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RODOLPHO CANIATO Nossa ESCOLA quase INÚTIL

Nossa Escola Quase Inútil

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RODOLPHO CANIATO

Nossa

ESCOLAquase

INÚTIL

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ÍNDICEIntrodução .................................................................03“Antigamente é que a escola era boa” ..................06E no lugar da escola? .............................................10“Falá é só fôlego, fazê é que é sustança” ...............12Idéias e “tiriricas” ...................................................17Buscando as raízes das “tiriricas” .........................27Mão na massa............................................................31Usando cinco verbos..................................................36“Joãozinho da Maré” ..............................................40Desdobramentos e debates ......................................54Latitudes e Longitudes de uma cultura...................61Cultura e educação....................................................69Escola sem Educação.................................................73Fazendo de Fato.........................................................82Em Resumo..............................................................88Como melhorar a Escola...........................................93Epílogo........................................................................97

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INTRODUÇÃO

Talvez o título do livro o tenha deixado um pouco escandalizado ou lhe tenha parecido demasiado atrevido. Não se assuste. Já completei cinqüenta anos dedicados ao magistério em seus diferentes graus. Não se trata de um desabafo raivoso nem de uma frustração. Trata-se de examinar alguns aspectos ligados à nossa escola e ao nosso ensino que têm raízes fundas em nossa cultura, apesar de óbvios e talvez, até por isso, difíceis de serem percebidos e mais difíceis de serem erradicados. Nossa cultura, por razões que têm a ver com a história de nossa colonização enfatiza muito mais o discurso que a ação. Antes que o leitor pense em atribuir nossos males ao “azar de termos sido colonizados pelos portugueses, em vez de holandeses ou ingleses”, quero dizer que uma olhada pelo mundo, tanto em nosso continente como em outros, mostra que tal tese não se sustentaria. Bastaria olhar para nossas fronteiras ou pelo mundo para ver sociedades subdesenvolvidas que saíram de colonizações as mais diferentes, das hoje mais desenvolvidas da Europa. Somos “assim”, com nossas virtudes e desvirtudes por razões ligadas a toda uma série de fatores e não por culpa atribuível a outros. Recém saídos de uma campanha eleitoral, ouvíamos à saciedade os discursos sobre a importância da EDUCAÇÃO. Mesmo quem com sua vida evidencia sua falta e descaso por ela, mostra a crença generalizada de que ela não deve ser tão importante assim. Até quem dela tem tão pouco acaba por também hastear essa “bandeira”. Não é mesmo de se estranhar que justamente aquele que, durante a recente campanha (2006), com mais proximidade dela falava, tivesse uma insignificante votação? – Mas nós adoramos discursos sobre educação, mesmo os mais evidentemente destituídos de qualquer fundamento ou conseqüência. Se, por um lado, todos sentimos necessidade de “fazer coro” a uma voz mundial que reconhece a primazia da educação, nosso comportamento não se mostra coerente com nossos discursos. Parece até que chegamos a acreditar que de tanto fazer discursos sobre a educação acabaríamos por ser impregnados dela e “salvos” sem fazer muita força.Nossas críticas sobre os políticos como culpados de nosso permanente estado de “emergente” tem estreita ligação com nossas queixas, aspirações e comportamento com relação à EDUCAÇÃO. Quase não nos ocorre que “os políticos” não são “et”s; são uma amostra de nossa sociedade. Além disso, lá estão por terem sido levados pelo nosso voto.No decorrer do livro, se a tanto lhe chegar a paciência, o leitor terá oportunidade de entender de que e por que estou falando.A primeira das razões para justificar o título do livro é muito simples e objetiva. Eu não fiz a escola que “antigamente” se chamava de escola primária. Isso também

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não aconteceu por qualquer ato de repúdio à escola. Isso aconteceu por razões que têm a ver com a particular história minha e de minha família.Nasci no Rio de Janeiro (1929) e passei minha primeira infância em Copacabana. Aos sete anos entrei para o primeiro ano da escola(Colégio Teuto Brasileiro), na rua Siqueira Campos, entre as ruas Barata Ribeiro e Tonelero. Ao entrar já estava alfabetizado, como todos os meus colegas. Quem ainda não estivesse, entrava para o Jardim de Infância (Kinder Garten). Eu estava alfabetizado, como todos os meus colegas, “pela rua e pelos bondes”. O primeiro dos desafios, muito antes de qualquer escola, era identificar os “bondes” por seus nomes e números. As horas gastas nas viagens diárias e obrigatórias nos bondes desafiavam a todos na decifração dos “reclames” ingênuos que forravam todo interior daqueles veículos elétricos. As coleções de tampinhas e de bolinhas de ‘gude’ nos obrigavam a saber contar para fazer ‘trocas’ que incluíam relações de um para dois ou para três, etc.Quando eu deveria começar o segundo ano, minha família se mudou (1938) de Copacabana para um lugar distante alguns quilômetros da estaçãozinha e da “venda” de Corrupira (SP), onde pelos próximos cinco anos eu não veria mais nenhuma lâmpada, nenhuma escola. Só cinco anos mais tarde (1943), eu já com quatorze anos, voltaríamos para a cidade do Rio de Janeiro. Todos esses anos se haviam passado sem que eu freqüentasse qualquer escola ou tipo de estudo. Esse fato, por si só, levanta a questão: será mesmo tão indispensável a escola primária como ela é?Quero logo esclarecer que não advogo a supressão da escola primária ou de primeiro grau. Pelo contrário. Quero no entanto levantar uma questão essencial. A escola, como ela é, certamente não é tão indispensável como fazem pensar nossos discursos. Eu sou a prova viva disso. Acho e defendo a escola nessa fase da vida como importantíssima em vários aspectos, tanto de base para a construção do conhecimento como para a formação dos hábitos fundamentais ao exercício da urbanidade, da cidadania e da realização pessoal. Proponho uma escola diferente do que se faz habitualmente e possível, como tenho mostrado em muitos anos pelo Brasil e por muitos outros países da América Latina. Muitas vezes os maiores desafios estão em questões que nos parecem óbvias. Sair desse óbvio é o nosso maior desafio, especialmente porque temos dificuldade em vê-lo e vivenciá-lo. Estamos tão acostumados a coisas que “sempre fizemos assim” que nos é difícil enxergar quanto longe estamos de uma outra visão e principalmente de uma outra prática.Não ter feito a escola fundamental deixou em mim algumas marcas e limitações. No entanto, mesmo sem nunca ter sido aluno excepcional nem o que os jovens chamavam de “caxias”, consegui fazer quase tudo que uma pessoa normal poderia ter feito. Essa falta não impediu que muito jovem me tornasse professor universitário, fizesse doutorado, escrevesse livros, desse cursos de Física em quase todos os países da América Latina, me tornasse professor em grandes

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universidades e tivesse um capítulo no livro da UNESCO*, publicado em vários idiomas.A EDUCAÇÃO praticada na escola primária ou de primeiro grau pode e deve ser de importância fundamental para o crescimento da inteligência, do conhecimento e leitura do Mundo, do exercício da cidadania e para a realização pessoal. No mais das vezes não é nada disso que acontece. Despreparo,das pessoas e instituições, métodos sabidamente ineficientes e deformadores da iniciativa, instituições degradadas e desinteresse, tanto docente quanto discente são as características mais comuns de nossa escola, principalmente pública. Grandes somas são investidas numa escola que gasta tempo e dinheiro, da qual as pessoas saem quase sem saber ler, tendo muito mais desenvolvidas suas faculdades “sentantes” que as pensantes e com a idéia de que cidadania é muito mais uma questão de discurso. Enfim: em boa parte estamos investindo numa ESCOLA quase INÚTIL.

“Antigamente é que a escola era boa”* Innovation in Science & Technology Education. Vol . IV, UNESCO,Paris,1996.

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É muito disseminada a crença de que a escola de “antigamente” era muito melhor. Creio que aqui, como em tantas outras oportunidades se estabeleceu um mal-entendido e mais que isso: um mito. Em primeiro lugar quase sempre somos levados a achar que tudo “antigamente” ou “no nosso tempo” era melhor. Esse “tudo era melhor” tem a ver com nosso envelhecimento e nossa recordação de quando éramos mais otimistas em relação a quase tudo. Quando olhamos para trás com alguma objetividade, sem o preconceito de que tudo era melhor, logo podemos perceber que não é bem assim.

Quanto mais recuamos nos nossos anos e também ao longo da história geral, constatamos que o ensino era muito mais discursivo que é agora, com raras exceções. Hoje sabemos que ninguém pode construir seu conhecimento apenas por ouvir falar dele, mesmo que seja na escola. E´ claro, nosso conhecimento inclui também ouvir. Hoje sabemos, á luz de qualquer das teorias sobre conhecimento que, se por um lado, coisas entram pela nossa audição, nada dispensa nossa participação ativa, nossa ação. A construção de nosso conhecimento inclui obrigatoriamente nossa vontade e nossa ação. Talvez um exemplo nos ajude a deixar clara a idéia. Se quisermos ser nadadores, podemos e devemos sempre que possível ouvir pessoas que tem experiência como nadadores. Melhor ainda, se pudermos ouvir campeões olímpicos de natação. O que não podemos é esperar nos tornarmos bons nadadores sem nossa vontade e ação de entrar na água e nadar. Melhor ainda se durante a natação pudermos ser orientados por um campeão olímpico. O que não podemos é esperar nos tornarmos nadadores de tanto ouvir que outros nos falem sobre a importância da natação. Ainda que quem nos fale seja um campeão olímpico.

Quando recuamos em nossa história pessoal, na história do país e do Mundo, vemos que muitas coisas mudaram. Uma delas é o recato que as pessoas e instituições tinham entre si. As aulas eram mesmo muito mais ‘respeitosas’. Muitas vezes esses hábitos refletiam muito mais uma distância que verdadeiro respeito. Com raras exceções, os cursos eram muito discursivos. Por mais respeitoso que seja um ensino baseado quase que exclusivamente no discurso do professor não pode ser eficiente. Ocorre ainda um outro aspecto. Quando éramos mais jovens sabíamos menos e por isso mais facilmente podíamos ficar impressionados com a “sabedoria” dos outros. Em geral essa sabedoria não era colocada à prova pela discussão e pelo debate. Em minha história pessoal tenho um exemplo bem marcante do que estou querendo mostrar. Como já disse anteriormente, feito meu primeiro ano de escola no Rio de Janeiro, eu com minha família nos mudamos para um lugar onde não havia nenhuma lâmpada visível, nenhuma escola, num raio de alguns quilômetros. No meu primeiro e único ano de escola primária no Rio de Janeiro eu havia tido um professor que me causara uma profunda impressão. Parte dessa impressão tinha a ver com a imagem e a postura

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daquele docente alto, elegante e muito bem trajado. Além disso, sua voz grave e impostada dava-me a impressão de que ele era a própria voz da sabedoria. Quando, dez anos mais tarde, já de volta ao Rio e ao estudo, agora fazendo o “científico”, tive de volta casualmente aquele mesmo professor. Nunca tive em minha vida de estudante decepção tão grande quanto aquela. Todo aquele vulto de imponência e sabedoria se desfizeram como uma nuvem de fumaça. Poucas vezes voltei a conhecer pessoa mais destituída de conhecimento daquilo que fazia. Aquele professor era uma imagem, um mito em minha imaginação de criança. Não por culpa dele mas por conta de minha ingenuidade e imaginação.

Os anos que eu passara no sertão, a quilômetros de uma única lâmpada da região, me haviam deixado a fortíssima impressão do céu estrelado. Essa impressão fora tão forte que nunca mais eu dela me livraria. Muitos anos mais tarde, no curso superior de Matemática e Física, tive uma das mais difíceis disciplinas daquele currículo: ”Mecânica Celeste”. O professor era um brilhante matemático, doutorado na Europa e fugido do fascismo da Itália. Embora com grandes dificuldades, consegui passar pela disciplina e ser aprovado. Meu grande interesse pelo assunto, evocado pelas noites do sertão, levou-me e fazer um projeto de montagem de um telescópio para a universidade (PUC de Campinas,1955). Procurei meu professor e lhe pedi que me orientasse na nova empreitada. Para minha grande surpresa ele me confessou a impossibilidade de sua ajuda por falta de conhecimento em Astronomia: “Sei toda matemática envolvida nisso mas nunca vi um telescópio, nem nunca me interessei por isso”, foi sua resposta. Sempre fiquei muito grato à memória desse professor que com toda a honestidade me confessou conhecer apenas a linguagem matemática do assunto que ele jamais havia visto concretamente. Quando procurei outros professores cuja disciplina incluía ótica, também não consegui qualquer ajuda. Tive que estudar o assunto e abrir caminho por minha conta. Felizmente a ótica dos telescópios newtonianos, como era o de meu projeto, é muito simples. Mesmo assim meus professores não conseguiram me ajudar. Tive que abrir outros caminhos.

O projeto do telescópio me obrigou a um grande esforço, me fez crescer e me valeu o convite para integrar o corpo docente em duas disciplinas na Universidade: “Cosmografia” e “Laboratório de Física”. Esta disciplina ainda não existia nesse curso. Nele tornei-me assistente de um professor que já beirava os oitenta anos e a quem o Brasil deve grande serviço prestado ao ensino de Física. Ele pertencia a uma geração de autodidatas naquela área para a qual nem sequer havia curso superior no Brasil. Seus livros didáticos eram os primeiros no gênero no Brasil e eram pouco mais que traduções e adaptações de velhos clássicos franceses. Era o que existia. O ensino era muito mais fraco, embora mais sério e respeitoso. Só meu prestígio de bom aluno, recém vindo do Rio de Janeiro e depois da USP, me permitiu o “atrevimento” de entrar na sala de aula, como único carioca entre tantos paulistas, sem gravata, mas de paletó. O recato e o respeito entre as pessoas não implicavam obrigatória qualidade de ensino.

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Já como jovem professor universitário, temeroso por saber de meu pouco preparo para o cargo, comecei minha carreira docente “superior” num ano inesquecível:1957, início da Era Espacial (Sputnik I). Minha ansiedade me levou a fazer uma série de estudos e entrevistas com os alunos recém admitidos ao curso de Matemática e Física. Esses alunos eram de uma elite da época. Eram raríssimos os cursos superiores. O nosso era o único do interior do Estado de São Paulo. Durante quatro anos entrevistei pouco mais de cem alunos, todos já aprovados no vestibular e meus alunos de primeiro ano em Física. Esta enquête foi minha primeira atividade a evidenciar os grandes problemas do nosso ensino. As perguntas do questionário iam do mais geral ao mais restrito. Os assuntos eram aqueles de maior incidência nos vestibulares da época. Dou um exemplo porque ele é bem esclarecedor. A primeira dessas perguntas era: “você já estudou ótica”? -Todos, “sim”. Cada pergunta ia se tornando mais particular ou restritiva. Quase todos já haviam “resolvido” muitos problemas em ótica. Cerca de 15% sabiam até deduzir matematicamente a equação das lentes, chamada de “equação dos focos conjugados”. Essa fórmula relaciona as posições do objeto(p) e de sua imagem(p´) formada por uma lente de “foco” = f . Ela está sempre presente quando você focaliza qualquer sistema ótico como da maquina fotográfica ou de um projetor. Agora vinham as perguntas finais que mais me interessavam:

-“Mostre nesta lente (eu lhe entregava a lente) as coisas envolvidas nos problemas que você resolveu”. Houve uma única resposta adequada. A segunda destas últimas perguntas era: “ Que relação há entre o que você estudou sobre lentes e o fato de você focalizar sua máquina fotográfica ou qualquer sistema ótico?”. Também aqui só houve uma resposta a indicar algum sentido. Por fim eu pedia ao aluno que me mencionasse qualquer coisa de seu aprendizado de ótica que ele pudesse usar fora da solução de problemas numéricos. Mais uma vez só houve uma resposta afirmativa. O curioso é que as três respostas afirmativas eram do mesmo aluno. Eu quis então saber qual a razão para a existência desse único “sobrevivente” nesse verdadeiro “naufrágio”. Essa foi minha maior surpresa. Esse único “sobrevivente” se devia ao fato de haver ele ganho um brinquedo que na época se chamava “Poliopticon”. Era nada mais que uma caixinha com várias lentes e peças de “baquelite” com as quais se podia montar vários instrumentos óticos como: luneta, projetor, microscópio, periscópio, etc. Conclusão: mesmo entre os alunos de uma elite, numa das mais desenvolvidas regiões do Brasil, o único que ficara com alguma coisa de prático e operacional de todo o ensino de ótica do colegial e já aprovado no vestibular, devia isso a razões estranhas à escola. Isso aconteceu “antigamente” quando a escola era “mais séria”. O pior é que continuei a fazer essa brincadeira durante as décadas seguintes com resultados semelhantes.

A escola era certamente mais séria e respeitosa mas não era obrigatoriamente boa. O fato de as pessoas serem mais recatadas e terem mais respeito pela escola e pelo ensino podia fazer com que se tomassem as coisas com mais responsabilidade e, em conseqüência, se estudasse mais. O respeito,

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simplesmente não garante a qualidade do ensino. É verdade que a desordem, a falte de respeito entre as pessoas e entre estas e as instituições tornam impossível ou muito mais difícil qualquer método ou trabalho produtivo. Sem alguma ordem não há progresso. Não é à toa que aparece em nossa bandeira o “ordem e progresso”. Sempre se soube da importância dele e dela. Entretanto esse lema relativo à ordem, como tantas outras coisas de nossa cultura, poucas vezes foi além da palavra escrita ou do discurso. E´ muito difícil conseguir um verdadeiro progresso se não tivermos um mínimo de ordem na forma de respeito a normas de convívio civilizado. Isso é parte da Educação.

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“.....E NO LUGAR DA ESCOLA?”

Logo depois de completado meu primeiro ano de escola primária “saí do ar” em matéria de escola. Isso se deveu a razões de família. Por um lado quero poupar o leitor de explicações de caráter familiar. Há, no entanto algumas razões que embora tenham aquele caráter particular, têm muito a ver com o que estivemos discutindo no capítulo anterior: “no meu tempo a escola e tudo era melhor”. As coisas não eram melhores, como nos parecem vistas à distância dada pelo tempo. Nossos olhos jovens é que viam o mundo de maneira muito diferente.

Naqueles dias (1938), o Brasil já vivia mais uma crise econômica. Nossa economia, baseada quase que só na exportação do café, estava sofrendo com os reflexos da crise que se seguiu ao “crack” da bolsa americana (1929). Além disso, o Mundo estava às vésperas da segunda Guerra Mundial (1939).

Meu pai era o gerente de um importante hotel (11 andares) na rua Copacabana, próximo ao Copacabana Pálace (“Atalaia” hotel). A falta de gente preparada para os afazeres de operação e manutenção de toda estrutura para o funcionamento de um hotel e a crise econômica estavam deixando meu pai cada vez mais tenso com “o ´estresse´ da vida moderna”, em 1938. Não foi essa expressão mas era esse o sentido. Essa foi a principal razão para uma radical mudança de nossas vidas.

Eu havia contraído a ‘desinteira amebiana’ ou simplesmente ameba, verminose hoje corriqueira mas que na época não dispunha de remédios específicos: não tinha cura. Talvez o médico tenha sugerido que a doença poderia desaparecer espontaneamente com alguma mudança de “ares” ou de águas. Não estou seguro mas é possível que isso também tenha influído na tomada de decisão para uma mudança tão radical na vida da família Caniato. Da cidade toda iluminada, capital do Brasil, para o negrume imaculado das noites do sertão. Difícil imaginar mudança mais radical de nosso dia-a-dia. Mesmo trazendo algumas economias agora era preciso arrancar o sustento de nossa própria produção na terra. Para mim a mudança representava a liberdade de um espaço ilimitado. Talvez pelos “ares” e pelas águas, ninguém se lembrou mais de minha “amebiana”. Disso fiquei curado.

Escola, nunca mais. Em compensação se abriu para mim um mundo de desafios os mais variados. Encheria um grande livro a narrativa detalhada do que foi meu aprendizado com uma imensa variedade de situações concretas, de relacionamento com pessoas de cultura tão diferente e do exercício da iniciativa na vida do campo. Meus novos amigos eram completamente diferentes em tudo dos que eu tinha em Copacabana. Eu não sabia nada da cultura “caipira” deles. Era preciso aprender tudo aquilo: caçar passarinho, fazer arapucas, fazer

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estilingues, pescar, além de trabalhar na roça. Por outro lado, meus novos amigos queriam que eu lhes contasse como era e o que havia na capital do Brasil. Eu conhecia aviões, navios, o mar. Eu havia visto os grandes o “zepelins” (“Graaf Zeppelin” e o “Hindenburg”) que passavam baixinho sobre Copacabana, transportando passageiros de alto luxo entre Berlim e Buenos Aires. Estabeleceu-se então uma grande troca ou melhor uma forte interação entre duas culturas. Nisso todos ganhamos. O trabalho na roça, a princípio “de leve” e logo assumido em igualdade de condições com os adultos me fez crescer como nenhuma escola poderia ter feito. O tratamento e a responsabilidade pelos nossos animais, em particular por nosso pequeno rebanho, a lida com carroça, nosso único meio de transporte e tantas outras tarefas, produziram em mim uma transformação que nenhuma educação formal poderia ter feito.

E´ obvio que esse crescimento teve seu preço. ‘A medida que os anos foram passando fui me desenvolvendo mais como “caipira”, com atraso no trato das letras e do conhecimento formal. Hoje no entanto considero, pelo que sei e verifico, que foi um ganho muito grande a substituição dos anos de escola primária pelos anos de vida rural intensa da maneira como ocorreu comigo. Esses anos me fizeram sentir a importância de alguma forma de conhecimento para superar situações de desafio; situações em que a força física é insuficiente para superar muitas das dificuldades. Essa experiência deixou em mim marcas muito profundas. A beleza do céu estrelado como eu nunca poderia ter visto na cidade fez com que minha paixão pelo céu orientasse meu caminho para a Astronomia. Foi essa a razão mais remota para que eu me tornasse muitos anos mais tarde professor de Cosmografia na universidade. Meus livros, meus experimentos e minha proposta metodológica sempre têm alguma relação com a Astronomia. Outro traço que considero importante e atribuo àquela experiência rural é o saber quanto custa de trabalho produzir alguma coisa. O convívio próximo com animais quando se depende deles, tanto para realização de trabalho como para única fonte de leite possível, torna muito diferente nossa relação com eles. Quando, muitos anos mais tarde, cheguei a estudar alguma biologia: cio, cobertura pelo macho, gestação, parto, colostro, lactação, nutrição para vacas leiteiras, etc,, tudo isso já era para mim familiar de maneira concreta e operante. Isso me abriu o apetite de saber. O estudo adquiriu outro aspecto, muito diferente de quando se estuda coisas distantes ou completamente alheias à nossa experiência e que, nem sequer, são discutidas. Enfim, acho que ganhei muito com essa “perda” da escola.

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“...falá é só fôlego, fazê é que é sustança...”

Esse dito caboclo revela com grande fidelidade uma verdade universal: a distância entre nossas palavras e nossos comportamentos. Isso deve ser verdade em todas as línguas, em todas as culturas. Acredito no entanto que em muitas culturas essa distância pode ser bem maior. Isso não significa obrigatoriamente um mal mas um traço próprio de uma cultura e que deve ter raízes mais fundas nas origens de uma sociedade. Não caberia agora discussão sobre essas origens. Tratando-se de nossa cultura brasileira, esse aspecto se reflete num dos traços característicos de nosso ensino: quase que exclusivamente discursivo. Essa prevalência do discurso acontece em todos os níveis de nosso ensino. Ela reproduz ou pelo menos reforça uma das dificuldades no desempenho do cidadão. Esse traço está presente em todos os níveis de nossa escolaridade, do básico à pós-graduação. Grande parte de nossa intelectualidade raramente teve oportunidade de se defrontar com problemas concretos, que demandem iniciativa e alguma forma de habilidade manual, mesmo nas coisas mais simples. Esse aspecto pode ser importante quando se trata de qualquer projeto onde é indispensável saber avaliar as dificuldades e o custo em trabalho para implantação de um projeto ou de uma idéia. Saber aqui tem o sentido lato relacionado a sabor, sentir o gosto, por experiência vivida. Não é à toa que dizemos ter a mais “completa legislação previdenciária”, por exemplo. Temos também “o mais complexo sistema judiciário” e assim por diante. São exemplos em grande escala da grande distância entre nossos discursos e mesmo instituições e os fatos ou ações. Essas coisas não são assim por acaso. Somos assim por conta de nossa educação. Também a educação é assim por causa de nossa cultura. Esses dois fatores interagem e se realimentam num círculo vicioso. Por razões ligadas à minha história pessoal de vida, muito cedo pude perceber a importância do exercício do conhecimento. Outra contribuição importante foi ter sido aluno de Física experimental de um sábio alemão (Pe. Agostinho Ienish, PUC do Rio) que havia sido professor de Física na Universidade de Pequim até as vésperas da revolução de Mão Tse Tung. Tão notável era o conhecimento desse professor que durante muitos anos o IME, Instituto Militar de Engenharia, no Rio de Janeiro, manteve todo aparato de um laboratório de Física à disposição daquele mestre. Além do aprendizado em suas aulas, tornei-me seu ajudante informal chegando antes de nossas aulas para ajudá-lo a desmontar o equipamento da aula anterior, dada aos engenheiros militares daquela instituição. Mesmo depois de formado e docente, voltei várias vezes, , a visitá-lo em seu mosteiro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro até sua morte.

Em 1956 fiz minha estréia como professor de Física no curso colegial de um dos maiores colégios religiosos de Campinas. Aí já existia uma grande coleção de equipamentos de Física importados da Europa, a que se dava o nome de

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“laboratório”. Foi minha oportunidade de “meter a mão na massa” e colocar quase tudo a funcionar, depois de uma grande faxina daquele “museu”.

Quando em 1957 comecei minha docência na universidade já trazia alguma experiência em fazer funcionar as coisas. Já estava claramente presente para mim uma experiência de ensino da Ciência que incluía uma parte experimental. A montagem do telescópio para a PUC de Campinas(1955) havia contribuído muito para isso. Logo uma outra situação me mostraria aspectos mais gerais daquele dito caipira. A próxima situação me mostraria em caráter muito mais amplo e geral aquela distância entre o saber por discursos ou formulas e o saber fazer ou saber por sentir o gosto.

No fim dos anos cinqüenta o mundo vivia o auge da “guerra fria”. A opinião pública mundial havia sido sacudida pelo lançamento do primeiro satélite artificial da Terra: o Sputnik I. O mundo ocidental vivia uma comoção e uma surpresa com a dianteira da então União Soviética, na corrida espacial. Uma tal dianteira não podia ser fruto apenas de um pequeno número de pessoas. Isso indicava indiretamente um grande avanço na formação de muita gente ligada à ciência: sugeria um avanço na eficiência da educação, pelo menos no campo do ensino da ciência.

Embora o ensino nos EEUU sempre tenha tido um aspecto mais prático, a comoção provocada na opinião pública americana pelo “Sputnik I” acelerou um processo de grande renovação no ensino das Ciências. A maior iniciativa nessa renovação foi o grande projeto de ensino de Física conhecido como “PSSC” (Physical Science Study Committee). O projeto investiu muitos milhões de dollares e mobilizou a comunidade científica dos maiores centros de Física dos EEUU. Em 1962 o projeto foi trazido ao Brasil por iniciativa do Dr. Isaias Raw, diretor do IBECC (Instituto Brasileiro de Educação,Ciência e Cultura) que representava a UNESCO no Brasil, na época sediado na Faculdade de Medicina da USP. O patrocínio dessa vinda foi da Ford Foundation. O curso foi destinado a 40 professores do ensino superior de países de toda América Latina, sendo 20 brasileiros. Seriam seis semanas em regime de tempo integral e “internato”, ficando todos alojados na cidade universitária da própria USP. Entre os brasileiros estava eu.

O principal propósito do projeto PSSC nos EEUU era o que se poderia chamar de aumento das vocações para o estudo da Física. Outro propósito era aumentar a eficiência do ensino dessa matéria, considerada estratégica para e desenvolvimento de uma nação. Entre nós, participantes, havia vários professores já maduros e experientes, titulares de cadeiras de Física de seus países, como Argentina, Uruguai e Chile. Meu colega de bancada, nos experimentos de laboratório já era autor de livros didáticos de Física no Brasil. Todos éramos professores universitários. O conteúdo do curso, no mais das vezes, abordava assuntos que todos considerávamos mais que superados pelos programas dos cursos “científico” e primeiros anos de universidade. Muitas vezes o curso abordava questões que nos pareciam abaixo de nosso nível acadêmico. No

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entanto o curso produziu em todos um grande impacto pela abordagem prática e pelas discussões que nos fizeram sentir que não tínhamos entendido bem coisas elementares que julgávamos mais que sabidas. Os métodos a que estávamos acostumados não nos tinham permitido perceber que nem nós mesmos tínhamos entendido direito muitas das coisas que ensinávamos. Só quando nos defrontamos com situações concretas de discussão ou de confronto com fatos experimentais é que pudemos perceber nossos mal-entendidos e deficiências conceituais.

Nos EEUU, sempre se havia dado importância a aspectos mais práticos da educação. Lembro-me de ter ouvido durante o meu curso colegial, de mais de um professor sobre nosso “alto nível” de ensino comparado ao de escolas americanas que ensinavam coisas “banais” como regras de transito, por exemplo. A partir da metade da década de 50 no entanto, houve um importante movimento no sentido de aumentar a importância da parte experimental das ciências, notadamente no campo da Física, da Química, da Biologia e das Ciências da Terra. Ao mesmo tempo em que nos estava sendo apresentado na USP o “PSSC” de Física, estava sendo dado O “BSCS” (Biology Science Curriculum Study), projeto americano que revolucionaria o ensino de Biologia. Logo depois surgiriam vários outros projetos que enfatizavam e incluíam uma inseparável parte experimental. São exemplos: “IPS”(Introduction to Physical Science),”CHEMStudy”, de química, e o “ESCP” (Earth Science Curriculum Project). Deste último coube a mim a tradução da parte de Astronomia.

Quando voltei para minha docência estava mais convencido de quanto distante estávamos de fazer um ensino eficiente. Isso ficara evidente tanto entre os brasileiros como também com a “amostra” dos vinte professores de Física vindos da docência superior de países de toda América Latina. Havia sido quase chocante para nós latinos que professores de tão alto gabarito, como, por exemplo, Aaron Lemonik (Ph.D), professor da Universidade de Princeton, fizessem tanto empenho para que entendêssemos aspectos fundamentais que nos haviam passado despercebidos. Nos anos seguintes fui convidado pela FUNBECC para ministrar o “PSSC” e de trabalhar na sua tradução. Algumas formas de influência daquele projeto logo começaram a aparecer pelo Brasil. Obviamente essa influência não mudava comportamentos. Muitas provas e exames vestibulares passaram a incluir questões de múltipla escolha tiradas do PSSC. Muitos livros didáticos passaram a incorporar figuras e situações trazidas por aquele projeto. Tive até ocasião de participar da banca do mais importante exame vestibular da época(Fundação “Carlos Chagas) na elaboração de questões com material experimental para ser aplicado a grandes números de vestibulandos. A importância do equipamento experimental chegou até a produzir alguma pressão sobre os governos estaduais, especialmente no estado de S.Paulo “por melhores condições de ensino” nas escolas públicas. Nalguns casos isso foi feito. Muitas escolas públicas foram equipadas com material experimental. Na imensa maioria dos casos esse

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equipamento envelheceu virgem nos armários das escolas. Qual a razão para isso? – A primeira é que experimentos, mesmo com equipamento simples precisam ser montados previamente. Isso exige tempo e alguma prática. A segunda e mais importante é que experimentos expõe o professor a situações, questões e perguntas imprevisíveis a toda hora. E ele não está habituado ao confronto com situações novas. Essas situações quebram um discurso pronto e expõe o professor a uma discussão a que ele não está acostumado e menos ainda preparado. O hábito do discurso pronto é altamente danoso tanto para o aluno quanto para o próprio professor. As duvidas, as situações novas e as discussões são o ingrediente principal na construção do conhecimento. O conhecimento não é uma coisa que se transfere da cabeça do professor, como “fonte”para a do aluno com “recipiente” a ser preenchido por meio de um discurso.Também o professor acaba sendo uma vítima de seu método apenas discursivo. A cada ano o mesmo discurso acaba por fazer parecerem tão “evidentes” e “sabidas” aquelas mesmas coisas repetidas. A cada ano os alunos lhe parecerão “piores”. De tanto repetir a mesma coisa, a cada ano menos interessante e gratificante será trabalho para o próprio professor. Ele também acaba sendo uma das vítimas de um ensino apenas discursivo, desgastante e monótono pela simples repetição e pobre pela ausência de qualquer desafio às inteligências e ações.

Nesta discussão sobre nossa hipertrofia do discurso em prejuízo da ação, lembro-me de um episódio para mim marcante e emblemático. Um dos meus alunos havia se tornado professor de Física de um dos mais famosos colégios da região. Esse colégio era famoso tanto pela seriedade de seu ensino como pelas importantes figuras de nossa história que por ele haviam passado. Conhecendo meu grande empenho nas questões de ensino, meu aluno, agora professor , me convidou para uma visita ao laboratório de seu famoso e tradicional colégio. Fomos de visita à grande coleção de aparelhos do laboratório. O aspecto da grande coleção de aparelhos era muito mais de um museu em que as “relíquias” são guardadas intocadas nos armários. Mesmo assim achei muito interessante pela riqueza e pela variedade de aparelhos raros nas escolas brasileiras. Enquanto eu me deleitava no exame de aparelhos “clássicos”, chegou à sala um outro professor de física do mesmo colégio. Feitas as apresentações, ocorreu-me perguntar ao professor que acabara de chegar, algumas coisas relacionadas ao laboratório. - “Porque todo esse equipamento não é usado?”. Eu já esperava que a resposta incluísse coisas como o “não pagamento de horas para preparação, por parte do Estado” e outras dificuldades da “logística” e da “administração” escolar. Mas a resposta me surpreendeu de forma chocante:-“não usamos os aparelhos porque quase sempre os experimentos não confirmam o que ensinamos teoricamente”. Isso acaba confundindo os alunos”.Certamente nossos discursos sobre a importância da natação confundiriam nossos alunos que verificassem que nós nunca havíamos entrado na água. Não é à toa

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que a sabedoria cabocla se mostra incrédula de tantos discursos e promessas vazias quando diz que “falá é só fôlego, fazê é que é sustança”.

IDÉIAS E “TIRIRICAS”

Meu envolvimento na tradução e montagem de equipamento do projeto “PSSC’ resultou em convites para ministrar ou participar das equipes docentes que

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multiplicaram os cursos daquele projeto pelo Brasil. Alguns aspectos desse e de outros novos projetos de ensino vinham ao encontro das coisas pelas quais eu já batalhava em minhas aulas. A imensa quantidade de situações novas e discussões serviu-me como evidência das carências do professorado brasileiro no âmbito não só do ensino de Física mas carências de caráter geral. Essas envolviam dificuldades no entendimento dos textos e dificuldades de argumentação e de verbalização. As situações novas, imprevisíveis me proporcionaram também maior crescimento. Eu também fui beneficiado pela grande quantidade de situações novas e desafiadoras nos conteúdos. Mais que tudo, a grande interação com docentes e discentes foi me proporcionando uma visão mais ampla das dificuldades dos professores em diferentes aspectos da prática no ensino.

Em 1970 veio ao Brasil o Prof. Fletcher Watson do observatório da Universidade de Harvard, trazido pela FUNBECC, onde eu coordenava um grupo de professores. Coube a mim acompanhá-lo nas palestras e nos preparativos para o próximo curso que seria dado no Instituto de Física da USP. O propósito do curso seria mostrar o Projeto Harvard(“HPP”, Harvard Project Physics) a quarenta professores de todos os países da América Latina. Esse projeto representava outro grande esforço americano para oferecer mais uma alternativa para o ensino de Física nos EEUU. Essa alternativa se destinaria aos 19% dos estudantes, americanos que terminavam o segundo grau sem nunca terem tido qualquer contato com a Física, segundo dados da época. Sua abordagem do ensino de Física era feita com um enfoque histórico e humanista do desenvolvimento da Ciência no mundo. O projeto havia sido orientado por um grande físico-filósofo de Harvard (Dr. Gerald Holton). O projeto todo era constituído de seis unidades, cada uma constando de vários volumes. Mesmo com enfoque predominantemente histórico e humanista esse projeto incluía importante atividade experimental, particularmente no campo da Astronomia. Nesse mesmo ano, 1970, foi ministrado o curso sobre esse projeto com um corpo docente constituído por quatro professores: dois americanos e dois brasileiros. Eu era um dos brasileiros. A mim coube ministrar duas unidades: Mecânica e Astronomia. Essa era mais uma oportunidade de conhecer e interagir fortemente com uma representativa amostra do professorado da América Latina. Foram várias semanas em tempo integral e regime de internato dos participantes na cidade universitária da USP em São Paulo.

Apesar da originalidade do enfoque dos textos e das atividades, pareceu-me inviável a aplicação do “HPP” de forma massiva no Brasil. Isso principalmente pela quantidade de textos: seis unidades, sendo cada uma dessas constituída por livro texto, manual de atividades, leituras adicionais, e outros. Já o investimento em tradução, adaptação e edição seriam muito grandes, inviáveis na época. Não havia recursos para isso. As dificuldades e exigências para implementar a aplicação do PSSC, mesmo sendo este muito mais conciso e objetivo, já se mostravam bastante grandes. Ninguém como eu havia estado tão envolvido com ambos os projetos,

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suas virtudes e limitações para aplicação. Foi ao fim do curso do “HPP” que me ocorreu a urgência de um Projeto Brasileiro. As idéias que eu alimentava havia anos agora me pareciam urgentes. Logo comecei a trabalhar no meu “O céu”, desenvolvendo conteúdo, material e método próprios.

Ao fim do curso sobre o HPP na USP um dos participantes, Prof. Luiz de Oliveira, me convidou para dar um curso de Astronomia no CECINE†, em Recife. Nesse mesmo ano(1970) fui dar o meu curso, usando os primeiros capítulos do meu primeiro livro “O céu”, com método, textos e atividades novos e originais, por mim propostos.

Essa foi outra extraordinária oportunidade para uma amostra dos problemas relacionados aos nossos hábitos docentes, dificuldades e mal-entendidos relacionados com os processos de ensino-aprendizagem. Os participantes eram cerca de vinte de origens muito diferentes. Vários eram professores universitários que acabavam de fazer comigo o “HPP” em São Paulo. Havia alguns estudantes de colegial, professores do ensino médio e uma freira que vinha de sua escola primária no agreste de Pernambuco. Agora eu iria aplicar meu método, em conteúdos por mim escolhidos, com as atividades e material que eu havia desenvolvido. Tudo estava centrado na leitura, discussão dos textos e na realização das atividades. Propositalmente eu havia agrupado (grupos de cinco) os participantes de modo que os professores universitários ficassem um em cada um dos diferentes grupos. Os conteúdos dos textos e das atividades eram simples mas, pelo seu inusitado, colocavam todos os participantes em igualdade de condições. As discussões colocavam a todos na situação de falar usando seus argumentos. Tanto os jovens estudantes e mesmo a freira não tiveram maiores dificuldades em discutir e argumentar de maneira simples e natural. As dificuldades maiores foram de alguns dos professores universitários. Estes em lugar de buscar argumentos que fossem claros e simples, como as situações sugeriam, tiveram outra atitude. Tentavam falar de alguma coisa que lhes parecia recordar ou que eles cobravam de si mesmos como coisas sabidas. Para que as discussões não parassem em algum impasse, para alimentá-las ou dar-lhes rumo com novas questões eu passava pelos grupos para conferir seu andamento e a participação de todos. Muitas vezes tive que “salvar” os professores de situações de constrangimento. Eles estavam muito mais acostumados a “pontificar” coisas “tidas” como “sabidas”. Era para eles mais difícil participar das discussões a partir de seus próprios argumentos diante de situações simples mas novas. A freira, que nunca havia estudado qualquer coisa relacionada ao assunto abordado teve ótimo desempenho, assim como jovens que também não conheciam nada da Astronomia que agora “enfrentavam”. Os professores traziam bem visíveis algumas deformações na maneira de olhar e enfrentar uma situação simples mas nova. Essas deformações, a meu ver, decorriam do exercício constante de uma postura

† CECINE:Centro de Ciências do Nordeste para treinamento de professores no campus da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife.

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de “fonte” do conhecimento de seus alunos. O habito difundido e arraigado de um discurso que pretende ser e dar o conhecimento que os alunos devem adquirir ficava visível. Era novo para os professores o confronto com uma situação desconhecida e nova, com argumentos simples e aceitáveis para os outros. A postura de professores universitários frente a pessoas de menor escolaridade parecia impor a eles a obrigação de saber e demonstrar mais “conhecimento” num assunto tido por sabido. Isso os levava a insistir em “conhecimentos” equivocados. Essa foi para mim a primeira oportunidade de ver e ouvir claramente aquilo que mais tarde eu chamaria de “tiriricas”: informações equivocadas que foram “plantadas” em nossas cabeças e que aí permanecem apesar de termos feito um ensino superior. São exemplos dessas “tiriricas”:”o sol nasce no ponto Leste”, “meio dia é quando o sol passa a pino”, “verão é o tempo em que a Terra passa mais perto do Sol”, por ser a órbita uma “elipse”,etc.. Alguns professores, pretendendo mostrar mais “conhecimento” chegaram a atribuir as estações às mudanças de direção do eixo da Terra. Em alguns aspectos nosso ensino é “superior” por ter sido colocado “por cima” de “conhecimentos” nunca entendidos.

Os anos que se seguiram foram para mim oportunidade de acumular grande experiência, tanto pela elaboração de novos textos e atividades como de ensaios com todo o material novo e mais professores em número muito maior. A disciplina “Instrumentação para Ensino de Física”, tanto na UNESP(Rio Claro) quanto na UNICAMP, ambas a meu cargo, se constituíram em oportunidades de multiplicação dos ensaios com o material novo. Muitos de meus alunos nessas duas instituições eram professores de Física em colégios da região. Isso facilitou a multiplicação de ensaios e a coleta de dados em muitas escolas da região.

Em fins de 1973 ficava concluída minha tese de doutorado pela UNESP(Depto. De Física, Rio Claro). Essa tese incorporava a pesquisa com professores e mais três volumes anexos. Haviam ficado prontos também os dois volumes(“O céu” e “Mecânica”) e mais uma coleção de fotografias estroboscópicas que eu havia desenvolvido com meus alunos. Era uma grande quantidade de experiência acumulada numa proposta nova e concreta de método materializado em conteúdos de Astronomia e de Mecânica. Grande parte da tese tratava do problema do ensino da Física e ao fim eram apresentados dois volumes com os textos, experimentos e método originais, como alternativa. Era a primeira vez que se levantava um problema de ensino da Física ao mesmo tempo que se oferecia uma alternativa concreta, numa tese de doutorado, para encaminhamento de uma alternativa brasileira e que havia sido submetida a um grande número de ensaios. O método preconizava um balizamento do trabalho do professor com os alunos baseado em cinco verbos: LER, DISCUTIR, FAZER ATIVIDADES (experimentos concretos envolvendo também as mãos), ACRESCENTAR (contribuição pessoal, de cada aluno) e COOPERAR (partilhando equipamento, dúvidas e conhecimentos durante o trabalho em grupo). Parte dos assuntos

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considerados mais complexos é abordada em dois níveis adicionais denominados “se você quiser saber um pouco mais” e “um pouco mais ainda”, para quem quiser.

Talvez estes últimos parágrafos possam soar ao leitor como ufania de descrever as coisas em cuja produção estive tão envolvido. Quero, no entanto, esclarecer que essas informações têm o propósito de mostrar que o nome deste livro não é simplesmente uma impressão afoita ou desaforada sobre nosso ensino. Ela resultou de uma experiência acumulada numa quantidade muito grande de trabalho feito ao longo de muitos anos, com muitas centenas de professores em exercício. Esse trabalho não foi só uma proposta diferente e ousada, ele foi se desenvolvendo como alternativa a um ensino que sofre de algumas “enfermidades deformantes”. Essas deformidades, a meu ver, atrofiam ou anulam aquilo que deve ser o principal papel da escola; orientar o processo educativo como construção pessoal e de desenvolvimento da iniciativa do indivíduo. Essas “deformidades” dificultam que a escola realize sua principal função. É quase uma escola inútil.

Em dezembro de 1973 chegava um convite do Centro Latino Americano de Física(CLAF) para que eu ministrasse meu curso num CURCAF‡. Esse curso era ministrado todos os anos em um dos países Centro Americanos e do Caribe para professores do ensino superior daquela região. Esse meu primeiro seria em Tegucigalpa, Honduras. Era a primeira vez que eu daria um curso totalmente meu em matéria de conteúdo, material e método. O então reitor da UNICAMP mandou fazer uma edição especial de meus dois volumes(“O céu” e “Mecânica”)para serem doados em nome daquela universidade aos professores participantes. Agora se tornavam muito mais amplas as possibilidades de interagir com os professores e com uma amostra de vários países. A repercussão foi tão ampla e favorável que uma comissão da Universidad Nacional Autônoma de Honduras, oficial, formalizou à embaixada Brasileira um pedido para que eu voltasse já no próximo ano a dar um curso destinado exclusivamente para professores de Honduras. No ano seguinte voltei a Honduras, desta vez acompanhado de dois assistentes, meus ex-alunos na UNICAMP e recém formados. O custeio de todo o curso, incluídos meus dois assistentes, foi feito através da Divisão de Cooperação Técnica do MINISTÉRIO de Relações Exteriores do Brasil, o “Itamaraty”. Nesse mesmo ano acontecia outro pedido formal à outra embaixada brasileira. Este era da Guatemala para que meu curso fosse dado naquele país. Dessa vez o curso seria para professores de diferentes áreas da Universidad San Carlos de Guatemala, maior instituição oficial de ensino superior daquele país. Também dessa vez o curso teria o patrocínio do “Itamaraty”. Essa foi mais uma oportunidade de uma interação forte e muito próxima com os professores de diferentes áreas do ensino superior daquele país. Dos professores que haviam feito meu primeiro curso em Honduras, vários me convidaram a que fosse repetir a experiência em seus países de origem. Assim e por isso estive dando meus cursos em quase todos os países da América Latina, até o último que foi no Equador em 1988. Durante todos esses ‡ Curso Centro Americano de Física, promovido pelo Centro Latino Americano de Física(CLAF).

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anos também se haviam multiplicado os cursos pelo Brasil. Foram então muitos anos de forte interação muito próxima com professores, principalmente de Física. Esse foi meu manancial para uma grande coleta de situações e evidências da atuação dos professores tanto no Brasil quanto em uma representativa amostra da América Latina. Dificilmente outra experiência poderia ser comparada a essa em amplitude, profundidade e duração. O fato de todo esse trabalho ser baseado na discussão de textos e atividades tornava possível uma verdadeira amostra sobre o perfil da docência em termos, brasileiro e latino americano. E´ com base nessa amostra que me parece poder indicar alguns dos grandes traços dos procedimentos docentes mais comuns e característicos vigentes. Embora minha experiência inclua os muitos cursos dados em muitos países da América Latina, as observações a seguir referem-se particularmente ao professorado brasileiro.

Não caberia aqui citar os conceitos básicos em Física, que são objeto de todos os cursos e que são mal entendidos ou pouco entendidos. Curiosamente todos esses conceitos haviam sido vistos por todos na forma algébrica, de definições e de problemas numéricos em que se aplicou alguma fórmula de grande incidência nos exames vestibulares.

A quase totalidade dos professores de Física declara não usar laboratório ou qualquer forma de experimento.

A imensa maioria também não teve em sua formação oportunidade de usar ou trabalhar com qualquer forma de experimento e menos ainda uso regular de um laboratório.

As discussões foram o grande “manancial” revelador não só de conceitos mal entendidos mas de uma visão de mundo alheia ao uso desses mesmos conceitos. A lei de conservação da massa(de Lavoisier), por exemplo, aparece “como uma coisa do programa de química” e não como um princípio fundamental da natureza que se aplica a todas as áreas, não só da ciência profissional como do conhecimento em geral. Seu entendimento de fato contribuiria enormemente para a compreensão do Mundo e para a educação ambiental. No entanto fica evidente que aquela lei não passa de uma “citação” dentro do “programa” de química”. Outro exemplo: a poucos professores ocorreria poder usar uma lente das que as óticas jogam fora, para projetar a imagem de uma vela na parede, mostrando a equação dos focos conjugados que quase todos “ensinam” para o vestibular. Isso não exigiria nem custo nem lugar especial. Uma lente simples levada no bolso, num instante mostraria isso na parede da sala de aula. Nunca nos ocorre que aquela “formula” está sempre presente quando se “focaliza” qualquer sistema ótico, como um projetor ou uma câmara fotográfica. Aquelas equações parecem se aplicar somente em problemas artificiais criados para que se aplique a fórmula, alheia a qualquer relação de fato e de utilidade. Esse é apenas mais um exemplo de “alienação” de um “estudo” que não resulta em nada: distante de qualquer utilidade.

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Constata-se uma imensa perda por inutilidade de um grande investimento de tempo, trabalho e recursos para coisas que atingem muito pouco além de “passar” nos exames vestibulares. A perda de tempo no entanto não me parece seja o maior prejuízo. O mais sério, a meu ver, é o constante “treinamento” de uma forma de alienação da sala de aula em relação ao funcionamento do Mundo: uma ausência de aplicação do conhecimento para o que eu chamaria de leitura do funcionamento do mundo e ação sobre ele . As discussões foram revelando outros aspectos a meu ver ainda muito importantes: as dificuldades na leitura(em voz alta dentro de cada grupo) e a dificuldade na argumentação. A argumentação com idéias próprias simples mas claras não é exercitada. Quase sempre se busca uma definição ou uma fórmula que “resolva” o problema, em lugar dos argumentos e da iniciativa própria. Esta deveria e poderia ser exercitada na escola em todas as disciplinas, notadamente na área da Ciência. Os efeitos dessa ausência se refletem não só no campo da ciência mas em todo exercício da cidadania. Há uma visível atrofia do entendimento e da ação diante de situações que não comportem a aplicação de alguma fórmula.

Depois de concluída a tese de doutorado e das primeiras oportunidades de ministrar meus cursos no exterior, multiplicaram-se convites para palestras e conferências tanto pelo Brasil como em países da América Latina. Eu buscava verificar o que e quanto fica nas nossas cabeças de tudo aquilo que a escola nos “ensina”. Para isso seria preciso provocar discussões e debates envolvendo pessoas de outras áreas do conhecimento que permitissem pelo menos uma vaga avaliação, por amostragem, do nível de entendimento das coisas tidas e havidas como sabidas. Agora eu queria estender as questões a pessoas de outras áreas. Isso se tornou possível com a multiplicação de minhas palestras e seminários, principalmente em instituições de ensino superior. Foi para mim uma verdadeira descoberta: o quase nada que fica do quase tudo que pensamos ter ensinado. Muitas das questões que já se haviam tornado características daquele “conhecimento”, voltei a fazer com as novas platéias do ensino superior. Em todos os lugares apareceram aqueles “conhecimentos” tão emblemáticos, como os exemplos que já mencionei: “pontos Cardeais determinados pelo ponto em que o Sol nasce”, “o meio-dia quando o Sol passa a pino”, “o inverno como o tempo em que a Terra está mais longe do Sol”. Quero relembrar que estes são apenas exemplos mais típicos. Mas em muitos outros pude verificar a ausência ou o mal-entendido de grande quantidade daqueles conceitos básicos simples que a escola pretende ter ensinado. E´ muito curioso verificar que mesmo professores do ensino superior não tivessem entendido a idéia de proporcionalidade materializada na equação da reta, por exemplo. Claro, estou falando de professores de áreas que não das ciências exatas. Há uma generalizada confusão com uma idéia simples, como a de proporcionalidade. A equação da reta raramente foi entendida, mesmo quando memorizada. Quando eu tratava de insistir, as pessoas se

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justificam dizendo: “isso é da área dos matemáticos”, embora se constituísse assunto do início do antigo “ginásio”. Levados a discutir qualquer assunto elementar que implicasse o mínimo de entendimento operacional do funcionamento da natureza, quase sempre ocorre o eximir-se da “obrigação” de saber “coisas da Física”. Quero insistir que não se trata de saber definições, muito menos fórmulas ou equações mas simplesmente algum entendimento funcional. Falo de pessoas que exercem docência superior. Quando se usa a semelhança de triângulos, por exemplo, para aplicar o conceito de proporcionalidade as pessoas se justificam dizendo que “isso é coisa dos matemáticos”. Desde meu primeiro livro de “Mecânica”, introduzi a idéia de conservação da massa mesmo em um sistema biológico. Para provocar as discussões e ouvir as opiniões, freqüentemente proponho uma historinha sobre a balança, menos para professores formados em Física ou química. Essa historinha propõe a discussão das diferentes etapas da vida dentro de um aquário hermeticamente fechado. Ela começa quando é colocado um casal de alevinos(bebês peixinhos) e, também dentro do aquário, dois dispositivos que irão liberar automaticamente tanto o Oxigênio quanto os nutrientes. Depois disso o aquário é hermeticamente fechado e colocado sobre um dos pratos de uma balança. No outro prato da balança são colocados pesos até estabelecer o equilíbrio. Portanto a história começa com a balança em equilíbrio. Passam-se algumas semanas. Os peixinhos cresceram. – O que acontece com a balança? - Mais algumas semanas e os peixinhos começam a se reproduzir. – O que acontece com a balança? A historinha prossegue por todas fazes que incluem reprodução, nutrição, excreção, superpovoamento, canibalismo, morte e decomposição dos corpos dos peixes, até que se extingue toda forma de vida visível dentro do aquário. Em cada uma dessas fazes se vai perguntando sobre o “comportamento” da balança. Para minha surpresa essa questão levanta acaloradas discussões e muita gente se mostra chocada quando se dá conta de que abalança nunca saiu da posição de equilíbrio. Isso significa que a básica lei de conservação da Massa de Lavoisier muito raramente foi entendida apesar de muito repetida. Entre os professores do ensino de primeiro e segundo grau foram muito freqüentes muitas reações de choque. Em 1977 transformei a historinha que eu contava, em um audiovisual chamado “O homem e a Terra”. Nesse audiovisual, depois da história do aquário, mostro uma analogia entre a história do aquário e a história da vida sobre a Terra. Fica evidente que a matéria que circula na biosfera é sempre a mesma. Aí se mostra que o aumento de seres vivos, incluído o homem, não aumenta a massa total da Terra, o que é óbvio para quem entendeu a Lei de Lavoisier. Aqui o impacto sobre as pessoas é ainda maior, como se fosse uma descoberta recente e chocante para muitos. Para a imensa maioria isso parecia quase uma heresia. No entanto muitos haviam “estudado” ou pelo menos ouvido falar daquela lei do sábio francês decapitado pela Revolução Francesa. Mesmo as pessoas que já haviam estudado aquela lei nunca se haviam

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dado conta de suas implicações fora da sala de aula. E´ a isto que chamo de alienação da escola ao que se passa fora dela.

Durante os últimos quinze anos dediquei-me também às artes náuticas como amador, depois de fazer os exames de “arrais amador”, “mestre amador” e “capitão amador” da Marinha do Brasil. Neste período ministrei cerca de 110 cursos para diferentes níveis dos exames da Marinha. Isso foi uma interessante ocasião para uma ampla amostra do estado operacional de diferentes níveis da escolaridade brasileira. Foram cerca de noventa(90) cursos do primeiro nível (‘arrais amador’ ) e vinte do segundo nível(mestre amador). Nesse primeiro nível tive ocasião de ministrar o curso para cerca 1.300 pessoas de todos os níveis de escolaridade que aspiravam ter sua habilitação para conduzir uma embarcação de esporte e recreio em águas abrigadas. Além do material escrito, essas pessoas, sem exceção, tiveram dez (10) horas de aulas comigo. Devido à minha historia profissional em outras áreas essas pessoas passaram pelas discussões que envolviam todo o conteúdo do programa respectivo. Para quem pretende navegar, orientação tem importância fundamental. Mais uma vez apareceram aquelas “tiriricas” já apontadas anteriormente: todos, sem exceção, como profissionais liberais, achavam que o ponto cardeal Leste é o ponto em que o Sol aparece no horizonte. Outros achavam que os pontos Cardeais seriam determinados pela Bússola.Também apareceram aquelas dificuldades habituais das quais já tratamos aqui: dificuldade de leitura, dificuldade de entendimento do conteúdo dos textos, muita dificuldade em verbalizar argumentos. Mesmo na parte mais culta dessa amostra, constituída de médicos, engenheiros e outras profissões liberais, as dificuldades maiores sempre estiveram ligadas a qualquer forma de iniciativa além das “tiriricas” já apontadas. A carência de iniciativa é sempre notável, especialmente quando ela depende de conhecimentos tidos e havidos como “ensinados” nos programas escolares, como Latitude e Longitude, por exemplo.

Nesse mesmo período ministrei cerca de vinte (20) cursos de “mestre amador”. Isso significa mais de 200 pessoas. Esse curso se destina ao exame de habilitação(da Marinha) para navegação amadora ao longo da costa brasileira. Este já inclui a resolução de pequenos problemas de posição envolvendo uso de coordenadas nas cartas náuticas, orientação, operação com ângulos e umas poucas situações de semelhança de triângulos. Essa amostra de cerca de 200(duzentas) pessoas incluiu todas as faixas da classe média e de todos os níveis de escolaridade. Para que se entenda a amplitude dessa amostra, ela incluiu todas as pessoas que, pelo menos, aspiram fazer uma viagem com seu próprio barco de esporte e recreio para além das águas abrigadas, sem no entanto se afastar da costa visível. Neste caso, orientação é uma questão muito mais importante. O candidato deve ser capaz de determinar sua posição no mar a partir da posição de pontos notáveis da costa. Para isso eu estava plenamente justificado ao investigar sobre idéias relacionadas aos conceitos de pontos cardeais e muitos outros conceitos simples mas necessários. Aqui também havia unanimidade em

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achar que o ponto Leste é determinado pelo lugar em que nasce o Sol. Da mesma forma, todos achavam que meio dia é o momento em que o Sol “passa a pino” e a maioria achava que é inverno quando a Terra passa mais longe do Sol. Neste caso alguns até se justificaram com o “conhecimento” de que a órbita da Terra é uma elipse. Se a órbita é uma elipse, a distância Terra-Sol deve variar e portanto deve ser essa a razão para inverno e verão. E´ curioso que não apareça nenhuma tentativa de verificar a consistência dessa afirmação mesmo em grande parte das pessoas com formação superior. Certamente foi dito na escola e todos “sabem” que a Terra é uma bola e que está girando enquanto se desloca ao redor do Sol. Ora, se a “bola” está girando mais próxima ao Sol deveria ser verão em toda ela. Quando estivesse girando mais afastada do Sol deveria ser inverno em toda a ela. Através de todos os meios de comunicação sabemos “ao vivo” que é inverno aqui (Sul) ao mesmo tempo em que é verão lá(Norte). Se a Terra chegasse mais perto do Sol, este não deveria parecer maior? E ao se afastar, o Sol não deveria parecer menor? O tamanho aparente do Sol permanece sempre, pelo menos aproximadamente, igual. Não seria necessário qualquer conhecimento prévio. Seria necessário apenas pensar, coisa a que raramente a escola nos convida e muito menos, nos desafia.

Estes últimos exemplos são certamente os mais característicos do alto grau do que chamei de alienação da escola em relação ao mundo dos fatos. Todo mundo se lembrava de haver “estudado” o assunto em sua infância. Muito pouco proveito resultou daquilo que havia sido “ensinado”. Bastaria que tivéssemos tido a atenção despertada para olhar fora da janela. Teríamos percebido que o Sol vai cada dia nascendo em lugares que vão mudando. Em seis meses essa diferença é enorme, sempre maior que 47 graus, mais que meio ângulo reto. Em lugar disso perdeu-se tempo com um discurso sobre a importância dos pontos Cardeais sem que se tivesse entendido nada. Este me parece o exemplo mais característico das “tiriricas” que foram plantadas em nossas cabeças e que ai se perpetuam. Neste caso esta “tiririca” é ingênua e sem conseqüências. Muitas outras podem não ser tão inocentes e podem condicionar nossa visão do Mundo sem que nos tenhamos dado conta disso. Espero que agora tenha deixado mais claro o propósito e o nome deste livro. Não é por acaso que nossa sociedade tem grande dificuldade de entender e de agir para superar seus problemas. Estamos habituados à não-consistência ou inconseqüência das coisas que “aprendemos” na escola. Estamos ainda muito mais habituados ao não-agir: ao “deixa pra lá”.

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BUSCANDO AS RAIZES DAS “TIRIRICAS”

Creio já ter insistido bastante naquilo que chamei de “tiriricas” presentes em nossas cabeças em todos os níveis de nossa cultura e em todos os graus de nossa escolaridade. Também volto a insistir que não considero muito importante que alguém saiba se o Sol nasce sempre no mesmo ponto do horizonte ou se o Sol

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passa mesmo pelo Zênite ao meio dia. Ninguém é melhor ou mais culto por saber ou não saber isso. Lembro mais uma vez que esses dois exemplos são novamente citados como emblemáticos, representativos de outras tantas coisas tidas e havidas por coisas sabidas. Havia no entanto um par de razões que me intrigava, especialmente com estes vários exemplos. O primeiro era a presença deles em todas as amostras ao longo de muitos anos de investigação. Como e por que esses conhecimentos são tão difundidos. A segunda é sua persistência nas mentes das pessoas, sua permanência e resistência ao “tratamento” do ensino superior. Como e por que “conhecimentos”, como informações desse tipo, permanecem nas mentes e parecem imunes ao ensino superior ?

Qual poderia ser a “fonte” para a presença tão difundida daquelas informações presentes em todas as amostras que eu tinha tido e verificado. Como seria possível “plantar” aquelas mesmas coisas em todas as cabeças(milhares) com as quais eu tinha interagido? A direção para onde olhar parece óbvia: a escola fundamental. Para aí se dirigia minha atenção com a grande interrogação. Mas como chegar até ela e a essa investigação? As universidades, especialmente as oficiais freqüentemente sofriam de uma “enfermidade”: o “mito do alto nível”. Seria considerado “baixar o nível” tratar de assuntos que tivessem a ver com primeiro grau. Minha posição na universidade já se tornara desconfortável com os confrontos que eu tivera justamente com o diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP, também por outras razões. Confrontos com autoridades naqueles tempos de ditadura eram tidos como “subversão”. Assim, no auge de minha produtividade fui eliminado daquela academia, num ato característico da estúpida prepotência dos anos setenta contra quem fosse “apontado” com “subversivo”.

Se por um lado uma porta se fechava, outra inesperada se abria. Dois de meus ex-alunos na UNICAMP se haviam tornado professores do departamento de Física de uma universidade Federal, no Rio de Janeiro. Um deles me convidou a visitar sua instituição para que, a seu convite, me tornasse chefe do departamento de Física daquela instituição. Isso já não atendia a minhas aspirações. Eu buscava respostas para minhas perguntas sobre a origem das “tiriricas”. Eu estava querendo começar um trabalho na busca das raízes do que me parecia o problema do ensino das ciências. Um projeto dessa natureza não poderia ficar num departamento de Física.Foi então que meu ex-aluno, professor da instituição, sugeriu que eu falasse sobre esses meus planos a uma professora que ocupava um importante cargo na administração daquela universidade federal. Essa professora-educadora não só se entusiasmou com minhas idéias como me convidou a começar imediatamente o trabalho que eu havia sugerido. Fui imediatamente contratado junto ao decanato de “pesquisa e pós-graduação”, especialmente para projetos de Ensino/Educação na área da Ciência. Na semana seguinte começamos a desenvolver dois projetos. O primeiro seria o trabalho de verificação de “o que” e “como” se ensina nas escolas primárias das imediações da universidade: a busca das “tiriricas”. O segundo seria um curso de pós graduação

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“lato sensu” para professores universitários em exercício que não dispunham de qualquer título além da graduação, para as áreas de Física e Matemática, separadamente. Tínhamos grande entusiasmo para a nova empreitada. O curso para professores de Física ficou a meu cargo e teve como participantes professores daquela instituição oficial e outros de fora. Ao fim do curso os professores deveriam apresentar uma monografia livre relacionada à sua área. Além das dificuldades já descritas nas páginas anteriores, como “tiriricas”, vários não conseguiram redigir nada que pudesse ser levado a sério. Foi mais uma colheita de “tiriricas”, ao fim do segundo ano.

Mais fácil de organizar e por em marcha, o projeto para envolver os professores das escolas primárias das imediações logo começou a funcionar. O primeiro grupo foi constituído de vinte professores, ou melhor, dezenove professoras e um único professor. O primeiro passo foi um longo diálogo para que se estabelecesse um clima de confiança e cooperação. Só depois de horas de interação começamos a obter um amplo quadro de “o que” e “como” se ensina muita coisa dos programas de ciência em suas escolas.

Logo apareceram os assuntos relacionados a coisas sobre a Terra: dias e noites, estações do ano, planetas, Lua, o Sol, estrelas, etc. como sendo as maiores e mais freqüentes assuntos. Curiosamente as nossas mais conhecidas “tiriricas” não apareceram como dúvidas. Eles buscavam outros assuntos “mais difíceis” sobre os quais queriam saber e que tinham relação com Astronomia. Quando procuramos quais dos assuntos eram os que mais constavam de programas e que deviam ser ensinados por todos, logo apareceram aqueles nossos “conhecidos”. O curioso é que sobre aqueles não havia dúvidas. Eram assuntos que todos “ensinavam” e “sabiam” porque faziam parte dos programas “obrigatórios” e da “tradição” como coisas “importantes”. O passo seguinte foi deixá-los falar exatamente sobre os pontos “obrigatórios” e como eram ensinados. A primeira coisa foi a “importância” e a “determinação” dos pontos Cardeais. Aqui tivemos o cuidado de que todos falassem ou manifestassem sua opinião. Apareceu então completa a determinação a partir do “braço direito para onde nasce o sol”. Logo se seguiram nossas indagações sobre dia-e-noite, estações,etc.. As “tiriricas” apareceram inteiras, como coisa que todos haviam ensinado ou teriam que ensinar mas sobre as quais não tinham dúvidas. Uma das professora para mostrar quanto isso era fundamental nos programas e procedimentos das escolas, disse que lecionava havia quinze anos e que sempre tivera que ensinar “isso”.

Só depois que todos se haviam pronunciado e concordado é que começamos a discussão. Sobre aqueles assuntos, fomos usando os argumentos possíveis a uma criança que morasse na favela e que nunca havia estudado nada nem de ciências e muito menos de Astronomia. Logo ficou evidente a inconsistência do que havia sido entendido e do que continuava a ser ensinado por aquele grupo de professores. O efeito da discussão foi devastador sobre eles. A professora que lecionava, havia quinze anos, ficou tão abalada que teve uma crise de choro ao

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dar-se conta de que durante toda vida havia ensinado uma ciência que não resistiria aos argumentos de uma criança. Era meu primeiro encontro direto com os professores que ensinavam aquelas mesmas coisas em cuja busca eu andava empenhado. Agora aparecia claramente uma das razões para tão grande disseminação daquelas conceitos tão presentes em tantas amostras. Aí estavam professores de várias escolas dos arredores do Rio de Janeiro, uma amostra bastante representativa. Foi um momento de grande abatimento para aqueles professores. Para mim foi um momento também importante. Começavam a aparecer as raízes das “tiriricas”.

Para aquele grupo de professores foi um momento de decepção. A professora se mostrava mais chocada por dar-se conta de haver ensinado durante parte de sua vida coisas que ela agora percebia sem consistência. Diante do que eles agora reconheciam como “errado” exigiam de mim que lhes ensinasse o “certo”. Não foi fácil resistir à insistência de todos pelo “certo”, por mais que lhes explicasse. Não se tratava de substituir o “errado” pelo “certo”. O problema é entender como e porque havia acontecido isso. Era preciso mudar toda uma concepção na abordagem das causas para esse “desastre”. Agora havia um clamor; “-mas, como vamos ficar diante dessa situação ?” “–E as nossas próximas aulas, como vamos fazer ?” “- O Sr. nos vai deixar assim, com essas frustrações?”.

O mais difícil desse dia, para mim, foi resistir à insistência para que lhes desse as respostas “certas”. Eu também não podia deixar o grupo apenas com o abatimento pelo que acabavam de descobrir. Tive então que lhes prometer que os ajudaria com uma proposta completa que cobrisse todos aqueles assuntos. A abordagem teria que ser outra, que evitasse a repetição e permanência de tantos mal-entendidos.

Esse momento marcou dois nascimentos. Agora, diante dos professores e por sua demanda nascia um projeto calcado sobre as dificuldades que haviam ficado bem à mostra. Nascia também o “Joãozinho da Maré”, personagem que eu havia usado para simular a argumentação ingênua de uma criança que nunca tivesse estudado ciência mas que simplesmente ainda não perdera o hábito de querer entender o Mundo que vê a seu redor.

Aquele primeiro grupo de professores se transformara de amostra a motivação ou “celula mater” de um novo projeto para o ensino fundamental, com textos e abordagem metodológica próprios.

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|MÃO NA MASSA.

Na semana seguinte ao histórico dia que havíamos passado com os professores, começamos a redigir os conteúdos. Era preciso atender a aqueles professores depois do abatimento que eles haviam sentido e que nós havíamos causado. As dificuldades deles haviam se manifestado principalmente em relação a conteúdos ligados a seus programas “obrigatórios”. A urgência maior estava ligada aos assuntos por eles escolhidos e que de fato correspondiam às “tiriricas” que havíamos levantado desde muito tempo. Nosso “socorro” logo começou a ser

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redigido abordando aqueles temas. O assunto dos pontos Cardeais já estava desenvolvido em meu primeiro livro “O céu”, desde 1970.

À medida que foram sendo produzidos os textos, as atividades e o material experimental foram sendo submetidos a ensaios com alunos das licenciaturas da universidade(UFRRJ). Logo depois o material começou a ser testado nas escolas das vizinhanças da universidade e com alguns dos professores que haviam participado do primeiro grupo. O material usado nos ensaios e nos cursos foi fornecido, em caráter de empréstimo, pela própria universidade.

Logo, devido à repercussão do trabalho, se multiplicaram os pedidos, especialmente de escolas públicas do Estado do Rio: Niterói, Seropédica, Paracambí, Itaguaí, Valença, Angra dos Reis, Itaperuna, Campos, Piraí, Barra do Piraí, etc.além da cidade do Rio de Janeiro. O empenho da Secretaria de Educação do Estado do Rio sugeria uma multiplicação ainda maior do número de cursos. Já não se podia sustentar tão grande número de cursos com material cedido por empréstimo pela universidade. Foi então feita uma primeira edição de todos os textos e atividades num pequeno livro chamado “A Terra em que vivemos” da Editora Papirus, com muitas edições. Não tardou para que se multiplicassem os pedidos e convites para outros cursos em diferentes estados da Federação: São Paulo, Paraná, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Amapá.

Cada novo curso representou para mim também uma nova oportunidade de fazer os mesmos levantamentos que tinham sido feitos com o primeiro grupo. Antes do início de cada um desses cursos, uma palestra-debate tornava bem visíveis aqueles mesmos resultados: as mesmas “tiriricas” já detectadas. Agora era possível uma visão muito mais completa da amplitude de nossos problemas de “ensino”. Em todas as amostras o resultado era sempre muito semelhante. Agora, as “tiriricas” eram uma realidade chocante: em todos os lugares eram ensinadas aquelas mesmas coisas e da mesma maneira.

Enquanto eu ministrava um de meus cursos de Física em Santo Domingo (1982), na República Dominicana, com patrocínio do CLAF(Centro Latino Americano de Física), tive ocasião de conhecer e conversar com o ministro da Educação daquele país. Nessa ocasião falei daquilo que me mobilizava naquele momento: o projeto de primeiro grau. Resultado: ainda no mesmo ano eu estaria de volta a Santo Domingo para um novo curso. Este seria o projeto de primeiro grau agora exportado. Todos os textos foram traduzidos naquele país pelo Prof. Juan Selman professor da Faculdade (oficial) de Engenharia local e que havia feito meu curso de Física, anos antes na Costa Rica(1979). Assim apareceu em versão hispânica o meu “Juanito de La Marea”.

A essa altura estava clara a origem das “tiriricas”. Nossa escola de primeiro grau é uma grande “fonte” de um grande número de mal-entendidos, tanto pelos conceitos equivocados que são difundidos como principalmente pelo alto grau de alienação e passividade de seus procedimentos. E como explicar que as pessoas

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sequer percebem o engano e continuam “ensinando” conceitos que todos os dias são desmentidos pela evidência dos fatos.?- Seria só olhar.

Como seria o procedimento ou método a ser aplicado no uso do projeto de primeiro grau? Já dispúnhamos de uma grande experiência com a aplicação de minha proposta a um grande número de cursos de Física, tanto no Brasil como em muitos outros paises da América Latina. Além de incorporar minha tese de doutorado, terminada em 1973, o método agora seria estendido ao treinamento dos professores do primeiro grau, usando o material especialmente escrito para esse nível e finalidade. A aplicação da proposta em termos de método está resumida no uso de cinco verbos aqui considerados como importantes pelas suas correlações com o processo educativo. Todo o ideário e os ensaios estão publicados e documentados em meu livro “Com(ns)Ciência na Educação” com várias edições pela editora Papirus de Campinas,SP.

Não pretendo nem posso submeter o leitor ao exame aqui de todo o ideário da proposta para ser aplicada como minha alternativa ao ensino de primeiro grau. Há no entanto algumas “balizas” mínimas que julgo indispensáveis. Afinal, são elas que pretendem substituir, como alternativa, um ensino baseado fundamentalmente no discurso do professor como “fonte” do conhecimento do aluno, que quase só ouve. Quero deixar clara uma profunda mudança tanto na concepção quanto na prática de fato. A preocupação de que essa alternativa não ficasse somente na proposta ou como via de regra acontece, “em potencial”. Eu mesmo conduzi todos os ensaios desde o início como também as muitas dezenas de cursos realizados em tantos lugares e instituições. Também é preciso lembrar que estamos tratando de assuntos ensinados nas escolas, da quarta série em diante, pressupondo crianças que, bem ou mal, estão alfabetizadas.

O conhecimento fundamental para o entendimento do Mundo não pode ser simplesmente “transplantado” pelo discurso de uma “fonte”, a fala do professor para o “receptor”, o aluno que simplesmente ouve.

A construção do conhecimento de alguém é um processo eminentemente pessoal que envolve seus sentidos, sua inteligência, vontade e iniciativa.

A condução do processo educativo e de construção do conhecimento cabe ao professor cuja maior experiência deve tornar o trabalho mais econômico, interessante, produtivo e agradável.

Nada dispensa a participação ativa do educando na construção de seu próprio conhecimento.

A adesão a uma tarefa importante por parte do educando pode ser despertada pela fala do professor. Nisto está um dos grandes aspectos da atuação do professor: mostrar a relevância do que vai ser estudado e fazer uma breve introdução sobre o assunto.

O papel do professor deve ser de constante orientador/ativador/moderador das discussões, além de interrompê-las sempre que se faça oportuno acrescentar informações ou comentários que lhe

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pareçam importantes pra aquele contexto. O professor deve ser poupado da tarefa de dizer as coisas óbvias que podem e devem ser extraídas dos textos pelos educandos. Não se excluem palestras do professor quando estas lhe parecerem necessárias ou oportunas.

Os alunos devem ser agrupados em números não maiores que seis. E´ recomendável que os grupos também sejam não menores que três. Cada grupo pode trabalhar ao redor de pequenas mesas ou mesmo no chão, se elas não existirem. Muitos de nossos cursos foram dados em ambientes externos, com todos sentados na grama, por exemplo.

Dentro de cada grupo, cada aluno lê em voz alta (apenas para seu grupo) um pequeno trecho, enquanto os demais anotam os lugares em que tenham dúvidas ou que lhes pareçam interessantes para discutir. Todos devem ler um trecho.

Terminada a leitura do texto, segue-se a discussão dentro de cada grupo. Esta deverá abordar todas as dúvidas que tenham sido levantadas. Todos devem ser ouvidos. E todos devem ser exortados a emitir sua opinião.

O professor que esteve circulando pelos grupos para observar as dificuldades de leitura(esta também é parte importante), acompanha as discussões. Outra vez é importante o papel do professor em balancear as discussões e às vezes evitar que ela chegue a algum impasse ou que alguém fique todo o tempo com a palavra em prejuízo dos outros. Deve também evitar que a discussão transborde para assuntos muito distantes do objetivo principal.

Terminada a discussão, passa-se logo à Atividade relacionada ao texto. Para isso o material deve estar preparado previamente e disponível. O material muito simples e de baixo custo foi pensado para ser manipulado por todos. As atividades sempre suscitam muita discussão dentro de cada grupo. E´ importante que os alunos saibam que se espera deles também alguma coisa a ser acrescentada ao texto e/ou ao assunto de maneira geral.

O professor deve interromper a atividade quando lhe parecer oportuna alguma observação ou instrução para enriquecê-la ou para superar alguma dificuldade de caráter geral. Também ao professor cabe dar a atividade por terminada e acrescentar um encerramento que lhe complete o sentido. Ao professor cabe também estabelecer um clima de cooperação entre os educandos e estimular a interação entre os indivíduos e entre os grupos. O professor deve ser lembrado a agir, fazendo que os alunos vivenciem respeito às opiniões e diferenças entre eles. ETICA e CIDADANIA mais que tema de discurso, devem ser exercitadas durante o desenvolvimento do trabalho(aula).

È importante que os alunos saibam previamente que agora não vão assistir a um jogo mas vão “jogar”. Também é importante que eles saibam que seu desempenho está sendo visto, levado em conta e registrado. Devem saber das ações que se espera deles: LER. DISCUTIR, FAZER( a atividade), ACRESCENTAR alguma contribuição sua, e COOPERAR com a trabalho do grupo.Também é recomendável que saibam que esse desempenho registrado é

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importante para vários aspectos de seu desenvolvimento e eventualmente de sua avaliação. Que neste caso não vai depender do fator sorte/azar. Vai depender de um trabalho suave, contínuo, interessante e cheio também do prazer lúdico de descobrir coisas importantes para seu entendimento do Mundo. È´ importante que o professor deixe visível sua aprovação imediata para ações expressas pelos verbos. È importante que o professor expresse sua aprovação a ações independentemente de seu conteúdo.Essa aprovação deve ser manifesta sem desencorajar opiniões que possam ser consideradas “erradas” ou “descabidas”. Cabe ainda ao professor estimular um convívio cordial e cooperativo entre todos os participantes. Não é necessário o silêncio. È no entanto importante que o nível do ruído seja mantido dentro dos limites do confortável. Muito ruído compromete o rendimento do trabalho de todos: papel moderador do professor.

Todo o material a ser usado é de baixo custo e fácil obtenção mas precisa ser adquirido e estar pronto para que não haja perda de tempo e de concentração nos objetivos. Não se preconiza provas para medir ou mesmo “avaliar” com números o desempenho dos alunos. E´ preciso reconhecer que avaliação é uma técnica que exige conhecimento especializado que não se pode exigir do professor. Muito mais difícil é medir aquilo que chamamos inteligência e mesmo EDUCAÇÃÔ. Não é possível nem importa saber se duas pessoas “aprenderam” exatamente com a mesma profundidade determinado assunto quando se está tratando de educação. E aqui é disto que estamos tratando. Há aqui uma outra questão importante para ser pelo menos lembrada. As aptidões ou “tipos de inteligência” de cada um podem ser muito diferentes para diferentes áreas do conhecimento. Em meus cursos de treinamento para professores dos três níveis, não teria mesmo muito sentido falar-se em “provas de avaliação”. Isso porque em todos eles estou “marcando em cima” todos os participantes para exortá-los, incentivá-los e orientá-los a participar de tudo. Faço, sempre que possível, uma avaliação de como o curso pareceu a eles. Todos acabam por se empenhar muito. Muito raramente alguém não se empenha. Nesses casos não há muito que fazer, seja qual for o método ou “prova” a ser aplicada. E´ preciso reconhecer que aprender é um ato que envolve principalmente vontade. Mesmo quando se aplica esta proposta, admito que a questão da avaliação possa ser deixada a critério do professor. Considero também aplicável a promoção automática, sem provas para “passar de ano”. Isso quando se acompanhou o desempenho do educando e depois de lhe haver deixado clara a sua oportunidade de crescer. Será que podemos obrigar alguém a se educar? Podemos e devemos exortar, mostrar, convidar e orientar. Sabemos que um dos grandes problemas da escolaridade no Brasil é da grande repetência. Isso se deve a diversos fatores cujas causas não cabe discutir aqui. Quando esta proposta de método é usada pode se tornar razoável a promoção automática, desde que o aluno tenha tido todo seu desempenho acompanhado de perto. Mesmo quando se usa critério de notas,

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quase sempre acaba por se adotar alguma “exceção” para resolver situações em que o rigor não pode ser tão numérico e a exatidão dos números fictícia.

USANDO OS CINCO VERBOS

A proposta do meu trabalho com os alunos sempre incluiu, desde 1970, cinco verbos considerados como indicadores importantes das correlações associadas

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ao crescimento do educando. Esses verbos são: LER, DISCUTIR, FAZER (as atividades), ACRESCENTAR e COOPERAR.

LER. A primeira das iniciativas de fato nesta proposta é a necessidade de exercitar a leitura. Todos devem ler, em voz audível para dentro de seu grupo. Na imensa maioria de nossas escolas quem faz o discurso é o professor, enquanto os alunos ouvem, anotam ou dormem. Seria inútil gastar tempo para enfatizar a importância de se saber ler bem como condição básica tanto para a construção do conhecimento como para o exercício da cidadania. No entanto o que se constata é uma verdadeira penúria dessa habilidade fundamental em todos os níveis de escolaridade. A leitura em voz audível para os outros do próprio grupo é também uma rica oportunidade de interação entre os jovens. Todos esperam dessa leitura os argumentos para a próxima discussão, feita logo a seguir. A leitura em voz audível por outros é também oportunidade para que o jovem educando ouça sua própria voz. Isso contribui para seu próprio reconhecimento, para vencer inibições e para legítima auto-estima. A clareza da dicção, a entonação durante a leitura e a observação da pontuação devem ser exercitadas. Neste caso isso se torna bem perceptível para o entendimento de fatos ligados à Ciência, constantes dos textos. A circulação do professor entre os grupos pode e deve observar, ajudar e eventualmente corrigir problemas ou dificuldades também na leitura de seus educandos.

DISCUTIR. Esta é outra ação das fundamentais tanto na construção do conhecimento quanto no exercício e desenvolvimento do educando, como pessoa. A discussão promove a “digestão” daquilo que se leu e que se ouviu, ou sua rejeição. Neste caso, no verbo discutir estão contidos vários outros como: verbalizar suas idéias, criar argumentos, fazer-se ouvir e também saber calar para ouvir os outros. Todos estes aspectos podem e devem ser exercitados no processo de construção do conhecimento e no exercício da cidadania. Nada melhor e mais oportuno que praticá-los em situações e conteúdos concretos, em aula. Não se aprende o exercício da cidadania ouvindo discursos sobre ela mas praticando-a diariamente. Esse é outro aspecto em que nossa cultura é tão carente porque raramente o exercitamos. Uma simples observação do que se passa em reuniões de condomínio ou mesmo no Congresso Nacional evidencia essa carência. Falta-nos uma educação cidadã. Isso se pode e se deve aprender por exercício na escola. E´ na idade em que estamos na escola primária que se formam muitos dos nossos hábitos. Mais tarde poderemos ouvir muito falar sobre isso. Mas será mais difícil mudar os hábitos já formados. Mais uma vez se torna aqui importante o papel orientador do professor, portanto da instituição ESCOLA.

FAZER (as atividades). Parte obrigatória em minha proposta de ensino é a realização de atividades que envolvem também as mãos. As atividades foram desenvolvidas para serem realizadas com material simples, de baixo custo, fácil obtenção e que não exigem nem recinto nem espaços especiais como laboratórios. Todas elas estão intimamente relacionadas aos textos que as precedem e

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contemplam exatamente as necessidades levantadas nas pesquisas com os professores do primeiro grau. Elas também foram projetadas para serem desenvolvidas em trabalho de grupo para operacionalizar os conceitos abordados nos textos. Todas envolvem também um pouco do ingrediente “desafio” à iniciativa e à inteligência. Elas constituem aplicação prática de conceitos no processo de construção do conhecimento: a iniciativa de uma ação inteligente em que se empregam também as mãos.

ACRESCENTAR. Na apresentação do assunto feita pelo professor recomenda-se que o educando fique sabendo o que se espera dele em termos de desempenho para seu proveito: ler, discutir e fazer as atividades. Espera-se também que acrescente tudo que lhe parecer: informações, idéias, sugestões ou qualquer outro tipo de aporte para maior proveito seu e do grupo. O conhecimento adquirido a cada texto ou atividade deverá ser enriquecido pelas contribuições feitas pelo grupo. Aqui interessam não só as informações de cada um mas também e principalmente a oportunidade de se expressar, exercitando a verbalização, argumentação, dicção e uma legítima auto-estima.

COOPERAR. Há uma parte muito importante, independente do conteúdo de que se esteja tratando, que deve permear todo o trabalho do grupo: um ambiente cooperativo. Este deve se traduzir no hábito de partilhar dúvidas, conhecimentos e o material experimental. O professor deve exortar, estimular e reforçar comportamentos que expressem espírito de camaradagem, solidariedade e gentileza no trato entre os educandos. Desenvolver um clima cooperativo aumenta o rendimento do trabalho e educa para a cidadania. Durante o trabalho o ambiente pode e deve ser alegre, sem ser barulhento ou de desordem. O caráter lúdico do estudo pode torná-lo mais agradável e até produtivo.

Os cinco verbos que denotam ações visíveis figuram numa folha (“registro de desempenho”) onde estão também os nomes dos alunos. Com ela o professor pode ter um completo “mapa” sobre o desempenho observável de todos. Os alunos devem saber da existência da “folha de registro” e que seu desempenho é observado e levado em conta. Dessa maneira o professor dispõe do registro para, se quiser, usá-lo como “avaliação”.

Registro de desempenho ALUNO LEU FEZ(atividade) DISCUTIU ACRESCENTOU COOPEROU OBSERVAÇÕES

joãozinho I I I I I I I I I I I I I I I I I I I I excelente

Mariazinha I I I I I I I I I I I I II I I dif. dicção

Francisco I I I I I I I I I I I I I I I I dif. leitura

oaqJuim I I I I I I I I I I I I I I trouxe recorte

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Luiz I I I I I I I I I I I I I I I I detem palavra

.Desaconselha-se a aplicação de “provas”. E´ preciso reconhecer dois fatos

importantes e que em geral não são levados em conta. O primeiro é que é muito difícil produzir “provas” que realmente avaliem. Para que isso acontecesse seria necessário que o professor tivesse tido um treinamento especial em avaliação. As provas aplicadas, via de regra, não medem nada. Em segundo lugar, é preciso admitir que diferentes pessoas aprendem em quantidades e profundidades diferentes sobre um mesmo assunto na mesma aula. Não há nenhum mal nem nada de anormal nisso. Quase sempre a indiferença dos alunos é causada por um ensino aborrecido, desinteressante, alienado do Mundo e feito principalmente com base no discurso do professor. Diante disso também são de muito pouco significado os períodos chamados de recuperação, muito mais pró-forma que realmente úteis. A repetência é um grande problema também por obstruir o escoamento de uma população escolar que sobrecarrega o sistema oficial de ensino. Nesta minha proposta, se o professor quiser e de acordo com os alunos, a folha “registro de desempenho” pode servir também para algum critério de promoção e até de “nota”. Isso apenas no caso de que por alguma razão de ordem burocrática seja necessária uma nota numérica. Acredito ser sempre preferível, no caso de educação básica, conseguir o empenho do educando pela persuasão e pelo interesse que o assunto deve despertar. Esse é sempre um grande desafio na missão do professor. Ser capaz de mostrar a relevância do que vai ser estudado é talvez a maior virtude do professor e seu desafio. Mostrá-lo de maneira atrativa ao educando exige competência, visão clara do que vai ser apresentado, além de uma grande dedicação pelo seu trabalho de educador.

Uma das formas recomendadas de avaliação pode e deve ser a incumbência de indivíduos ou grupos de apresentarem publicamente um trabalho relacionado ao que se está ou esteve estudando. A atribuição de responsabilidades individuais e coletivas e sua cobrança para aparecerem diante de outros, tem grande efeito educativo e de construção de uma legítima auto-estima. É verdade que isso exige tempo. E´ por essa razão que uma verdadeira educação exige escola fundamental de tempo integral. Algumas tentativas públicas de implantação da escola em tempo integral têm esbarrado na dificuldade de os professores preencherem o tempo com coisas relevantes e interessantes. Isso exige uma “munição” para a qual os professores, em geral, não estão preparados. Para tanto os professores precisam de um treinamento especial.

Para poupar o leitor ou professor da enfadonha descrição das pesquisas que resultaram na identificação do que tenho chamado de “tiriricas”, seus aspectos mais importantes foram contextualizados e transformados numa “historinha” e numa peça de teatro seguida de uma discussão e debate.

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JOÃOZINHO DA MARÉ NA ESCOLA( peça em três atos e um debate)

Rodolpho Caniato PRIMEIRO ATO

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Época: fim dos anos setenta(1977).Lugar: Favela da Maré, situada próxima à confluência da Avenida

Brasil com a via de acesso ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.Personagens: Joãozinho da Maré, garoto escurinho, muito vivo e

interessado em entender o Mundo e saber das coisas. Maneco, moleque pretinho, vendedor de amendoins na zona Sul. Alemão, moleque “sarará”, muito “caxias”, ajudante da Professora e seu porta voz junto à comunidade. Lingüiça, adolescente (muito magro) que só está interessado na merenda escolar. Teleco, moleque muito esperto desinteressado pela escola mas muito amigo do Joãozinho. Seu maior sonho é ser mestre sala de sua princesa, a futura porta-bandeira da escola Unidos da Maré.

Cenário: Centro de um pequeno espaço entre os barracos da Favela Como fundo, bem distante, no horizonte, à direita pode-se ver o “Pão de Açucar”. Ao fundo, do lado esquerdo, vê-se a torre do aeroporto do Galeão(atual “ToM Jobim”). Como fundo, mais distante, ainda do lado esquerdo, vê-se o perfil da Serra dos Órgãos, onde é bem característico o “Dedo de Deus”.

Resumo: Os moleques, tendo como centro o Joãozinho”, estão falando sobre seu dia-a-dia na grande cidade do Rio de Janeiro. Cada um tem aventuras e desventuras para contar de suas vidas faveladas.

Maneco conta das dificuldades para vender o amendoim que tem que estar sempre quente. E’ uma trabalheira, além de andar muito para vender, ter que manter sempre acesas as brasas que conservam quentes seus cartuchos de amendoim. Toda hora é preciso assoprar ou estar balançando sua lata-fogão. Depois de vender tudo, quando vende, ele volta para casa dependurado no pára-choque traseiro ou de carona em algum ônibus.

Alemão . Esse nunca falta à aula na escolinha da Maré e decora tudo que a professora dita, mas muito pouco entende: -“é mais fácil decorar e a professora me dá deis, cara”, é sua justificativa.

Lingüiça. Só vai à aula quando, de véspera, fica sabendo com certeza que vai ser distribuída uma merenda. Ultimamente ela, a merenda, anda faltando muito. Teleco já toca tamborim na ala juvenil da escola de samba “Unidos da Maré” e sonha ser mestre-sala de sua princesa, futura porta-bandeira.

Joãozinho , apesar de quase não ir à escola, se destaca pelo seu interesse em querer observar e saber das coisas. Talvez por ir pouco à escola, não se lhe apagou a curiosidade de olhar para o Mundo e querer entender aquilo que vê. Seu trabalho é ajudar um irmão um pouco mais velho, que já é arrimo de família. Os dois passam o dia a vender flores e frutas, lá pelas esquinas de Copacabana. Desde antes de entrar para a escola, ele alimentava grande ansiedade para ver ou ouvir de perto alguma coisa sobre a Ciência. Algumas coisas de que

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ele ouvira falar ou havia visto na televisão, lhe tinham despertado a vontade de saber mais. O que ele está contando a seus amigos é principalmente sobre o aprendizado da rua e seu desapontamento quando, finalmente, chegou a hora de ver isso na sua escola. Sua expectativa das aulas de Ciência era de que elas teriam a ver com tudo que ele ouvira falar, sobre tantas coisas interessantes. À medida que as aulas foram acontecendo, seu desapontamento foi se tornando maior. Era uma chatice aquela “decoreba” de “cabeça, tronco e membros”. Ele gostava de fazer muitas perguntas e a professora já estava ficando amolada, com tantas que ele fazia fora do programa. Isso atrapalhava as “aulas, o cumprimento do programa” e, muitas vezes, colocava a professora num beco sem saída.

Um incidente tinha deixado a professora meio arisca com o Joãozinho. E’ que numa das aulas obrigatórias, segundo os programas vigentes, o assunto era fusos horários. Depois de muitas definições, a professora havia falado sobre o dia, a noite, as horas, etc. No fim daquela aula, a professora tinha falado sobre o sol e as horas. A última definição naquele dia foi sobre o meio-dia. A professora, como sempre fizera, havia muitos anos, definiu o meio-dia como “a hora em que o sol passa a pino”. Diante das dúvidas sobre o que queria dizer “a pino”. A professora explicou que “a pino” quer dizer “no ponto mais alto de céu”, ou “bem sobre nossas cabeças”, ou “no nite”. Isso era o mesmo que dizer que ao meio dia nossas sombras, ou a sombras dos postes (verticais) desapareceria. Naquele dia, como sempre, a aula terminava um pouco antes do meio-dia. Joãozinho que sempre queria entender as coisas, havia sugerido à professora que se aproveitasse a ocasião para ver a sombra desaparecer, debaixo dos pés da gente, ou debaixo dos postes, logo depois da aula.

A professora não aceitou a sugestão , alegando que não tinha tempo para isso. Além de tudo, tinha que sair depressa e tomar o ônibus para ir dar mais um período de aulas, em Nova Iguaçú. Somente, Joãozinho e seu pequeno grupo de amigos, saíram da sala para ver as sombras que deviam “desaparecer” . Ainda não era bem meio-dia. O pátio da escola estava cheio de bandeirolas para a festa junina daqueles dias. Havia muitas estacas de bambu espetadas no pátio, para sustentar as fiadas de enfeites coloridos das festas de São João. Faltavam alguns minutos para o meio-dia. As sombras ainda estavam muito longas. Os meninos, atentos às sombras dos bambus, perceberam que elas estavam mesmo diminuindo...... . Mas estavam ainda muito compridas. O pequeno grupo, tinha os olhos firmas nas sombras para ver o momento em que elas desapareceriam. Bate meio dia. As sombras haviam encurtado, mas ainda estavam muito compridas, quase do mesmo tamanho das estacas. Cada um olha para a própria sombra e para a de seus colegas. Todas as sombras ainda estavam muito longas. As sombras não desapareceram ao meio-dia. Decepção do Joãzinho e de seu amigos.

No dia seguinte Joãozinho, de volta à escola, conta à professora o que haviam observado: as sombras ainda eram bem longas, quando “deu” meio-dia.

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-“Com certeza, vocês não olharam direito”, foi a resposta da professora. “Todo mundo sabe que ao meio-dia, o sol passa a pino. Faz quinze anos que eu ensino esse assunto”. Em todo caso, poderia ter havido um engano . -“Será que quando olhamos, o sol já tinha passado a pino, e nos não vimos ?” Será que eles haviam observado depois de passado o meio-dia?

Com essa dúvida, Joãozinho e seus amigos resolvem “matar” a aula do dia seguinte. -“Vamos verificar se o sol passou ou não passou a pino”. Para tanto combinaram de se encontrar bem cedo, antes que o sol aparecesse, numa grande esplanada que estava sendo feita, nas imediações de sua Maré. Era um grande terreno, recém aplanado para ser urbanizado, onde já estavam fincados os postes..

Logo que o sol nasceu, os garotos puderam ver as sombras muito longas. Eles acharam muito curioso o que nunca tinham notado antes. Bem cedo, as sombras são muito compridas e vão encurtando rapidamente, enquanto lentamente vão mudando de direção. Era bem visível que a sombra estava “encolhendo”, bem depressa.

-“Hoje vamos tirar a dúvida”, pensaram todos.`A medida que as horas foram passando, as sombras foram mesmo

encurtando. Quando já estavam mais próximos do meio-dia, eles perceberam que a sombra, agora, continuava a encurtar. Só que agora encurtava mais devagar. Agora, a sombra parecia mudar mais depressa de direção. Já estava faltando pouco para o meio-dia e as sombras ainda estavam muito longas. Quando “deu” meio-dia, as sombras ainda estavam mesmo muito compridas. Em seguida, as sombras de todos postes, todas paralelas entre si, foram mudando de direção e começaram a aumentar para o outro lado. Não havia dúvida. As sombras dos postes ao meio dia ainda eram muito grandes, quase do mesmo comprimento que os mesmos postes.

As sombras não desapareceram ao meio-dia. Não havia a menor dúvida. Pelo contrário, elas ainda eram muito compridas ao meio-dia. Portanto, o sol não passou “a pino”, como “ensinara” a professora.

No dia seguinte, Joãozinho voltou à escola e contou o que ele e seus amigos haviam observado.

-Ao meio dia, professora, a gente tava de olho. A sombra ainda era muito grande, quase do tamanho do poste. O sol, então não passou a pino, fessora.

-Olha, Joãozinho, você já está me fazendo perder muito tempo com essa história e está atrapalhando minha aula. Pare de perturbar. Anote o assunto de hoje.

Joãozinho agora tinha certeza que a sombra não desaparecera e portanto, o sol não passara pelo tal de “a pino”, nem pelo Zênite.

A convicção e a insistência do garoto, embora não fosse desrespeitosa, havia deixado um “clima” desagradável entre ele e sua professora. Isso tudo acontecera no meio do ano. Joãozinho só voltara à escola nas últimas aulas do ano, quando outro incidente havia acontecido com ele.

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Já era fim do ano letivo. Eram as últimas aulas do ano. Joãozinho estava animado, principalmente pela merenda que havia melhorado. Por isso, nosso herói, está sentado na primeira fila de carteiras. Quando toca o sinal para o fim da aula, ele sai correndo, para ser o primeiro da fila do lanche. Ao sair da sala com tanta pressa, ele dá uma topada com o dedão na soleira da porta. Todos vinham atrás dele. Gemendo e chorando de dor, ele sai para o pátio, segurando o dedão ferido. Sai mancando e olhando para o estrago que acaba de fazer no seu pé. Quando a dor vai aliviando, ele continua a olhar para o pé. Só que, agora, outra coisa lhe arrebata a atenção.

- “O turmaaaa!” - Telecooo !! Alemãooo !! Manecooo !! Linguiçaaaa !!Vem cá

pessoal. - Olha só, a sombra tá curtinha. Parece que vai sumir”. Seus amigos acodem ao seu chamado. Todos olham para a

sombra que está sumindo..... Mais alguns instantes...... - “Sumiu”, gritam em coro. Finalmente, o sol passara a pino. Só que ainda faltava um quarto de hora para o meio-dia.

Tudo isso estava sendo narrado e comentado por Joãozinho para explicar seu desapontamento com a sua escola e seu ensino. Essa era a razão por que ele já quase não estava freqüentando as aulas.

Nisso entra o Alemão, trazendo um recado da professora. Ela andava muito preocupada com a grande evasão escolar. “Muita gente tá faltando”, diz o Alemão. E logo acrescenta:

-A professora mandou dizer para o Joãozinho que amanhã ela vai dar um assunto que ela sabe que ele gosta. Ela manda avisar também que amanhã vai haver uma merenda reforçada.

Todos combinam que na manhã seguinte irão à aula e bradam: -“Amanhã, a gente vamos todo mundo na aula”. Fim do primeiro ato

SEGUNDO ATO

Local: escola da Maré.Época:dia seguinte ao do primeiro ato Escola da Maré, nas proximidades

de favela da Maré.Personagens: Joãozinho da Maré, Professora, os amigos do Joãozinho

(Alemão, Maneco, Lingüiça e Teleco), coadjuvantes(demais alunos).

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Cenário: Sala de aula da Escola da Maré. O aspecto da sala de aula é de miséria e desleixo. Paredes e carteiras rotas e sujas. Quadro negro pálido pelo desgaste e falta de manutenção.

Primeira cenaResumo: Quando se levanta o pano a sala está vazia . Logo depois

entram os alunos: Joãozinho, seus amigos e os demais alunos. Depois de algumas brincadeiras e falas entre eles, denotando a surpresa pela presença do Joãozinho, a turma se aquieta. Entra a Professora, queixando-se da viagem de ônibus e da caminhada para chegar à escola naquele aterro distante da Av. Brasil.

A professora se admira da presença do Joãozinho que há muito tempo não aparecia na escola.

Logo depois, ela anuncia o assunto do dia: orientação e pontos Cardeais. Em seguida, ela “da” uma aula sobre a importância de a gente saber se orientar, especialmente no caso de estar perdido, no mato, por exemplo.

Para a gente se orientar, diz a professora, é indispensável o conhecimento dos pontos cardeais . Não basta saber o nome deles, que são: Norte, Sul, Leste e Oeste. E’ importante saber como se determinam esses pontos.

Em seguida, a professora começa a dar aquela explicação que sempre dera, durante os quinze anos de magistério e que sempre é dada, em quase todas es escolas, com raríssimas exceções (nunca encontrei uma dessas). Essa “explicação” continua a ser dada.

-Prestem atenção. A gente estende o braço direito para o ponto em que o sol nasce. Esse ponto é o ponto Leste. Depois, a gente estica o braço esquerdo, bem na direção oposta. Esse novo ponto é o ponto Oeste. Aí você terá bem na sua frente, o ponto Norte e atrás de você, estará o ponto Sul.

-“Entenderam ?” , pergunta a professora.-“Entendemos” , respondem os alunos, em coro.Aí , a professora faz um “reforço” para “fixar”a aprendizagem..-“Prestem atenção que agora , vocês vão repetir comigo”-“Primeiro, eu viro o braço direito para o ponto em que nasce o sol. (faz o gesto).-“Esse ....ponto... é... o.... pooontoooo .............?”-“Leeesteee.......”, respondem todos, em coro-“Agora, eu vou estender o braço esquerdo para o lado oposto. (estende o outro braço).-“Esse ...ponto... é... o.. pooontooo.......? ”-“O....e..s..t..e e e e”, responde a sala, em coro. -“Muito bem”, reforça a professora.

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-“Agora , vamos completar”.-“O ponto que fica bem na minha frente é ... o p..o .n..t..o. ... ? “-“N..o o o..r..t.. e e e e e”, responde o coro.-“E o ponto que fica atrás de mim ..... é......o pontooooo ...? -“S..u u u..l l ”, completa a classe.-Muito bem, meus alunos. Agora vocês sabem os pontos Cardeais.

Joãozinho nunca havia estudado nada de ciência, nem desses assuntos que a professora estava dando hoje. Mas o garoto, talvez por não freqüentar as aulas, ainda não tinha perdido a natural curiosidade e a vontade de entender o que via e ouvia. Ele olhava para o mundo com olhar de quem quer e gosta de entender as coisas.

Quando a professora já estava a ponto de passar para um outro assunto, dando os pontos Cardeais por coisa sabida , Joãozinho expõe sua dúvida.

-Fessora, em que dia que a gente deve fazer isso daí, que a Sra ensinou, de estender o braço direito para o lado onde nasce o sol ?

Para a professora parecia descabida a dúvida. Ninguém havia nunca tido dúvida semelhante. Nem a professora havia pensado em qualquer data. Quando a ela ensinaram esse assunto, foi do jeito que ela acabava de reproduzir. Essa dúvida, agora, depois que acabava de ensinar e de fazer que os alunos repetissem....? Para liquidar o assunto, ela responde que sempre o sol nasce no Leste e que isso não tinha dia especial. Diante da insistência do Joãozinho, ela fica visivelmente contrafeita e pede ao menino que justifique sua dúvida.

Joãozinho fala então de sua experiência simples e vivida no seu dia-a-dia. Ele, a mãe e os outros irmãos moram num barraco que não tem porta nem janela. Por isso, todos os dias, ele e toda sua família acordam com o sol “na cara”. Para ele, literalmente. estava na cara que o sol durante o ano, nasce em lugares muito diferentes.

Ele conta até que na época das festas juninas, no meio do ano, o sol, visto de seu barraco, nasce “lá para os lados do Dedo de Deus”(Serra dos Órgãos), visto do seu barraco. Ele até aponta naquela direção que se vê também aí da escola. “Depois, quando chega o fim do ano, o sol nasce lá para os lados do Pão de Açúcar”, que também é visível de seu barraco e da escola. Ele não sabe dizer de quantos graus é essa diferença. Mas, num gesto com os braços, ele faz um ângulo muito grande. (no Rio de janeiro, essa diferença é de aproximadamente cinqüenta graus, mais que meio ângulo reto).

A professora não sabia o que responder. Nunca ninguém tivera dúvida semelhante, em todos os seus quinze anos de magistério. Não sabendo como sair daquela situação que punha em xeque “seus” pontos Cardeais, a professora achou melhor não dar muita importância ao que o menino dizia. A aula já estava, felizmente, para acabar.

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Sem perceber o constrangimento e a “pontaria” mortal de seus próprios argumentos, Joãozinho ‘dispara’ :

- “se o sol tá sempre mudando tanto na posição que nasce , o ponto Leste também tá mudando sempre. – Os pontos cardeais também tão mudando, junto com a mudança do lugar em que o sol nasce?”. E aí, como é que a gente se orienta?”

Realmente: ou o ponto Leste não é simplesmente o ponto em que nasce o sol, ou esses pontos Cardeais não servem parra nada, porque estão sempre mudando.

Fim da primeira cena( do segundo ato)

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Segunda cena

Resumo: Mesmo cenário e mesmos personagens, porém um mês depois da primeira cena (os protagonistas estão com outras roupas.).

Embora Joãozinho não tivesse sido desrespeitoso, outra vez havia ficado um clima de certo constrangimento. A professora havia ficado “sem saída”, diante dos argumentos do garoto. Por isso Joãozinho achou mais prudente “dar um tempo”, até que passasse a “zanga” da professora com ele.

Ele ficara sabendo, através dos amigos, que ia ser tratado um outro assunto de seu grande interesse. Esse assunto seria “as estações do ano”.

Os alunos, entre eles Joãozinho e seus amigos, entram na classe. Em seguida entra a professora . Começa a aula do dia.

-“O assunto hoje será sobre as estações do ano”.A professora “dá” a aula com aquelas definições que quase sempre são

: são dadas. Em resumo:-O verão é o tempo do calor.-O inverno é o tempo do frio.-A primavera é o tempo das flores.-O outono é o tempo das frutas.Para o Joãozinho, que vive naquela favela do Rio de Janeiro, muito

poucos dias poderiam ser chamados de frio. E’ até, graças a esse calor quase constante que ele sobrevive apenas com um velho calção que, tempos atrás, fora “short” de um garoto da zona Sul. Sua atividade quase sempre é ajudar seu irmão, um pouco maior, a vender flores e frutas em Copacabana. Tanto flores quanto frutas, eles vendem o ano todo. ......E ainda tinha muito mais....

Das imediações de sua favela, próxima à Av. Brasil, ele vê passar muitos caminhões, tanto de flores quanto de frutas, durante todo o ano. Todos dias passam também por ali cortejos que levam flores. São os enterros que se dirigem para vários os cemitérios próximos . Ele também já havia estado num grande mercado dessa região, pegando uma “xepa” e pudera constatar que ali se vende grande quantidade de flores e frutas, durante todo o ano.

Contudo havia um período do ano em que eram mais freqüentes os cortejos que levavam flores pela Av. Brasil: os casamentos . Era o mês das noivas, o mês das rosas, o mês de maio .............?. “Então , maio devia ser na primavera ?”

Todas essas coisas vivenciadas por Joãzinho, iam lhe passando pela cabeça, enquanto a professora continuava falando sobre as quatro estações. Para fazer a “fixação”..dos conhecimentos recém ensinados.

-“Vamos ver se vocês aprenderam....”-“O verão é o tempo ... do...........?” , pergunta a professora.-“CAAALOOOR” , respondem todos.-“O inverno é o tempo... do.....?”-“F R I I I O O O”, responde o coro.

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-“A primavera ...é.... o.... tempo.... das....?”-“FLOOOREEEES”, responde o coro, agora com mais força.-“E o outono é o tempo ...das... ?”-“FRUUUTAAAS”, terminam os alunos.

Joãozinho que, enquanto isso estava pensando, resolve perguntar.

-“Porque existe tempo de frio e tempo do calor , fessora ?”-“Muito bem, Joãozinho . Essa é uma boa pergunta”Com essa pergunta, a professora percebe que o menino está mesmo

querendo saber e não é movido por intenção de atrapalhar. Satisfeita com a oportunidade de poder mostrar seu conhecimento, além do que o programa pedia, ela dá uma resposta mais “científica”.

-“Eu já expliquei, numa outra aula: a Terra que é uma grande bola, está girando no espaço. Além do movimento de rotação, que produz os dias e as noites, a Terra faz uma grande volta ao redor do Sol. Essa volta não é circular. E’ uma órbita elíptica. Isso quer dizer que em parte do ano a Terra passa mais perto do Sol. Quando passa mais perto é verão. Quando passa mais longe é inverno”

-“Fessora”, pergunta o Joãozinho.- “A senhora não explicou pra gente que a Terra é uma grande bola e que ela está girando? –Que é por isso que tem dia e noite ?”-“E’ isso mesmo , Joãozinho ”, confirma a professora.

-“Quer dizer que quando a bola está girando mais perto do Sol, é verão e q quando está girando mais longe, é inverno ?

-“Muito bem, Joãozinho, é isso mesmo.” -“Fessora ?” -“Que é Joãozinho” , responde a professora , já com certa impaciência .

-“Eu tava aqui pensando”. -“Pensando o que, Joãozinho ?” , com mais impaciência.

Aí, Joãozinho, a seu modo, começa a argumentar de maneira simples e ingênua da seguinte forma. Se a Terra é uma bola que está girando mais perto do Sol, então deve ser verão em toda a bola. Ao mesmo tempo, porque ela está girando. Se é o maior afastamento da Terra do Sol que provoca o inverno, então deve ser inverno em toda a Terra. Se fosse o maior ou menor afastamento do Sol, a Terra deveria ter, em toda ela, verão, quando próxima e, em toda ela, inverno, quando afastada. O argumento era simples e claro. A professora nunca se havia dado conta da inconsistência da coisa que repetira durante tantos anos, como coisa científica.

A essa altura da argumentação do Joãozinho, a professora já estava tensa. Ela nunca havia pensado nisso e não sabia como iria responder ao menino. Por um lado os argumentos de “perto” e “longe” do Sol, como causa das

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estações estavam em verdadeiro “xeque-mate”. Tinha que ser só inverno e depois só verão. Mesmo ela, sabia que existem simultaneamente verão e inverno

Por outro lado o Joãozinho havia argumentado que -“A gente sabemos que tem verão e inverno, ao mesmo tempo” .E’ que Joãozinho e seus amigos, quando chegava o fim do ano, só saiam

para o ensaio da escola de samba “Unidos da Maré”, depois de ver o jornal da televisão. Aí podiam ver “ao vivo” os diferentes países atolados na neve, enquanto ele e toda gente de sua favela viviam verdadeiro sufoco de calor: Rio de Janeiro 40 graus.

Além de ver na televisão, Joãozinho e seus amigos faziam algum “biscate” nas proximidades do aeroporto do Galeão, ali perto. Sempre ganhavam algum troco, carregando alguma mala de passageiros que chegavam da Europa. As malas ainda vinham geladas. As pessoas ainda traziam pesadas roupas de frio e contavam que há poucas horas ainda estavam sob a neve do inverno, no lugar de onde acabavam de chegar: da neve ao sufocante calor carioca.

Diante da insistência do Joãozinho naqueles argumentos que resultavam de sua experiência, de seu dia-a-dia, a professora, sem saída, reclama de sua “impertinência que só visava atrapalhar e tumultuar” sua aula . Por essa razão, a professora resolve pontificar com sua “autoridade científica”. Já bem nervosa, ela alega que faz quinze anos que ensina tudo isso e que nunca ninguém tinha posto em dúvida seus conhecimentos e sua “autoridade de professora”. E, para enfatizar sua “autoridade”, ela dita, lembrando que esses assuntos poderiam “cair” nas provas :

-“A Terra descreve , ao redor do Sol, uma grande curva que se chama órbita elíptica. Essa órbita é uma elipse, que ora se aproxima ora se afasta do Sol. Portanto, A Terra passa, ora mais perto, ora mais longe do Sol e é por isso que existem verão e inverno. Estamos conversados”.

Joãozinho estava tão convencido daquilo que estava pensando que nem se dera conta de quanto a professora já estava irritada. A ela, os argumentos do moleque soavam como insolência e desaforo, tão segura ela estava de sua Ciência, repetida tantos anos a fio e nunca posta em dúvida.

No momento em que ela enfatizava que a Terra ora passa perto, ora passa longe, Joãozinho se lembrou de uma outra experiência por ele vivida.

-“Fessora ?” -“Que é, menino .Você ainda não se convenceu?”, diz ela

com certa irritação. -“E’ que quando a senhora falô que a Terra , às veis passa

perto e às veis passa longe, eu lembrei dos avião que a gente vemos daquí”.

-“ E o que que avião tem a ver com as estações do ano, menino ?”

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-“Eu achei que tem, fessora. E’ que avião, quando vai chegando, perto, vai ficando grandão. Quando vai pra longe vai ficando piquininim.”

-“E daí ...?” já quase perdendo a paciência. -“Se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente não tinha

que vê ele maiorzão? Depois, quando a Terra passasse mais longe agente não tinha que vê ele menorzim? - a gente vemos ele sempre do

mesmo tamanho, num é?”

A professora com esses argumentos se sente perdida e começa a esbravejar, muito zangada. Se estabelece um pequeno tumulto, pela intervenção de dois amigos, a favor do Joãozinho. A maioria dos alunos, prefere não entrar na “briga” porque já aprendeu que é mais prudente ficar do lado da autoridade, para não se comprometer. Mesmo assim, a discussão fica muito acalorada. A professora, agora aos berros, tenta impor sua autoridade, fazendo ameaças de não mais permitir “gente que fica interrompendo a aula”.

No auge do tumulto e das ameaças da professora, toca o sinal para o fim da aula. A professora é salva de maior constrangimento pelo final da aula

-Triiiiiiiiimmmmm

Cai o pano. Fim do segundo ato.

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TERCEIRO ATO

Lugar : sala de um modestíssimo e pequeno apartamento em Nova Iguaçu, arredores do Rio de Janeiro.Personagens: A professora (Zulêica) do Joãozinho e outra professora, Letícia, com quem ela divide o pequeno e pobre apartamento(conjugado).Tempo : Duas horas depois de haver terminado a aula do fim do segundo ato.Cenário: Sala do modesto apartamento (conjugado) .

Resumo: Num velho sofá, está recostada, descansando a professora que divide o apartamento com a professora do Joãozinho. Ela está lendo, seu horóscopo enquanto ouve notícias de um velho rádio.O noticiário nacional destaca as greves no ABC. O presidente Geisel exonera o ministro do Exército, integrante da linha dura e inicia uma abertura “lenta e gradual”. No cenário internacional as notícias são sobre o nascimento do primeiro bebê de proveta, o suicídio coletivo promovido pelo reverendo Jim Jones, em Jamestown, na Guiana e o reconhecimento de Israel, por parte do presidente Sadat do Egito.

Repentinamente, entra a professora (Zulêica) do Joãozinho, carregando uma pilha de cadernos para corrigir. Ela chega esbaforida pela viagem de mais de uma hora de ônibus, viajando em pé. Ela abre a porta, com raiva e joga sobre a mesa o monte de cadernos enquanto desaba desanimada sobre um velho sofá. Ela lamenta a profissão, a vida e o episódio que lhe ocorrera, duas horas atrás.

O que duas horas antes ( fim do segundo ato), havia acontecido em sua aula, envolvendo o Joãozinho, havia deixado a professora Zulêica muito abalada.

-Mas o que aconteceu de tão grave, Zulêica ?-Quero mudar de profissão, Letícia.Não quero mais passar o que passei hoje. Nunca pensei que me pudesse acontecer uma coisa assim, depois de quinze anos de dar alas para essa gente.

-Desabafa, mulher. Conta o que aconteceu.

Zuleica começa então a narrar para sua colega, tudo que lhe sucedera na aula. Era a culminância de vários episódios de constrangimento, em que sua Ciência tinha ficado em xeque e, sempre com aquele moleque, o Joãozinho.

Ela conta então, resumidamente, todos aqueles episódios em que sua ciência tinha sido “ultrajada” pelo garoto . Era sempre ele. Já nas primeiras aulas, ele havia evidenciado sua decepção por aquelas aulas “tão chatas”, segundo ele, sobre corpo humano: ”cabeça, tronco e membros”. Em seguida, ela reproduz aquele episódio dos pontos cardeais e do “sol a pino”. Hoje, no entanto, tinha sido

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“demais para minha cabeça”, com a história das estações, verão e inverno e a órbita elíptica da Terra; a tal questão do “passa perto, passa longe do Sol”. Além do desastre daquela aula, a professora estava preocupada com a mesma aula que teria que dar, na próxima semana, sobre os mesmos assuntos, para uma outra turma da mesma escola. Os argumentos do Joãozinho podiam “contaminar” outras turmas e comprometer suas aulas futuras de uma ciência agora posta em dúvida. Letícia vai ouvindo, pacientemente. Zulêica, à medida que vai contando, também vai se acalmando e começando a poder enxergar o que lhe acontecera. Mas, era realmente perturbador, pensar que depois de ensinar aquelas coisas, daquele mesmo jeito, por quinze anos, ela mesma começava a ficar em dúvida. Até aqui, tudo aquilo lhe parecia uma verdade convicta. Nunca sequer lhe ocorrera qualquer dúvida. Ela achava que aquilo que havia ensinado era verdade científica.

Depois de muito escutar, Letícia diz ter ouvido falar de coisas parecidas por parte de uma professora sua amiga. Essa amiga contara que havia estado em uma reunião e até em um curso onde se havia levantado essas questões. Era um grupo de professores da UFRRJ que estava mostrando que nossas escolas estão “plantando muita tiririca” nas cabecinhas das crianças. Entre essas “tiriricas” estavam, justamente questões desse tipo.

Diminuída a raiva inicial, Zulêica começa a rememorar as discussões que tivera em classe com Joãozinho. Aos poucos, ela vai percebendo que Joãozinho não tinha dito nem feito nenhum desaforo. Seus argumentos eram claros e ingênuos.

- “Como eu não consegui perceber isso ?”, Pergunta ela a si mesma . No caso de onde nasce o Sol, era evidente. Ela começa a perceber que toda a vida repetira “aquilo”, sem nunca ligar o assunto da aula com sua experiência diária. Afinal, todos os dias, antes de sair para a aula , ela abria sua janela e podia ver que o sol vai nascendo em lugares muito diferentes, até desaparece de sua janela,nas diferentes épocas do ano. Isso faz também o sol entrar e iluminar de maneira diferente o seu quarto, em diferentes épocas do ano.

Letícia lembra que ouvira de sua outra amiga falar desses problemas e dos cursos que estavam sendo dados por aquele grupo, na tentativa de evitar “tanta disseminação das tiriricas”.

Zuleica volta a lembrar a questão do “sol a pino”. Aos poucos, ela começa a admitir que não seria mesmo possível, de nenhuma maneira, que o meio-dia fosse definido pelo “sol a pino”. Afinal, “meio dia” existe em todo lugar. O “sol a pino” só é possível em países tropicais . Tropical, afinal é isso: poder receber o sol a pino , ao menos uma vez no ano. Mesmo no Brasil, boa parte de seu território está fora da região tropical. Essa região tem “meio dia” todos os dias mas , nunca tem “sol a pino”. Todos os países que estão fora da região tropical, como EEUU, Canadá, toda a Europa, etc, têm “meio dia”. Nenhum deles tem, nunca, “sol a pino” .

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Aos poucos, a professora Zulêica, vai se dando conta de que eram legítimos e irrefutáveis os argumentos ingênuos do Joãozinho. Isso a abalava muito, ao dar-se conta de que, durante tantos anos, havia ensinado, como Ciência, uma coisa que não resistia aos argumentos ingênuos e tão claros de um garoto da favela e que jamais havia estudado qualquer ciência.

E...... porque só o Joãozinho ? E os outros...? Porque ninguém nunca cobrara a consistência do que ela sempre ensinara com tanta certeza ? Qualquer das coisas do “caso” Joãozinho poderia ter sido percebida por todos os alunos. Mas ninguém percebeu nada. Nem mesmo ela que ensinava.

Até agora ela achava que “a escola é o lugar onde as crianças desenvolvem suas potencialidades”. Agora ela começava a desconfiar também dessa “verdade” indiscutível sempre repetida em todos os congressos de EDUCAÇÃO. E’ até muito curioso que tenha sido justamente o Joãozinho, que quase não vem à aula. Não seria exatamente por isso que ele ainda mantinha a natural vontade de saber e de entender aquilo que vê e ouve?

Ela se lembra então de uma charge que, anos atrás, vira numa revista e que a deixara contrariada, quase ofendida. A charge mostrava uma fila de crianças entrando numa escola (“ex-cola”?). Na fila dos que estavam entrando, todos tinham as cabecinhas “redondinhas”. Na fila dos que estavam saindo, do outro lado, todos tinham as cabeças “quadradinhas”.

-“Sabe, Zulêica”, completa sua colega.-O que, Letícia ,tem mais ainda ...?-“Tem uma “heresia” ainda maior , daquele professor que tem dado palestras e cursos ,também aqui pela baixada fluminense. Ele diz que grande parte de nossas escolas, em lugar de cientistas forma mais é SENTISTAS .

-“S E N T I S T A S”........?

Porque, segundo ele, o que mais fazemos na escola é treinar os alunos a PASSIVAMENTE, SENTAR E OUVIR”: SENTISTAS , de tanto sentar.Ele acha que além do quase nada que fica do quase tudo que a

gente pensa que ensinou, uma escola que exercita mais as faculdades sentantes do que as pensantes, acaba por deformar não só nosso conhecimento do Mundo mas também o exercício de nossaCIDADANIA

Cai o pano : Fim.

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DEBATES E DESDOBRAMENTOS

Quem é e de onde veio o JoãozinhoDesde o início de minha carreira docente, era usual em minha prática

com alunos e professores o uso de argumentos simples, relacionados com alguma situação concreta. Muitas das questões relacionadas com a Física e com coisas, como as dos pontos cardeais e outras que aparecem no “drama” que acabamos de ver, eram já usadas desde muitos anos. No entanto eu poderia dizer que “Joãozinho da Maré” “ nasceu” em agosto de 1978.

Foi com aquele primeiro grupo de professoras e um só professor que, numa interação mais forte e demorada, esse meu personagem tomou forma. O propósito era investigar o “universo” conceitual entre os professores do ensino fundamental. Meu empenho emocional foi muito grande e com um entusiasmo parecido ao que se tem quando nos nasce um filho de verdade. Não um filho que vem acidentalmente mas um filho planejado. Mas, mesmo um filho conceitual como esse, não poderia ter sido “feito” sem uma “mãe”. Essa “mãe” foi a Profa Yacy Andrade Leitão. Foi todo o entusiasmo dela, uma pessoa muito especial, que com seu zelo e apoio institucional tornou isso possível. Como acontece com os filhos biológicos, seu nascimento veio acompanhado dos melhores sonhos e das esperanças dos pais. Como também acontece com os filhos biológicos, o nascimento e o crescimento desse “rebento” trouxe também grandes dores de cabeça para os “pais”.

Todas as vezes que contei a história ou simplesmente fiz o papel do Joãozinho, questionando os professores, a primeira reação deles foi a de pedir a resposta “certa”. As pessoas sempre querem as respostas “certas”. Não é fácil convence-las de que o problema não está no fato de a resposta estar certa ou errada. Meu propósito nunca foi o de simplesmente mostrar que as(os) professoras (es) estão ensinando coisas “erradas”. O que está em jogo é outra coisa, a meu ver, muito mais séria. O que nos leva a, durante toda uma vida, repetir algo, sem nunca olhar para fora da janela e ver que os fatos estão a desmentir aquilo que repetimos. Em muitos casos, nem sequer teríamos que olhar para fora da janela. A simples atenção ao que estamos ouvindo, ou dizendo, poderia ser o bastante para percebermos a inconsistência da afirmação. No entanto, em geral, não fazemos nem uma coisa nem outra. Por que será que isso acontece e, em tão grande escala ? – O que será que isso tem a ver com a escola?

Outro aspecto curioso é o fato de que, como já mencionei anteriormente, as pessoas passam por uma escola superior e essas coisas, como muitas outras, continuam lá na nossa cabeça e atuando. É nesse sentido que, muitas vezes, a escola superior pode ser entendida como superior, apenas no sentido de ter sido posta “por cima”. E’ a isso que tenho chamado de “tiriricas”, aquela erva daninha,

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quase onipresente e difícil de ser extirpada . Não só nos professores “primários” as “tiriricas” sobrevivem. Tenho, ao longo dos anos, aproveitado um grande número de conferências, cursos e seminários, dentro e fora do Brasil, para verificar a presença das tais “tiriricas”. Elas permanecem, independentemente da cultura “superior”. Já devo ter mencionado anteriormente que as “achei” até em curso de pós graduação em arquitetura. Neste caso (Pontos Cardeais), talvez coubesse aquela expressão usada por um professor, quando propus ao debate aquela história dos peixinhos no aquário sobre a balança: “...isso é demais para a minha cabeça”. E´ difícil imaginar que também na mente de arquitetos sobrevivam “tiriricas” desse tipo.

No caso dos pontos Cardeais, há outro aspecto a considerar. Da maneira como é ensinado aquele assunto é uma verdadeira “jóia” de cultura inútil. Em nossa cultura, no Brasil, não se costuma fazer uso dos pontos ou direções Cardeais. Se alguém tivesse tido, uma única vez na vida, necessidade de fazer uso daqueles conceitos, teria percebido. Teria ficado “desorientado”, ou teria percebido que os pontos Cardeais não são como foram ensinados, ou não servem para nos orientar porque estão “mudando todo o dia”.

Nos últimos 15 anos tive uma outra oportunidade de verificar os equívocos sobre aqueles pontos. E’ que nestes anos tenho dado inúmeros cursos sobre navegação. Esses cursos atingem pessoas de todos os níveis e de diferentes áreas de conhecimento. Eles são também uma outra oportunidade de verificar a onipresença daquelas “tiriricas” de que estive falando.

Como já mencionei, sempre, quase todas as pessoas querem saber a resposta “certa”. Eu, no entanto, me recuso a simplesmente dar a resposta “certa”. Mesmo que eu me dispusesse a dar a resposta “certa”, as pessoas, outra vez estariam fazendo um “ato de fé”. Este poderia estar tão errado quanto aquele em que estiveram acreditando por toda a vida .

Outro aspecto curioso tem sido observar que diante de minha recusa em “dar” a resposta “certa” , as(os) professoras(es) , acabam “deixando por isso mesmo”. Só insistem aqueles que tem de “ensinar” o assunto em suas aulas. A impressão que se tem é de que se extinguiu na maioria das pessoas aquela curiosidade natural pelo saber. Em geral o estudar ou o entender só se manifestam quando se precisa, por alguma imposição ou necessidade concreta. E’ muito raro perceber nas pessoas o interesse natural, a necessidade e o prazer lúdico do saber e do descobrir. Não é por acaso que “saber” e “sabor” tem significados semelhantes. Quando se diz que alguma coisa “sabe a sal”, por exemplo, queremos dizer que tem gosto de sal. Saber não é apenas ouvir falar ou mesmo memorizar. E’ experimentar por vivência. E’ sentir o sabor: saborear

Estou convencido de que os problemas básicos, não só de nossa escola, como de toda nossa sociedade, estão intimamente ligados. Nossos (as) professores (as), a escola que fazemos, em lugar de abrir as cabeças para aprender a aprender, contribuem muito para que as cabeças sejam tomadas de

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“tiriricas”. Essas “tiriricas”, não só atrofiam a abertura da inteligência, mas também atrofiam o exercício da cidadania. Escola e cultura de uma sociedade são simultaneamente “causa” e “efeito” que se realimentam. Romper “isso” é o desafio.

No episódio do Joãozinho, quando “esquenta” a discussão entre ele e a professora, a maior parte prefere não se envolver. Mesmo que a professora não diga, todos aprendem, desde cedo, pela prática vivenciada em aula, que é “ melhor” ficar do lado da “autoridade”. A discussão e o cotejo dos argumentos são um ingrediente fundamental mas, quase sempre ausente em nossa escola. O professor é tido como a “fonte” do conhecimento e “autoridade”. E’ o professor que deve “encher” as cabecinhas com “conhecimentos”. E é interessante que, freqüentemente os mesmos professores que apenas “dão” aula, como a professora do Joãozinho, se dizem “piagetianos” ou que adotam o “construtivismo”. Nos anos noventa, muitas vezes fui chamado a fazer seminários ou a proferir palestras para instituições que se diziam “construtivistas”. Em geral, aí encontrei a mesma situação na qual se “dá” aula do mesmo jeito mas se chama a isso de “construtivismo”. E’ muito mais uma questão de rótulo que de prática docente.

Seria ótimo que os (as) professores(as) soubessem mais sobre todas as correntes teóricas e abordagens metodológicas do ensino da Ciência e da Educação. No entanto, mesmo sem isso, seria possível fazer uma escola muito melhor, apenas dando espaço para o desafio, o debate e a verbalização dos argumentos. Memorizaríamos menos coisas mas aprenderíamos mais a ouvir, argumentar e verificar a consistência do que estamos dizendo e ouvindo. Poderíamos continuar mais facilmente a abrir caminho, por nossa própria conta, também no campo do conhecimento. E’ a isso que se chama de Educação permanente. Uma coisa que nos torna mais independentes e capazes de adaptação a um Mundo em constante e cada vez mais rápida mudança.

Os problemas que vivemos em nossa sociedade precisam de conhecimento. Entretanto, precisamos, com muito mais urgência, de iniciativa e de exercício da cidadania, tanto para fazer como para criticar e cobrar. O intenso treinamento da passividade, de só sentar e ouvir, é a maior das deformações que a escola pode reproduzir. Cidadãos passivos, além da baixa, “produtividade” para si e para a Sociedade, têm muito menores chances de lutar pela própria felicidade. Além disso estarão sempre muito mais dispostos a atribuir suas frustrações, aos outros: pessoas e instituições. Estarão sempre ‘a espera de que alguém diga qual a resposta “certa” e o que deve ser feito ou como as coisas deveriam ser.

De nada nos adiantaria, mesmo que nosso professor de natação fosse um campeão olímpico, se apenas assistíssemos suas conferências, por melhores que fossem. Se quisermos nos tornar bons nadadores, talvez sejam úteis as palestras do campeão. No entanto isso só será de proveito SE NOS DISPUSERMOS A ENTRAR NA ÁGUA E A NADAR. O campeão olímpico não poderá fazer isso por nós. O papel do professor é ORIENTAR O PROCESSO,

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para que ele seja mais seguro e proveitoso. Nada dispensa o “NADAR” de cada um. Pense no seguinte:

Para sermos bons nadadores, teremos que ouvir e aprender muitas coisas, mas teremos que treinar muito, principalmente, natação.

Para sermos bons corredores, teremos que ouvir e aprender muitas coisas, mas teremos que treinar muito, principalmente, corrida.

Você não acha isso simples, claro e lógico?. –Então pense nisso:Se, durante muitos anos, quando damos forma à nossa maneira de ser,

na infância, só ouvimos passivamente, o que mais treinamos foi SENTAR, o que SEREMOS no futuro......?........-Mais que tudo........ SENTISTAS, de tanto sentar, em vez de Cientistas. Obviamente, não se pretende que a escola forme cientistas no sentido estrito da palavra. Cientistas sim, no sentido de que ganhem alguma autonomia na busca de seu próprio crescimento em termos de conhecimento e abertura de novos e próprios caminhos. Isso vale para a construção do próprio conhecimento, no crescimento intelectual e na busca da própria felicidade.

Diante dos milhares de professores com quem interagi, durante as várias décadas, em todos os níveis, estou convencido de que nosso sistema educacional produz uma formação muito deficiente também do ponto de vista do conhecimento. Acredito, no entanto que esse não é o maior problema. O maior problema, a meu ver, é a deformação e até a atrofia da INICIATIVA. As conseqüências são a deformação do exercício da INDIVIDUALIDADE, da independência, da CIDADANIA e uma sociedade fruto da quase-ideologia-do-subdesenvolvimento. Nossa escola, com raras e honrosas exceções, não prepara para argumentação, muito menos para AÇÃO.

Não é fácil mudar esse estado de coisas. E’ preciso muito trabalho. Durante essas décadas, todo meu empenho foi nesse campo. Mas as resistências são muitas e de variada natureza. Por razões que tem a ver com nossas origens culturais, estamos muito mais habituados aos discursos que às ações.

Mudança de hábitos é uma coisa trabalhosa, demorada e que não é encorajada. Numa sociedade de consumo, quase sempre, alguém tem que estar “faturando” para que as coisas caminhem. Esse é um grande desafio para o Educador e para a Sociedade.

Minha preocupação sempre foi muito além da simples crítica à escola e seus métodos. Nessas décadas, mostrei uma alternativa concreta, em método, material experimental, conteúdo e sua prática. Parte ponderável desses milhares de professores que passaram por meus cursos, saíram cheios de entusiasmo e disposição para aplicar essa proposta. As imensas dificuldades, no entanto fizeram que a maioria acabasse por fazer muito pouco ou quase nada. Esse mesmo fato eu já havia observado em relação aos grandes projetos internacionais. Em alguns desses, uma das dificuldades, não amaior, era a obtenção do material. Esse, mesmo sendo simples e barato em seus países de origem, não o era o era no Brasil.

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Essa observação me fizera desenvolver material que podia ser encontrado no Brasil a um custo insignificante. Todo o material que desenvolvi foi pensado e ensaiado para ser utilizado dentro da sala de aula ou nos pátios das escolas, sem necessidade de laboratório ou qualquer recinto especial. Só que, exatamente por isso, ninguém ia lucrar com venda de material “didático”. Ninguém estaria interessado em promover uma alternativa só pelos méritos dela, sem ganhar nada com isso. Esse é um problema característico de uma sociedade de consumo, regulada apenas pelo mercado, quero dizer, pelo lucro e com pouco empuxo para renovação de hábitos que demandem muito trabalho.

Mesmo assim foram por mim dados mais de cento e vinte cursos e conferências com debates em muitas dezenas de escolas, em diferentes estados do Brasil e alguns no exterior (l).

As muitas dificuldades para implantação de uma proposta dessas tem a ver também com o despreparo na formação dos professores. O “cerne” da proposta está nas discussões. Nelas o professor fica exposto a um “bombardeio” de perguntas e questões, muitas delas imprevisíveis. Para quem está habituado a ser a “fonte” de tudo o que os alunos devem “saber” , isso representa um “risco”. O risco de não saber responder a muitas questões levantadas. A fraca formação pode ficar exposta. O professor prefere ficar “seguro”, ainda que em sua mediocridade. Mas ele não percebe que também acaba sendo uma “vitima” dessa “segurança”. Sem o debate e, de tanto repetir as mesmas coisas, sua cultura se vai “esclerosando”, assim como seu entusiasmo. Ninguém pode fazer com alegria e entusiasmo uma coisa que, de tão repetitiva, se torna obrigatoriamente monótona e enfadonha. Ao contrário, o debate “afia” os argumentos e faz crescer, a cada aula, os conhecimentos e a agilidade mental, também do professor. Hoje, sem sombra de dúvida, posso dizer que meus conhecimentos, devo-os em boa parte ao estímulo enriquecedor e à busca das questões provocados pela quantidade das discussões e questões postas por meus alunos. Com uma abordagem que privilegia a discussão, a cada aula crescem o conhecimento e a capacidade de renovação, também do professor. Aos meus alunos que me “desafiaram” com suas dúvidas, dediquei um de meus livros(”Com(ns) Ciência na Educação”, Ed. Papirus).

Dos professores que saíram dos cursos, cheios de motivação para aplicar as “novas idéias”, muitos foram, pelo menos durante algum tempo, por nós acompanhados. Uma das dificuldades por eles encontradas era a resistência dos seus diretores. E’ que o “padrão” de “boa aula” é o professor fazendo discurso e os alunos, quietos, anotando, ou dormindo. Numa proposta em que o núcleo do processo está na discussão e na atividade, os alunos estão discutindo e se movimentando. Essa “agitação” é vista com desconfiança e taxada de “bagunça”. A própria arquitetura e a disposição da sala de aula já pressupõe que “um” fala e os outros apenas ouvem e anotam. As fileiras de carteiras são paralelas entre si, o que pressupõe que não se encontrem, não interajam. As portas das salas de aula ,

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com sua janelinha de vidro também presumem a “inspeção” do diretor para ver se a aula “vai bem” . Em minha proposta, os alunos, divididos em pequenos grupos(de cinco pessoas), ficam frente a frente, pressupondo sempre o intercâmbio e o confronto das idéias.

Das primeiras dezenas de cursos para professores primários, a grande maioria era de escolas oficiais, tanto no estado do Rio como em alguns outros estados. Além de todas as dificuldades inerentes a qualquer inovação, apareceram outras, difíceis de imaginar.

Durante os primeiros anos do projeto com as escolas de primeiro grau, na baixada fluminense, todo o material que fui produzindo era impresso na Universidade (UFRRJ) e emprestado às escolas. Cada assunto com sua atividade e com o material respectivo constituía um módulo. Muitos cursos haviam sido dados para uma secretaria de Educação de Estado. Em 1984 muitos outros estavam planejados para aquela mesma Secretaria que encomendou o material para ser distribuído às escolas de todo o estado. Todo o material impresso foi reunido num pequeno livro meu (“A Terra em que vivemos”). A Secretaria encomendou, “com urgência”, 2.000 exemplares. Esses livros deveriam ser entregues no prédio da Secretaria de Educação. Diante da “urgência”, logo que a editora aprontou os primeiros 1.000 livros, pedimos que ela os entregasse direto na Secretaria. Eu estive pessoalmente na entrega e ajudei a carregar as caixas de livros para dentro do prédio da Secretaria. Passaram-se meses e a editora não conseguia receber. Eram os tempos de uma inflação “galopante”. Quando a editora conseguiu receber, depois de muitos meses, a importância já não representava senão uma pequena fração do preço dos livros. Não havia como reparar o prejuízo e tudo ficou por isso mesmo. Não foi feita então a entrega dos restantes 1.000 livros. A Secretaria não reclamou. Mas o mais intrigante foi o fato de que quando eu mesmo voltei a precisar dos livros, com os professores da rede oficial, nunca se conseguiu encontrar um só daqueles 1.000 livros entregues. Nunca se descobriu onde eles foram parar. Nos cursos seguintes, para a mesma Secretaria, tivemos que voltar a emprestar o material. Depois,com a mudança de Governo, todo o trabalho foi interrompido. Foi preciso começar tudo de novo.

Em minhas andanças, com os muitos cursos dados em diferentes países da América Latina e em quase todas as muitas dezenas de cursos dados pelo Brasil, pude constatar outros grandes problemas que parecem típicos de sociedades desorganizadas ou subdesenvolvidas. Estamos sendo sempre exortados, em nome da “criatividade” e da ‘inovação” a “reinventar a roda”. Gastamos grande quantidade de tempo e recursos em “inovações” que de alguma maneira já foram “inventadas”. Se por um lado é desejável que cada professor seja “original”, não nos poderíamos dar ao luxo de desconhecer coisas que já custaram tempo e dinheiro e das quais, freqüentemente, não tomamos conhecimento. Com esse sempre inventar “novidades”, muito pouca experiência se acumula e se constrói muito pouco. Todos pretendemos ser muito “originais”. Essa “originalidade”

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nos custa muito caro e nos faz sempre começar “de novo” sem que a experiência se acumule. Antes de fazer nova semeadura, teríamos que esperar que a começada anteriormente complete seu ciclo e sejam colhidos os frutos, bons ou maus. Se nos apressamos em fazer outra semeadura sem estarmos certos do que produziu a anterior, muito provavelmente estaremos jogando fora sementes, sem saber o que iríamos colher. Assim não se “faz escola”, fazemos quase uma ESCOLA INÚTIL. Freqüentemente estamos tentando “inventar” coisas que já foram inventadas e são conhecidas da experiência mundial ou mesmo brasileira. Esse mesmo tipo de atitude pude observar em outros paises da América Latina. Parece que esse é um traço comum a paises “em vias de desenvolvimento” que não conseguem fazer da Educação em grande escala muito mais que discursos. Acredito que isso tem a ver com uma forma de irresponsabilidade herdada de nosso processo de colonização.

Nós brasileiros temos uma longa história, de desconsideração pelas instituições e uma boa dose de irresponsabilidade com impunidade. Sem entendermos e admitirmos isso será muito difícil a construção de um sistema educacional capaz de orientar os jovens e, por conseqüência o pais, para o caminho de um verdadeiro desenvolvimento.

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LATITUDES E LONGITUDES INDETERMINADAS

Você deve estar lembrado do primeiro mapa do Brasil. Ele resultava do tratado de Tordesilhas (1494) em que o mundo “novo” ficava dividido entre as coroas de Portugal e Espanha. Esse tratado estabelecia um meridiano (Meridiano de Tordesilhas), uma reta, ou melhor, um arco Norte-Sul que ficava a 370 léguas a Oeste de Cabo Verde. Esse meridiano cortava as terras do Brasil no sentido Norte-Sul, passando nas proximidades da foz do rio Amazonas, indo sair no litoral, aproximadamente onde é hoje o limite Sul do Estado de São Paulo. O Brasil ficava portanto dividido antes de ser descoberto (Cabral,1500). Ao continuar sua viagem para a índia que era seu objetivo, Cabral deixou no Brasil uns poucos degredados. Logo a seguir começam os saques ao pau-Brasil, especialmente por parte dos franceses. Para evitar o risco de perder o Brasil, a coroa portuguesa decide começar a colonização com as Capitanias hereditárias. Cada uma das quatorze faixas a partir da costa é então doada a um Capitão-Mor. Este passa a ser a suprema autoridade na sua capitania. Começa a colonização feita principalmente com degredados. Estes não eram todos criminosos ou desocupados. Entre eles havia também ‘cristãos-novos’ (judeus convertidos) e condenados políticos. Mas também estavam longe de constituir uma amostra da melhor gente lusa. Parece-me que aí se iniciam alguns ‘hábitos’ que se instalam e que marcariam o futuro da nossa cultura e que, a meu ver, só poderão ser erradicados ou minimizados com grandes esforços de toda a sociedade: a inexistência e ou desconsideração às instituições.

Os limites das capitanias eram determinados por retas (a rigor, arcos) imaginárias que eram definidas teoricamente com “paralelos”, isto é, linhas Leste-Oeste que ninguém sabia onde estavam. Todos os delitos podiam ser punidos pelo Capitão-Mor nos limites de suas capitanias. Muito Capitão-Mor nem chegou a vir para tomar posse de sua Capitania. Os limites da Capitania eram dados por duas linhas de latitude, os “paralelos”. Destas linhas só se conhecia um ponto no litoral e que deviam ser Leste-Oeste. O limite dos fundos (Oeste) da Capitania era o meridiano de Tordesilhas que também ninguém sabia onde ficava. Não se dispunha na época de meios para determinar longitudes (o relógio). Isso só se tornou possível a partir de 1760, quase três séculos após o início da colonização. E´ interessante notar que essa total indefinição ou avaliação equivocada da Longitude é que fez Colombo imaginar que havia chegado em terras da Índia em 1492. Essa mesma indeterminação da longitude é que vai justificar a expansão mais tarde feita pelos “bandeirantes”. Essa mesma inexistência ou indefinição de limites parece ter tido efeitos não só no que viria a ser o Brasil geograficamente.

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Parece que nossos hábitos se foram “formando”, desde nossas origens, sem tomar conhecimento de limites que regulam a posse e a vida numa sociedade civilizada.

Desde o “descobrimento”, no entanto começam a chegar colonos e degredados. Quase não chegam aqui mulheres portuguesas. Isso proporcionou rápido aparecimento de um número de “brasileiros” mamelucos, resultado de uma intensa fusão das duas raças que se encontravam. Esse caldeamento tinha tudo para se fazer com muita avidez, se se lembrar que os portugueses chegavam de uma metrópole de forte repressão religiosa que logo instalaria a Inquisição em Portugal. Aqui, além da avidez com que chegaram, sem mulheres brancas, os portugueses encontraram quantidades de jovens índias, nuas e disponíveis, sem qualquer barreira. A Companhia de Jesus, só chegaria com o padre Manoel da Nóbrega em 1549 e faria muito pouco em relação ao tamanho do problema.

O desmando administrativo total em que mergulhou a nova colônia obrigou a Metrópole a fazer “alguma coisa”, para não “por a perder o Brasil”. Mas a Metrópole também vivia uma crise de poder e recursos e não podia fazer muito. Os Governos Gerais com inicio em 1549, com Tomé de Souza, tentaram pôr alguma ordem no descalabro “reinante”. Embora tenham sido feitos alguns avanços, as variáveis em relação aos tipos de problemas gerados na nova sociedade se mantiveram ao longo do tempo. Outra vez a ausência e a dificuldade de alcance das instituições favoreceram a impunidade para toda sorte e de todos os tamanhos de delitos. Essa ausência se torna ainda mais significativa por se tratar de uma cultura nascente, constituída principalmente de mestiços de todos os graus de participação das três raças. E´ interessante lembrar que durante os primeiros séculos, até a chegada da Corte (1808), fugindo de Napoleão, não havia no Brasil qualquer forma de impressão de documentos, por exemplo.

Embora seja tentador examinar com mais detalhes as origens dos hábitos de uma sociedade que foi surgindo aqui, não cabe isso nos propósitos deste livro. Isso também porque exigiria conhecimento especial e detalhado. O que parece ressaltar é que por força de circunstancias históricas se desenvolveu aqui desde o inicio da colonização, uma sociedade ou uma grande parte dela que se habituou à ausência ou desconsideração de limites, instituições ou da necessidade de ordenamento das relações entre as pessoas e entre estas e as ditas instituições.

A amplitude dos espaços livres, a indefinição ou inexistência das instituições e da autoridade, sempre corroboraram para o descrédito, desrespeito ou desconhecimento das normas que ordenam uma sociedade que como tal se pretenda.

Há ainda um outro fator, talvez mais importante. O europeu, vindo de uma sociedade de forte repressão moralista católica, aqui encontrou espaço livre, sem limites e índias jovens, nuas e disponíveis. Desse encontro logo brotou uma geração. Esse mestiço, resultado do cruzamento do europeu com a índia, nem era índio, nem era europeu: um “Zé ninguém” numa expressão de Darci Ribeiro. Era

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um ser novo mas sem qualquer referência sua: ele era uma “coisa” nova e sem os parâmetros de uma etnia ou de uma sociedade estabelecida.

Quando chegam os primeiros negros escravizados, acrescentava-se mais uma variável. Estes vieram acompanhados de mulheres negras e jovens também para o trabalho. Outra vez, os espaços abertos, a liberdade (impunidade) e a quase inexistência de normas locais de convívio facilitaram a introdução do negro, principalmente da negra como mais um componente a entrar na “mistura” das raças. Logo se produziriam tipos humanos com todos os graus possíveis de participação das três raças. Outra vez o produto desse caldeamento não tinha uma identidade ou referência: ele era uma “coisa nova”. Mais uma vez todas essas novas gerações se movem num espaço amplo mas em grande parte destituído de limites tanto geográficos quanto de civilização ou distante dessas normas de convívio social tidas como civilizadas. As coisas vão acontecendo muito mais ao sabor do acaso ou dos interesses individuais.

A amplidão dos espaços, o acaso, a frouxidão ou distância de normas reguladoras e as características tão diferentes dos envolvidos na miscigenação vão produzir as principais características do que ia e vai até hoje, se formando como “povo brasileiro”. Disso resultam alguns traços do que poderia ser chamado de cultura brasileira. Não há como nem porque se discutir se essa nova cultura é “melhor” ou “pior”. Ela é uma “coisa nova”, peculiar e que não pode nem precisa se justificar. Do ponto de vista do que chamamos Estado, só começa a vingar algum ordenamento institucional com a chegada da “Corte” em 1808. Há até quem afirme que só com essa chegada é que se inicia algo que poderia ser chamado de Brasil institucional. Só depois dessa chegada é que começa algum ordenamento com instituições de um Estado, ainda que na condição de colônia (Até então nenhum documento havia sido impresso por aqui).

Alguns dos aspectos dessa “coisa nova” chamada “povo brasileiro” nascem espontaneamente, como conseqüência do caldeamento num grande espaço aberto: a mútua aceitação das diferentes raças, a tolerância religiosa, um caótico sincretismo religioso e o grande gosto pelas festas. Uma importante contribuição do colonizador é a sua língua, o português, que dá unidade ao grande espectro racial. Há ainda um verdadeiro mundo de pequenas e diferentes nuanças que resultaram num “sabor” peculiar, algumas vezes delicado e sutil, outras vezes intrincado, mais escondido e “desconfiado” da cultura brasileira. Não me deterei sobre o assunto que foi vastamente tratado por quem mais estudou e escreveu sobre o tema:Gilberto Freire em “Casa grande e Senzala” ou por Fernando de Azevedo em “A cultura brasileira”, ou Darci Ribeiro em “O Povo Brasileiro”.

A tardia abolição do sistema de escravidão do negro e o abandono desse contingente humano deixaram uma “ferida” social na sociedade brasileira. Mais uma vez parte considerável da sociedade ficou longe, à margem do alcance dos benefícios, das obrigações do Estado e também para com este. Também aqui de nada valeria culpar os “outros” pela escravidão. E´ verdade que ela é uma

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verdadeira mancha para qualquer cultura. Só que em todas ou quase todas as culturas se cometeu esse “pecado”. E´ preciso lembrar que os traficantes de escravos contaram com a cumplicidade de povos negros que ajudaram a caçar seus inimigos e vencidos de outras etnias para vendê-los. Raramente se fala dos negros perseguidos e vendidos por uma jihad (guerra santa) promovida pelos negros islamizados, especialmente no Sudão. Ainda hoje a simples diferença de etnias é motivo de massacres na África. Coisa parecida aconteceu por aqui quando tribos rivais ajudaram os portugueses a capturar seus rivais de outras etnias, quando não os devoravam. Por outro lado, contra tudo isso sempre se insurgiram muitos brancos e também negros. Não creio que seja historicamente possível apontar alguma raça como culpada e outra simplesmente como vítima. Mesmo que isso fosse possível, de nada serviria para resolvermos os problemas que nos afligem, a todos. Todos, brancos, negros e mestiços de todo o espetro racial possível, podem e devem contribuir para um Mundo melhor e mais livre dos preconceitos de todos os tipos. Estes só poderão ser erradicados pela EDUCAÇÃO.

Os imigrantes europeus, principalmente da Itália também vieram para o Brasil nas condições de uma pobreza quase humilhante. A pobreza extrema a que tinham sido reduzidos e a falta de perspectivas em suas terras de origem os compeliu a aceitar uma viagem em condições miseráveis, indo para o “desconhecido”, para substituir os escravos negros. De nada lhes teria valido lamentar ou maldizer as pessoas ou razões para sua “diáspora”. A diferença é que quase todos eles traziam com sua pobreza um “sonho” e uma experiência de viver em condições melhores: uma cultura não melhor mas diferente. Culturas não podem ser comparadas como melhores ou piores, maiores ou menores e, muito menos como superiores e inferiores. Há no entanto alguns aspectos que precisam ser entendidos e, eventualmente re-orientados, se quisermos os benefícios conquistados por outras culturas. Sair da condição de “sub” para “desenvolvidos” é desejável e possível mas tem um alto preço: um esforço e um investimento muito grandes em EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL, nada parecido com o que temos feito até hoje. O que temos conseguido fazer é aumentar a escolaridade, diminuir a evasão escolar, melhorar a merenda escolar e muitas outras coisas que são condições necessárias, porém não suficientes nem o mais importante. Por mais que se incremente a escolaridade, ela como é, tem um efeito muito pequeno, senão nulo, sobre a mudança de alguns comportamentos ou hábitos fundamentais. E´ preciso lembrar também que comportamentos e hábitos são adquiridos principalmente pelo exercício nos anos mais tenros de nosso desenvolvimento. Esses hábitos e comportamentos necessários ao convívio em sociedade dita civilizada poderiam e deveriam ser feitos pela família mas devem obrigatoriamente ser implantados e exercitados na escola. A escola é o primeiro espaço público de nosso convívio com o Mundo. Esse exercício não pode ser feito apenas através de discursos sobre o assunto, como quase sempre se faz. Ele

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pode e deve ser praticado cada dia, através de normas bem determinadas, visíveis, de respeito às pessoas e à instituição ESCOLA. A ESCOLA é o primeiro espaço público em que se pratica o convívio em sociedade. Isso inclui a gestão das próprias coisas, respeito às coisas dos outros e o respeito ao espaço que é de todos: é público. Isso pode e deve ser exercitado ainda antes da alfabetização. E´ o momento necessário e mais adequado para adquirir os hábitos fundamentais para o convívio em sociedade. Uma escola que além de aborrecida é frouxa na disciplina e não se faz respeitar pela competência dos professores, contribui com a nossa história de desconsideração pelas instituições, especialmente públicas. De nada adiantam relações melífluas com uma aparente intimidade com a “tia”, em que tanto se fala de “amor” e de coisas de uma aparente “doçura”. Essas relações podem e devem ser respeitosas e delicadas, até maternais, mas devem também praticar uma cobrança de responsabilidades, claro, condizentes com o estágio e idade das crianças. À medida que crescemos, nos vamos tornando menos aptos a mudar nossos hábitos. Por isso é às crianças e jovens que deve estar voltado o esforço de inspirar e praticar o desenvolvimento do conhecimento e das normas de convívio em sociedade. A família deveria e poderia mas frequentemente e, cada vez mais, não faz. A escola tem que fazer.Essa é uma das missões da ESCOLA.

Depois de haver enfatizado a legitimidade de qualquer cultura, sem que ela se tenha que comparar com outras, é preciso lembrar outro aspecto. Nós brasileiros temos uma cultura que nos é peculiar e que não precisa de nenhuma legitimação por parte de ninguém. Acontece que estamos vivendo no Mundo um processo inevitável e irreversível: a globalização. Existem razões de ordem econômica envolvidas nisso. No entanto existem hoje muitas outras razões e que são condicionantes para o desenvolvimento e até indispensáveis para a sobrevivência de todo o gênero humano. Os avanços e os problemas, precisam e podem ser partilhados com cada vez mais habitantes da Terra. O problema é que esses avanços custam muitos recursos, trabalho e competência de muita gente. Pretender ter ou desfrutar de todos os avanços só pode ser conseguido com conhecimento, competência e trabalho. Pretender ter os mais sofisticados benefícios das avançadas tecnologias sem termos competências nesse campo ou em muitos outros, nos faz dependentes e “sub” desenvolvidos. A sedução que “sofremos” para ter tudo que os “desenvolvidos” são capazes de produzir nos faz dependentes se não formos muito competentes, pelo menos em algum outro campo do conhecimento e do SABER FAZER (Know how). Quando somos seduzidos para, a qualquer custo, obter o último tipo de telefone celular, por exemplo, assumimos uma postura parecida à do índio seduzido pelo pedaço de espelho trazido pelo primeiro colonizador. A simples sedução dos produtos do progresso “dos outros” nos faz mais dependentes se não nos tornarmos também mais competentes. Desde nossas origens coloniais parte da população brasileira viveu longe das aspirações e procedimentos civilizatórios.

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A Guerra de Canudos que chega às portas do século XX é bem um exemplo do afastamento de grandes contingentes da população brasileira em relação ao ESTADO, seus direitos e suas obrigações de cidadania. Uma população “órfã”, sem direitos nem deveres para com o Estado, para quem a “única salvação” parecia seguir um fanático religioso de poucas letras, o Antonio Conselheiro. Todos conhecemos o fim trágico dessa gente mestiça, sem rumo, que acabou dizimada pelas modernas armas da nascente república brasileira. Esse episódio além de triste e trágico, parece-me revelador e emblemático. Uma parte constituinte do povo brasileiro em suas origens, uma população mestiça, com poucas e vagas referências, perambulou pelos grandes espaços desta terra tropical, tentando achar ou fazer seu próprio destino, longe do que se poderia chamar de regras da “civilização”, à mercê da ignorância e do fanatismo religioso. Mesmo nesse abandono de qualquer instituição ”civilizada” aparece a figura do sertanejo brasileiro que só foi vencido depois da terceira campanha militar de grandes proporções, usando pela primeira vez aqui os novos canhões Krupp.

Há outro fator a considerar na situação que vivemos, particularmente no Brasil. As ‘sesmarias’, grandes porções de terra doadas aos nobres e amigos do poder, geraram o latifúndio e suas futuras conseqüências: a miséria, a ignorância de muitos e o privilégio de uma “cultura de salão” trazida mais tarde de Paris para uns poucos. Ao mesmo tempo que o silêncio de muitos, se cultiva muito o discurso de uns poucos. Embora tardiamente, esses efeitos do tipo de colonização poderiam ter sido parcialmente corrigidos por uma reforma agrária razoável. Entretanto a radicalização política, devida em parte ao “clima” mundial resultante da polarização entre blocos e a conseqüente “guerra fria”, tornaram isso inviável através da repressão. A não-realização dessa reforma agrária criou uma multidão de desocupados que procurou os grandes centros urbanos na busca da sobrevivência. A incapacidade de absorção de todo esse contingente sem qualificação para a vida urbana ampliou e criou mais favelas. Muitas dessas concentrações se tornaram verdadeiros “guetos” pela ausência do Estado, propiciando uma forte degradação dos costumes. Parte dos outrora pobres agricultores se tornou “bóias-frias” refugiados nos centros urbanos, sem qualificação e com a perda de sua identidade original. Esse é um problema de solução complexa por envolver grandes números de pessoas com demandas em tudo e com baixo preparo para uma sociedade que exige cada vez mais conhecimento. Como o Estado tem se mostrado incapaz de dar trabalho, mesmo às pessoas de algum preparo, mais difícil se torna oferecer oportunidades a essa parte da população que acabou por ficar à margem de algum progresso, tanto em termos de escolaridade como em termos de respeito às regras do convívio “civilizado”. Embora difícil e demorado, o problema só poderá ser encaminhado por um grande projeto de inclusão educativa que atinja principalmente os mais jovens. Isso significa ESCOLA em tempo integral para todos.

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Para sermos mais competentes e deixarmos para trás nosso estágio de “sub” desenvolvimento temos que exercitar vários novos comportamentos e hábitos. Isto se desejamos participar de um Mundo melhor. Entre esses comportamentos e hábitos estão o acatamento às normas de convívio civilizado: respeito pelas instituições, respeito a compromissos (horários, por exemplo), pelo patrimônio público e privado, por tudo aquilo que custou trabalho de alguém, dinheiro ou por aquilo que é um recurso natural. Essas coisas não são aprendidas por se ouvir falar delas ou fazendo discursos sobre esses temas. Essas coisas tradicionalmente, mas nem sempre, eram e deveriam ser aprendidas dentro da família. Muitas vezes não eram. Cada vez mais não são. Sempre deveriam ser na escola. Com a modificação dos hábitos, especialmente em relação à estabilidade da família é ainda maior a responsabilidade Escola.

A irresponsabilidade “inocente” ou complacência aqui tomadas como tolerância aos pequenos delitos e transgressões, são fatores que minam as possibilidades e recursos de um país. A disseminação da tolerância com a irresponsabilidade e os pequenos delitos se propaga e faz com que quase nada seja confiável. Para tudo é preciso colocar fiscais que por não serem também confiáveis precisam ter outro sistema de fiscalização. Isso torna as instituições caras, mais burocratizadas e pouco eficientes. A tolerância com os pequenos e “inocentes” delitos e transgressões “treinam” e “preparam” as pessoas para os delitos e crimes maiores que minam as forças e recursos do país. Todos os recursos acabam vazando pelos “furos” da irresponsabilidade pessoal e se perdem para os “ralos” da corrupção. Essa irresponsabilidade generalizada degrada as instituições. A degradação das instituições, especialmente aquelas ligadas à preservação da segurança do cidadão estimulam a atividade criminosa pela impunidade. Esta é facilmente alardeada, se propaga e estimula aqueles que estão num “limiar”, propensos ao delito.

A origem mais remota desses vícios remonta ao início de nossa colonização, não por culpa de alguém mas por razões históricas difusas e que ficaram para trás. Não há um culpado. Ainda que houvesse, de nada nos valeria imputar culpa a alguém. Somos os atores e as vítimas desse processo histórico. Sobre nós está a responsabilidade de manter ou de mudar o atual estado de coisas.

E´ uma ingenuidade culparmos os “políticos” pelo desmando e pelas desgraças que afligem nossa sociedade. Em primeiro lugar porque eles são uma amostra da nossa sociedade. Em segundo, porque se tornaram “políticos” e se elegeram com nosso voto.

São nossos maus hábitos a causa mais próxima de nossos males como sociedade. Faça o leitor um pequeno retrospecto de sua vida e de suas ações. Quase todos os dias cometemos ou transigimos com pequenos delitos. Estamos tão habituados que quase não nos damos conta disso. Quando “molhamos” a mão do guarda de trânsito para que não nos multe por qualquer “falta” cometida, estamos “construindo” a corrupção. Quando não respeitamos compromissos ou

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horários também estamos ajudando a construir um sistema não-confiável que prejudica a todos. Quando subornamos o fiscal para que “quebre nosso galho”, estamos ajudando a construir um sistema corrupto. Muitas vezes votamos em um deputado ou vereador, não pelas suas qualidades morais ou de competência mas na esperança de que resolva alguma “situação” nossa. Enfim, o “jeitinho brasileiro” que pode parecer uma coisa simpática, está na base de um sistema de “tolerância” com pequenos delitos ou transgressões que são “exercitados” diariamente. Como o exercício é um fator eficiente para instalar um hábito, instala-se a “capacidade” de cometer delitos maiores. Facilmente nos queixamos da corrupção “dos outros”, sem nos lembrarmos que quase todos os dias damos nossa “nossa contribuição” para isso, ainda que seja comprando um DVD pirata.

O que podemos e temos que fazer é assumir cada um sua parcela de trabalho, responsabilidade, competência e vigilância, a começar pela própria. Temos que cultivar e exercitar diariamente os valores da verdadeira cidadania. Estes incluem basicamente a honestidade nas relações com as pessoas, com as instituições e com o ESTADO. Nossa cultura, por razões que não adianta lamentar, nos acostumou na desconsideração, ausência ou desrespeito por ele.

A escola é o lugar que pode e deve ser, desde o “pré”, a instituição que induz, inspira e pratica esses valores em lugar de uma relação melíflua e pobre de valores de fato. Desde a mais tenra infância na escola, mesmo antes da alfabetização, os jovens devem e podem ter uma saudável e lúdica relação com a gestão das próprias coisas e um relacionamento amistoso mas responsável com as coisas, pessoas e instituições à sua volta. Essas coisas podem e devem ser aprendidas pelo exercício orientado, em lugar de discursos sobre o tema. Isso no entanto requer professores mais competentes e mais educados.

Temos que cultivar menos os discursos e muito mais a honestidade, a competência, a responsabilidade e iniciativa para mudar o curso de uma história que nos legou algumas virtudes mas também alguns maus hábitos. Não podemos mudar a herança que a história nos reservou nem adianta nos queixarmos disso. Entretanto podemos mudar os rumos futuros de nossa sociedade pelo empenho na EDUCAÇÂO. E é principalmente na ESCOLA que se deveria fazer isso pela prática de métodos que exercitem AÇÂO e CIDADANIA, enquanto se desenvolve conhecimento. Escola que não faz isso é quase uma ESCOLA INÚTIL.

Agora sabemos determinar com precisão as latitudes e longitudes dos lugares mas parece que perdemos muitos limites e “coordenadas” nos rumos de nossa sociedade. Para que nosso “barco” chamado Brasil mude o rumo de “sub” para desenvolvido é preciso parar de fazer novos “furos” e começar a “tapar” tantos já feitos ao longo de nossa história. E ainda temos que “bombear” muita “água” acumulada dentro deste nosso barco.

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CULTURA E EDUCAÇÃO

Em quase todos os dias falamos e ouvimos falar em cultura. Todos queremos ter mais cultura. Afinal, o que é cultura? E´ informação? E´ conhecimento? E´ sabedoria? E´ conhecer artes? E´ o “jeito” de ser de cada um? Ou seria a soma de tudo isso? Mesmo quando se trata do termo aplicado ao indivíduo, logo percebemos que é muito difícil definir o termo por estarem nele englobados muitos aspectos diferentes de muitas coisas. Quando se trata ou se pretende definir a cultura de um povo ou de uma nação, logo nos damos conta das dificuldades quase insuperáveis aí envolvidas.

A cultura de um povo entendida no seu significado mais amplo é muito mais do que a soma de todas as suas características visíveis ou mensuráveis. Além das características étnicas que têm a ver com aspectos biológicos, língua, religião e outros elementos visíveis, cultura envolve coisas que não se tem como medir. Naquilo que chamamos cultura estão envolvidas variáveis, isto é, “qualidades”, comportamentos, maneiras de sentir e de se expressar que são peculiares e que tornam difícil ou impossível qualquer mensuração. Não se tem como comparar tamanhos de diferentes culturas. Nem temos como dizer se uma é maior ou menor que outra. O máximo que podemos dizer é que duas culturas são diferentes. Não caberia nunca comparar duas culturas com qualquer tipo de medida. Nem sequer dizer qual delas é maior ou melhor.

Quase sempre diferentes culturas também têm a ver com características biológicas de determinado grupo humano. Características biológicas(DNA) podem ser bem determinadas e até servir para identificar grupos humanos aparentemente distintos ou separados mas que têm um “parentesco” comum. Também no caso das raças não cabem comparações sobre alguma “superioridade”. A tese da superioridade da raça ariana, por exemplo, defendida pelo nazismo, não tem nenhum fundamento na ciência, além de absurda do ponto de vista da convivência humana sobre este insignificante planetinha. Há no entanto diferenças biológicas entre as raças que são não só visíveis como verificáveis cientificamente. Algumas dessas diferenças detectáveis têm a ver, por exemplo, com maior ou menor propensão a certas doenças e mesmo outras características orgânicas impressas no código genético de cada uma das diferentes raças. Nem mesmo aquela antiga definição do homem como ‘único animal racional’ tem mais sentido. Hoje sabemos

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que essa racionalidade é só uma questão de grau, não uma característica que separa o homo sapiens do “resto” da natureza. Aquela visão de único ser racional tinha íntima relação com uma visão do homem como obra prima e razão de ser do universo. Daí resultava que todo o “resto” era “acessório” para “enfeitar” ou “servir” ao homem. Embora hoje se saiba que o homem ocupa o “topo” da escala dos seres vivos que povoam a Terra, sabe-se também das ameaças que sobre ele pairam e que nada garante sua “glória” ou mesmo sua sobrevivência. Nada garante que nosso planeta venha a ser povoado apenas por insetos. Isso mesmo se considerarmos que o homem está atingindo um nível de conhecimento capaz de alterar profundamente os rumos da Vida sobre a Terra e portanto de seu próprio desenvolvimento como espécie.

Mas voltemos à questão da cultura. Embora não se possa comparar culturas como melhores ou, menos ainda, como superiores, há alguns aspectos curiosos quando diferentes culturas interagem. Dificilmente é só uma cultura que age sobre outra. Quase sempre essa interação produz efeito sobre as duas, resultando algo novo, diferente das que protagonizaram o encontro. O encontro de duas culturas é que quase sempre tem um resultado que não é simétrico em relação a cada uma das que interagem.

Antes da chegada de Cabral à costa brasileira, aí viviam inúmeros povos indígenas, cada um com sua cultura peculiar. Cada um desses povos tinha sua língua, suas crenças, seus costumes e tradições. Isso também não significava uma vida pacífica, tranqüila em comunhão com a natureza, como é comum as pessoas idealizarem. Essas diferentes culturas viviam em quase permanente conflito com disputas e guerra entre tribos, em alguns casos com a prática de canibalismo em que os vencedores devoravam seu inimigos. E´ portanto infundada a idéia de que os índios viviam em uma paz quase paradisíaca e invejável. Mas, de qualquer modo eles tinham suas culturas, cada um a sua.

Sempre imaginei o que deve ter sido para os índios a visão da chegada das caravelas de onde saia gente tanta e tão diferente deles. Os portugueses chegavam com uma cultura tão diferente daqueles olhos que os fitavam desde a praia. Não se pode dizer quem trazia maior ou melhor cultura. Cada um tinha a sua. Cada uma delas tão legítima quanto a do outro. Inicia-se o contato. A interação produz efeitos diferentes sobre os dois lados. Os índios nunca mais seriam os mesmos. Também os portugueses não seriam mais os mesmos. Os portugueses se sentiram atônitos diante de um mundo totalmente diferente do que eles conheciam, com horizonte sem fim e com tanta gente nua. Houve até quem pensasse que o paraíso era aqui. Passado o impacto do primeiro momento, os índios logo se sentiram seduzidos, não só pelas roupas que não conheciam como pelos seus objetos de uso e adorno. Pode-se imaginar o efeito sedutor de uma medalha, de um facão ou de um simples pedaço de espelho aos olhos de um índio. Essas coisas seduziram os índios que com isso abriram as comportas de sua cultura e de tudo aquilo que tinham. Esse encontro teve efeitos e conseqüências

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muito diferentes sobre as duas culturas que nesse momento se defrontavam. Tantos séculos depois uma coisa muito semelhante se passa quando nossa cultura vê chegarem à nossa “praia” não facões ou espelhos mas celulares, televisores de plasma, gravadores “MP3” ou câmaras digitais. Ficamos tão fascinados, e deslumbrados que freqüentemente damos o que ainda nem temos: empenhamos nosso futuro. Vamos pagar à prestação, isto é com bens que ainda não temos.

Com a visão do mundo que tinham, os índios ficaram fascinados muito mais pelos facões e vidros que os portugueses traziam do que por aquilo os portugueses sabiam. Certamente não lhes ocorreu o que havia por trás daquelas coisas como o conhecimento de onde aquelas coisas resultavam. Facões, espelhos, caravelas e navegação e chegar até aqui resultavam de muito mais conhecimento. Isso no entanto seria muito mais difícil de perceber aos olhos dos índios. Melhor teria sido para eles se em vez de abrirem tanto todos os seus segredos em troca dos vidros, espelhos e facões, tivessem se interessado por saber o que os portugueses sabiam. Claro que não estou querendo nem seria possível fazer a “marcha a ré” da história. Para nós seria muito mais proveitoso aumentar nossa competência e aprender com aqueles que produzem tais as coisas que tanto nos fascinam e seduzem. Queremos ter tudo aquilo que é produzido pelos “portugueses” de hoje, tudo que nos deslumbra e fascina, antes de sermos suficientemente competentes. Com isso ficamos mais dependentes e sempre fascinados pelas coisas dos “outros”. Podemos e devemos almejar o que outros já atingiram. Isso no entanto exige de nós muito mais competência. Isso não se consegue com discursos sobre competência mas com mais trabalho, mais estudo, mais educação. Muito menos nos adianta chamá-los de imperialistas porque têm aqueles objetos de nossos desejos. Não temos que sacrificar alguns dos belos traços de nossa cultura que inclui algumas virtudes preciosas: a tolerância religiosa, a tolerância racial, a alegria de viver, a musicalidade, a facilidade de rebolar, o bom humor e tantos outros belos aspectos que identificam nossa cultura. Nossa Cultura não é só aquilo que herdamos. E´ também e principalmente aquilo que estamos fazendo com olhos no futuro. Está ainda por ser dado um grande passo que deve acrescentar ao que herdamos, à nossa cultura, uma postura de mais respeito às instituições, a começar por uma escola que pratique as regras da civilização, além de usar aqueles verbos apontados anteriormente.

Nossa cultura inclui um grande gosto pelo futebol e que nos dá uma grande liderança mundial “em campo”. O segredo dessa grande liderança no futebol se deve ao fácil acesso e à paixão que esse esporte desperta nos brasileiros. Uma bola de meia e uma calçada ou rua já servem para que todos exercitem suas habilidades. O “mal” do futebol é ser ele a única opção para muita gente que não chega a perceber tanta outra coisa bela, necessária, útil e desfrutável no Mundo e no Brasil. Essa “paixão” produz uma grande deformação, especialmente na juventude destituída de educação. A falta de alguma outra coisa ou causa, faz do futebol uma paixão irracional, estúpida e violenta, por nada: a busca de um

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“heroísmo” sem causa, por falta de EDUCAÇÂO. Podemos fazer do futebol parte característica de nossa cultura mas precisamos mais urgentemente de EDUCAÇÂO para que não se percam vidas e ideais numa paixão sem objeto ou num vandalismo violento, predatório, que freqüentemente produz sofrimento e onera os custos do país.

Desde alguns anos para cá há muitos movimentos ou projetos que pretendem resgatar jovens carentes através das coisas mais fáceis ou possíveis como capoeira, batucadas e danças. Estas coisas fazem parte de nossa cultura. O lamentável é esperar que a auto estima de que tanto se fala, esteja e resulte só de coisas desse tipo. Mesmo incluindo esses ingredientes de nossa cultura seria muito mais desejável que as pessoas, especialmente os jovens pudessem em grande número sentir auto-estima através de valores mais universais como conhecimento, o gerenciamento e a beleza de suas próprias vidas.

Ainda muitos brasileiros não têm acesso à escola. No entanto, mesmo grande parte dos que conseguem ir à escola são muito carentes de EDUCAÇÃO. Nossa docência fundamental é muito pouco preparada em termos de conhecimento mas muito mais carente de EDUCAÇÃO. Nossa ESCOLA faz muito pouco, quase nada para que os jovens possam sentir uma auto-estima que resulte de valores maiores, como da cidadania praticada. Aqui o termo educação deve ser tomado no sentido mais amplo de consideração pelas pessoas, pelas instituições e pelo BEM PÚBLICO. Nossa cultura, com raras e honrosas exceções é mais abundante em discursos sobre todas essas coisas mas é carente de ações e hábitos orientados e exercidos naquele sentido. Já foi moda dizer-se que a escola propagava a ideologia da classe dominante. Acredito que mais caberia hoje dizer-se que a escola propaga a falte de educação reinante. Se é verdade que nossa educação no que depende da escola nunca foi muito exemplar, hoje ela está muito degradada e carente em conseqüência de vários fatores. Em lugar de a escola introduzir na sociedade jovens portadores de hábitos de respeito ao saber, às pessoas e instituições, ela se deixou invadir e degradar pela incompetência, desmando e complacência com todos os maus hábitos da rua.

Seja qual for nossa cultura e visão de Mundo, mesmo sem almejar qualquer hegemonia, nossa posição no concerto das nações e um convívio minimamente civilizado dentro do país, nos impõe uma educação diferente da que estamos alimentando com nossa indiferença e ou complacência. Independente de nossa rica cultura podemos estar caminhando para uma sociedade caótica. Seja qual for nossa cultura, há alguns marcos civilizatórios de que não podemos abrir mão sob pena de vivermos um “salve-se quem puder”: a BARBÁRIE. Esses marcos podem e devem ser dados pela ESCOLA. Num Mundo globalizado se aceitam todas as culturas mas se exige EDUCAÇÃO, na forma de conhecimento, convivência com as diferenças e muitas outras competências.

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ESCOLA SEM EDUCAÇÃO

Todo o foco de meu trabalho ao longo de várias décadas com os professores dos três níveis esteve dirigido especialmente para a busca de uma maior competência, minha e deles, no domínio de coisas básicas do conhecimento relacionado à Ciência. Nunca pretendi que meus alunos tivessem que se tornar físicos ou astrônomos. Sempre me moveu a idéia de que o conhecimento básico das ciências, mesmo para quem não pretende seguir carreira profissional nesse campo, tem um papel muito importante. Obviamente estou pensando em termos do que em geral entendemos por civilização. Admito sem dificuldades que a busca da felicidade pode conceber caminhos que não incluam o conhecimento científico. Há quem acredite que o homem pode chegar a formas de sabedoria que dispensem aquilo que chamamos habitualmente de Ciência. Isso entretanto sugere outros caminhos com os quais não tenho familiaridade e que, a meu ver, nada têm em comum com nosso conceito de civilização e conhecimento científico.

A história do surgimento da vida sobre a Terra e do aparecimento do homo sapiens sugerem um desenvolvimento deste na direção da crescente complexidade. No meu entender, aquilo que as religiões chamam de “pecado original” por ter o homem “comido da árvore do conhecimento” e o conseqüente “castigo” com a “expulsão do paraíso” constituem uma forma de parábola e não de descrição de um fato. Sei que para muita gente isso deve ser tomado ao pé da letra e não simplesmente como parábola. Embora tenha profundo respeito por tudo aquilo que pode ser sagrado para alguém, parece-me que faria muito sentido uma interpretação diferente daquela que toma a “expulsão do paraíso” como descrição de algo de fato ocorrido.

Ao que se sabe hoje, o homem é o fruto de uma evolução semelhante à de todos os demais seres vivos que povoam a Terra. Enquanto o homem não teve consciência de si mesmo também não deve ter tido a “tentação” de mudar o rumo de sua forma de vida. Ele era “dirigido” por aquilo que convencionamos chamar de “instinto”. Como é a vida dos animais.§ Ele vivia no “paraíso” de quem não sabe de nada. Em certo ponto de sua evolução, especialmente de seu cérebro, ele tomou “conhecimento” de si mesmo. Talvez se tenha reconhecido em sua imagem

§ Já há experimentos que indicam que alguns animais conseguem se reconhecer, isto é, têm alguma consciência de si

mesmos.

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refletida na água. Ele tomou ”conhecimento” de sua existência: refletiu sobre si mesmo. Isso não deve ter acontecido só para um indivíduo. Isso deve ter acontecido para uma comunidade ou para uma raça. Fazer as coisas “diferentes” daquilo que até então lhe havia sido sugerido pelo “instinto”, deve ter tido conseqüências. Agora além da possibilidade de fazer “diferente” o homem arcava com as “conseqüências” desse “diferente”. Ele começava a “pagar” com o “castigo” das conseqüências. Era a “expulsão do paraíso” do não-saber-nada. Obviamente, a partir daí todos nasceram com esse mesmo “pecado” que, por isso passou a ser “original”, isto é de origem, de toda a espécie.

Ainda, ao que sabemos hoje, parece que não foram mesmo todos os hominídeos que atingiram o nível de auto consciência ao mesmo tempo. Enquanto alguns atingiam o nível de homo sapiens outros ainda não tinham chegado a isso e, talvez por serem mais atrasados sucumbiram diante daqueles. Ha interessantes indícios de que tenham coexistido e até se defrontado o homo sapiens com o homem de neanderthal.

Se o leitor achou essa minha interpretação muito “herege”, saiba que tenho grande respeito pela sua, seja ela qual for. Embora esta interpretação tenha mais a ver com a Ciência, ela não é indispensável para os propósitos que temos em vista aqui.

Se tomarmos aquilo que sabemos da história dos povos, desde quando o homem foi capaz de deixar alguma forma de registro, fica evidente o “crescimento” daquilo que poderíamos chamar de civilização. Entre essas coisas que cresceram, está aquilo que hoje chamamos de Ciência: a busca do conhecimento de como “funciona” a Natureza. Desde a primeira observação e interrogação do primeiro homo sapiens diante do céu estrelado até o telescópio orbital “Hubble”, há uma grande caminhada na busca e conquista de respostas a perguntas cada vez mais complexas. Desde o homem primitivo que se julgou no centro do Universo até as sondas espaciais que trazem informações sobre a atividade vulcânica em “Io”, uma das luas de Júpiter, o homem foi entendendo a “gramática” em que está escrito o funcionamento do Mundo. Tudo isso não só nos permite hoje desfrutar do conhecimento(parcial) de como funciona o Mundo mas também traz conseqüências em todos os aspectos de nossa vida diária. Mesmo o cidadão não-cientista pode e deve partilhar, pelo menos nos aspectos gerais, disso que representa o estágio atual de conhecimento da humanidade. Entre as grandes conquistas da humanidade, além da Ciência, está aquilo que chamamos de “civilização”. Quero aqui me referir especialmente à conquista de regras de convívio e à toda uma série de avanços que tornam possível a convivência pacífica entre os povos. Aquilo que chamamos Democracia, “inventada” na antiga Grécia, é uma das conquistas que ainda estamos “fazendo”.

Coisas como a Ciência, a tecnologia e a democracia são conquistas que resultaram do acúmulo da experiência vivida pela humanidade ao longo de muitos milênios. Essas conquistas são fruto de trabalho e estudo. Esse avanço possibilitou

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os grandes benefícios como a cura de muitas enfermidades com o conseqüente aumento da expectativa de nossas vidas. A Ciência e a conseqüente tecnologia nos deram também a possibilidade de conhecer, através dos meios de comunicação coisas que a cada dia nos surpreendem sobre nosso planeta, nossa vida e sobre o Universo. Todos esses fatos tornaram a vida e a atividade humana muito mais complexas e mais ricas de possibilidades. Quando nos queixamos de que a vida moderna nos trouxe necessidades e tribulações que não tínhamos antes, nos esquecemos dos benefícios que tornaram a vida muito maior e melhor. Não seria necessário lembrar o que representaria uma simples cirurgia sem anestesia, a impossibilidade de ler sem óculos ou a vida sem telefone ou sem luz elétrica. Hoje grande parte da humanidade desfruta desses benefícios e muitos outros. Nem sempre nos lembramos que isso tem um alto custo em dinheiro, conhecimento, trabalho e organização. A manutenção, o funcionamento, e o desenvolvimento de todos esses benefícios do progresso exigem cada vez mais cidadãos qualificados para uma crescente complexidade em todos os campos. Isso sem falar das necessidades e ameaças sobre nosso planeta, a Terra: exaustão para suportar tanta gente e tanta demanda de recursos naturais. Alguns desses problemas já despontam ameaçadores em nosso horizonte. Os problemas ligados ao suprimento de nossa crescente demanda de energia, a possível falta ou insuficiência de água limpa e potável, as possíveis alterações nos climas, a limitação das reservas naturais, são apenas alguns dos problemas que a humanidade começa, tardiamente a sentir. O enfrentamento de todos esses problemas como suas soluções ou a convivência com eles exigem cada vez em mais alto grau tanto o conhecimento como o exercício de uma cidadania responsável. Esse é um problema de toda a humanidade mas em mais alto grau um problema dos chamados em vias de desenvolvimento”.

Nosso “sub” desenvolvimento é uma coisa mais complicada que a falta de recursos financeiros. E´ quase uma ideologia. Essa “quase ideologia” de “sub” não é culpa de ninguém, senão de nossa história. Ainda que houvesse algum culpado, de nada adiantariam nossas queixas ou mesmo nosso rancor. Achar que isso se deve “cultura ibérica” ou à “exploração do capital estrangeiro” é outro mal-entendido que em nada nos ajuda. Sair da situação de “sub” é difícil e só pode acontecer à custa de trabalho e EDUCAÇÂO. E´ bom lembrar; essas são condições necessárias, embora não suficientes.

Já se está tornando um gasto “bordão” a palavra EDUCAÇÃO. Como se ela tivesse um efeito “messiânico”, salvador. Em primeiro lugar é preciso insistir que EDUCAÇÃO é uma coisa necessária mas não suficiente. De nada adianta que se tenha uma boa educação se o país não oferece oportunidades de trabalho aos jovens sem ou com educação que a cada ano chegam em busca de trabalho. Aqui, por óbvias razões, temos que nos manter dentro dos limites desta discussão.

As décadas de trabalho com os professores deixaram para mim claro o generalizado despreparo dos nossos professores, especialmente no ensino

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fundamental. Se é verdade que a nação e o Mundo precisam cada vez mais de gente preparada em termos de conhecimento, quero dizer Ciência, vamos muito mal. Tanto os indicadores nacionais quanto a comparação com outros países nos deixam em situação constrangedora. Nosso ensino fundamental nunca foi bom, claro, com exceções. Neste caso o que não era bom em termos de conhecimento da Ciência, em muitos casos ficou pior pela degradação geral de nossas instituições, especialmente da ESCOLA. Não é possível fazer avançar massivamente qualquer conhecimento científico em um meio onde não há um “clima” de seriedade e respeito, muito menos em meio ao caos reinante em muitas escolas. Uma das componentes, para a falta de respeito à ESCOLA é o fraco preparo docente, especialmente frente a um mundo de avanço tão vertiginoso e desafiador. A competência profissional do docente é uma condição necessária embora não suficiente, para o seu reconhecimento e respeito, a começar por seus alunos. Tradicionalmente se tem atribuído o fraco preparo docente aos baixos salários do magistério. Recentemente alguém que estuda o assunto ‘gestão escolar’ mostrou que esse é um dos muitos mitos entre nós. Claro que todos ganhamos pouco se comparados a paises desenvolvidos . Em termos brasileiros, o professor não pode ser tomado como a classe mais mal paga e “explorada”. Em todos meus cursos para professores, tanto do ensino fundamental quanto do ensino médio (Física), tenho sugerido muitos exemplos de experimentos motivadores, de alto significado, com material simples e barato, que não exigem laboratório e que podem ser feitos ao ar livre. Mesmo achando interessante, muitas vezes a reação do professor é do tipo: “pelo que me pagam, não vale a pena fazer nada de novo”. Essa reação me parece quase trágica pelo aspectos que revela. Ela reflete em primeiro lugar uma postura muito infeliz e de autodepreciação. Alguém que pensa assim não vai nunca valer muito mais, mesmo que tivesse aumentado seu salário. Com esse ânimo não há o que se possa esperar desse professor. Mas há algo muito mais grave: o efeito de tal postura sobre um aluno. Não consigo imaginar coisa mais deseducativa para um jovem do que ouvir tal afirmação vinda do seu professor. Esse aspecto deseducador, especialmente na escola pública é agravado pela alta incidência nas faltas do professor e de professor. As greves da escola pública são um verdadeiro “seqüestro”” em que os estudantes e suas famílias são “reféns” de reivindicações salariais. Por mais justas que elas pudessem ser, nada justificaria usar os que estão dependendo disso, como “reféns”. Com raras e honrosas exceções o ambiente físico da escola pública é de desmazelo, quando não de penúria. O descuido geral com as instalações, paredes rotas ou mal pintadas, quando não depredadas, instalações sanitárias deprimentes, são um ambiente profundamente deseducador. O desrespeito pelas coisas reflete o desrespeito pelas pessoas entre si e pelas pessoas com as instituições. Obviamente não é culpa apenas dos professores. Alunos, seus pais, as pessoas em geral, todos têm pouco zelo pelas coisas, especialmente quando estas são públicas. Quase todas as nossas instituições,

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especialmente públicas refletem nossa falta de educação. O problema é que também a ESCOLA, como quase tudo em nossa sociedade, revela a mesma falta de consideração pelas pessoas e pelas instituições. A ESCOLA tem que ser lugar em que se aprende não só a, a linguagem falada e escrita, as matemáticas e as ciências. Ela tem que ser o lugar em que se aprende principalmente pelo EXERCÌCIO diário, as relações de respeito entre as pessoas e entre estas e as coisas. Seria desejável que todos já trouxessem de casa essa experiência. Isso no entanto está fora do alcance de nossa ação. Por mais essa razão A ESCOLA pode e precisa ser o lugar em que esses valores devem ficar evidentes e praticados todos os dias, desde os primeiros anos, mesmo antes da alfabetização. A ESCOLA é a instituição que precisa fazer essa preparação para o cidadão do Mundo. Isso começa pela competência do professor. Obviamente, não se pode esperar que o professor seja alguma sumidade. Ele pode e deve ser competente, pelo menos no restrito campo em que lhe cabe orientar seus alunos. Além disso o professor pode e deve ter treinamento especial para uma coisa indispensável: o trato para com as pessoas. Quero fazer aqui uma ressalva. Pode parecer que eu esteja atribuindo todos os males aos professores, como se tivesse algum ressentimento para com eles. Pelo contrário. Por um lado, somos todos responsáveis pelo bom ou mau andamento do país. Por outro lado, é exatamente porque é pelo professor que todos temos que passar. Ele é a figura obrigatoriamente presente em nossa formação. Mesmo que sejamos órfãos, que não tenhamos família, deveremos e poderíamos ter um, ou melhor, muitos bons professores. Por isso é preciso que eles sejam competentes. Minha preocupação é maior justamente pelo professor porque acho que ele é a parte mais importante e indispensável na nossa formação. Não creio que essa formação dos professores possa ser confiada somente às Faculdades de Educação. Estas, em geral, padecem das mesmas “enfermidades” de nossa cultura: discursos e pesquisas ”de alto nível” sobre “potencialidades”. Por mais que sejam indispensáveis essas instituições, do ponto de vista formal e de pesquisa, quase sempre vivem muito distantes dos problemas do dia-a-dia do professor e de sua escola. Nos anos em que comecei meu projeto com os professores do primeiro grau (1977) ainda havia um forte preconceito sobre as coisas ”de baixo nível” relacionadas a um ensino que não fosse “superior”. Na instituição que abrigou meus projetos graças à coragem de uma professora, então decana de graduação e a um reitor de maior visão, fomos alvos de uma verdadeira “guerra” ideologizada, justamente por parte de pessoas ligadas à educação que nunca chegaram a conhecer o projeto mas o “odiavam” por não ter ele sua origem “dentro” da “educação”. Ainda mais por ser eu um “físico” e não um “educador”. Essa “guerra” acontecia justamente no momento em que se multiplicavam os convites para mais e mais de meus cursos, tanto no Brasil quanto no exterior. Foi o reconhecimento desse trabalho, o motivo para o convite que eu escrevesse um capítulo no livro da UNESCO intitulado “Innovation in Science and Technology Education” (Inovações na Educação em

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Ciência e Tecnologia) . O livro foi editado sob a direção do Dr. David Layton da Universidade de Leeds, no Reino Unido(Inglaterra) e traduzido para os diversos idiomas da UNESCO. Pareceu-me oportuno lembrar deste episódio por ser ele também emblemático de outro problema das instituições em países “sub” desenvolvidos. Certamente, não é privilégio de países “sub” desenvolvidos o ciúme feroz por aqueles que não são do “seu” grupo e têm algum êxito. O que é alarmante é o nível em que acontecem essas “guerras” a tudo aquilo que venha de “outros”, especialmente se esses “outros” não são do nosso grupo ou do nosso “partido”. Por mais que os discursos falem em direitos “democráticos”, a ação é predatória em relação ao que não esteja de acordo com o algum “espírito corporativo” do grupo que tem ou pretende algum mando político. Essa me parece uma das mais sérias “enfermidades” também de nosso sistema educacional.

Outro problema comum da Escola, especialmente pública é a “ideologização” da aula do professor. Esse hábito teve seu incremento nos anos da ditadura quando se vivia um clima de supressão das liberdades democráticas. A aula, de uma certa maneira, era uma “tribuna” quando as vozes da cidadania estavam cerceadas ou reprimidas. Num regime democrático como vivemos, não deve a aula ser usada como tribuna para fins políticos. A lição “política” que deve ser passada aos estudantes é o respeito às posições de todos, ao trabalho e convívio com toda a diversidade de opiniões também políticas. Não é preciso que o professor esconda seu credo político ou religioso mas a aula não pode ser a tribuna para isso. O autentico proselitismo para suas convicções pode e deve ser o exemplo de competência e seriedade com que se dedica ao seu trabalho de EDUCADOR. O mau hábito de “matar aula” falar mal dos governos em classe toma o pouco e precioso tempo destinado à EDUCAÇÂO. O professor pode e deve ter opinião política também contra os governos em todos os níveis. Ele pode e deve externar suas opiniões a favor ou contra os governos. No entanto fazer isso em aula é, no mínimo uma grande falta de Educação. Pelo resto de minha vida terei que pagar o preço de ter mantido posições de forte crítica a governos e instituições universitárias onde fui professor. Isso em tempos de forte repressão. Essas posições políticas entretanto nunca foram explicitadas durante minhas aulas mas em posturas e opiniões exercidas e mantidas publicamente diante de fatos ocorridos na instituição. Os alunos, tanto mais quanto mais jovens, precisam ser respeitados em sua formação e liberdade de escolha. O prestígio que pode emanar da competência e correção do professor pode e deve dispensar qualquer discurso político em aula.

Ao fim de meus cursos, grande número de professores mostrava um grande entusiasmo com a nova proposta que lhes mostrava um outro horizonte e uma disposição de aplicá-la. Em muitos casos cheguei a acompanhar suas tentativas e aplicações de fato. Afinal eles haviam sentido uma grande diferença com a possibilidade de fazer experimentos interessantes, com material simples e barato. Eles sentiam haver crescido com as discussões e a manipulação das coisas de

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que falavam. Muitas vezes passaram a entender coisas que nunca haviam sido entendidas, apesar de “ensiná-las”durante anos. Nada mais natural e desejável que a vontade de levar essa experiência às suas escolas. Algumas das dificuldades enfrentadas são interessantes pelo que representam do aspecto geral do problema. A primeira das dificuldades se relacionava aos diretores das respectivas escolas. O que se considera como “boa aula” é aquela em que o professor está falando e os alunos “em silêncio”. A janelinha de vidro nas portas permite e sugere ao diretor, passando pelos corredores da escola, verificar se “tudo está em ordem”. Essa “ordem“ se manifesta pelo silêncio dos alunos. Essa “ordem” será ainda maior se os alunos estiverem dormindo, diante do gasto “discurso” do professor que se repete igual a cada ano. Com uma proposta ativa os alunos passam a se movimentar e a discutir. Isso passa a “perturbar” a “ordem” e o silêncio vigentes. Para a “ordem” da escola é preferível que os alunos se mantenham apáticos ou dormindo. Estávamos com um curso planejado “para diretores” quando por muitas outras “dificuldades” o projeto teve uma interrupção, numa Secretaria de Educação de uma capital do Sudeste.

Outro problema, para mim inesperado, apareceu. O material por mim sugerido é muito simples e de baixo custo. Mesmo assim os experimentos e o material devem ser preparados com alguma antecipação. Isso envolve algum tempo e algum pequeno gasto com o material de consumo. Essas necessidades exigem um pequeno aumento de trabalho por parte do professor. Muitos estavam dispostos a isso pelo entusiasmo de que estavam tomados. Esse aumento de trabalho foi visto com antipatia por outros professores: -“Se já me pagam pouco pelo que faço, você ainda vai ‘inventar’ novidades?”. Professores que se dispuseram a introduzir “novidades” foram “patrulhados” e chamados de “colaboracionistas” ou “reacionários” pelos “ideologizados”. A meu ver isso é altamente danoso ao avanço de um ensino mais competente e livre.

Um incidente com uma Secretaria de Estado de uma capital da região Sudeste é muito curioso e vale ser lembrado. Eu havia ministrado dezenas de cursos para os professores da “rede” oficial em nome da minha Universidade. .Até então a Universidade oficial a que eu estava ligado oferecia gratuitamente os cursos e emprestava tanto o material experimental quanto o impresso. Depois de cada curso o material tinha que ser devolvido à minha instituição que era uma Universidade Federal. Com a multiplicação dos pedidos para novos cursos se tornava inviável o empréstimo pela Universidade. A Secretaria de Educação então fez um pedido de impressão do que veio a ser um livro. A editora entregou logo a primeira metade da encomenda. Passaram-se os meses, com a hiperinflação, sem que a Secretaria fizesse o pagamento. Quando o fez, já o pagamento não representava senão uma insignificante fração do valor devido. Senti-me responsável pelo prejuízo de meu editor. Entretanto o mais curioso, senão trágico, estava por acontecer. Quando chegou a hora de se usar os livros comprados pela

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Secretaria, eles simplesmente não foram mais encontrados. E assim ficou. Os livros não foram mais encontrados, desapareceram dentro da Secretaria.

Fatos semelhantes foram amplamente noticiados, há algum tempo, pela televisão: quantidades de pacotes intactos, novos e fechados de livros didáticos, já vendidos como papel para ser “reciclado”. Fatos como esses são indicadores de, pelo menos, um descalabro de gestão. Este é um outro flagelo de nossa EDUCAÇÃO e outros setores entregues muitas vezes a pessoas ou grupos políticos, como “quotas” de partidos, sem qualquer critério ou competência também gerencial. Infelizmente esta é uma “tradição” a “orientar” uma grande “máquina” cheia de vícios onde EDUCAÇÂO é um sub produto acidental de outros interesses

O descalabro evidente das instituições, quero dizer, especialmente da escola pública, levam os pais a procurar alguma “salvação” nos cursos preparatórios para vestibular. Nesses então,muitas vezes, já se perdeu qualquer vestígio do que seria o principal objetivo EDUCACIONAL. O objetivo é “passar” nalgum vestibular, na esperança de “salvação”. Muitos desses cursos como muitas das instituições “superiores” para as quais os estudantes são “preparados”, são de competência duvidosa em termos de Educação. São, em geral, de ótima competência como meios de alguém ganhar dinheiro.. A meu ver, de uma forma a levar muita gente a saber alguma coisa a mais mas também à frustração ou a memorizar coisas que não entenderam. Muitos vão apenas engrossar as filas dos que buscam algum emprego e só depois de haverem gasto seu dinheiro percebem que seu diploma significa muito pouco: diplomas não substituem EDUCAÇÂO, CONHECIMENTO E COMPETÊNCIA.Recentemente fui apresentado ao Sr. Secretário de Educação de uma importante cidade brasileira que tem altos “índices” de pretensões culturais. Ao falar ele de suas dificuldades de realizar um trabalho de maior significado educacional em sua “rede”, me confessou um dado, para mim surpreendente. Dos mais de 1.300 professores que integram aquela rede municipal de ensino, mais de 900 estavam em “licença de saúde”. Essa proporção entre os “doentes” e os não-doentes só seria possível em um período de alguma devastadora epidemia, como a gripe “espanhola” ou a febre amarela. Como este não parece ser o caso, deduz-se que grande parte da rede Municipal de ensino, nesse caso, deve estar em “gozo-de-doença”. Para isso muitos professores devem ter apresentado algum atestado médico. O que sugere grande número de “doentes” não-doentes e que estão custando dinheiro público. Esse alto custo da EDUCAÇÃO ajuda a mostrar que nessa cidade é muito alto o “investimento” em “EDUCAÇÃO”. Isso sugere que “grande investimento” em EDUCAÇÃO pode não significar muito, ou melhor, pode significar muito de falta de educação de muita gente, para usar o termo mais benevolente. Neste caso, todos os envolvidos no “gozo de doença” integram a ESCOLA e certamente se consideram pessoas honestas. Desde cedo, também na ESCOLA vamos nos habituando a esse tipo de complacência com o pequeno

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delito. Se isso é verdade, será que podemos esperar que essas instituições eduquem nossas crianças?- Não parece inevitável a conclusão de que muitas vezes temos uma escola sem EDUCAÇÃO?

FAZENDO DE FATO

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Volto a enfatizar que minha preocupação em trabalhar com os professores do ensino básico visava muito mais os procedimentos que os conteúdos. Relembrando, como no caso do “Joãozinho”, o mais grave não era a informação equivocada sobre a determinação dos Pontos Cardeais mas o processo de ensino que torna possível que nem professor nem alunos percebam a total inconsistência de um “discurso” facilmente desmentido quando se olha pela janela ou quando simplesmente se pensa. De qualquer maneira era importante começar pelos assuntos sugeridos pelos professores e dar-lhes suporte nas dificuldades que eles mesmos haviam levantado.

O primeiro dos mal-entendidos a ser desfeito seria o dos pontos Cardeais. Em nossa cultura não costumamos usar muito as idéias ligadas ‘a orientação. Em muitas outras culturas atuais esse uso faz parte do dia-a- dia das pessoas. Nos EEUU, por exemplo, as pessoas em geral sabem e usam termos ligados ‘as direções Cardinais. Quase todo mundo sabe se sua casa fica na parte Sul ou Norte de sua cidade. Esses conceitos fazem parte da rotina das pessoas. Basta olhar para mapas como dos EEUU, do Canadá ou da Austrália para se constatar que os limites dos estados são, na sua maioria, retas Norte-Sul(meridianos) e Leste-Oeste(paralelos). Isso facilita muito as coisas pelo fato de que basta um único ponto para que toda a reta fique determinada. Isso também porque quase todas as pessoas têm presente o que é e como se determinam tais direções. Para as pessoas que vivem em países de grandes Latitudes é também muito mais evidente que o Ponto Leste não deve ser o lugar em que nasce o Sol. As diferenças do ponto de saída do Sol no horizonte são muito maiores que nas baixas latitudes dos países tropicais. Para quem vive em latitude maior que a dos trópicos é evidente que o meio-dia não é o momento em que o Sol passa “a pino”. Isso pela simples razão de que é muito evidente que o Sol nunca passa “a pino”.

Quero ainda lembrar que em todas as atividades, tanto os temas como as discussões passam sobre assuntos e detalhes que são importantes para qualquer área do conhecimento básico das ciências. Neste caso o assunto estava escrito e publicado desde 1970 no meu livro “O céu”.

A aplicação de minha proposta de método “ativo”, começaria pelos conteúdos sugeridos pelos próprios professores, a começar pelos Pontos Cardeais”.

Para resolver isso com os professores, em muitos casos o experimento foi feito no pátio da escola. Em alguns casos o experimento foi apenas descrito em detalhes, devido a alguma razão especial daquele momento ou grupo. Esse é um experimento simples, bonito e mobilizador da iniciativa para um grupo de jovens mas que leva algumas horas(manhã e tarde). Vejamos como se faz.

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Uma pequena haste ou estaca reta(de ferro,madeira ou bambu) é espetada numa superfície plana e horizontal, no pátio da escola, por exemplo. Pela manhã, as sombras da haste começam muito longas e vão encurtando até as proximidades do meio-dia. Em qualquer hora, durante a manhã, marca-se a extremidade da sombra da haste com uma pequena estaca: um prego, por exemplo. E´ bom lembrar que se a primeira sombra for marcada muito cedo(muito longa), a segunda, do mesmo comprimento, só será feita mais para o fim da tarde. Sugere-se, por volta das 10:00 horas. Usando-se um barbante como compasso, preso à base da haste, marca-se no solo uma circunferência de raio igual ao comprimento da primeira sombra. Claro, essa circunferência está centrada no pé da haste vertical. À medida que as horas vão passando, a sombra da haste vai encurtando, até ser a menor, por volta do meio-dia. Depois disso a sombra começa a se alongar durante toda a tarde. Quando a extremidade da sombra atingir a circunferência já descrita, marca-se o segundo ponto. Agora dispomos de duas sombras da haste com comprimentos iguais: a da manhã e a da tarde. Aí é só dividir ao meio o ângulo formado pelas duas sombras. A reta Norte-Sul é a bissetriz (que divide o ângulo ao meio) dessas duas sombras de comprimentos iguais: a da manhã e a da tarde. Obtida a reta Norte-Sul, qualquer perpendicular a ela é a reta Leste-Oeste. Essa perpendicular é também determinada pelo uso do barbante como “compasso”. Talvez ainda caiba uma dúvida:na reta Norte-Sul, qual é o lado Norte? O lado para onde apontava a sombra durante a manhã é o lado Oeste. Isso é o mesmo que dizer que o lado(não o ponto) de onde estava o Sol pela manhã é o “lado” Leste. Agora você pode estender seu braço direito para o lado (não no ponto) em que o Sol nasceu. Desse lado está o Leste. Agora aquele que fica à sua frente é o Norte. Assim você acaba de determinar os Pontos Cardeais do lugar em que você fez o experimento.

Espero que o leitor tenha percebido que, muito mais que os Pontos Cardeais, estão aí envolvidas ações que lidam com conceitos práticos importantes e básicos para o quotidiano de muitas áreas de conhecimento. O solo ou superfície em que vai ser cravada a haste deve ser bem plana e horizontal. Não será necessário decorar nenhuma definição. O preparo da superfície com um sarrafo (régua) e um “nível” pode ser uma atividade interessante. A haste a ser cravada deve estar ”no prumo”. Isso envolve outro conceito prático e importante. Um “prumo” improvisado com um pedaço de barbante com uma pedrinha dependurada mostra como se faz o “aparelho” que define a “vertical do lugar”, fundamental para qualquer construtor: pedreiro ou poceiro. O uso do barbante centrado no pé da haste é outra oportunidade interessante. O uso do barbante como compasso para se determinar a bissetriz do ângulo, nessas condições, pode ficar muito mais atrativo que uma aula sobre “bissetriz” e não exige nenhum pré-requisito “decorado”. Dependendo da época do ano em que o experimento seja feito,

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fica muito evidente a diferença entre o ponto em que o Sol nasceu e o ponto Leste, embora fiquem do mesmo lado. Todo esse trabalho pode também ser dado como incumbência de um grupo de alunos, transformando uma idéia que pode ficar registrada em concreto no pátio da escola, para legítima auto-estima do grupo, do professor e mesmo da escola. A auto-estima resultante de um verdadeiro trabalho realizado é saudável e legítima.

Se o professor quiser e achar oportuno, depois de determinadas as direções Norte-Sul e Leste-Oeste, pode-se colocar no encontro dessas duas retas, uma bússola, coisa barata e fácil de se encontrar. Ficará ”descoberto” outro conceito importante:declinação magnética, a diferença entre o Norte verdadeiro, aquele que você determinou pelas sombras da haste vertical e o Norte da bússola que é o Norte magnético do lugar. Esse conceito e sua aplicação são uma “ferramenta” indispensável para os navegadores. No mar você não pode usar o método das sombras mas pode usar a bússola. Sabendo a diferença entre os dois “nortes”, você pode saber onde está o Norte verdadeiro pela observação da bússola. Esta dá apenas o Norte magnético. A diferença ou declinação magnética pode ser muito grande e varia de um lugar para o outro.

Este foi apenas um exemplo da grande diferença entre se fazer um discurso sobre pontos Cardeais e envolver em ações de fato os educandos.Todas estas ações vão despertando a curiosidade e mobilizando o interesse, fixando conceitos, levantando discussões, sem necessidade do um esforço de memorização e têm os importantes ingredientes: o lúdico e o desafio.

Outro exemplo dos módulos que foram oferecidos ao trabalho com os professores:,”nossa moradia no espaço”, um modelo de “Terra” de isopor de 20 cm de diâmetro para representar nosso planeta. Tanto essa bola quanto a que vai representar a Lua (5 cm de diâmetro), são encontráveis no comércio(casas de festas) e de baixo custo.

O texto relativo à Terra traz algumas informações sobre sua forma, o tamanho, os seres vivos formados com os elementos nela existentes, seu ponto culminante, etc.. Muitos conceitos são então introduzidos enquanto os alunos manipulam a “Terra” de isopor. Uma das muitas questões” “desafia” os estudantes com a idéia de modelo reduzido, mantendo-se as mesmas proporções de tudo. Se a Terra fosse reduzida ao tamanho da bola de isopor, mantendo-se todas os seus acidentes, montanhas, vales....etc., seria ela mais lisa ou mais áspera que a bola que está em suas mãos?- Segue-se uma acalorada discussão sobre proporções, usando uma única informação: a altura dada do Monte Everest(cerca de 9.000 m). A própria definição do metro como a décima milionésima (1/10.000.000) parte do quadrante terrestre oferece o fator para representar os acidentes sobre a “Terra” que está em suas mãos. E´ com grande surpresa que os alunos chegam a concluir que

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mesmo mantendo as montanhas proporcionalmente representadas na sua “Terra”, ela seria ainda mais lisa que a bola de isopor que eles têm em suas mãos. A partir daí, seguem-se como conseqüência, a representação da espessura da “biosfera”, lugar em que ocorrem todos os processos de vida e morte em nosso planeta. Mais surpreendente ainda é para eles a “descoberta” de que toda a matéria que circula dentro da biosfera é sempre a mesma: os seres vivos são constituídos dos mesmos átomos que estão “circulando” nisso que se chama BIOSFERA. Também nós somos “feitos” dos elementos tirados da biosfera: do solo, da água e do ar.

Na medida em que fui acumulando experiência na discussão com os professores, foram aparecendo outras “tiriricas” mais complicadas e “plantadas” mais fundo na mente das pessoas. Tomarei apenas um exemplo por ser geral e emblemático. Eu já sabia da grande diferença que geralmente há entre um discurso e os comportamentos a ele associados. Em muitas páginas atrás você leu sobre aquele dito caipira :“falá é fôlego e fazê é que é sustança”. O que descobri é que em alguns casos isso não é só uma falta de correspondência entre as palavras e as ações. Verifiquei casos muito curiosos em que as mãos vão fazendo ao mesmo tempo coisas contrárias ao que as palavras estão afirmando.

Um desses exemplos também está relacionado a coisas que são “ensinadas” na escola de primeiro grau. Grande parte dos professores inclui em suas “explicações” sobre as “causas” das estações o “bamboleio” do eixo da Terra. Já falei anteriormente de “explicações” como a variação da distância entre a Terra e o Sol. Algumas dessas davam até “explicações” mais “científicas”, mencionando órbita elíptica. Apareceu no entanto um grande número de “explicações” que atribuía as estações ao movimento ou “bamboleio” do eixo da Terra. Como se o eixo estivesse fazendo algo parecido, em cada ano, ao “bamboleio” que um pião faz quando roda sobre si mesmo. Freqüentemente aparece mesmo a alusão ao caso do pião. Para superar essa dificuldade tive que inventar uma parábola chamada de “tragédia no espeto”. E´ a história de como um frango no espeto “veria” os movimentos do Mundo a seu redor. Tudo pareceria girar ao redor dele: o braseiro, toda a festa, o Sol, a Lua, as estrelas e mesmo as distantes galáxias. Tudo parece girar ao redor dele dando-lhe a impressão de ser o centro, e por isso, a coisa mais importante do Universo. No entanto um único ponto permanecia imóvel. Esse único ponto imóvel do “Universo” do frango era uma lâmpada da vizinhança e que ele já conhecia das suas noites de sua insônia “galinácea”. Essa era uma maneira breve de contar a história da Estrela Polar(Polaris) que através dos séculos tem guiado os navegadores por ser a única estrela imóvel do céu. Não é portanto sem razão que nossa civilização conta uma história de uns visitantes que vieram de “muito longe” guiados por uma estrela. Era a estrela Polar, com as deformações introduzidas pelas

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crenças populares. Essa estrela parece imóvel simplesmente porque é para ela que está “apontado” o eixo da Terra. E´ portanto evidente através dos séculos de história que o eixo da Terra sempre esteve apontado para um mesmo ponto, por isso chamado de Pólo Celeste. A rigor, o eixo faz realmente um “bamboleio”. Só que uma única volta leva cerca de 26.000 anos. Para efeitos práticos é como se estivesse apontado sempre para (aproximadamente) a Estrela Polar. Essa história parece convincente e, finalmente as pessoas pareciam “convencidas” de que o eixo da Terra está sempre apontado para a mesma direção. Depois disso se seguia a prática para reproduzir o que havia sido “aprendido”. Um dos professores(as) ficava no centro de um grande círculo em que estavam todos aqueles(as) que eu queria que reproduzissem o que acabavam de “aprender”. A cabeça desse professor(a) central representaria o Sol. A “Terra” era a bola de isopor de 20 cm de diâmetro. Esta estava atravessada por um par de grandes agulhas de tricô para materializar e tornar bem visível o eixo imaginário da “Terra”. Agora cada professor levaria a “Terra” em sua “órbita” circular, ao redor do “Sol”, a cabeça de alguém que ficava imóvel no centro. Todos haviam se manifestado satisfeitos com a “descoberta” de que o eixo da Terra fica sempre apontado na mesma direção. Agora cada um deveria reproduzir o que entendeu, levando a “Terra” ao redor do “Sol” (cabeça de quem ficava parado no “centro”) e mantendo o eixo sempre apontado numa mesma direção. Aí é que acontecem coisas curiosas. Quase todos(as) ao deslocarem a “Terra” ao redor do “Sol” vão mudando também a direção do eixo, reproduzindo o “bamboleio” que, apesar de tudo que agora manifestavam como entendido continuava a ser contrariado pelas mãos. As mãos iam fazendo o contrario das palavras que estavam pretendendo demonstrar o assunto como o “entendido”. Neste caso, a falta de uma oportunidade de fazer o que parecia entendido teria permitido que importante conceito tivesse permanecido como uma ação contraditória. Fato curioso é que todos se haviam manifestado como tendo entendido que o eixo da Terra aponta sempre para uma mesma direção. Na hora de transformar esse “conhecimento” em uma ação visível, todos o desmentiram com sua ação. As idéias sobre o “bamboleio” do eixo da Terra, plantadas mais fundo e anteriormente nas cabeças, prevaleceram. Não tivéssemos feito a atividade, não se teria percebido a persistência daquele preconceito ou “tiririca”, “plantada” mais fundo nas mentes. Discussão e atividades correlatas são uma importante fase na construção do conhecimento de cada um. A ausência quase total de atividades experimentais relacionadas aos conteúdos em nossa escola faz com que se acumulem mal entendidos, preconceitos e “tiriricas” de que quase nunca nos damos conta. Muitas dessas condicionam nossa maneira de pensar e nossa visão do Mundo, além de representarem uma enorme perda de tempo e de recursos.

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Minha insistência no uso dos cinco verbos, neles incluídos discutir e fazer não são apenas uma sugestão ou um “palpite”. Eles são ingredientes fundamentais que devem fazer parte da construção de nosso conhecimento e que estão quase sempre ausentes em nosso sistema educacional.

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EM RESUMO

Temos e somos o BRASIL. Temos e somos a cultura brasileira . Essa cultura inclui muitas diferentes características no sentir, no olhar, no fazer, nas relações. Essas características resultam das muitas variáveis reunidas pelas circunstâncias de nossa história. Somos o que somos por muitas razões. Uma dessas razões é a nossa história. Essa não podemos mudar. Essa história nos deu muitas belas qualidades que nos ajudam e outras não tão belas que nos retardam e podem até nos conduzir ao caos. Ao longo de nossa história nos habituamos muitas vezes à desconsideração pelas normas de ordenamento civilizado e respeito às instituições. Também de nada nos adianta culpar a história por nossos defeitos. O que poderíamos fazer é mudar seu curso futuro. Para isso, no entanto, temos que, em primeiro lugar reconhecer nossos problemas. Em segundo lugar teríamos que estar dispostos a fazer um grande esforço para mudar o rumo da história futura. Já não podemos confiar naquele ufanismo tolo que pregava o destino obrigatoriamente glorioso do Brasil. Também não nos valerá a esperança de seremos salvos sem “fazer força” porque “Deus é brasileiro”. Hoje sabemos que a riqueza dos paises depende muito pouco de seus recursos naturais e muito mais da competência(EDUCAÇÃO) e trabalho de sua gente.

Entre os grandes problemas que teríamos que reconhecer, aquele que está numa das raízes de nossa cultura e que se constitui, a meu ver, no maior deles: a falta de seriedade nas relações e que resulta numa complacência ou tolerância com a burla, com as pequenas transgressões e com os pequenos delitos. Dela resultam a impunidade (aceita) e a muito difundida postura de querer levar vantagem em tudo. Estamos a ponto de o cidadão honesto e cumpridor de seus deveres sentir-se um “otário” envergonhado diante de tanta “esperteza”. Isso acaba por minar todas as

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relações e a comprometer quase todas as iniciativas e projetos que poderiam resultar em uma sociedade mais produtiva, mais justa e mais segura. Não nos faltam leis e normas de convívio. Falta-nos exercício e hábito de observá-las para o bem de todos. Isso só pode ser conseguido com EDUCAÇÃO. Esta não se resume a boas maneiras somadas a conhecimentos. A EDUCAÇÃO de que precisamos exige seriedade, competência e exercício de cidadania.

Estas coisas, sabe-se, não são aprendidas simplesmente ouvindo discursos sobre esses temas, mas exercitando esses valores diariamente, de modo especial na fase em que se formam nossos primeiros hábitos, desde nossa primeira infância. O desejável seria que isso sempre ocorresse no meio familiar. Hoje sabemos que já não se pode contar com a família para que todos passem por esse tipo de EDUCAÇÃO. Por mais essa razão fica aumentada a responsabilidade e a importância tanto da ESCOLA quanto do PROFESSOR, como EDUCADOR.

O que tradicionalmente entendemos por escola é o lugar em que formalmente nos ensinam conhecimentos. Quero me referir aqui a uma coisa que já tenho chamado em outra ocasião de protoeducação. Há um grande número de coisas que aprendemos sem que ninguém nos tenha dito que deveriam ser dessa ou daquela maneira; sem que nada de formal nos tenha sido dito. São coisas que mesmo sem que alguém nos tenha dito se incorporam aos nossos hábitos e à nossa maneira de ser e de agir. Isso no entanto se faz pelo convívio em um “ambiente” em que esses valores presentes se incorporam pelo hábito, pelo exercício. Esse exercício deveria ser proporcionado desde a pré-escola. Nossa pré-escola quase sempre se limita, quando existe, a cuidados de higiene e alimentação. Desde cedo precisamos adquirir ou consolidar hábitos de respeito às pessoas, às coisas, especialmente públicas, à gestão de nossas coisas e às normas de convivência. Deveria começar aí um convívio com pessoas preparadas para esse nível da EDUCAÇÃO.

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Sobre nossa escola de primeiro grau já muito falamos sobre o verdadeiro descalabro reinante. Esse baixíssimo rendimento se deve basicamente ao despreparo tanto na competência docente quanto na postura frente aos alunos. Esses fatos ficam muito agravados pela permissividade da escola aos maus hábitos trazidos da rua. A ESCOLA, por falta de preparo docente e institucional, se tornou permissiva e tolerante com a burla, com as pequenas fraudes e com a violação das regras de convívio civilizado. Em lugar de a escola irradiar cultura ela passou a ser invadida pela cultura da rua.

O professor freqüentemente encobre sua fraca competência com críticas ao “governo”, com queixas ou com uma postura ideologizada diante dos alunos em aula. Nos habituamos ao fato de que “matar aula” se justifica quando se trata de falar mal do “governo”. Isso não atinge o “governo” mas sim o educando. Isso é fraude, em prejuízo do educando, por pior que nos pareça o “governo”.

Muitas vezes se cultiva o”mito do alto nível”, a idéia de que se está estudando algo muito complicado pela incapacidade de fazer as coisas mais entendíveis. Parece que se cultiva o complicado pelo “status” conferido pelas coisas “difíceis”. Muitas vezes também os alunos ajudam a cultivar esse “mito do alto nível”. Coisas complicadas parecem conferir “status” a quem as ouve, mesmo que as não entenda. Essa é uma postura que indica e acentua o “sub” desenvolvimento. Até altos índices de reprovação ajudam, às vezes, a cultivar o mito do “alto nível”. Física e Matemática são áreas que sofrem particularmente dessas “enfermidades”. Uma das razões para os altos índices de rejeição dessas disciplinas é a abordagem inadequada e freqüentemente devida ao pouco preparo docente.

Nosso ensino é feito quase que exclusivamente pelo discurso do professor. Já discutimos anteriormente sobre o “quase nada que fica do quase tudo que pensamos ter ensinado” quando se usa o “método” apenas discursivo ou de copiar do quadro negro. Lamentavelmente, a única coisa que não sofreu qualquer modernização no último século, especialmente no mundo “sub” desenvolvido, é forma da aula. A presença de computadores ou de modernos meios de “multimídia” não significa muito se não estiverem presentes aqueles ingredientes indispensáveis à construção do conhecimento .Construção do conhecimento exige vontade do educando, desafio à sua inteligência, alguma forma de ação, o prazer lúdico da descoberta, discussão, verbalização dos próprios argumentos. Aprender a calar para ouvir argumentos dos outros também faz parte desse processo de construção que deve ser orientado pela necessária competência do professor.

A fala do professor geralmente é a “fonte” que reproduz as coisas que estão escritas no livro didático. Isso agrava carência na habilidade de ler dos

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nossos alunos. Essa carência é tão grave que se estende aos níveis mais altos de escolaridade com reflexos no desempenho dos indivíduos e no desenvolvimento do país.

A ausência na escola de atividades inteligentes que envolvam também as mãos é uma das deformidades de nossa cultura. Essa deformação se propaga e constitui um dos problemas das “elites” intelectuais nos paises “sub” desenvolvidos. Sabemos fazer discursos sobre “soluções” mas sabemos fazer muito pouco de fato. Este não é um problema só do ensino fundamental e secundário. Grande parte das instituições de ensino superior são de uma enorme pobreza na capacidade de realizar qualquer coisa que não seja “aula teórica”. Quando se trata de ensino de alguma área das chamadas ciências da Natureza ou simplesmente Ciência, isso produz uma grande e grave deformação. Aprende-se a falar sobre as coisas mas se sabe fazer muito pouco com elas. Ao longo de décadas de meu trabalho com professores de Ciências e de Física ficou para mim evidente que muitos de nossos cursos são parecidos a cursos de natação feitos por correspondência: aprendemos a falar sobre a importância da natação mas não nos atrevemos a entrar na água.

O constante exercício de uma postura passiva de só sentar e ouvir acaba por atrofiar a iniciativa dos jovens, formando muito mais “sentistas” que cientistas. Iniciativa é um dos ingredientes indispensáveis ao progresso do indivíduo e das nações. Nossa escola, pela postura passiva que estimula como “bom comportamento” exercita a passividade e atrofia a iniciativa.

A dificuldade de se exprimir com clareza ao falar denota a grande falta de oportunidade de se exercitar essa habilidade. E´ a ESCOLA o lugar em que se deve exercitar a verbalização de argumentos. E´ também a ESCOLA o lugar em que nas DISCUSSÔES o jovem deve aprender exercitar a oportunidade em que se deve calar para ouvir os argumentos dos outros. Democracia se aprende exercitando suas regras desde cedo: na ESCOLA.

E´ também na ESCOLA que devemos exercitar o convívio com as diferenças de todos os tipos: raça, credo religioso, orientação política, deficiências físicas e outras. A ESCOLA pode e deve ser tolerante com as diferenças mas intransigente com a burla e a fraude.

Há um outro grande problema da ESCOLA que está presente quase sempre em nosso sistema educacional. Pude verificá-lo em muitas regiões do Brasil como em vários outrs paises da América Latina. Freqüentemente são introduzidas “invenções” e “inovações” que estão velhas ou já foram “inventadas”. Sem que se saiba por que ou por quem, somos levados, em nome da criatividade a “re-inventar a roda”. Investimos recursos e tempo em coisas que já são sabidamente feitas com sucesso ou rejeitadas em muitos lugares desenvolvidos do Mundo. Temos que ser capazes de adotar aquilo que já se sabe sobre EDUCAÇÃO em muitos lugares. Só nos custa mais

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recursos e tempo insistir em “inventar”, com se estivéssemos começando a “descobrir” a EDUCAÇÃO. E´ possível inventar ou desenvolver métodos ou enfoques novos ou pelo menos com diferentes abordagens. Isso no entanto demanda anos de experimentação e provas de campo. Nossa EDUCAÇÃO não pode ficar à mercê de palpites que desconhecem o já feito, aprovado ou reprovado. Criatividade pode e deve ser estimulada, sem no entanto desconhecer o que já existe e conhecido

O papel da ESCOLA e do PROFESSOR deve e pode ser uma espécie de “rampa” para a “decolagem” definitiva e independente do indivíduo rumo um “vôo” com autonomia para continuar a crescer em conhecimento pelos seus próprios meios.

A ESCOLA e o PROFESSOR devem e podem ser as coisas de que nos recordaremos por toda a vida com admiração, gratidão e respeito, com as boas lembranças das pessoas que nos proporcionaram uma boa “decolagem” em nosso “vôo” pela vida e pelo Mundo.

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COMO MELHORAR NOSSA ESCOLA

Não é possível fazer-se em curto prazo nenhuma mudança radical da qualidade num sistema complexo como o sistema educacional. No entanto é urgente e possível em curto prazo fazer melhorias significativas. Isso pode ser feito através de cursos de treinamento dos professores em serviço, especialmente das redes municipais de ensino. Isso seria uma espécie de “injeção na veia” do sistema, com alguma melhoria imediata. Esse “socorro urgente” poderia ser feito sem perda de tempo. E´ sobre o professor que está assentada a maior parte da responsabilidade pela qualidade de nossa educação. E´ para e sobre o professor que deve ser dirigida a maior parte da atenção, do esforço e do investimento. Os cursos de treinamento para os professores podem ser feitos em módulos “em serviço”, num sistema de “rodízio” de maneira a não se interromper as aulas. E´ também nessa atividade que se tem maior experiência, acumulada ao longo de muitos anos, tanto no Brasil como em muitos outros países. Nos paises mais desenvolvidos, onde o sistema educacional já está implantado com regularidade e qualidade, também se oferecem cursos de treinamento e atualização, nas férias, para constante melhoria da qualidade docente.

Cada vez mais se acentua a tendência de atribuir ao Município a responsabilidade pela gestão dom sistema educacional, pelo menos no âmbito do ensino que vai desde a creche até o que hoje se chama de oitava série. Essa descentralização tem algumas virtudes e alguns riscos. Entre as virtudes está a possibilidade de uma gestão mais próxima da comunidade, mais simples, menos burocratizada. Entre os riscos está a possibilidade de ficar ao “sabor” do capricho de algum prefeito muito “renovador” que comprometa a necessária continuidade de um projeto antes da necessária avaliação. Esse risco hoje é real especialmente diante do crescimento de um fanatismo religioso que parece ignorar qualquer conhecimento científico e que mobiliza populações especialmente das periferias desassistidas pelo estado. Outra vantagem de um sistema descentralizado é a possibilidade de um “socorro urgente” para superar as maiores dificuldade da ESOLA e do PROFESSOR. Esse “socorro” pode ser prestado e com resultados sobre as carências mais urgentes.

Há muitas formas em que se pode planejar e realizar as melhorias. A mais importante delas, segundo minha experiência, é o treinamento de professores em serviço. Estes se podem realizar em módulos de vinte ou quarenta horas, num sistema de rodízio, sem interrupção das aulas. E´ fundamental que os cursos sejam acompanhados de certificados que resultem em alguma melhoria salarial ou

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gratificação e possam ser considerados na progressão do professor em sua carreira, pelo menos dentro do sistema educacional do Município.

Os detalhes de um projeto de treinamento dos professores devem ser objeto de estudo e iniciativa de cada Secretaria Municipal de Educação, segundo suas necessidades mais urgentes. O possível reconhecimento por parte do MEC poderia ser obtido, conferindo aos certificados um significado maior e nacional. Os cursos devem ser feitos durante o período letivo, sem interrupção das aulas. Isso pode ser conseguido com relativa facilidade com um “rodízio” entre os professores de cada rede, em serviço. Seria incumbência de cada Secretaria Municipal o planejamento, o custeio e as providências para o reconhecimento de cada curso no âmbito de sua municipalidade.

Há outro aspecto importante a ser considerado além do planejamento necessário a cada curso, para que o trabalho e investimento não se percam: o acompanhamento sobre o trabalho e seus resultados. Levando em conta o que foi dito anteriormente, sugere-se que além do planejamento seja criado dentro de cada Secretaria de Educação um pequeno núcleo a quem cabe, além do planejamento, a implementação, o acompanhamento e avaliação de cada projeto e de seus resultados. Depois do treinamento é indispensável que os professores recebam a “munição” para a “batalha” em seu “campo”. Isso porque inovações certamente vão implicar novas condições, novo material, etc.. Esse pequeno grupo pode se constituir no que poderia ser chamado, por exemplo de “Núcleo de Apoio e Treinamento em Tecnologias Educacionais” ou coisa parecida. Essa sugestão resulta de uma grande experiência que se constituiu na base para ação de meu projeto e a partir da qual o projeto se irradiou para muitas dezenas de cursos e conferências dentro e fora do Brasil. Ao “núcleo” caberia ainda a constante busca pela aplicação de novas alternativas, sua implementação e constante avaliação. O acompanhamento, uma vez instalado, também permite uma constante avaliação do sistema como um todo e de cada professor e suas dificuldades. Esse conhecimento instruiria novas necessidades a serem detectadas e atendidas através de novos ou outros projetos.

Outra necessidade a ser atendida é a da escola em tempo integral. Por muitas razões essa necessidade é cada vez maior. Obviamente isso confronta o Sistema Educacional com outros grandes problemas. O primeiro deles é o maior custo decorrente do maior tempo de permanência dos alunos na escola por mais professores e alimentação. O maior problema, no entanto é o preparo dos professores para um tipo de trabalho a que não estão preparados. |Isso exige capacitação e treinamento especiais para que a escola em tempo integral não seja simplesmente uma coisa ruim mais demorada. Entre as grandes vantagens, com reflexos também na economia, está a diminuição dos riscos a que os jovens ficam expostos na rua ou com famílias que não podem oferecer condições melhores e mais seguras. Outro aspecto é fazer chegar, especialmente às crianças mais carentes, uma alimentação mais saudável, com reflexos sobre os hábitos das

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famílias e diminuindo as conseqüências de alimentação errada ou deficiente. Especialmente nas periferias mais distantes e desatendidas pelo Estado, o risco e a degradação das ruas põe a perder parte do pouco que a ESCOLA tenha conseguido construir. Resgatar ou curar os “males” originados pelo abandono dos jovens ao “sabor” da rua, como ela freqüentemente é hoje, tem um custo que já é muito alto e cresce a cada dia.

A cada dia a sociedade e o Mundo se tornam mais exigentes em termos de conhecimento. Sabemos que mesmo em nossa sociedade, onde ainda as exigências não são tão grandes quanto nos paises mais desenvolvidos, essa já é alta. Muito mais que falta de emprego, o que ocorre entre nós é a falta de gente com preparo mínimo para funções que a cada dia se tornam maiores, mesmo em tarefas que nada exigiam. Essas exigências nos têm deixado cada vez em maior desvantagem em termos de tempo de escolaridade e, mais ainda em relação à qualidade dela. Os “deveres de casa” passados pela escola acabam de modo geral por engrossar a quantidade das coisas que “deveriam” mas não são feitas por muitas razões. Estas incluem a impossibilidade prática de a professora “corrigir”, tanto pela pletora de trabalho que isso representa quanto pela dificuldade de apoio das crianças em suas casas(?). Além do inconveniente de não serem feitos os “deveres de casa” com o que eles representariam do ponto de vista escolar, há um outro efeito “colateral” mais sério: o exercício do mau hábito, da burla ou da transgressão seguidos da impunidade. Dificilmente o professor irá punir uma criança carente pela não-realização do dever de casa. Fato como esse repetido freqüentemente se constitui em uma séria “erosão” do jovem caráter: a repetição de uma coisa que deveria ser feita mas não o é e fica por isso mesmo. A escola em tempo integral pode e deve substituir o “dever de casa” por outras atividades que incluam ação e iniciativa em atividades e estudo dirigido, exercitando autonomia.

Diante da possível e necessária implantação da escola em tempo integral, muito mais e urgente se torna o treinamento dos professores. Acompanhei de perto essa dificuldade quando da implantação do tempo integral nos CIEPs no Estado do Rio. Naquele período eu estava ministrando muitos cursos para aquela Secretaria de Estado. As intenções por trás desse projeto são muito boas mas esbarram no adequado preparo dos professores. Como já ficou dito anteriormente, tempo integral não pode se resumir a mais horas da mesma escola tradicional, com aulas dadas da mesma maneira. Uma coisa que é ruim, apenas ficaria maior. Para que se justifique a escola em tempo integral é absolutamente necessário que o professor tenha um preparo muito diferente daquilo que se faz tradicionalmente. Isso deve e pode ser feito com cursos de treinamento em serviço de uma outra postura, outra abordagem e outros conteúdos. Isso é o que estive fazendo em muitos cursos, durante muitos anos, pelo Brasil e pela América Latina. Obviamente a aplicação de um método alternativo deve ser diferente e adequado a diferentes níveis ou séries escolares. O ideário e os procedimentos estão em meu livro

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“Com(ns)Ciência na Educação” e em outros como “O céu”, “Linguagens da Física” e “A Terra em que vivemos”. O uso dos cinco verbos(ler, discutir, fazer, acrescentar e cooperar) é simples como nadar mas é preciso exercitá-los antes de os aplicar.

Nas séries de primeiro grau, quase sempre a iniciativa deve ser de Secretaria Municipal. Estas podem e devem fazer isso quanto antes. No caso do segundo grau, mais freqüentemente, a iniciativa fica com a Secretaria Estadual e envolve um numero de professores de outra ordem de grandeza. Não se descarta a possibilidade de ação Federal. Essa no entanto é mais distante e tem menor probabilidade de atender as reais necessidades de cada comunidade. Seus custos, burocracia e dificuldade de gestão tornam mais difíceis as coisas. Entretanto apoio institucional e aporte financeiro do governo Federal, assim como o reconhecimento formal dos certificados de treinamento dos professores serão sempre importantes.

Cada vez mais será desejável e necessária a presença ou proximidade da Comunidade em que está inserida a escola. A escola não pode ficar alheia ou indiferente ao que se passa na comunidade. A recíproca também é verdadeira e necessária .

Muitas e variadas são alternativas possíveis de serem colocadas imediatamente a serviço de uma escola muito melhor. Este autor se coloca, como sempre esteve fazendo, à disposição das pessoas e instituições que tenham um real propósito de dar à ESCOLA uma outra dimensão. Mesmo em condições modestas é possível fazer um ensino muito diferente, muito mais interessante para os jovens e também para o PROFESSOR. Afinal, estamos todos em um mesmo barco que precisa fazer uma forte correção de rumos. A ESCOLA pode ser o lugar de que nos lembraremos por toda a vida, não só pela nossa infância e pelos amigos que fizemos e deixamos, mas pelo que ela nos pode valer em termos das coisas boas e importantes que constituem a base do cidadão.

Todas as instâncias do poder público Federal, Estadual e Municipal devem mobilizar recursos e iniciativas para capacitar, reconhecer e remunerar os professores para instalação da Escola Fundamental em tempo integral. Não são necessários prédios e instalações suntuosos. O que é preciso é, mais que tudo, a disposição de não perder tempo no mais rendoso dos investimentos de que o Brasil precisa e pode fazer: aprimoramento e valorização de seu corpo docente:EDUCAÇÃO.

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EPÍLOGO

Ao caro leitor que até aqui chegou quero acrescentar uma explicação não feita antes para não prejudicar a leitura da idéia principal. Esta explicação tem a ver com a inclusão de atividades como parte importante na construção do conhecimento. Desde há muito tempo se entendeu que, especialmente no ensino das Ciências da Natureza, há uma parte indispensável que são as atividades experimentais. Sem essas, mesmo as discussões ficam prejudicadas pela falta de concretude Foi esta convicção que levou os países mais adiantados no campo da Ciência a investir grandes somas. Isso se deu especialmente a partir do fim dos anos cinqüenta. Tanto nos EE.UU quanto na Europa se desenvolveram grandes projetos de ensino, especialmente em Física, Química, Biologia e Ciências da Terra, no sentido de oferecer, alem de informações atualizadas, uma parte experimental considerada como indispensável na construção do conhecimento e formação de conceitos, especialmente dos mais jovens. Tão difícil quanto fazer bons textos é criar experimentos que sejam significativos, seguros e não imponham custos elevados, justamente para que possam ser feitos, adquiridos ou reproduzidos em grande escala e usáveis em sala de aula. Mesmo nos paises de origem, mais adiantados também em termos de educação e preparo docente, ocorreram dificuldades na aplicação das novas abordagens. Isso tem uma explicação simples e clara. A montagem de qualquer experimento, por mais simples que seja, exige o material, algum tempo e recursos para sua montagem e desmontagem. Mas não é essa a maior dificuldade. Ela está no grande número de situações e perguntas, muitas imprevisíveis, que podem expor o fraco preparo do professor no assunto que ele está “ensinando”. Claro, ninguém gosta ou quer expor suas limitações. No entanto a exposição à dúvida, ao novo e imprevisível se constitui num dos mais importantes ingredientes de aprendizado e do crescimento intelectual também para o professor.Por razões de minha história pessoal, fora da escola, e pela construção do telescópio da PUC de Campinas(1955), ainda antes de minha formatura, eu havia percebido a grande importância do envolvimento com situações de desafio em que tive que buscar e construir soluções. Meus professores não me puderam ajudar. Mais tarde, já como jovem docente universitário passei a ter contato próximo com os projetos estrangeiros que chegaram ao Brasil a partir de 1962 e com seus autores. Isso se constituiu numa grande oportunidade de perceber a importância tanto das discussões orientadas como da parte experimental ou prática. Ficava evidente nossa carência no entendimento de coisas fundamentais, mesmo entre nós, docentes universitários de toda a América Latina. Durante as décadas em que me dediquei à formação e ao treinamento de professoras das áreas de Ciência no Brasil e em muitos paises da América Latina pude verificar a extensão e a profundidade do problema. A formação do nosso

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professorado do ensino médio é mais do que deficiente em termos de conhecimento como também em termos dos métodos de ensino. Quando em muitas dezenas de cursos pelo Brasil pude interagir com os professores do primeiro grau, verifiquei a verdadeira penúria, tanto em termos de consistência do conhecimento quanto em termos de procedimentos ou método, quase que exclusivamente discursivo. Essa grande carência se reflete num aproveitamento muito baixo, com uma grande perda de tempo e de recursos.Uma visão pobre de conhecimentos e de procedimentos por parte daqueles que têm a missão da formação da mentalidade jovem resulta na propagação de uma visão de mundo alienada, inconsistente e eivada de preconceitos. Essa visão carente de qualquer consistência científica dificulta uma compreensão mais realista sobre o funcionamento do Mundo. Isso torna parte da população. muito mais sujeita aos milagreiros que propagam a idéia da intervenção direta de divindades na vida diária e nos destinos das pessoas, especialmente das mais carentes. Um mínimo de formação em ciência é hoje indispensável à leitura do Mundo. Ciência (conhecimento) é hoje condição necessária ao desenvolvimento do cidadão e preservação do Mundo, embora não seja suficiente. Além do conhecimento necessitamos, especialmente em termos brasileiros, de uma consciência dos marcos civilizatórios, sob pena de nos encaminharmos para um “salve-se quem puder” ou para o caos. Precisamos urgentemente que o jovem aprenda não só as letras, os números e como funciona o Mundo(Ciência). Precisamos que o jovem compreenda e pratique desde cedo (na escola), os valores indispensáveis ao funcionamento da sociedade: direitos, deveres e regras de convívio civilizado. Estas incluem o convívio pacífico e tolerante com as diferenças, a prática do respeito ao trabalho e ao patrimônio, especialmente público. Esses valores não são apreendidos simplesmente através de discursos sobre o tema mas pela prática diária. Essa prática pode e deve acontecer na ESCOLA, desde os primeiros anos de nossa vida. Uma escola fraca, pouco competente de conhecimento também prático.Hoje vivemos num Mundo inevitavelmente globalizado. Os conhecimentos para melhorar a nutrição, a saúde e as condições de vida de uma população crescente, precisa-se cada vez mais conhecimento científico, básico para o desenvolvimento de tecnologias para a produção de bens, de alimentos e da saúde. Precisamos cada vez mais de pessoas com maior conhecimento da CIÊNCIA. Para que apareçam mais vocações para a CIÊNCIA é preciso que mais jovens tenham oportunidade de descobrir e desenvolver seus talentos para diferentes áreas.Não é preciso que todos sejam cientistas mas é cada vez mais necessário entender o funcionamento do MUNDO. Para preservá-lo temos que primeiro entendê-lo. Para isso é indispensável que a ESCOLA se liberte de métodos apenas discursivos e ofereça oportunidade de desafios à inteligência e à AÇÃO empreendedora, especialmente dos mais jovens.

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