecer amor. Jamais foi capaz de um gestocarinhoso.

- Sarah justificava dizendo que era timidez.

- Frederico gostava de dizer que timidez é coisa de covarde ede marica. Inês pode lhe confirmar isso.

- Não há necessidade! Fez bem nunca ter contado nada disso aSarah!

- Jamais faria isso, mas Frederico disse!

- Como assim? Ele mesmo falou de seu passado?

- Não foi bem assim! Sarah perguntou ao seu pai por que haviatanto ódio entre mim e ele. Nesse dia, ele bebeu demais e por descuido respondeu que eu o acusei de ser agente duplo. Sarah foi aonosso apartamento desesperada, querendo saber se de fato o pai delafora agente duplo. Para preservá-la desse desgosto, tive de dizer quefiz tal acusação movido por ciúmes. Mesmo assim, ela chorou

 bastante, bebendo quase uma garrafa de uísque. Acalmou-se um pouco assistindo a um filme no projetor, da Inês na época dauniversidade.

- Foi no dia que terminamos o namoro!

- É... Foi! Não houve tempo para eu o esclarecer sobre o quehavia acontecido! Apesar de Sarah ser linda, sensual e muito

semelhante à Inês. Não passou por minha cabeça aproveitar-medaquela situação. Nem se fosse outra mulher, não sou cafajeste.

- Você provou-me ter amor por mim. E isso me fez superar essa desconfiança que só trouxe sofrimento.

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Vicente queria lhe confidenciar algo, mas não tinha coragem eisso o deixava numa aflição medonha. Levantou-se do sofá, dandoum beijo sobre a testa de Filipe, desejou-lhe boa noite, foi ao seuquarto, dormir.

 No outro dia pela manhã, Filipe foi ao quiosque.

- Bom dia, cunhado! – cumprimentou Sandy

- Bom dia! É bom ter uma cunhada legal como você!

- Obrigada! Digo o mesmo.

Sarah o beijou após lhe dar bom dia.

- Amor, é maravilhoso ter uma irmã como a Sandy.

- Sempre quis ter uma, agora já tem!

- É mesmo! E também um homem carinhoso, digno e lindo.

- Fiquei com ciúmes! Quem é esse sujeito?

- Eu adoro seu senso de humor. Pensava que tivesse perdido.

- Como foi dormir ao lado da sua mãe e da irmã caçula?

- Não dormimos! Conversamos até o dia amanhecer.

- Sempre tive muita vontade de conhecer a Sarah. Ela éidêntica em tudo à nossa mãe.

Sandy pediu licença a eles, foi sozinha dar um mergulho nomar.

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 - Filipe, minha mãe aconselhou-me a não contar ao meu pai

que ela retornou ao Brasil. Pois ressuscitarão velhas mágoas do passado. O que acha disso?

- Ela tem razão! A vida deu uma nova chance ao Vicente e Inêsde ficarem juntos. Despertará em Frederico o ciúme e fúria que ficoutanto tempo adormecido.

- Se eu não digo, estarei traindo o meu pai!

- Não é traição evitar uma confusão. Ele pode usar a doençacomo pretexto para cometer... Uma loucura.

- Ia dizer assassinato e trocou por loucura! O que você ficousabendo a respeito do meu pai?

- Aquela história que Inês nos contou no restaurante! Usar você para obrigar sua mãe a ficar com ele. Amor, não fique chateada, maso seu pai nunca foi a vítima, e sim sua mãe. Hoje eu me arrependo detê-la chamado de mãe desnaturada.

- Sei que meu pai errou, mas, como todo ser humano, pode ter se arrependido!

- Sarah, não tente se enganar! Não foi um erro, ele destruiu afelicidade de vocês duas, impedindo que mãe e filha vivessem juntas.

- Em outra circunstância, já teria mudado para bem longe dele.Porém, ele está morrendo e só tem a mim e a minha tia Marta.

- Irá mudar-se para o nosso apartamento que pretendo comprar com minhas economias!

 Nesse momento, chegou Miro eufórico com as boas notíciasque ficara sabendo. Foi logo a abraçando.

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- Estou felicíssimo por sua mãe ter voltado, Sarah. Acabei deconhecê-la, ela é uma simpatia igual à filha.

- Obrigada! Miro, você é um amigão, e um homem sensacional.

 Não foi à toa que minha amiga Olívia se apaixonou por você. O queachou dela?

- Ela tem um bom gosto por homem! E é a mulher que faltavaem minha vida! Resumindo, já separei a metade do guarda-roupa para ela por as suas coisas.

- Miro, não se atreva a fazê-la infeliz!

- Sarah, não se preocupe! Temos certeza que nos amamos.Depois que ela se formar esse ano, virá morar comigo,definitivamente. Ela não quer se casar na igreja, somente para nãodar esse gosto ao seu avô.

- Ela sempre me disse que quando encontrasse o homem certonão iria se casar para não dar essa satisfação ao avô!

- Miro, por um acaso, há algum apartamento à venda no seuedifício. Não pode ser muito caro. Como disse bem o Leonardo, soude poucas posses. E hoje com o agravante de ser desempregado.

- Há sim! O síndico comentou ainda ontem comigo. Seráincrível ter vocês dois como vizinhos.

- Correção, a nós quatro! Sandy e Eduardo alugaram um

apartamento lá. Hoje mesmo vou sair com ela para ajudar a escolher os móveis. Será que o capitão Uchôa vai gostar de ter-nos como seusnovos vizinhos?

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 - Sarah, você ainda tem dúvidas? Ele vai se jogar da janela do

seu apartamento. - brincou Filipe.

Eles se descontraiam enquanto um mendigo andava de um lado

a outro na frente da entrada do edifício onde moravam.

- Aquele mendigo do outro lado da rua, defronte ao nossoedifício, costuma ficar na Praça dos Paraíbas. Sempre me observaquando estou jogando xadrez com o capitão Uchôa. Será meracoincidência ele estar ali?

- Uma vez o vi jogando xadrez com capitão Uchôa. Ao meaproximar, ele saiu correndo. - comentou Miro

- Agora você aumentou minha curiosidade. Vou lá abordá-lo edescobrir quem é ele e o que deseja.

Ao atravessar a rua, o mendigo, avistando-o, saiu correndo emdireção a Copacabana. Dona Lígia que acabara de descer do seuapartamento presenciou aquela cena.

- Filipe, por que ele saiu correndo quando o viu?

- Também gostaria de saber!

- Como ele descobriu meu endereço?

- A senhora o conhece?

- Sim e não! Ele sempre me fazia companhia no meu protestosilencioso em frente ao comando Leste. Apesar de não me dizer absolutamente nada com palavras, era de uma delicadeza refinada.Sem que lhe pedisse, trazia-me água mineral, lenço descartável paraenxugar o suor. E ainda abanava-me com um pedaço de papelão.Jamais aceitou dinheiro algum que eu oferecia-lhe. Não o vejo desdeque parei de ir ao comando leste.

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- Sei onde encontrá-lo e posso trazê-lo aqui.

- Seria uma satisfação recebê-lo. Porém, do jeito que ele fugiude você, temo pela vida dele.

- Confie em mim, dona Lígia.

- Claro que confio!

Filipe já desconfiava quem fosse aquele mendigo. Miro oacompanhou até a Praça dos Paraíbas. O mendigo estava sozinhosentado num banco, bastante cansado.

- Não tenha medo, não vamos machucá-lo. – Filipe otranquilizou.

- Nós só queremos falar com você. Caso não queira, vamosembora. – disse Miro

- Aquela senhora que você costumava fazer companhia emfrente ao comando Leste deseja muito revê-lo. Ela nos pediu para

encontrá-lo.

- Podem me arranjar um cigarro?

- Felizmente não fumamos – respondeu Miro.

- Eu também não fumo! Ou melhor, parei de fumar já fazalgum tempo.

- Pede cigarros para depois destruí-los! Por quê? – questionouFilipe.

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 - Andou me espionando! Criei essa técnica para ter controle da

minha abstinência tabagista. Curiosamente vem dando resultado.

- Como se chama? – perguntou Miro.

- Não sei! Sofri amnésia após ser atropelado algum tempo atrás. Não tenho nenhuma lembrança do meu passado.

- Por que está mentindo? – Filipe o interrogou – Sabe muito bem que era amigo do Carlos Chagas, filho daquela senhora. Por issofazia-lhe companhia, não é verdade?

- Não sei do que está falando! Já disse e repito, sofri amnésiaapós um acidente de carro.

- É óbvio que você sabe! - insistiu Filipe - Aquela senhorasofreu muito na vida, ainda assim consegue sentir carinho por você.Mesmo não desconfiando que seja o bravo tenente Ismael Nunes.

- Ex-tenente! É, eu sei o quanto ela sofreu. Fui eu quemtelefonou para ela avisando-a da morte de seu filho, meu amigo

Carlos Chagas.

- Tenente Ismael Nunes! Sempre o admirei! Meu pai contou-me inúmeras histórias suas.

- Ex-tenente! Celso não é de esquecer-se dos amigos. O filhodo Vicente é muito inteligente! Como descobriu quem eu sou?

- Você é uma lenda viva! Bastei ligar os fatos!

- Não é mentira, realmente sofri amnésia após ser vítima de umatropelamento intencional. Os médicos ficaram impressionados por eu ter sobrevivido. Por essa razão, ando um tanto assustado.

- Viu quem foi? – perguntou Miro.

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- Não deu tempo, foi tudo muito rápido. Mas tenho certeza dequem foi o mandante! Ele teme que eu descubra sua verdadeiraidentidade.

- De quem você está falando? – perguntou Filipe.

- Do astuto Pastor das Trevas. Fiz um juramento a mim mesmo,se escapasse vivo da sevícia a qual fui submetido por ele, nãodescansaria enquanto não o matasse.

- No livro que Vicente escreveu, ele mencionou que você foi a pessoa a passar mais tempo sendo torturada pelo Pastor das Trevas.Foi um milagre ter escapado com vida. Dá para avaliar o tamanho dasua revolta.

- Acho que não! Seu pai, com certeza, sim. Pois ele passou,exatamente, por todo tipo de tortura que passei. Incluindo a maisterrível, de ser invalidado como homem.

- Invalidado de que maneira?

- Isso é tão degradante para um homem que seu pai não tevecoragem de mencionar nesse tal livro! O Pastor das Trevas nos tirouo direito natural de possuir um belo corpo de uma mulher, de fazer filhos. Vicente ainda tem o consolo de ter deixado um filho paracontinuar sua dinastia, até isso a vida me negou.

Um remorso devastador invadiu Filipe. Ficou completamente perturbado, saindo a passos rápidos. Miro foi atrás dele, porém, ele

 pediu que o deixasse ficar sozinho. Naquele momento ele tinha umanecessidade angustiante de falar com Vicente. Dirigiu-se até auniversidade e ao chegar no estacionamento encontrou-se com Olívia,namorada do Miro. Ela notou seu visível estado de desespero etentou acalmá-lo. Ele não cessava de repetir que precisava falar com

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 urgência com seu pai. Ela então o levou até a sala de aula do Vicente.Ele ficou surpreso com a visita inesperada do Filipe. Ao mesmotempo, preocupado por imaginar que uma tragédia pudesse ter ocorrido. Encerrou sua aula mais cedo e foram os dois a um barzinho

não muito distante dali.

- Ontem à noite, você demonstrou querer revelar-me algodoloroso... Hoje eu soube. Perdoe-me mais uma vez. Você tinharazão de preferir que eu tivesse morrido no parto, a ter que viver sentindo vergonha de ter-me como filho. Não sou digno de ser seufilho.

 Não se conteve mais, pôs-se a chorar com a cabeça abaixada. A princípio Vicente não soube lhe dar com aquela situação. O fato delembrar a sua impotência sexual já lhe causava humilhação. Mas osentimento de pai era infinitamente maior, enchendo-o de superação.

- Sinto muito orgulho de tê-lo como filho. Sou eu quem develhe pedir perdão por ter dito isso num momento de total embriaguez.Filipe, não se sinta culpado pelo que aconteceu comigo. Ontem ànoite, senti-me na obrigação de esclarecer, de uma vez por todas, que

não tinha me aproveitado da Sarah, em nenhum momento. Acabeinão conseguindo tocar nesse assunto, pois é muito doloroso,chegando a sentir-me humilhado, a ponto de não mencionar no meulivro.

- Se um dia eu descobrir a identidade desse pastor das trevas,eu o matarei sem nenhuma cerimônia.

- Daria tudo para matá-lo! Porém, no meu caso não foi ele, masoutro torturador. Conhecido pelo apelido de Carvão do Demo, alunodo Pastor das Trevas.

- A Inês sabe das suas limitações...?

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- Claro! Isso aconteceu quando fomos capturados pela equipede Zé Gavião. Inês também foi vítima do mesmo mal. Perfuraram oclitóris dela como fazem certas seitas mulçumanas na África,alegando que a mulher não pode ter orgasmo. Porém, nosso amor é

superior a isso. O simples fato de estarmos juntos é a coisa mais prazerosa que um casal pode sentir. É o verdadeiro amor platônicocomo dizem os filósofos.

- Fico vislumbrado com sua resistência às agruras da vida.Sinto-me um inútil em não saber como te ajudar.

- Isso não é verdade. Foi a sua demonstração de carinho erespeito por mim que me trouxe uma nova perspectiva de vida. Filipe,você é meu elo com a felicidade.

- Jamais vou deixar de ter amor pelos meus pais... De criação.E sei que eles me amaram muito, mas não se compara ao seu amor  por mim. Passamos a viver como pai e filho. Não vamos deixar quehaja mais segredos entre nós?

- Concordo! Como soube desse meu segredo? Capitão Uchôa,

Celso ou Inês?

- Nenhum dos três! Foi o tenente Ismael Nunes.

- Como você conseguiu localizá-lo?

- Simplesmente indo à Praça dos Paraíbas!

Ele passa o dia inteiro lá, sentado num banco sozinho. Hojeesteve em frente ao nosso edifício, e quando me aproximei dele,fugiu. Em seguida, dona Lígia contou-me que ele sempre lhe faziacompanhia no seu protesto silencioso defronte ao Comando Leste.Daí em diante ficou fácil deduzir quem ele era.

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 - O capitão Uchôa teve o desplante de dizer-me que não sabia

onde localizar o companheiro Ismael Nunes. Só contou que eleestava vivo e em breve iria me procurar.

- Certamente, ele pediu ao capitão Uchôa para não lhe dizer. Nota-se, claramente, que ele é um homem perturbado emconsequência das várias vezes que foi submetido às sessões detorturas.

- Ismael e eu fomos seviciados de modos tão semelhantes, que parecia se tratar do mesmo torturador. Ismael amava muito umamulher e ela a ele. O trauma de perder seu vigor sexual o abalou profundamente. Afastou-se de sua amada sem contar a razão. Ahumilhação é tão perturbadora que não se consegue olhar para umamulher. Alguns anos depois ela se casou, aumentando ainda mais asua revolta. Essa mulher a qual me refiro é a Marta, irmã doFrederico.

Os dois chegaram à Praça dos Paraíbas de táxi. O ex-tenenteIsmael Nunes conversava com o capitão Uchôa.

- Deu para se esconder dos amigos? – interrompeu Vicente

Ismael levantou-se, dando-lhe um forte abraço.

- Não é dos amigos, mas da vida!

- Vicente, não se zangue comigo! Ismael não me deixou dizer aninguém. Sequer deixou ajudá-lo financeiramente. Prefere as ruas a

morar no meu apartamento.

- Mas agora ele vai ter que aceitar nossa ajuda - disse Vicente -Ismael, você não percebeu que sua vida miserável ostenta ainda maiso sentimento vitorioso daqueles que um dia combatemos. Isso semcontar que você está ridículo com essa peruca ruiva, macacão de jardineiro e essas botas de milico.

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- Esse foi o melhor disfarce que pude arranjar!

- Vamos para minha casa, tomar banho e se trocar para rever oCelso e Inês.

- Se for, vou me sentir insultado, convidei-o primeiro.

- O capitão Uchôa tem razão!

- Tudo bem! Pode ir tomar banho enquanto compro algumasroupas para você vestir.

- Eu já comprei, Vicente, desde o primeiro dia que Ismaelapareceu. Só não consegui persuadi-lo a vesti-las, pois ele não metem respeito como tem por você.

Em menos de uma hora, Ismael transformou-se em outrohomem. Mesmo com todas as cicatrizes em seu corpo, causadas por sessões de torturas, não comprometia sua boa aparência. E sabia ser elegante. Quando desceram do táxi em Ipanema, a alguns metros doquiosque, já eram esperados por Celso, Inês e dona Lígia, sendo esta

a primeira a abraçá-lo. Ela preparara um grandioso jantar deconfraternização em seu apartamento. Com direito a música ao vivocom uma banda de Bossa Nova. Ismael e dona Lígia dançaram por  bastante tempo. O mesmo acontecia aos outros casais, formados por:Vicente e Inês, Filipe e Sarah, Miro e Olívia, Eduardo e Sandy. Celsoe o capitão Uchôa foram os únicos a não dançar, entretanto,divertiram-se tanto quanto os demais. Eram pessoas marcadas peladitadura que haviam reencontrado o prazer de viver.

Aquele grupo de pessoas passou a se reunir com frequência emdiversas ocasiões, por motivos bem variados. O importante era oencontro entre velhos amigos.

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 Ismael passou a morar com o capitão Uchôa e esse convívio

aos poucos ia restabelecendo o equilíbrio emocional e psicológico dodestemido ex-tenente Nunes. Sua meta principal era descobrir averdadeira identidade do Pastor das Trevas e matá-lo.

Filipe comprou um apartamento no mesmo andar que Eduardohavia alugado. Sarah ia sempre visitar seu pai e levá-lo ao hospital.Ela decidiu não contar a ele que Inês retornara ao Brasil. Temia quefosse procurá-la, e soubesse que está morando com Vicente.Frederico não morreria em paz se antes não os matasse. Sarah agoratinha consciência do quanto seu pai era perigoso.

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Capítulo 7 

 No dia primeiro de novembro daquele ano, foi lançado o livro:“Nos porões da ditadura, uma flor...”. A fila para autografar eraimensa. Quase no final da fila, um homem caquético, visivelmentecansado, com um dos exemplares, aguardava pacientemente a suavez. Sua presença só foi notada por Inês no momento em que eleentregou o livro para ser autografado. Sua reação foi de espanto emedo, mas tentou disfarçar. Ela estava ao lado do autor, tentouchamar sua atenção pondo as mãos em seus ombros, mas de nada

adiantou. Somente ao devolver o livro autografado, Vicente viu queera o Frederico. Ficou pasmo, levantou-se de imediato preparando-se para um ataque caso tentasse algo violento contra os dois. Fredericoapenas olhou nos olhos de Inês sem qualquer ameaça aparente. Elefoi embora tão discreto quanto chegou. Sarah e os demais souberamda presença dele posteriormente. Ismael, armado com uma pistolanove milímetros, verificou com precisão se ele encontrava-seescondido nas imediações, pronto para uma ofensiva fatal.

A peça teatral do Eduardo estreou uma semana após, comlotação esgotada. Foi uma volta triunfante, pois sua dedicação ematuar se intensificou, obtendo mais maturidade como ator. A críticarendeu-se ao seu talento.

Filipe e Miro arranjaram emprego como pilotos de helicópteronuma empresa táxi aérea de médio porte, por indicação do generalFontes. No natal, reuniram-se na casa do capitão Uchôa. E no

réveillon, passaram na praia de Copacabana. Vicente e Inês foramembora com o Celso em seu carro por volta das quatro horas damadrugada. Todos acordaram tarde naquele dia, exceto Sarah, quesaiu cedo para trabalhar. À tarde, Filipe e Miro foram juntos aoquiosque.

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 - Sarah, não havia necessidade de você ter acordado cedo para

abrir o quiosque.

- Acordei angustiada! Precisava espairecer a mente, Filipe.

- Está preocupada com seu pai?

- Estou! Ele mudou depois do dia de autógrafos!

- Mudou como?

- Ele está indiferente comigo!

- Frederico nunca soube ser meigo com você!

- Eu sei! Mas nunca ficou sem falar comigo.

- Deve ter ficado chateado por você não ter lhe contado sobre oretorno de sua mãe...

- Chateado é pouco... Ele ficou com ódio, a ponto de causar-me

medo apenas com seu olhar. Nunca o tinha visto assim. Essa outraface que eu não conhecia é assustadora.

- Sarah, meu pai já desceu? - perguntou Miro

- Nem Celso, Vicente ou minha mãe desceram.

- Vou chamá-los para jogar uma partida de vôlei.

Retornou meia hora depois, preocupado.

- Eles não estão nem no apartamento do meu pai, nem no doVicente. O curioso é que o carro do meu pai encontra-se na garagem.

- Devem estar no apartamento da dona Lígia – disse Filipe.

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- Estive lá. Ela não os viu hoje. Pode ser que estejam na praiado Arpoador.

- Miro, a primeira coisa que minha mãe faz ao descer, é vir me

dar um beijo.

- Devem estar em outro apartamento, conversando. Estamos preocupados à toa. Daqui a pouco eles aparecem.

- Miro, sempre é bom manter certa preocupação. – disse Filipe

Os três procuraram em todos os apartamentos do edifício ondemoravam. Indo, em seguida, à praia do Arpoador e em outros possíveis lugares de encontrá-los. Ninguém havia os visto, nemmesmo os porteiros. Por muito tempo aguardaram um telefonemaque pudesse elucidar o sumiço. Somente às vinte e uma hora, foram àdelegacia, mas não foi possível fazer nada. Não havia atingido o prazo legal para serem considerados desaparecidos. Só restava iremaos vários hospitais daquelas imediações. E, por fim, já totalmentedesesperados, procuraram no IML.

 No dia seguinte pela manhã, os telejornais noticiaram odesaparecimento de três ex-militantes políticos: Vicente, Celso e Inês.Sarah telefona inúmeras vezes para casa de seu pai, mas ninguématende. Decide então telefonar para a casa de sua tia Marta. Ela ficasabendo que seu pai pedira a sua tia que o levasse à cidade de AlémParaíba, estado de Minas Gerais, lugar onde nascera, a fim de passar o réveillon. A Marta retornara ao Rio de Janeiro, aguardando na casadela um telefonema para ir buscá-lo no terminal rodoviário Novo Rio.

Aquela história conectava-se ao fato do desaparecimento deVicente, Inês e Celso. E diante das circunstâncias, a possibilidade deencontrá-los na casa do Frederico era grande. Filipe, Sarah e Miroforam de carro até lá. A casa encontrava-se totalmente trancada,

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  porém, ouvia-se música vindo de dentro. Ela, de posse de uma chave,abriu a porta. Ao adentrar, deram de cara com um clima de tragédia.Encontraram, sobre a estante, um revolver calibre 38, debaixo um bilhete de despedida que dizia: “dediquei minha vida inteira a amar 

essa mulher. E ela me retribuiu com traição, sendo assim, cumprireiminha promessa... Se ela não fosse minha não seria de outro homem”.Os três correram para o quarto de Frederico. A porta encontrava-seaberta. A sua cama fora de posição, descobrindo uma passagemsecreta que levava a um piso subterrâneo. Os degraus daquela escadaos conduziam ao inferno de um dos porões da ditadura. Haviadiversos aparelhos de torturas. Vicente encontrava-se morto no paude arara, completamente nu com seus órgãos genitais decepados. Eao seu lado, noutro pau de arara, estava Inês, com os seios mutilados,nua, e banhada de sangue. Celso encontrava-se morto preso à cadeirado dragão. Frederico, estendido sobre o chão, morto com um tiro nacabeça por uma pistola nove milímetros, de uso exclusivo das forçasarmadas. A arma caíra próximo a sua mão direita. Uma vitrola nocanto da parede tocava hinos evangélicos no mais alto volume. Foradeixada funcionando com o mecanismo para repetir indefinidamente.Dezenas de folhetos com passagens da bíblia espalhados pelo chão.Aquela era a chancela do Pastor das Trevas. Não suportaram

 permanecer ali por mais nenhum minutos. A cena traumatizante lhes provocava um choro profundo.

À tarde, foi realizado o enterro deles. No mesmo cemitério quefora sepultado os restos mortais de Carlos Chagas. Uma multidãocompareceu ao cemitério São João Batista. Amigos, alunos, colegas professores da universidade, e muita gente desconhecida. Foram prestar solidariedade aos familiares. A imprensa registrava tudo sem

 perder um detalhe. O reitor Anderson Prado fez o discurso dehomenagem, bastante emocionado.

Um jornalista tumultuou o enterro ao perguntar a Sarah comoela se sentia sendo filha de um ex-agente duplo da ditadura,responsável pela execução da sua mãe e de mais duas pessoas. Elasentiu-se constrangida e na fragilidade que se encontrava, sua

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resposta foi intensificar seu pranto. Dona Lígia tomou a defesa dela,repudiando o jornalista, pedindo-lhe respeito à dor alheia.

Apesar das circunstâncias, Marta fez a última vontade de seu

irmão Frederico, cremando-o. Ela não sofreu a morte dele, pois tinhaseus motivos para odiá-lo. Jogou o resto de suas cinzas numa lixeiraa céu aberto.

Após o enterro, Sarah foi para casa de sua tia, sem dizer aninguém. Mesmo estando completamente arrasada queria extrair tudo que Marta sabia e escondera dela.

- Tia, a senhora me decepcionou tanto... Eu confiava em você.Acreditei que me amasse...

- Amo você igualmente às minhas duas filhas.

- Seus atos a desmentem! Só quero saber qual foi a sua participação nesse plano monstruoso?

- Nenhuma! Eu tenho Deus no coração.

- Por que me escondeu a existência daquele porão?

- Como poderia dizer-lhe se nem mesmo eu sabia. Nem aomenos desconfiei da intenção de Frederico de cometer essa últimaatrocidade.

- Sabia que ele era agente duplo?

- Sim! Sarah, você está muito atormentada com tudo queaconteceu. Nesse momento precisa tomar um calmante e descansar.Quando estiver recuperada, daremos continuidade à verdadeira biografia de Frederico Miranda.

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 - Acho que jamais me recuperarei desse golpe assombroso.

Terei de conviver com isso para sempre.

- Infelizmente o destino nos obriga a conviver com tragédias

indeléveis. Falo por experiência própria.

- Refere-se ao seu relacionamento com o ex-tenente Ismael Nunes?

- Exatamente! Foi a partir daí que descobri o lado satânico deseu pai. Conheci Ismael quando você era recém-nascida. Sua mãeveio me visitar aqui em casa na companhia dele. E acabaram ficandoescondidos por alguns dias dos agentes de repressão. Foi o suficiente para nos apaixonarmos perdidamente. Frederico se opôs dizendo queele não era o homem certo pra mim e se insistisse em me envolver,acabaria sofrendo. Nem dei importância, estava disposta a enfrentar o perigo de ser mulher de um revolucionário, taxado pelo regimemilitar de subversivo. Se fosse o caso, morreria por esse amor, estavaciente que isso poderia acontecer. Sempre ia aos esconderijos doIsmael a fim de ficar com ele por alguns dias. Planejamos nos casar assim que cessasse a repressão política. No nosso último encontro ele

disse onde estaria, porém, advertiu-me que não contasse ao Fredericoo local do esconderijo. Desconfiava que fosse agente duplo, achei umabsurdo, mas fiz como me recomendou. Só que o Frederico meseguiu sem eu notar. No mesmo dia os agentes prenderam o Ismael eseus companheiros, no esconderijo. Sofri muito naquele dia, principalmente por que tinha consciência das torturas a que eramsubmetidos nas prisões. Frederico chegou a ficar furioso quando eu oquestionei se era agente duplo. A sua própria mãe tomou a defesa

dele, mesmo assim não me dei por convencida. Rezava todos os dias por sua libertação. Um dia, Nosso Senhor Jesus Cristo me ouviu eIsmael foi um dos que foram trocados por um embaixador sequestrado. Mas ele pôs fim no nosso relacionamento. Nãodeixando ao menos defender-me, simplesmente não queria me ver mais. Eu estava disposta a revelar ao Ismael que Frederico além deser agente duplo era também o torturador que se escondia atrás do

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apelido de Carvão do Demo. Lendo os jornais, tomei conhecimentode um torturador que tinha esse nome. Foi esse apelido que minhaavó lhe deu quando ela descobriu que era ele quem andava ferindo osanimais da fazenda onde morávamos em Além Paraíba. Sua índole

 perversa surgiu ainda criança. Divertia-se furando os olhos dosnossos cachorros e gatos, todos tinham o rabo cortado a facão.Frederico não se deu o trabalho de desmentir que fosse o Carvão doDemo. Apenas me fez ameaças terríveis se eu contasse a alguém. A partir daí, divertia-se vendo o meu pavor ao revelar-me os tipos decrueldade que havia praticado a mendigos nas aulas de torturasrealizadas no exército, para sargentos e oficiais. Tinha orgulho emdizer que seu professor era o Pastor das Trevas, o mais qualificado detodos. A admiração dele por esse outro facínora me deixava em pânico. Passei a atender aos pedidos de Frederico, não mais por ser meu irmão mais velho, e sim por medo. Alguns anos, casada, meumarido tentou dar um basta às ameaças. Frederico simplesmente omatou a facada, jogando a carteira e o relógio fora, simulando umassalto. Advertiu-me, se o denunciasse, as próximas seriam minhasfilhas, inclusive a de criação.

- Chega! Não quero ouvir mais nada.

- Antes de você me sentenciar terá de ouvir tudo!

- Ele sempre me amou!

- Segundo ele mesmo, amava apenas a Inês. Ficou com vocêsomente com intuito de sua mãe retornar para buscá-la. Não foicoincidência ele ter comprado o quiosque em Ipanema quase de

fronte ao edifício dos pais de seu arqui-inimigo Vicente. Fredericotinha arquitetado um plano para ficar com a Inês mesmo contra avontade dela. Admitiu até mesmo mantê-la num cativeiro caso fossenecessário, igual ao que havia feito o Pastor das Trevas com a própria mulher. Frederico tinha admiração e espelhava-se em tudo no

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 seu ex-professor. É fácil deduzir que aquele porão seria usado paramanter sua mãe. A única coisa que ele não previu foi o câncer de próstata. Que veio a estragar seus planos iniciais. Consciente que poderia morrer a qualquer momento, optou por não deixá-los vivos,

sendo assim seu triunfo final. Confesso ter sido ingênua em não ter deduzido aquele porão...

Depois de muitas horas de conversa, Sarah foi embora, não acondenou nem a absolveu. Sua cabeça pesava em ter que concatenar toda aquela tragédia. Refugiou-se em outra casa, até que tivesseforças para continuar sua vida.

Filipe, mesmo com todo sofrimento, preocupava-se com Sarah.A cada meia hora ia ao apartamento de Sandy e Eduardo procurá-la. Na sexta tentativa, ela havia chegado, mas trancara-se em um dosquartos, recusando-se a falar com qualquer pessoa. Ele baterainsistentemente na porta, mas notando que ela não iria atendê-lo,desistiu, respeitando seu isolamento. Aquela situação permaneceu por vários dias. Somente na missa de sétimo, realizada na igreja daPraça dos Paraíbas, voltaram a se encontrar.

Marta soube, através dos jornais, o local da missa de sétimo dia,comparecendo sozinha, disposta a obter o perdão de sua sobrinha.Porém, Sarah se recusou a falar com ela e se sentou o mais distantedela. No término da missa, novamente tentou outra aproximação,sem êxito. Ismael fez questão de demonstrar que a presença dela eratotalmente insignificante. Marta sentiu que havia fracassado emdobro, restando a ela ir embora.

Filipe teve que correr para alcançar Sarah já na entrada doedifício onde moravam em Copacabana.

- Sarah, por favor, pare de se esconder de mim e explique o queestá acontecendo com você?

- Não está acontecendo nada.

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- Como não! Acha normal passar uma semana trancada numquarto, sem querer falar comigo, nem mesmo na igreja? Compreendoseu sofrimento... Mas não é maior que o meu ou do Miro. A melhor forma de amenizar essa dor insuportável é justamente nos mantermos

 juntos.

- Não há mais nada entre nós!

- O que você quer dizer com isso?

- Que você vai viver a sua vida e eu a minha!

- A minha vida é você, Sarah! Eu te amo!

- Por favor, não torne as coisas mais difíceis que já são. Depoisvou ao seu apartamento buscar meus pertences.

Filipe ficou inconformado com a atitude da Sarah. Miro eEduardo foram ao apartamento dele, levar um pouco de ânimo aoamigo. Encontraram-no embriagado.

- Tristeza não tem fim, felicidade sim! Meu pai... Vicenteadorava Vinícius e essa sua poesia define bem nosso atual momento.Vivemos um período mágico de felicidade, de repente desmoronatudo sobre nossas cabeças. Não vejo uma luz para sair dos escombros,e o ar já me falta nos pulmões.

- Somos filhos de guerreiros, e é chegada a hora de assumirmosos lugares que eles nos deixaram. Nossa primeira batalha é derrotar a

tristeza.

- Miro tem razão! Herdamos dos nossos pais a força parasuperar tragédias, para nos tornarmos seus maiores legados. Há umaexplicação simples para a mudança de comportamento da Sarah. Ela

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 chegou em casa ao choro por ter terminado com você. Ouvi quandodesabafou com a Sandy. Ela está se sentindo culpada pelo queaconteceu, por ser filha do assassino. Afirmou não se sentir digna deconviver mais com você e Miro.

- Mas ela é tão vítima da situação quanto nós. – disse Miro –  Nem por um instante associei meu sofrimento ao fato dela ser filhadaquele carrasco.

- Então é isso... Vou falar com ela.

- Filipe, dê um tempo para ela poder refletir. Nesse momento,nada que disser vai adiantar, pois Sarah está convicta de sua culpa.Agora, a tia dela que compareceu à missa de sétimo dia, essa sim temculpa por omissão.

- Na igreja, Sarah evitou falar com Marta, chegando a se sentar  bem distante dela. - observou Miro

- Não estou autorizado a contar a vocês, porém, éimprescindível saberem, mesmo que a Sandy venha a se aborrecer 

comigo, pois ela pediu sigilo.

- Necessitamos de qualquer informação para juntos agirmos. – disse Filipe

- Marta descobriu que Frederico era o torturador conhecido pelo apelido de Carvão do Demo e escondeu isso por todos essesanos. Bastava o conhecimento desse fato para desarticular o plano

sinistro, elaborado minuciosamente por aquele verme. Ela justificousua omissão por viver sob as ameaças do próprio irmão.

- Então era ele o Carvão do Demo! Maldito!

- Essa Marta é mesmo uma ordinária. Esperou se abater adesgraça para depois contar o que sempre soube - indignou-se Miro

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- Foi o Carvão do Demo quem torturou o meu pai, deixando-oimpotente, acreditando que assim, finalmente, conseguiria separá-lode Inês.

- A priori, Frederico pretendia capturar a Inês e mantê-la numcativeiro, ou seja, naquele porão assombroso. Por causa do câncer de próstata em estado terminal, foi obrigado a alterar seus planos.Adivinhem em quem ele se inspirava para elaborar seus planossatânicos?

- No Pastor das Trevas – respondeu Miro.

- Exato... Seu velho professor de torturas que era para ele umícone. E já havia praticado essa mesma perversidade com a suaesposa, por muitos anos.

- Esse fato comprova a minha tese, o Carvão do Demo não agiusozinho. Houve a participação do Pastor das Trevas. - disse Miro

- Alguns jornais publicaram que há possibilidade de Fredericoter sido o Pastor das Trevas. Discordei de imediato, pois fui uma das

vítimas dele a sair com vida. Tal codinome surgiu nas sessões detortura. Ele lia os folhetos com passagens da bíblia, chegando adistribuir entre suas vítimas. Inclusive eu recebi das mãos dele apóster torturado os meus pais.

- Aos quatro anos de idade é pouco provável que você consigarecordar a fisionomia dele?

- Miro, se eu tivesse visto o rosto dele jamais me esqueceria. Aquestão é que na época ele já usava um capuz escuro.

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 - Não é à toa que desconhecemos a verdadeira identidade do

Pastor das Trevas mesmo depois de tantos anos. Até nisso o Carvãodo Demo seguiu os passos do seu professor. - disse Filipe

- É excelente deixar a opinião pública acreditar que o Pastor das Trevas suicidou-se. Assim, ele se sentirá seguro, facilitandonossa caçada. - disse Miro

- É uma satisfação, uma honra, um dever à humanidade,eliminar esse monstro da face da terra. - disse Filipe

- Há duas pessoas que não podem ficar de fora dessa reunião:capitão Uchôa e o tenente Ismael Nunes.

Em seguida, Miro telefonou pedindo que ambos viessem aoapartamento do Filipe para um torneio de xadrez. Passaram horastrocando informações e traçando uma linha de investigação que fosseeficaz e extremamente discreta. O fator surpresa era o mais preciso para capturá-lo. Apenas um erro poderia por fim àquela operação.

Decorrido três dias, Eduardo encontra uma carta ao chegar a

seu apartamento. Nela, Sandy explicava as razões pelas quais Sarah eela viajavam para Austrália. Em seguida, ele foi ao bar onde estavamreunidos: capitão Uchôa, Ismael, Filipe, Miro e lhes falou o conteúdoda carta.

Havia algum tempo que Leonardo os observava.

- Há quase uma hora aquele rapaz lá fora nos espreita – 

comentou Ismael.

- É o Leonardo, um ex-vizinho de Ipanema. - respondeu Miro

- Ele andou sumido desde que seu pai o expulsou de casa. -disse Filipe

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- A noite passada ele dormiu no banco da praça. - contoucapitão Uchôa.

Filipe foi até ele e o trouxe à mesa. Ofereceu-lhe uma bebida.

Miro demonstrou-se intolerante com a sua presença.

- Não se preocupe, Miro, só aceitei o convite do Filipe, porqueme sinto na obrigação de lhes revelar algo importante. Tanto é queme fez vir de Santa Catarina até o Rio de Janeiro.

- Esse gesto nobre não combina nada com você, Leonardo. Dizlogo e some daqui.

- Miro, que grosseria é essa? – repreendeu Filipe.

- É a mesma do dia que fui ao seu apartamento alertá-lo sobre o perigo que rondava em torno de vocês. Se tivesse me ouvido... Essatragédia teria sido evitada.

- Do que está falando?

- Da execução do seu pai... E do Vicente, pessoas às quais eutinha uma profunda admiração e carinho. Fiquei arrasado com amorte deles, inclusive com a morte da mãe de Sarah a qual não tiveoportunidade de conhecer. Como só tinha dinheiro para vir de ônibusao Rio de Janeiro, perdi o enterro deles. Ao menos deu para assistir àmissa de sétimo dia.

- Meu jovem, vá direto ao assunto relevante. – interrompeu

capitão Uchôa – O que soube que poderia ter evitado essa tragédia?

- Depois do desentendimento que tive com Miro, a galera meabandonou. Na minha solidão pude finalmente analisar a vida fútilque eu levava. Nisso, um moto-boy de pizza me chamou a atenção.

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 Ele parava sempre a uns cinco metros do quiosque do Frederico,observando o movimento de pessoas que ali frequentavam e tambémo edifício onde morávamos. O estranho mesmo é que ele jamaistirava o capacete. Num lugar que faz calor de no mínimo 40 graus.

As duas vezes que me aproximei dele como quem não queria nada,fugiu. Se eu insistisse mais uma vez naquela tática iria afugentá-lo pra sempre. Preparei-me com minha moto, aguardando-o chegar esem que desconfiasse o segui. Parou num bar luxuoso no Leblon,entrou, e eu também, escondendo-me atrás dos garçons. Quandoaquele moto-boy tirou o capacete, mesmo distante, não tive dúvida,era o Frederico. Apesar de estar muito magro não demonstravanenhum abatimento de quem estivesse com câncer de próstata noestado terminal da doença. Pelo contrário, estava numa alegria quenunca vi antes. Bebia bastante, falava alto, ria constantemente,sentado à mesa com um homem. À noite, através dos telejornaistomei conhecimento daquele homem. Era um banqueiro de jogo do bicho e ex-agente de repressão política. Mais conhecido pelo apelidode Zé Gavião. Fora assassinado misteriosamente em seu apartamentologo após sair do bar.

Todos ficaram surpreendidos com os fatos revelados. Dava um

novo rumo às investigações. As evidências indicavam um mentor intelectual daqueles crimes. Frederico fora apenas uma peçaimportante. Muito bem utilizada por ele no seu intento satânico.

Leonardo deu seus mais sinceros pêsames ao Miro e Filipe,retirando-se do bar.

- Esse rapaz só veio confirmar a minha suspeita de que o

verdadeiro responsável pelos crimes é o Pastor das Trevas. -comentou Ismael - Na ocasião em que ele me torturou, mencionouter uma lista de pessoas a serem aniquiladas por ele, levasse o tempoque fosse. Cheguei a comentar com Vicente e Celso. Eles medisseram que não fazia mais sentido se preocupar com isso, pois ostempos eram outros. Tentei convencê-los que não era paranoia, e simuma iminência. Infelizmente não os convenci.

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- O Pastor das Trevas é mais maquiavélico do que se pensava. – analisou capitão Uchôa – Conheço o delegado que estáinvestigando o assassinato do Zé Gavião, vou saber o que já foiapurado.

- E eu vou saber tudo sobre o médico oncologista de Frederico. – avisou Miro – Só não será possível fazer uma necropsia, uma vezque o corpo foi cremado.

- E eu vou até a casa da Marta, descobrir o que mais deimportante ela sabe e ainda não contou.

- Irei com você, Filipe – disse Ismael.

- Leonardo deve estar na pior para dormir num banco de praça. – comentou Eduardo – Vou convidá-lo para dormir em meuapartamento... Deve estar por perto.

 No dia seguinte, na casa de Marta, ela se preparava para sair quando chegaram Filipe e Ismael. Ambos a pressionaram a fim deextrair o restante de toda a verdade.

- Tudo que eu sabia, contei a minha sobrinha. Não há motivo para vocês duvidarem de mim. É um absurdo pensarem que sei quemé o Pastor das Trevas. Posso avaliar o quanto sofreu, Ismael.Acredite, sofri por sua dor...

- Marta! Não vim aqui à procura de sua compaixão!

- Ninguém é capaz de analisar o tormento que eu vivi essesanos todos... Coagida por meu próprio irmão.

- Marta, por que optou por cremar o corpo de Frederico? –  perguntou Filipe.

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 - Ele me fez jurar por meus pais que o cremaria. As cinzas, eu

 joguei num lugar adequado... Numa lixeira a céu aberto.

- Quando Frederico comprou aquela casa, e a quem? -

 perguntou Ismael

- Há seis anos, a um médico chamado Marcos Brandão.

- Você pode nos levar até essa casa para que possamos procurar uma pista que nos leve ao Pastor das Trevas?

- Claro que posso, Ismael, porém, não devemos ser vistosentrando na casa, porque vai chamar a atenção dos vizinhos curiososque insistem em conhecer o porão dos horrores.

Filipe não teve coragem de chegar perto do quarto que era deFrederico. Procurou por pistas nos outros compartimentos da casa.Ismael fora até o porão, não conseguindo impedir que as terríveislembranças viessem à tona. Dia após dia, sendo torturado ali mesmo.Conter seu choro tornou-se impossível. Marta previra que isso iriaacontecer e, contrariando o pedido de Ismael em deixá-lo sozinho no

 porão, desceu minutos depois. Ela o envolveu em seus braços comouma criança recém-nascida. Orou a Deus, que lhe repassasse todotrauma que afligia aquele homem. E subitamente a luz do porãoapagou-se voltando a acender alguns segundos depois. Com isso,aquela sensação de pavor incontrolável que o dominava se foi. Marta passou as mãos sobre o rosto dele, molhado de lágrimas e suor, beijando-lhe os lábios.

- Durante todos esses anos não houve um dia sequer que eu não pensasse em você... Ismael. Posso até aceitar que não queira me amar mais, porém, nunca o seu ódio, por um erro que não cometi.

Finalmente ele pode notar a intensidade do brilho dos olhosdela. Que refletia a mais pura verdade, trazendo-lhe uma luz em suavida, a esperança de ser feliz.

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- Esse lugar tenebroso foi um dos locais em que fui seviciado.Ao chegar aqui, após terem me desvendado, perguntei-lhes: “ondeestou?” Uma voz sóbria, vindo dali, respondeu-me: “aqui é o infernoe eu sou o Pastor das Trevas”. Aquela mesma vitrola tocava hinos

evangélicos num volume altíssimo a fim de encobrir os nossosgritos...

- Quando Vicente esteve nesta casa com Celso, ele pressentiuforças malignas pairando... Fiquei tão impressionada que após elesterem ido embora joguei água benta por toda casa. Exceto no quartodo Frederico que sempre o mantinha fechado desde quando veiomorar aqui.

- Vicente e Inês já haviam sido torturados aqui... Por elemesmo. Sua personalidade sádica era sua marca registrada. Por issofez questão de comprar esta casa.

À noite, reuniram-se na casa do capitão Uchôa. Trocaraminformações do que já havia sido apurado ao longo daquele dia.

- Estive com o delegado que investiga o assassinato do Zé

Gavião. O principal suspeito é um moto-boy de pizza que esteve noapartamento na hora do crime. Estão tentando localizá-lo.

- Capitão Uchôa, é óbvio que o senhor não comentou nada aodelegado...

-... Não sou nenhum imbecil, Ismael. Em hipótese algumadevemos cometer erros em nossa caçada ao maldito Pastor das

Trevas.

- A moto que Frederico usava está na garagem - contou Filipe -Tivemos que arrombar a fechadura do portão da garagem para entrar,Marta não tinha a chave.

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 - Aquela casa pertencia ao médico legista, Marcos Brandão,

um dos que emitia laudos falsos.

- Ismael, você apurou quando foi comprada aquela casa? – 

 perguntou Miro.

- Sim. Há seis anos!

- Então Marcos Brandão está no Brasil. Foi ele quem emitiu olaudo falso da minha mãe. Achei que estivesse morando no exterior.O médico de Frederico chama-se Flávio Almeida e foi intimadovárias vezes pelo conselho regional de medicina. E numa dessasvezes, justamente por dar um parecer falso a um dos seus pacientes afim de que fosse aposentado. Só há um jeito de ele nos contar averdade, se fizermos chantagem. Uma boa microcâmera escondidanuma pessoa com talento para ser bem convincente a ponto deenganá-lo, fazendo-o crer que deseja pagar por um atestado falso oualgo parecido.

- Deixe isso por minha conta – disse Eduardo – Só precisosaber em qual hospital ele trabalha.

- Não resta dúvida, você é a pessoa mais preparada para essatarefa. Agora mudando de assunto, aquele sujeito ainda está em seuapartamento?

- Miro, aquele sujeito não tem para onde ir, está na pior. Tiveque insistir muito para o Leonardo aceitar ficar no meu apartamento.E ele saiu cedo para procurar emprego. Esse é o maior sinal de sua

mudança.

- É difícil acreditar nessa repentina mudança do Leonardo.Digo isso porque conheço bem sua mentalidade.

- Qual a razão de não acreditar em tal mudança, Miro? – Questionou Filipe – Leonardo veio lá de Santa Catarina somente para

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nos ajudar a elucidar esses crimes. O mínimo que podemos fazer  para retribuir o gesto nobre dele é acolhê-lo.

- Se ele está mesmo disposto a trabalhar, há uma vaga no

edifício no qual o pai dele é síndico. O porteiro que entrou no lugar do Eduardo pediu as contas. Como eu sei que Leonardo não temnenhuma qualificação profissional, é um ótimo começo.

- Se foi bom para mim, pode ser perfeitamente bom para oLeonardo! Hoje mesmo vou falar com ele sobre a sua sugestão, Miro.Acho que o mais difícil vai ser convencer o senhor Bertolucci a lhedar o emprego de porteiro.

 No dia seguinte, Marta procurou Ismael na Praça dos Paraíbas.Ele jogava xadrez com capitão Uchôa. Ao chegar, de imediatoentregou-lhe um papel.

- Vasculhando as minhas coisas, encontrei essa antiga contatelefônica da minha casa. Eu e minhas filhas não conhecemosninguém em Petrópolis. Lembrei-me que Frederico fez algumasligações daquele aparelho. Esses números telefônicos são da

residência do médico Marcos Brandão. Por enquanto foi tudo o queeu pude descobrir. Tenho quer ir agora, minha filha menor está parachegar em casa e esqueceu-se de levar as suas chaves.

- Foi uma valiosa descoberta... Obrigado, Marta.

- Estou disposta a ajudar no que for preciso, Ismael. Tchau!

Assim que ela se foi, capitão Uchôa fitou Ismael.

- Por que está desperdiçando a chance de constituir uma famíliaao lado dessa mulher que te ama? Os olhos dela brilharam de amor ao vê-lo. Por isso se deu o trabalho de vir de tão longe. Foi notável a

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 decepção dela por você sequer ter se levantado para cumprimentá-la.Perdeu também o cavalheirismo?

- O senhor pretende atormentar ainda mais a minha vida? Será

necessário repetir o tempo todo que minha virilidade foi brutalmenteesmaga pelo regime militar!

- Vicente era um grande homem como você é... E ele soubesuperar essa virilidade esmagada.

- Não sei fingir...

- Não se trata de fingir, mas de buscar a felicidade aceitando aslimitações que nos são impostas no curso de nossas vidas. Digo isso por experiência própria... No meu caso é ainda pior, nem posso fazer sexo, nem andar com minhas pernas. Deus me fez ver que aindaassim posso ser feliz.

- É difícil acreditar na existência de Deus depois de ter passado por tudo que passei.

- Ele acaba de lhe dar uma chance de ser feliz.

- O senhor não acha que é egoísmo da minha parte. Aceitar viver com a Marta sabendo as minhas limitações como homem?

- O amor que Marta sente por você é maior que uma relaçãosexual. É exatamente isso que ela está tentando lhe dizer, seu idiota.

- Lamento, mas o idiota aqui precisa deixá-lo por algumashoras. Sabichão!

- Não está pesando em ir sozinho a Petrópolis?

- Leu meus pensamentos! É mais prudente que a parte delicadadessa investigação eu mesmo faça, pois tenho bastante experiência.

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Além do mais, quero ter a honra de eliminar meu carrasco,cumprindo a promessa que fiz a mim mesmo.

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Capítulo 8

Ismael retornou três dias depois com fotos que havia tirado.Miro se apressou em abrir o envelope contendo as fotos.

- O homem desta foto estava no bar no Leblon no dia em queconversei com Zé Gavião, extraindo as informações para chegar aoarquivo secreto contendo a ficha de minha mãe, juntamente com asfotos do IML.

- Pensei que já conhecesse por fotos o médico legista MarcosBrandão - disse capitão Uchôa

- Não! Estava diante do Marcos Brandão e não me dei conta.

- E isso foi um erro imperdoável.

- Sem dúvida que foi, Ismael. Não se repetirá.

- Assim espero, para sua própria segurança.

- Esta foto aqui é do ex-porteiro que substituiu o Eduardo. – disse Filipe

- Chama-se Mesquita, trabalha na casa do Marcos Brandão hámais de quinze anos – contou Ismael – É um faz tudo, principalmentematar. Ele se comportava com tanta naturalidade que não despertou

nem mesmo a minha desconfiança. Provavelmente, quando Vicente,Inês e Celso retornaram do réveillon, ele os rendeu e os algemou nagaragem do prédio, colocando-os em um carro, levando para a casado Carvão do Demo. Frederico pediu a Marta que o levasse à suacidade natal a fim de passar o réveillon, com o intuito de manter sua

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irmã afastada da casa. Sem que ela soubesse, retornou no mesmo diaao Rio de Janeiro.

- No instante que Ismael mostrou-me essas fotos. - disse

capitão Uchôa - De súbito veio em minha mente que o Pastor dasTrevas é o próprio Marcos Brandão.

- Com o que temos já investigado, é muito cedo para fazer talconjectura a respeito de quem se esconde por trás do codinomePastor das Trevas. – ponderou Ismael.

- Então essa é a casa de Petrópolis, local onde minha mãe foi presa e torturada pelo Pastor das Trevas. O Zé Gavião chegou adescrever com muita gozação os métodos selvagens aos quais ela foisubmetida.

- Provavelmente Zé Gavião foi executado como queima dearquivo, justamente por falar o que não devia nas ocasiões deembriaguez. Certamente alguém presenciou ele contar-lhe a respeitode sua mãe, Miro. Segundo você, o médico legista Marcos Brandãose encontrava no local, ele próprio pode ter ouvido ou mandado

alguém...

- Apesar de toda cautela que eu tive, não descarto essa possibilidade, Ismael. Porque o bar estava lotado, não dava parafocalizar a todos que se encontravam lá.

- A suspeita do capitão Uchôa de que Marcos Brandão possaser o Pastor das Trevas faz muito sentido. – disse Filipe – Ele

ordenou ao Carvão do Demo, Frederico, que assassinasse outro ex-aluno de torturas, Zé Gavião. Temia que ele o pusesse em risco,revelando sua verdadeira identidade à sociedade. Em seguida,comunicou ao ex-chefe da comissão geral de investigação, GeneralParanhos, as complicações que os arquivos secretos de repressão

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  política poderiam acarretar se fossem encontrados por seus inimigos.Ele, então, autorizou imediatamente que fossem incinerados. Não éconjectura, eu estava na casa do General Paranhos. Reunidos na salade visitas, ele, sua neta Olívia e eu. A empregada o avisou que um

velho amigo desejava lhe falar. Ele pediu licença e foi atender aotelefone no seu escritório. Obviamente se tratava de assuntosconfidenciais. De propósito, entornei café na minha camisa para poder ir ao banheiro, justamente próximo ao escritório. Escutei todaconversa.

- Filipe, o perfil do General Paranhos também se encaixa bemcom o do Pastor das Trevas.

- A hipótese apresentada por Miro faz mais sentido - opinouEduardo - Por um acaso já tocou no assunto com a Olívia sobre comoera o relacionamento da avó dela com o General Paranhos?

- Claro! Olívia simplesmente odeia falar sobre seu passado oude sua família. Disse ser normal, porém, quando sua avó faleceu, elaera uma menina.

- Aqui está a fita gravada – disse Eduardo – que compromete acarreira do médico Flávio Almeida. Apresentei-me como um ricaçodisposto a pagar uma quantia faraônica em dinheiro por umtransplante de rins para minha filhinha. Na mesma hora ele deu seu preço, dizendo que num país com milhares de mendigos, são fáceisos transplantes, difíceis são os doadores financeiros. E como já seesperava, confirmou que o Frederico Mirando jamais teve câncer de próstata, era de uma saúde invejável. Conheceu Frederico por acaso,

sempre que terminava sua ginástica matinal bebia água de coco noquiosque. Ele achava que eu fosse da polícia, porque soube dasmortes através da imprensa. Tamanho era o desespero dele a pontode insinuar pagar-me suborno a fim de que o nome dele não fosseenvolvido.

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Toca o telefone, após capitão Uchôa atender, conta que eraMarta, avisando um incêndio criminoso na casa do Frederico.Destruiu tudo, inclusive a moto.

Agora ficara claro que o Pastor das Trevas estava por perto ehavia se precavido do Frederico ter deixado alguma pista que levassea ele. Os jornais noticiaram o incêndio. Alguns deram a versão que possivelmente teria sido cometido por algum dos familiares dasvítimas do regime militar. Indignados por o governo federal não ter feito nenhuma reparação. Outros deram a versão que teria sido asforças armadas. Numa demonstração de poder. Com intuito de inibir ações de qualquer natureza contra membros do golpe militar.

Ismael, de forma discreta, tenta extrair do Filipe tudo a respeitoda vida do General Teófilo Fontes. Mencionou que é viúvo há muitosanos, teve duas filhas, ambas não moram com ele. Reside sozinhonuma elegante casa no bairro de São Conrado. Seus passatempos prediletos são: ler a bíblia, ouvir música, e cozinhar.

Após responder todas as perguntas, Filipe ciente que pesavasobre o General Fontes a desconfiança de ser o Pastor das Trevas,

iniciou esclarecimentos para derrubar aquela hipótese. Argumentouque o mesmo participou de várias missões de paz da ONU em paísesda África. Coincidindo com o período do apogeu do regime militar  brasileiro.

Aparentemente, Ismael se deu por satisfeito aceitando,descartando a possibilidade do nome inquirido ser o algoz emquestão. Porém, justamente naquele bairro funcionava a temida casa

de São Conrado mais um local de torturas do regime militar.

 Novamente capitão Uchôa atende ao telefone, falando por alguns minutos num tom de voz baixa. Algo bem incomum paraquem normalmente fala alto. Somente quando desligou notou a

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 mancada. Apressou-se em dizer que era o síndico do prédio avisandouma manutenção nos elevadores na manhã seguinte. Demonstroucerta irritação por sua carteira de cigarros ter acabado. Pediu aoFilipe o favor de ir comprar. Assim que ele saiu, capitão Uchôa fala o

verdadeiro teor da conversa ao telefone. Fora confirmado que o talgeneral Teófilo Fontes era o pai de Cleonice, mãe do Filipe. Tudoentão passou a fazer sentido, principalmente o juramento do Pastor das Trevas de aniquilá-los mesmo após o regime militar. Ismael diz:

- Chegada a hora de agir.

E essa é a opinião dos demais. Todos estavam ansiosos para sevingar. Deixam tudo preparado para agir assim que amanhecesse.Filipe ao retornar, encontrou-os falando de futebol, causando-lhecerta desconfiança.

 No outro dia, por volta das nove horas da manhã, Filipe vai aoapartamento do capitão Uchôa, achando que fosse encontrar Ismael,Miro e Eduardo.

- Num domingo ensolarado eles só podem estar na praia. Se

não fosse essa cadeira de rodas não sairia de lá.

- Nem me chamaram... Que falta de consideração.

- O xadrez já está arrumado, vamos jogar?

Sentou-se, iniciando a partida, porém, notou seu adversário umtanto inquieto.

Enquanto isso no bairro de São Conrado, os três armados de pistolas e muita munição estudavam a ocasião perfeita para invadir acasa do General Fontes. Ao abrir o portão para por fora o lixo, foirendido por eles. Imediatamente arrastaram-no para o interior da casa.A ação levou menos de dez segundos, evitando que fossem vistos.

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Ismael certificou-se de que não houvesse mais ninguém na casa.Enquanto isso, Miro e Eduardo o amarravam com cordas a umacadeira na sala de visitas.

- Não há dúvida alguma... Aqui é a casa de São Conrado! Avista da varanda se dá de frente para o hotel Continental. Tudo aqui éexatamente como a companheira Inês descreveu. Só está diferente pelo aspecto luxuoso. Mas tinha que ser! O ilustre morador é o Pastor das Trevas. Hoje é o dia mais feliz da minha vida por reencontrá-lo,sem o capuz de outrora.

- Isso é um absurdo! Qual foi o desatino que fez você imaginar eu ser o Pastor das Trevas?

- Tudo! Há muitos anos ando em seu rastro, foi difícil descobri-lo, mas consegui. Hoje é o dia de acertar contas.

- A vingança é algo diabólico, pois cega, levando a cometer injustiças.

- Em que parte da bíblia menciona essa passagem?

Ismael silencia-se ao avistar sobre a estante uma bíblia. Apósapanhá-la, abre onde está marcado com folhetos de passagens bíblicas. Retirando-os joga na cara dele com fúria.

- Aqui está a prova... Seu verme!

Tira do próprio bolso um folheto bem antigo, pondo na boca do

General Fontes, apontando a pistola para a cabeça dele.

- Coma! Guardei por anos esse folheto!

 Não se amedronta, cuspindo o papel.

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 - Atire, carrasco!

- Será que ouvi direito... O Pastor das Trevas me xingou decarrasco, indignado. Isso chega a ser hilário. Não vou atirar em sua

cabeça... Isso é muito pouco por tudo que fez. Nós decidimosincendiá-lo juntamente com essa casa.

- Com base em folhetos bíblicos sentencia-me à morte!Praticamente em todo o período do regime militar, eu me encontravaem países da África em missões de paz da ONU. Como eu poderiaestar lá e aqui ao mesmo tempo?

- Esse argumento foi o suficiente para convencer seu neto, masnão a nós!

- Meu neto?

- Também vai negar ser o pai da jovem Cleonice? Falecida por não ter sido levada ao hospital.

 Não responde, simplesmente abaixa a cabeça diante de um

choro silencioso. Os três precisavam ter certeza absoluta paraexecutá-lo. Seu comportamento despertava dúvidas sobre ele ser, defato, o algoz e professor de técnicas avançadas de torturas. E issoirritou Ismael, pois cabia a ele interrogá-lo com o objetivo de surgir contradições levando-o a se incriminar.

- Os vermes também choram!

- Como posso negar se o que mais me orgulha é ser o pai daCleonice e da Clara.

- É tanto orgulho a ponto de não ter ido ao enterro dela!

- Todos nós estamos sujeitos a erros. Esse foi um dos maioresque já cometi. O maior foi expulsá-la de casa após tomar 

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conhecimento da sua gravidez. Na época, senti-me indignado, poisela havia traído minha confiança. A sua morte foi a minha punição.

- Indiretamente você a matou, pois era parte da mão de ferro

que governou esse país.

- Jamais fiz parte dessa corja que manchou o nome das nossasforças armadas.

- Seu cínico! O bar que você frequenta no Leblon é o daconfraria de algozes. Por duas vezes o vi entrar lá acompanhado doGeneral Paranhos.

-Meu Deus! Somente agora me veio o discernimento. As peçasse encaixam perfeitamente, dando a entender que eu seja o Pastor dasTrevas. Tudo não passa de uma armação sórdida.

- Sua mente é brilhante na tentativa vã de se livrar da morte. Irános proporcionar imenso prazer em assistir o seu corpo em chamas.

- Em primeiro lugar, jamais consumi bebida alcoólica e em

segundo, nenhum daqueles são meus amigos, nem mesmo o generalParanhos. Porém, a pedido dele com muita insistência o fizcompanhia naquele bar em seis ocasiões, não mais.

- Qual das coisas faz melhor, mentir ou torturar?

- Essa casa me foi oferecida pelo general Paranhos assim quevim morar no Rio de Janeiro. Cujo proprietário era o médico legista

Marcos Brandão. Sequer cogitei que aqui fosse um dos locaissecretos do regime militar com fins de prisão e torturas.

Os argumentos do general Fontes eram convincentes,impedindo o início da ação de vingança. Ismael, então, optou por 

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 encontrar provas que realmente o incriminassem. Pediu a Miro eEduardo que fizessem essa busca por toda casa. No apartamento docapitão Uchôa toca a campainha. Filipe ao abrir a porta se surpreendeao se deparar com a Sandy.

- Quando voltaram?

- Não fomos para Austrália. Foi preciso inventar isso para nosafastarmos sem muitas perguntas.

- Onde está a Sarah?

- A essa hora, embarcando num avião em Natal com destino aoRio de Janeiro.

Filipe ao olhar o capitão Uchôa percebeu algo acontecendofora do seu conhecimento.

- Obviamente o senhor pode explicar-me a ida da Sarah acapital do Rio Grande do Norte.

- Posso! Colher informações a respeito da família da Cleonice,em particular do pai dela. Ontem à noite a Sarah telefonou-meconfirmando as minhas suspeitas, o General Teófilo Fontes é, de fato,o seu avô.

Tal notícia o deixou abismado, foram necessários algunsminutos até iniciar suas indagações.

- Por isso era tão generoso e atencioso comigo. Há possibilidade de ele ser o Pastor das Trevas?

- Analise os fatos e responda-me você mesmo!

- O que realmente o Ismael, Miro e Eduardo foram fazer?Sabem onde é a casa dele?

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- Há algum tempo, Ismael vem o seguindo. Se tudo ocorreu nosconformes. Temos um bom motivo para comemorar. A humanidadese livrou de pelo menos um monstro de alta periculosidade.

- Minha intuição me diz que ele não mentiu... Estava fora doBrasil em missão de paz da ONU. Ninguém pode estar em doislugares ao mesmo tempo.

Antes mesmo que o capitão Uchôa contrariasse sua opinião, foicorrendo à garagem, saindo em alta velocidade no seu carro. Surgeum clima de bastante apreensão na casa do general Fontes ao tocar acampainha. Mas ele se apressou em dizer que estava aguardando suafilha. Eduardo verifica da janela de um dos quartos, constando ser apenas uma freira com uma mala pequena. Ele então enfatiza: “é aClara, minha filha caçula”. Miro, então, vai abrir o portão,escondendo a pistola por dentro de sua calça. Ele a recebe com umsorriso cordial.

- Bom dia! A senhora deve ser a Irmã Clara?

- Bom dia! Clara é o meu nome de batismo. Sou a Irmã Maria,

e você é?

- Meu avô é amigo do seu pai... Estão jogando xadrez, por issovim abrir o portão.

- Quando meu pai joga xadrez se esquece do mundo!

- Meu avô também!

Miro, antes de fechar o portão, de maneira discreta, certifica-sede que ela está realmente sozinha. E só assim se oferece para levar amala. Ela se dirigiu à sala de visitas com imensa alegria. Seu rosto sedesfigurou de pavor ao ver seu pai amarrado a uma cadeira com uma

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 arma apontada para sua cabeça. As suas pernas não se moviam, petrificada. A boca articulava, mas não havia sonoridade nas palavras.Os olhos se inundaram, mas não corriam as lágrimas. Permaneceusem esboçar reação alguma. Eduardo traz do quarto um gravador 

 portátil com uma fita cassete dentro. Liga a uma tomada,aumentando o volume. Deixa tocar apenas uma parte, mudando paraa próxima faixa, seguindo assim até a última. Eram os mesmos hinosevangélicos tocados pelo Pastor das Trevas, concomitantemente àssessões de torturas. Ismael é tomado por uma fúria assassina,aplicando socos no rosto e com a outra mão dando coronhadas de pistola na cabeça do general Fontes. Ao som do último hino quecontinuou tocando. A freira assiste as cenas de selvageriaderramando as lágrimas. Suas palavras ganhavam sonoridade,surgindo assim a canção da oração de São Francisco. Na medida emque cantava sua voz ficava mais forte a ponto de cobrir o som dohino. E subitamente o gravador explode para espanto dos três, principalmente de Ismael que para de bater. Passa a vislumbrar sua presença. Suas pernas ganham movimentos, indo até o Ismael.Termina a canção pondo as mãos sobre o coração dele.Instantaneamente sente um choque fortíssimo, deixando sua armacair. Começa a se tremer como se tivesse sendo eletrocutado. Miro,

mesmo assombrado, tenta segurá-lo achando que fosse desmaiar. Eao tocar em seu braço esquerdo, sente suas mãos queimarem, gritaafastando-se de imediato. E o mesmo acontece com o Eduardo aotentar apanhar a pistola que caíra no chão. Assim que ela retira asmãos, cessa a tremedeira e ele cai ajoelhado. A freira o ajuda alevantar dizendo: “regozije varão! Jesus operou-lhe... Você estácurado!”. Aquela experiência a qual foi submetido o deixara perplexo e ao mesmo tempo envergonhado por ter agido

arbitrariamente, agredindo o general com violência. Sequer conseguia olhar para o general Fontes. Foi embora sem dizer nada.Os três foram libertados do sentimento de vingança. Miro e Eduardo permaneceram. No mínimo as sinceras desculpas se faziamobrigatórias, só não sabiam por onde começar.

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Filipe acabara de descer do carro quando Ismael abrira o portão para ir embora. E sua expressão dava a entender que uma tragédiaacontecera. Não se deu o trabalho de fazer perguntas.

Ao entrar na sala de visitas encontra a freira abraçando ogeneral Fontes, bastante machucado. A arma do Ismael permaneciano chão. Miro e Eduardo o desamarravam da cadeira. Filipe seaproximou tirando do bolso um lenço. Limpou suavemente seu rostosujo de sangue. Era visível sua tristeza por vê-lo naquele estado. Issodemonstrava mais que respeito, era afeição. O pai e a filhaemocionaram-se com aquele gesto familiar, de zelo por quem se ama.Eles sonhavam com a possibilidade de um dia o filho de Cleonice osaceitar como família. Depois de esperar longos anos, tornara-serealidade.

- Há alguma coisa que eu posso fazer para amenizar esseterrível engano?

- Sim! Almoce comigo e minha filha Clara.

- Seria uma grosseria não aceitar o convite.

- Ótimo! Quanto a vocês dois, eu não vou pedir que fique paraalmoçar... Eu exijo! E não precisam ficar com receio, não vou servir-lhes comida envenenada.

Miro e Eduardo recusaram, não se sentiam dignos de talconvite. Mas a postura benevolente daquele homem os ensinou que é possível perdoar em qualquer circunstância. Deram-se conta que o

sentimento de vingança já não habitava os seus corações e a razãoera óbvia.

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 Epílogo

Ismael, ao chegar à Praça dos Paraíbas, entra na igreja e rezaajoelhado “O PAI NOSSO” pela primeira vez depois do golpe militar.A última vez que tinha rezado foi no dia da morte de Cleonice. Emseguida, vai ao apartamento do capitão Uchôa. E diante de seu velhoamigo, da Sandy e da Sarah que acabara de chegar de viagem, contaem detalhes tudo o que acontecera. Confessa não ter mais sede devingança, mas de justiça. Pediu licença para usar o telefone. E ligou para casa do general Fontes, o próprio atendeu. Identificou-se

 perguntando: ”o senhor pode perdoar o homem insano que o agrediucovardemente?” Num tom sereno respondeu-lhe: “filho, aquele quenão dá o perdão não encontra a salvação”. Ele ainda fez questão defalar com o capitão Uchôa, convidando-o a uma partida de xadrez.

De volta a Copacabana, Filipe reencontra a Sarah noapartamento. Deitada na cama lendo infinitos documentos daditadura. Ela explica que jamais poderia viver com ele sabendo que

era filha do assassino. Por isso se escondera na casa da dona Lígiacom a Sandy a fim de poder fazer uma investigação paralela. Nãoqueria provar a inocência do Frederico, apenas que ele não haviamatado Celso, Vicente e Inês. Ela estava confiante que iria conseguir.

Para o Filipe só o que importava era ela ter retornado. Por issonão resistiu ao impulso de interrompê-la com um beijo, envolvendo-aem seus braços.

Eduardo não teve o mesmo reencontro com a Sandy. Ela oaguardara chegar, na sala de visitas com as malas prontas. E antesmesmo de ele falar algo, pediu-lhe que não interpretasse uma cena dehomem abandonado. Dessa vez, estava saindo definitivamente peloato de traição. Ela ainda fez questão de mencionar o nome da mulher que ele havia levado àquele apartamento. A porta do quarto

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entreaberta permitira ver e ouvir perfeitamente. Ao sair do prédio,encontrou-se com Miro chegando um tanto nervoso. Pergunta aondeela vai àquela hora da noite de malas. Ao saber, ele se oferece paralevá-la no seu carro ao seu destino, a casa da dona Lígia. Somente a

caminho toma conhecimento do motivo de mudar de endereço. Ele, por sua vez, responde que sua tristeza também fora causada por traição.

 Na casa do general Fontes, durante o almoço, ele comentouaspectos importantes. Um deles foi sobre o relacionamento entreOlívia e o general Paranhos. Era uma união perfeita de uma totalcumplicidade. Por isso advertira muito cuidado com a presença dela, pois com toda certeza estava de conluio com seu avô. Infiltrou-se afim de espionar todos os passos que dessem.

Miro aguardou Olívia sair da universidade e a seguiu de carroaté o Leblon. Assim que ela estacionou o carro, Leonardo a recebeu beijando-a e abraçando. Entraram num edifício luxuoso. Miroconfirmou com um dos porteiros que a senhorita Olívia Paranhos era proprietária de um dos apartamentos. Não muito distante dali ficavao edifício onde morava Zé Gavião. E no outro quarteirão, o bar que

frequentava juntamente com a sua corja.

Sandy não se mostra surpresa, dizendo que já sabia disso e demuito mais. Há algum tempo vinha investigando em parceria com aSarah, a Olívia. No dia do réveillon quando todos estavam norestaurante, Inês, Vicente e Celso se despediram indo embora. Olíviase apressou em pedir licença para ir ao toalete, pois estava apertada.Entretanto, primeiro dirigiu-se ao caixa e de lá telefonou por alguns

minutos, só depois foi fazer suas necessidades fisiológicas. Mesmo bastante descontraída como os demais, Sandy foi a única a notar talatitude suspeita, comentando com Sarah no dia do enterro. E dessedia em diante passaram a segui-la, chegando até o apartamento doLeblon. Leonardo ia lá com frequência há anos. O período que

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 dissera passar em Santa Catarina participando de um campeonato desurf era mentira. Estava naquele apartamento. Denotava-se assim queele também tomara parte no plano de assassinar Inês, Vicente e Celso.

Em Ipanema, continuaram a conversar bebendo num bar por algumas horas. E depois foram se deitar na areia da praia, lembrandocomo se conheceram. Miro confessou-lhe ter ficado interessado emconquistá-la. Não sabia como, pois seu inglês se resumia a algumasfrases feitas. E sem querer acabou dando a oportunidade ao Eduardo.Ela sorriu debruçando-se no peito dele, beijando-o intensamente. Não foi uma atitude precipitada movida pela traição. Sentiram quetinham muito em comum.

 No dia seguinte, Sarah foi ao quiosque acompanhada do Filipe.Agradecer a sua tia por ter assumido por iniciativa própria oquiosque. Demonstrou com um abraço carinhoso não estar maismagoada com ela. Só depois disso os dois foram notar que a Martatinha Ismael como seu novo ajudante. A ausência de vingança no seuâmago o deixara um homem bem humorado e muito feliz ao lado damulher amada.

Um homem de chapéu de palha, vendedor de água erefrigerante, põe sua caixa de isopor em cima de uma das mesas,olhando-os, aguardando que viessem até ele.

Ismael logo o reconheceu. Tratava-se de um dos comparsas deFrederico nos assaltos a banco.

- O que deseja aqui, Pepe?

- Ainda está vivo, companheiro! Frederico havia me dito quevocê morrera atropelado. O sorriso irônico daquele homem revelavaagora a autoria do atentado contra Ismael. Ainda assim permaneceutranquilo.

- Jamais fomos companheiros!

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- E como não, ambos assaltamos bancos. Lembra?

- Por questões diferentes. O nosso dinheiro não era para uso próprio, e sim para a causa revolucionária.

- Tudo bem. Não vim aqui discutir isso. Apenas dar um recado póstumo à filha dele. Sempre honro um favor a um amigo. Se hojeestou livre da penitenciária devo isso ao Frederico. Foi ele quem pagou o advogado.

- Estou aqui, pode falar! – disse Sarah.

- Ele me contou que estava prestes a ter Inês de volta. Aomesmo tempo, desconfiava que a pessoa que o ajudava pudesse traí-lo. Então, se ele morresse em qualquer circunstância. Eu deveria procurá-la e lembrá-la do cofre secreto dele que só você sabe ondefica.

- Esse recado chegou atrasado, não há mais cofre secreto. Aminha casa em São João de Meriti foi completamente destruída por um incêndio criminoso.

- Eu soube! A pessoa que traiu seu pai é muito poderosa.Poderia ter mandado vigiarem você. Por isso fiquei com medo de procurá-la antes. Após o homem ter ido embora, Sarah sorriudiscretamente. Dando a entender que ela havia mentido por questãode segurança. O tal cofre secreto era um buraco coberto por umacerâmica móvel, debaixo do freezer no quiosque. Local ondeFrederico costumava guardar dinheiro. Capitão Uchôa chegou de táxi

acompanhado do general Fontes. Os dois vinham da delegacia.Deram-lhes a notícia que o delegado responsável por investigar oassassinato do Zé Gavião já havia prendido o autor do crime, oLeonardo. A Olívia arquitetou o plano. Ele usou a moto do Frederico, passando-se por entregador de pizza. A vítima já o conhecia e o

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 recebeu em seu apartamento, achando que fosse algum recado dogeneral Paranhos.

Um oficial do governo procurou o general Fontes em sua casa.

Mencionou os nomes de Vicente, Celso, Inês e Susana como sendoos responsáveis pela morte de sua filha. Propôs uma parceria para juntos capturá-los. E os submeteriam a requintes de crueldade, a tal ponto de implorarem para morrer. A sua indignação foi porque ele oexpulsou de sua casa. Por essa razão elaborou um plano para que ogeneral Fontes fosse descoberto como sendo o Pastor das Trevas. ABíblia encontrada na estante e a fita cassete com hinos evangélicosforam presentes do general Paranhos. Levados na última vez que eleesteve lá para jogar xadrez. Lendo os jornais, tomou conhecimentode uma homenagem ao reitor Anderson Prado. A realizar-se noauditório da Universidade Federal do Rio de Janeiro no dia seguinte.O general Fontes o reconheceu como sendo o mesmo oficial dogoverno.

Anderson Prado, de família tradicional de militares, chegousem qualquer esforço à patente de capitão do exército juntamentecom seu primo e amigo Cícero Paranhos, avô de Olívia.

Sua maior ambição era se tornar um grande poeta, membro daAcademia Brasileira de Letras. Optou por dar baixa, ingressando nogrupo docente da Universidade Federal de Sergipe. Anos depois,torna-se reitor. E já nessa época, Vicente, Celso, Inês e Susana,faziam oposição a ele. Por sua postura déspota. Sua poesia fútil oridicularizava.

Ao não se reeleger reitor, perdendo para o pai do Eduardo,comportou-se com elegância, cumprimentando o seu adversário e as principais pessoas que o apoiaram. Dentre essas estavam Vicente,Celso, Inês e Susana. Em seguida, pediu seu afastamento do cargo de professor universitário. Passando a ministrar técnicas avançadas detorturas aos agentes de repressão. Alguns anos antes do término doregime militar, retornou a lecionar. Desta vez na Universidade

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Federal do Rio de Janeiro. Sua postura era outra e, novamente,tornou-se reitor. No primeiro período que Sarah cursava sociologia.Quando Vicente integrou-se ao corpo docente, ele fez a receptividade,enaltecendo sua capacidade e caráter. Simplesmente tinha

abandonado o jeito déspota de ser. Apresentava-se como um homemtolerante, modesto, disposto a ajudar sem medir escorços. Umexemplo de reitor competente. Era tão convincente a sua atuação queo próprio Vicente o elogiou ao Celso.

Sarah aproveitou a ocasião para ver o que seu pai haviadeixado. Retirou de lá uma pasta transparente bem enrolada a um plástico. O conteúdo era um álbum de fotos, e uma fita cassete naqual Frederico menciona em detalhes todo o plano de seu ex- professor Anderson Prado. Mais conhecido por seu codinome, oPastor das Trevas. O esquema combinado era incriminar o generalFontes como sendo o temido algoz. Os corpos de Vicente e Celsoseriam encontrados na antiga casa de São Conrado. Inêsdesapareceria sem deixar pista do seu paradeiro. Ela passaria a viver com Frederico, mantida presa no porão de sua casa. A desconfiançade ser traído surgiu quando lhe foi sugerido pedir a sua irmã quefosse cremado ao morrer. Alegou que daria mais veracidade a sua

doença de câncer de próstata.

 No álbum, fotos tiradas numa aula de seviciar. Um mendigoera usado como cobaia. Aqueles alunos se tornariam os mais temidose odiados torturadores do regime militar. De posse de provascontundentes, restava apenas desmascará-lo. A ocasião perfeita era odia da homenagem a ele. Organizada por professores e alunos. Com a participação de convidados ilustres da literatura brasileira.

O homenageado recebeu uma calorosa salva de palmas aochegar na companhia de Olívia. E nesse momento, Sarah se dirigiuao microfone, pedindo a atenção de todos. E falou que gostaria defazer um breve tributo ao professor Vicente Corrêa. Mas isso só seria

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  possível se o homenageado autorizasse. Mantendo seu estilo refinadode gentileza, concordou aplaudindo a iniciativa dela. Achou queapenas fosse proferir algumas palavras e nada mais. Não fazia ideiada cilada que acabara de cair. Só se deu conta quando ela pediu que

trouxesse o aparelho de slide. Miro e Filipe levaram-no, sendoacompanhados por dona Lígia, general Fontes, Clara, Eduardo,Ismael, Marta e Sandy. Eles permaneceram defronte a plateia, aolado esquerdo da Sarah. O capitão Uchôa se acomodou perto do palco.

 Na primeira foto exibida, foi o suficiente para provocar umaindignação coletiva. O homem que seria homenageado era quemministrava técnicas de torturas. Com um torniquete esmigalhava ostestículos de um mendigo. O seu sorriso satânico evidenciava seu prazer de aniquilação.

Sarah diz: “esse é o famoso Pastor das Trevas em ação semcapuz. Acho que não há necessidade de mencionar sua verdadeiraidentidade. Apesar de estar mais jovem, não há dúvida de tratar-se doreitor Anderson Prado”. Iniciaram-se os gritos chamando-o decarrasco por toda parte do auditório. Esse coro ficava mais forte a

cada foto apresentada. E quando começaram a jogar papel nele, nãoesperou mais. Saiu correndo com medo de ser linchado. Algunsalunos ainda tentaram capturá-lo, mas ele já tinha fugido no seu carroem altíssima velocidade. Olívia, achando que não tivesse sidodescoberta foi até o Miro. Tentou beijá-lo, mas ele a rejeitou, pegou-a pelo braço, levando-a até o microfone, falou: “algo muitoimportante não foi dito ainda. O Pastor das Trevas assassinoucruelmente Vicente, Inês e o meu pai, o Celso. Anderson Prado teve

apoio de seu primo o ex-chefe da Comissão Geral de Investigações,general Paranhos. E essa aqui, como todos já sabem, é sua neta... Eespiã. Coube a ela telefonar avisando o momento certo para capturar as vítimas.

 No instante que Miro soltou o braço da Olívia, Sarah acertou-lhe socos no rosto, derrubando-a no chão.

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 No dia seguinte pela manhã, sai em todos os jornais os nomesdos torturadores ao lado de suas respectivas fotos; uma delas ganhadestaque especial. A do reitor Anderson Prado, mais conhecido pelocodinome Pastor das Trevas. Esses mesmos jornais divulgam a fuga

de presos de uma delegacia no Leblon. Dos onze que escaparamapenas um foi morto cujo nome era Leonardo Bertolucci. O delegadoresponsável por investigar o assassinato de Zé Gavião foi exoneradodo cargo e advertido de não comentar informações pertinentes aocaso. Uma semana depois, mudou-se para Venezuela.

Mesmo os assassinatos de Vicente, Inês e Celso terem sidocometidos após o período do regime militar, não se beneficiando dalei de anistia que impossibilita os torturadores de serem julgados. Oex-reitor Anderson Prado sequer foi levado a julgamento. Essa erauma constatação do poder vigente dos tiranos golpistas deste país.

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