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39 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto Departamento de Economia Disciplina: REC0215 – Microeconomia I Docente Responsável: Jaylson Silveira 2.1.6. Escolha sob incerteza Leitura básica: Nicholson (2005, cap. 18), Varian (2006, cap. 12). Leitura complementar (opcional): Bierman, H. S.; Fernandez, L. Game theory with economic applications. New York: Addison-Wesley, 1993, p. 21-41. a) A formalização von Neumann-Morgenstern Podemos usar a estrutura da teoria da escolha baseada nas preferências em situações sem incerteza, que aprendemos anteriormente, para tratar de situações em que os agentes econômicos fazem escolhas envolvendo algum tipo de incerteza, tais como: seguros, investimentos financeiros, jogos de azar, etc. Para isso, basta redefinirmos os objetos de escolha, que antes eram simplesmente as cestas de consumo, de maneira a incorporar a incerteza. Conjunto de resultados: É o conjunto } , , , , , , { 1 2 1 n n i a a a a a A = K K , cujo i-ésimo elemento i a representa um resultado possível. Economicamente, i a pode ser, por exemplo, uma cesta de consumo ou um valor monetário. Note que os elementos do conjunto A não são em si variáveis aleatórias, porém são utilizados para construir os objetos de escolha da teoria da escolha sob incerteza. No que segue o conjunto A é um dado da teoria. Loteria simples: Para um dado conjunto de resultados A, uma loteria simples L é simplesmente uma seleção aleatória dos elementos de A com probabilidades ) , , , , ( 1 n i p p p K K . Em outros termos, uma loteria simples ) : , , : , , : ( 1 1 n n i i p a p a p a L K K = associa uma probabilidade 0 i p , com = = n i i p 1 1, para cada resultado A a i , com n i ,..., 2 , 1 = . Loteria composta: É uma loteria cujos resultados são loterias. Vejamos um exemplo. Suponha que o conjunto de resultados seja formado por apenas dois resultados, ou seja, } , { 2 1 a a A = . A partir deste conjunto A podemos formar duas loterias simples, uma loteria ) 1 : , : ( 2 1 1 p a p a L = , rendendo o resultado 1 a com probabilidade p e o resultado 2 a com probabilidade p 1 , e uma outra loteria ) 1 : , : ( 2 1 2 q a q a L = , rendendo o resultado 1 a com probabilidade q e o resultado 2 a com

Notas de aula 6

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Page 1: Notas de aula 6

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto

Departamento de Economia

Disciplina: REC0215 – Microeconomia I Docente Responsável: Jaylson Silveira

2.1.6. Escolha sob incerteza

Leitura básica: Nicholson (2005, cap. 18), Varian (2006, cap. 12).

Leitura complementar (opcional): Bierman, H. S.; Fernandez, L. Game theory with economic applications. New York: Addison-Wesley, 1993, p. 21-41.

a) A formalização von Neumann-Morgenstern

Podemos usar a estrutura da teoria da escolha baseada nas preferências em situações sem

incerteza, que aprendemos anteriormente, para tratar de situações em que os agentes econômicos

fazem escolhas envolvendo algum tipo de incerteza, tais como: seguros, investimentos financeiros,

jogos de azar, etc. Para isso, basta redefinirmos os objetos de escolha, que antes eram simplesmente

as cestas de consumo, de maneira a incorporar a incerteza.

Conjunto de resultados: É o conjunto },,,,,,{ 121 nni aaaaaA −= KK , cujo i-ésimo elemento ia

representa um resultado possível. Economicamente, ia pode ser, por exemplo, uma cesta de

consumo ou um valor monetário. Note que os elementos do conjunto A não são em si variáveis

aleatórias, porém são utilizados para construir os objetos de escolha da teoria da escolha sob

incerteza. No que segue o conjunto A é um dado da teoria.

Loteria simples: Para um dado conjunto de resultados A, uma loteria simples L é simplesmente uma

seleção aleatória dos elementos de A com probabilidades ),,,,( 1 ni ppp KK . Em outros termos, uma

loteria simples ):,,:,,:( 11 nnii papapaL KK= associa uma probabilidade 0≥ip , com ∑=

=n

iip

1

1,

para cada resultado Aai ∈ , com ni ,...,2,1= .

Loteria composta: É uma loteria cujos resultados são loterias. Vejamos um exemplo. Suponha que o

conjunto de resultados seja formado por apenas dois resultados, ou seja, },{ 21 aaA = . A partir deste

conjunto A podemos formar duas loterias simples, uma loteria )1:,:( 211 papaL −= , rendendo o

resultado 1a com probabilidade p e o resultado 2a com probabilidade p−1 , e uma outra loteria

)1:,:( 212 qaqaL −= , rendendo o resultado 1a com probabilidade q e o resultado 2a com

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probabilidade q−1 . Se a loteria simples 1L é selecionada com probabilidade r e a loteria simples

2L é selecionada com probabilidade r−1 , a loteria composta correspondente é

)1:,:( 21 rLrLL −= .

Espaço de loterias: É o conjunto L formado por todas as loterias simples e compostas que podem

ser formadas a partir do conjunto de resultados A.

Observação: Na teoria da escolha (do consumidor) sem incerteza os objetos de escolha são as cestas

de consumo e o campo de escolha é o espaço de mercadorias. Na teoria da escolha sob incerteza os

objetos de escolha passam a ser as loterias (simples e compostas) e o campo de escolha passa a ser

o espaço de loterias.

Loteria reduzida: É uma loteria simples rL que associa a cada resultado Aai ∈ a mesma

probabilidade que uma loteria composta ∈L L. Por exemplo, a loteria composta

)1:,:( 21 rLrLL −= , usada como exemplo anteriormente, gera a seguinte loteria reduzida

))1)(1()1(:,)1(:( 21 qrpraqrrpaLr −−+−−+= .

Preferências do indivíduo: Assumiremos, como na teoria da escolha sem incerteza, que o indivíduo

pode ordenar as loterias do seu espaço de loterias de acordo com suas preferências comparando-as

em pares.

Preferência fraca: Se o indivíduo afirma que a loteria 1L é pelo menos tão boa quanto a loteria 2L ,

dizemos que este indivíduo prefere fracamente 1L a 2L e denotamos esta relação por 2~1 LL f .

Tecnicamente, ~f é uma relação binária sobre o espaço de loterias.

Indiferença: Se o consumidor afirma que a loteria 1L é pelo menos tão boa quanto a loteria 2L e

esta última, por sua vez, é pelo menos tão boa quanto a loteria 1L , então dizemos que o consumidor

mostra-se indiferente entre as duas loterias. A relação de indiferença é denotada por ~. Em síntese,

) (~ 1~22~121 LLLLLL ff ∧↔ .

Preferência estrita: Se o consumidor afirma que a loteria 1L é pelo menos tão boa quanto a loteria

2L e esta última, por sua vez, não é pelo menos tão boa quanto a loteria 1L , então dizemos que o

consumidor prefere de maneira estrita 1L a 2L ou, alternativamente, a loteria 1L é estritamente

preferida a loteria 2L . A relação de preferência estrita é denotada por f . Em suma,

)]([ 1~22~121 LLLLLL fff ¬∧↔ .

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Como na teoria da escolha sem incerteza, adotamos certos axiomas relativos à relação de

preferência fraca ~f sobre o espaço de loterias L, a saber:

Axioma da completeza: Para quaisquer loterias 1L e 2L do espaço de loterias, temos 2~1 LL f ou

1~2 LL f (ou ambos).

Axioma da transitividade: Para quaisquer loterias 1L , 2L e 3L do espaço de loterias L, se 2~1 LL f e

3~2 LL f , então 3~1 LL f .

Observação sobre notação: Daqui em diante se uma loteria L apresenta uma probabilidade 0=ip

associada ao resultado ia , então o termo ii pa : será, por simplificação, excluído da sua

representação, ou seja, a loteria L será simplesmente representada como ):,,:,:,,:( 111111 nniiii papapapaL KK ++−−= . Por exemplo, suponha que uma loteria L rende com

probabilidades estritamente positivas os resultados 1a e na e os demais resultados tenham

probabilidades nulas de ocorrerem. Assim, essa loteria será denotada compactamente por ):,:( 11 nn papaL = . Já que neste caso 11 =+ npp , poderíamos reescrever a loteria em questão

como )1:,:( 111 papaL n −= . No caso particular de uma loteria com 1=ip escreveremos

simplesmente ia no lugar de )1:( ia .

Loteria melhor-pior: Dado o conjunto de resultados },,,,,,{ 121 nni aaaaaA −= KK , podemos, sem

perda de generalidade, indexar os resultados de maneira que naaa~~2~1 fKff . Assim, o resultado 1a

é o melhor resultado e na o pior. A partir dessa ordenação podemos construir uma loteria )(αmpL

que rende o melhor resultado com probabilidade α e o pior resultado com probabilidade α−1 , ou seja, )1:,:()( 1 ααα −= nmp aaL .

Axioma da continuidade: Para qualquer loteria L do espaço de loterias L, existe uma probabilidade ]1,0[∈α tal que )(~ αmpLL . Ou seja, para qualquer loteria possível L existe uma probabilidade α

alta o suficiente para que o indivíduo se torne indiferente entre esta loteria e a loteria melhor-pior.

Axioma da monotonicidade: Para quaisquer probabilidades ]1,0[, ∈βα , tem-se )()(~

βα mpmp LL f

se, e somente se, βα ≥ . Ou seja, o indivíduo prefere a loteria melhor-pior que rende o melhor resultado com maior probabilidade.

Implicação: O axioma da monotonicidade implica que o melhor resultado é estritamente preferido ao pior, ou seja, naa f1 . Com efeito, faça 1=α e 0=β . Logo, pelo axioma da monotonicidade,

segue que nmpmp aLLa == )0()1(~1 f e não é o caso que 1~

)1()0( aLLa mpmpn == f . Logo,

nmpmp aLLa == )0()1(1 f como afirmamos.

Axioma da substituição: Para quaisquer loterias compostas ):,,:( 11 nn pLpLL K= e

):,,:( 11 nn pLpLL ′′=′ K do espaço de loterias L, se ii LL ′~ para todo ni ,,1K= , então LL ′~ .

Page 4: Notas de aula 6

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Implicação: Decorre dos axiomas da completeza e substituição que se para quaisquer loterias 1L e

2L do espaço de loterias L tal que 21 ~ LL , então 121 ~)1:,:( LLL αα − para todo ]1,0[∈α . Com

efeito, pelo axioma da completeza temos que 11 ~ LL . Desde que 21 ~ LL e 11 ~ LL , pelo axioma da

substituição segue que 111121 )1:()1:,:(~)1:,:( LLLLLL ==−− αααα , como queríamos

demonstrar.

Axioma do “consequencialismo” ou da redução a loterias simples: Para qualquer loteria L do espaço

de mercadorias L, se ):,,:,,:( 11 nniir papapaL KK= é a loteria reduzida da loteria composta L,

então LLr ~ .

Observação: Pelo axioma do “consequencialismo” só as loterias reduzidas são relevantes para o

indivíduo, ou seja, a probabilidade efetiva de um resultado é o que importa e não a maneira como

esse resultado pode vir a se realizar. Para aficionados por jogos de azar o axioma do

“consequencialismo” não é plausível.

Exemplo: Loterias compostas distintas que geram a mesma loteria reduzida (na lousa).

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Utilidade esperada: Uma função utilidade :u L ℜ→ é uma função utilidade esperada ou uma função utilidade von Neumann-Morgenstern (vN-M) se para qualquer loteria L do espaço de loterias

L tem-se ∑=

=n

iii aupLu

1

)()( .

Existência de uma função utilidade esperada: Se a relação de preferência ~f sobre o espaço de

loterias L satisfaz os axiomas da completeza, transitividade, continuidade, monotonicidade,

substituição e “consequencialismo”, então existe uma função utilidade :u L ℜ→ que representa a

relação de preferência ~f sobre o espaço de loterias L , tal que u é uma utilidade esperada.

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Exemplo: Construção de uma função utilidade esperada ou vN-M (na lousa).

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Exemplo: Utilidade esperada (ou vN-M) de um seguro e prêmio máximo (na lousa).

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Propriedade não-ordinal da função utilidade esperada: Suponha que a função utilidade esperada )(⋅u

representa a relação de preferência ~f sobre L. Então, a função utilidade esperada )(⋅v representa a

mesma relação de preferência ~f sobre L se, e somente se, para uma escalar α e uma escalar

0>β tal que )()( LuLv βα += para qualquer loteria L do espaço de loterias L.

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b) Comportamento perante o risco

Taxonomia do comportamento perante o risco: Suponha que os elementos do conjunto de resultados

sejam valores monetários, ou seja, },,,,{ 1 ni wwwA KK= , sendo 0≥iw a riqueza associada ao i-

ésimo resultado. Seja )(⋅u uma função utilidade vN-M de um indivíduo representando sua relação

de preferência ~f sobre o espaço de loterias L. Então, para uma loteria simples

):,,:,,:( 11 nnii papapaL KK= o indivíduo apresenta:

• Aversão ao risco em L se )()()()())(( 1111 LuwupwupwpwpuLEu nnnn =++>++= KK , ou

seja, para o indivíduo uma riqueza certa é estritamente preferida a uma riqueza incerta com

o mesmo valor esperado;

• Neutralidade de riscos em L se )())(( LuLEu = , ou seja, para o indivíduo uma riqueza certa

é indiferente a uma riqueza incerta com o mesmo valor esperado;

• Amor pelo risco em L se )())(( LuLEu < , ou seja, para o indivíduo uma riqueza certa é

estritamente preterida a uma riqueza incerta com o mesmo valor esperado.

Se o indivíduo apresenta aversão ao risco, neutralidade de riscos ou amor pelo risco para toda

loteria L no espaço de loterias L, então ele será classificado simplesmente como um tomador de

decisão que tem aversão ao risco, neutralidade de riscos ou amor pelo risco, respectivamente.

Equivalente de certeza: É uma quantidade de riqueza EC oferecida com certeza tal que

)()( ECuLu = , ou seja, tal que ECL ~ .

Prêmio de risco: É uma quantidade de riqueza P tal que ))(()( PLEuLu −= , ou seja,

ECLEP −≡ )( . O prêmio de risco pode ser interpretado como aquela quantidade máxima de

riqueza que o indivíduo estaria disposto a pagar (abrir mão) para deixar de assumir determinado

risco.

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Fonte: Nicholson (2005, cap. 18).

Relação entre a curvatura da função utilidade vN-M e o comportamento perante o risco: O tomador

de decisão apresenta aversão ao risco, neutralidade de riscos ou amor pelo risco se, e somente se,

sua função utilidade vN-M é estritamente côncava, linear ou estritamente convexa, respectivamente.

Medida Arrow-Pratt de aversão absoluta ao risco: )(

)()(

wu

wuwr

′′−≡ . Se 0)( >wr o indivíduo

apresenta aversão ao risco em w; se 0)( =wr o indivíduo apresenta neutralidade de riscos em w;

finalmente, se 0)( <wr o indivíduo apresenta amor pelo risco em w.

Exemplo: Aversão absoluta ao risco e riqueza (na lousa).

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Medida de aversão relativa ao risco: )()(

)()( wwR

wu

wuwwrr a=

′′−≡ . Note que )(wrr é elasticidade da

utilidade marginal com relação à riqueza w. Se 0)( >wrr o indivíduo apresenta aversão ao risco em

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w; se 0)( =wrr o indivíduo apresenta neutralidade de riscos em w; finalmente, se 0)( <wrr o

indivíduo apresenta amor pelo risco em w.

Exemplo: Cálculo da aversão relativa ao risco (na lousa).

b) Abordagem da preferência dependente de estado

Estados da natureza: São os resultados possíveis de um evento aleatório que afetam as

possibilidades de consumo futuras do tomador de decisão. Suporemos que há um conjunto finito de

estados da natureza },,,,,,{ 121 mmi sssssS −= KK , cujo elemento is representa o i-ésimo estado da

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natureza possível. Assumiremos também que o tomador de decisão pode associar uma

probabilidade (objetiva ou subjetiva) a cada um dos estados da natureza possíveis.

Consumo (bem) contingente: Especificação do que será consumido (ou estará à disposição) em cada

diferente estado da natureza possível.

Suposição comportamental (maximização da utilidade esperada): O tomador de decisão sob

incerteza, caracterizado pelos axiomas apresentados anteriormente, escolherá uma loteria (plano de

consumo contingente) que maximiza a sua utilidade esperada.

Exemplo: Seguro em um modelo de preferência dependente de estado (na lousa).

Fonte: Nicholson (2005, cap. 18).

Exemplo: Escolha ótima sob incerteza com dois estados da natureza em mercados de bens

contingentes atuarialmente justos (na lousa).

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Fonte: Nicholson (2005, cap. 18).

Exercícios: Resolva todas as “Questões de Revisão” propostas por Varian (2006, cap. 12). Resolva

os “Problems” 18.1, 18.3, 18.5, 18.7 e 18.9 de Nicholson (2005, cap. 18).