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Notas de leitura sobre o Seminário 1 de Jacques Lacan
Um Diálogo Didático
Sobre O Momento da Resistência
No Seminário 1, Lacan se dirige diretamente aos escritos técnicos de
Freud. No ano de realização desse seminário, 1954, Lacan constata que a
psicanálise, quinze anos depois da morte do seu pai, vendo a multiplicação de
escolas e teóricos pós-freudianos, fragmentara-se. Essa situação levava, ao seu
ver, à confusão. Confrontando essa situação à firmeza e leveza com que Freud
falava de técnica, fazia recomendações técnicas, Lacan critica a falta de unidade e
de clareza em torno da técnica psicanalítica daquele período. Não se sabia, ao
certo, como responder à pergunta: “o que fazemos quando fazemos análise?”.
Portanto, responder a essa pergunta é a tônica inicial do seu seminário.
No centro de suas críticas, estava a noção de inter-subjetividade para
pensar a relação entre analista e analisando, tal como estava sendo desenvolvida
a passos largos pela tradição britânica de psicanálise, por gente como Rickman e
Balint. Era o que Lacan chamava de two bodies psychology. Sua crítica era que,
concebida nesses moldes, a relação analítica se situava primordialmente no nível
imaginário, entre dois indivíduos. Donde a importância concedida às fantasias do
analista e ao material contra-transferencial para conduzir o tratamento. O
analisando se dirigia ao seu analista, que deglutia aquela fala de acordo com o
modo como ele era tocado, e devolvia para o seu analisando algo como: “eu sinto
que você diz isso porque...”.
Lacan acreditava que fantasias e sentimentos, sejam do analista, como do
analisando, estavam em um plano que ele denominou como imaginário. Embora
fosse importante levar em conta essa dimensão da experiência entre os
indivíduos, seria um equívoco querer fundar a experiência, o processo e a técnica
analítica sobre ela. A matéria principal a qual deveríamos recorrer para pensar a
relação analista-analisando, segundo Lacan, era a “palavra”. Essa, por sua vez,
não poderia esgotar-se em uma relação inter-subjetiva. A palavra apontaria para
algo fora das relações duais. A palavra apontaria para um lugar terceiro. Sendo
assim, convocaria uma dimensão distinta do imaginário. A palavra trabalharia
com o registro simbólico.
Para Lacan, os textos de Freud mostrariam exatamente isso, se fossem
lidos com atenção. Freud fundava o processo analítico na dimensão simbólica da
palavra. Donde a necessidade de se fazer o tão falado “retorno à Freud”. Isso
permitiria re-unificar um campo fragmentado, por um lado. Por outro, permitiria
resolver confusões teóricas e impasses técnicos constatados por Lacan na época
do seu seminário.
Sendo assim, o psicanalista francês se volta para uma questão muito
concreta e fundamental, intrinsecamente ligada à técnica analítica: mas qual
seria afinal o objetivo da psicanálise? Em seu retorno à Freud, ele expõe que
inicialmente em sua obra o objetivo da psicanálise era fazer uma reintegração, ou
“uma reconstituição completa da história do sujeito” (p. 21), o que faria dela uma
experiência radicalmente singular, na medida em que cada história é uma
ocorrência única. O que seria o recalcado, senão um passado a ser reconstituído?
Sendo um exercício de reconstituição, a historicidade e a temporalidade seriam
dimensões fundamentais a serem seguidas. Mas isso só operaria se algo da
ordem de uma novidade se produzisse. Ou seja, não se trataria da rememoração
pela rememoração, ou de um simples retorno aos fatos vividos, mas de uma
reconstrução presente que aconteceria no momento em que a história é contada
para um analista. Em suma, trata-se de reescrever a própria história a quatro
mãos.
Ao dizer isso, Lacan enuncia que, além da dimensão fundamental da
palavra, o processo analítico se estrutura em torno da dimensão fundamental da
memória. Isto é, uma memória articulada à palavra. Dito de outra forma, o
psiquismo humano, para Freud, seria o resultado de um aparelho de linguagem e
de memória (o sonho, por exemplo, é, ao mesmo tempo, uma linguagem cifrada e
uma modo de se lembrar, diferente do habitual), e sobre essas dimensões básicas
deveria atuar a técnica psicanalítica.
Outro equívoco que Lacan deseja desfazer é a noção de que o processo
analítico consiste em substituir a loucura do devaneio e da fantasia por uma
melhor apreensão do real (termo que nessa etapa da sua obra tinha o sentido de
realidade material compartilhada). Nessa concepção criticada, alguns estariam
iludidos, ao passo que outros (em especial, o analista) teriam lucidez, no sentido
de adaptação à realidade, às coisas como elas são. Uma análise que privilegia a
desilusão das fantasias centrar-se-ia fundamentalmente sobre o eu. Contra um eu
infantil, fantasioso, trabalhar-se-ia para ver emergir um eu maduro, lúcido, em
suma, adaptado às demandas do meio. Essa maturidade teria como modelo o eu
do analista, com o qual, ao fim de uma análise bem conduzida, o paciente se
identificaria.
Mas, para Lacan, o eu se estrutura fundamentalmente como sintoma. É o
sintoma próprio do bicho homem, o que faz dele um animal doente. O eu nada
mais é do que uma série de barragens, inibições e fantasias fundamentais que
dirigem e orientam o sujeito. Sendo assim, não se trata de simplesmente retirar
os mecanismos de defesa para que emerja um eu livre de entraves. O eu é, em si,
um sintoma.
No que concerne o tratamento analítico, Lacan termina por lançar um
importante conselho: atenção para que o eu não ocupe um lugar tal no
tratamento, que mais pareceria o de um elefante diante de uma cristaleira.
Sobre as Pequenas Intervenções
Nessa aula, Lacan faz uma distinção importante entre verdade e
objetividade da ciência. A psicanálise lida com a busca da verdade do sujeito. Isso
não deve ser confundido com a busca pela realidade, nem pela objetividade. Uma
das razões para isso é o fato de o processo analítico lidar primordialmente com a
singularidade, tanto do paciente como do analista. Um encontro desse tipo é
sempre algo único e irreproduzível. Por isso mesmo, não pode funcionar no nível
de uma casuística.
Volta-se, em seguida, ao comentário sobre a noção de resistência. Nota
que, desde os primórdios da psicanálise, essa noção está relacionada com as
funções do eu, ou dessa massa ideacional (sistema coordenado de crenças,
certezas, coordenadas e referências) que chamamos de eu1. Em seguida se
1 Nesse sentido, seria inútil, segundo Lacan, valorizar a contratransferência no técnica psicanalítica, uma vez que essa seria tão somente uma função do eu ou, como ele coloca, um efeito da “soma dos preconceitos do analista”.
pergunta se a resistência viria apenas daí, isto é, se a organização do eu seria
realmente aquilo que impediria que nós chegássemos ao núcleo recalcado. Se
fosse assim, bastaria remover os mecanismos de defesa do eu para finalmente
chegar ao núcleo patogênico. Uma vez feito isso, ele seria reintegrado ao eu,
livrando o sujeito dos seus sintomas incômodos, que o distanciam da realidade.
Mas será disso que se trata. Lacan acredita que colocar as coisas nesses termos é
cair em um impasse, que impede que o sujeito reconquiste o que ele chamará de
“realidade autêntica do inconsciente”. É fazer da psicanálise uma busca
policialesca, adotar uma postura inquisidora.
Sobre A resistência e as defesas
Lacan coloca em questão uma técnica de intervenção analítica que se
funde sobre a análise da contra-transferência. Cita um caso de Anne Reich, em
que o analista experimentaria hostilidade em relação ao sucesso do seu paciente,
que acabara de se sair brilhantemente em uma entrevista de rádio, sobre um
assunto que fascinava tal analista. O analisando, ao chegar na sessão
imediatamente seguinte à emissão radiofônica, se encontrava enigmaticamente
em um estado de quasi torpor confusional. O analista, então, tece uma
interpretação, dizendo que tal estado se devia ao fato de o paciente achar que ele,
o analista, lhe queria mal devido ao sucesso obtido recentemente na emissão
radiofônica. Isso significava interpretar a contra-transferência, sobre a base de
que os sentimentos são sempre recíprocos. Para Lacan, não é falsa a noção da
reciprocidade dos sentimentos. Porém, apenas se considerarmos relações duais.
Logo, interpretar a contra-transferência nesses moldes é realizar uma análise de
ego a ego, de igual a igual. Isso em nada seria distinto de um mecanismo de
projeção. Lacan recomenda que a análise da transferência se faça sempre com o
recurso a um terceiro, evitando toda técnica que conduza a uma relação dual.
Lacan retoma mais uma vez Freud para refundar a noção de resistência.
Esse conceito é utilizado sobretudo com relação ao trabalho analítico,
representando tudo aquilo que destrói/suspende/altera a continuação do
tratamento. Portanto, o que está em jogo não são exatamente os sintomas, mas o
trabalho analítico na análise das resistências.
Quanto ao recalcado, da interpretação dos sonhos aos textos
metapsicológicos, se trata sempre de um passado, cujo trabalho analítico tem por
missão restituir. O centro de gravidade do sujeito, dirá Lacan, é uma espécie de
síntese presente do passado, a que chamamos história. A definição, a natureza e a
função do passado permanecem questões ambíguas, sem a clareza. É
incontornável, para se pensar o passado e o recalcado para a psicanálise, nos
debruçarmos sobre o conceito de trauma. Aliás, essa era a questão mesma que
Freud, na fase intermediária de sua obra, se colocava, quando tratou do Homem
dos Lobos. A ambiguidade do trauma aparece em sua obra de modo que a
fantasia que o circunda é mais fundamental do que o acontecimento a que ele
remete. Esse vai para o segundo plano. E a revivescência do trauma, desde o
período pré-psicanalítico da hipnose, se mostra como terapêutico. É disso que se
trata os Estudos sobre a Histeria, por exemplo. Mas não se trata de uma
revivescência do vivido em si, como se poderia supor. Trata-se sempre de uma
reconstituição pelo discurso, segundo a regra da associação livre.
Lacan passa então para um questionamento do estatuto ambíguo do
discurso no trabalho analítico. O dispositivo é criado de modo que, assim que o
sujeito enuncia o seu discurso, já não acredita em metade do que diz. É a regra
fundamental mesmo que expressa: “no fim das contas, o seu discurso não tem
importância”. O fogo cruzado da interpretação arrebenta com o discurso. Isso
leva Lacan a procurar pelo sujeito do discurso.
Sobre o eu [ moi ] e o outro
Nesse momento do seminário, Lacan procura articular a noção de
resistência à de transferência. Munido de A Dinâmica da Transferência de Freud,
mostra como a ideia de núcleo patológico, ou complexo, está intimamente ligada
aos conceitos de resistência e transferência. No tratamento, a associação mais
próxima do núcleo, ou complexo patogênico, trará a marca do compromisso
entre a resistência e o trabalho de investigar. A experiência mostra que, uma vez
que algo desse complexo é capaz de se dirigir para a pessoa do analista, vemos aí
surgir uma transferência. Em seguida, pode sobrevir uma resistência: o bloqueio
das associações, por exemplo. Assim, toda vez que uma associação se aproxima
do núcleo patogênico, há grande chance de ela deslizar para o plano consciente
sob a forma de uma transferência para a figura do analista. Quando a resistência
se torna muito forte, surge a transferência. Isso acontece porque ela satisfaz
melhor a resistência do que outras associações possíveis. Trata-se de uma
formação de compromisso, de uma distorção do material patogênico. Por essa
razão, os conflitos são encenados no âmbito da transferência.
Assim que uma transferência se erige no plano consciente como
associação com o núcleo patogênico, o paciente passa a se defender ela com
muita tenacidade. Quando o paciente se cala em uma sessão, por exemplo, já
dizia Freud, é bem provável que essa parada se deva a algum pensamento
relacionado a seu analista.
Passos: 1) situamo-nos em uma região onde a resistência se faz sentir
nitidamente; 2) aqui surge a transferência; 3) ela se produz porque satisfaz a
resistência; 4) esse fato se produz em um número incalculável de vezes em uma
análise.
Lacan deseja nos livrar da ideia que a resistência é coerente com a
construção segundo a qual o inconsciente é, em um sujeito dado, em um
momento dado, conteúdo e recalcado. Qualquer que seja a extensão posterior
que podemos localizar no termo resistência, em Freud ela está ligada à
experiência analítica.
Em seguida, Lacan passa da questão da resistência para a questão do
sujeito, ao se perguntar: quem fala? O sujeito sente, às vezes, a presença do
inconsciente, mesmo que não seja fácil definir essa percepção bruta. Aliás, é essa
presença que dá estabilidade ao nosso mundo, mesmo que não a realizemos
enquanto tal. Temos tendência a apagar de nossa vida esse sentimento, pois a
vida seria muito difícil se tivéssemos a todo instante o sentimento da presença
do inconsciente, com tudo aquilo que ela comporta de mistério. É algo do qual
nós nos afastamos.
Ao fazer um comentário do caso do Homem dos Lobos, Freud postula que,
para que um núcleo recalcado se produza, foi necessário um acontecimento, ou
experiência anterior: esse será o tema do trauma original. O trauma é o
fundamento e o suporte do recalcamento. Diz ainda, que na estrutura do que
acontece ao Homem dos Lobos, houve uma foraclusão [Verwerfung] da
experiência genital.
Pela primeira vez, desde o início desse Seminário 1, Lacan dá a impressão
de saltar de um tema a outro, como se colocasse em marcha uma associação livre.
É assim, que sem concluir o tópico relacionado ao Homem dos Lobos, passa para
o tema dos sonhos, tal como é concebido na Traumdeutung. Pergunta-se o que é
o sonho, se a reconstituição que o sujeito faz dele é exata, se a verbalização
posterior não o fundiu com outras coisas... Freud não considera que a inexatidão
da sua reconstituição verbalizada seja uma objeção. Quanto mais incerto e
obscuro for o texto apresentado pelo sujeito, mais significativo será. A dúvida só
faz revelar o que há de importante. É onde o sujeito duvida que podemos ter
certeza. Fragmentos permitem reconstituir, não o sonho ele mesmo (que é
apenas acessório), mas os pensamentos que estão na sua base2. E se, por vezes, do
sonho resta apenas um pequeno fragmento, uma palavra, envolta por uma aura
de incerteza, é porque um mecanismo de resistência se coloca em marcha. Lacan,
volta então ao tema do seu seminário: a resistência, que é algo fundamental,
eloquente em tudo o que se disfarça (sonhos, atos falhos, ditos espirituosos,
sintomas, lapsos, esquecimentos, atuações). Ao dizer que a palavra não é da
ordem do que é expresso (posto que o inconsciente se encontra sempre
deformado), mas da revelação, Lacan insiste que a resistência se produz
justamente quando a fala cessa de revelar o inconsciente.
A partir do exemplo freudiano da condensação de fragmentos das
palavras Botticelli, Boltraffio, Herzégovina, Signorelli, mostra todo o
automatismo com que funciona o inconsciente, tendo a palavra como suporte.
Tudo se passa como se homúnculos guiados por regras de ordenação da
linguagem governassem nossa vida mental3. Fragmentos de vocábulos, como
Herr, Signor, etc. são manipulados com uma lógica absolutamente rígida e
impressionante. Nesse primado da linguagem situa-se as operações do
inconsciente lacaniano. Trata-se de uma máquina autônoma, independente da
vontade do sujeito consciente, que tem na linguagem o seu suporte.
2 Pensamento aqui deve ser entendido, não de forma habitual, como o faz a fenomenologia. Pensamento aqui é da ordem de um desejo, que corre daqui para ali. Fica a pergunta: desejo de quem? Falta do quê?3 Isso foi explorado por Vincent Descombes em La Denrée Mentale e em Les Institutions du Sens.
Lacan tece considerações sobre a fala [parole]: faz parte da sua essência
se ligar ao outro. Mas há uma outra face da palavra que é a revelação (revelação,
e não expressão). A revelação é o que se procura na experiência analítica. Esse
tema é relacionado com àquele da presença. Lacan prossegue, dizendo ainda que
uma das funções mais elevadas da fala é tomar alguém como testemunha. Um
pouco mais longe, sua função será a sedução. Nesse instante, faz uma distinção
entre palavra vazia e palavra cheia. Essa última, no sentido de uma palavra que
faz a revelação da verdade do sujeito. A primeira, no sentido de um uso ordinário,
balizado por um sistema cultural do qual se é parte. A resistência, mais uma vez
ela, seria a impotência do sujeito chegar ao domínio da realização da sua
verdade.
E o que dizer da intervenção do analista? Essa se dá justamente quando o
sujeito está no campo da palavra plena. Ela se dá sobre o seu discurso. Quando o
analisando está a proferir palavras vazias, o analista se liga ao estilo da famosa
análise das resistências, procurando além do seu discurso. Isso estaria no nível
das projeções do analista.