Notas Modernidade Holocausto Bauman Resenha

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    gora v. VI n . 2 jul/dez 2003 301-320

    Estudo interdisciplinar

    RESUMO:Grard Rabinovitch apresenta neste artigo uma leitura cr-

    tica do livroModernidade e Holocaustode Zygmunt Bauman. Atravs destaleitura, Rabinovitch aborda a tese central do livro que considera oHolocausto o efeito no de uma barbrie pr-moderna, mas da pr-pria modernidade , mostrando, por um lado, os aspectos que fi-cam excludos da anlise de Bauman, tal como o aspecto criminal donazismo, e destacando, por outro, a presena, essencial, de um valorde pessimismo, que marca a originalidade deste texto.Palavras-chave:Bauman, sociologia, nazismo, modernidade.

    ABSTRACT:Make your fellowman worry as you yourself worry. Inthis article Grard Rabinovitch presents a critical review of ZygmuntBaumans bookModernity and the holocaust In his work Rabinovitch dis-cusses the central thesis of the book which sees the holocaust as aneffect rather than a post-modern barbarity, but modernity itself. Onthe one hand, Rabinovitch shows the aspects such as the criminalaspect and Nazism that were excluded from Baumans analysis; onthe other, he points out the essential presence of a value of pessi-mism which emphasizes the uniqueness of this text.

    Keywords:Bauman, sociology, nazism, modernity.

    Filsofo esocilogo; trabalhano Centre Nationalde RechercheScientifique; membro do Espace

    Analytique de Paris.

    Traduo de SimonePerelson

    PREOCUPA O TEU PRXIMO COMO A TI MESMO1

    Notas crticas a Modern id ade e Holocausto,

    de Zygmunt Bauman2

    Grard Rabinovitch

    1Mxima de Gunther Anders, proposta como reformulao necessria,

    aps o nazismo, do bblico Ama a teu prximo como a ti mesmo.2Publicado em 1989, traduzido nas edies La Fabrique, Paris, em 2002.N. da T.: possvel encontrar este ttulo na Jorge Zahar, edio de 1998,traduzido por Marcus Penchel.

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    No hHistria, o humano no cresce no homem.

    VASSILI GROSSMAN

    A terra plenamente iluminada irradia um desastre triunfante.MAX HORKHEIMER e THEODOR ADORNO

    1

    Um espectro assombra a modernidade. Ele produziu nela, por suas horrveisconseqncias e seus danos durveis na Cultura, sob a forma de variadas disse-minaes,siderao. Nem Tocqueville, nem Quinet, nem nenhum dos analisadoresmundiais da democracia moderna nascente, nem mesmo o mais clnico dentre

    eles, Ostrogorski,3haviam, do fundo de seu ceticismo ou no extremo de seudesencantamento em seus prognsticos, avisos e advertncias , antecipadoa hiptese de tal cilada armada pelo homem para o Homem.

    EsseGespenst, ainda essencialmente no decifrado, apesar da abundante litera-tura histrica produzida agora sobre tal acontecimento, apesar do formigamentodas tentativas interpretativas para apreend-lo, tem um nome: nazismo. E umobjeto cultural: as cmaras de gs.

    O efeito de estupefao e de medo que produziu a descoberta da magnitude

    dos crimes nazistas a primeira vez que o homem d lies ao inferno,disse Andr Malraux desencadeou no imediatoa posterioriuma espcie dedesatenovoluntriaao alerta geral dos relatos dos deportados sobreviventes.4Carregadoresextenuados de uma experincia sem precedentes.

    Mas, ao mesmo tempo, ele fez com que esta experincia entrasse diretamenteno espao pblico como referncia insupervel da abjeo na retrica insana dossloganse nas desmesuras da invectiva poltica. Ele saturou com tais barulhos, aca-riciando a propenso do espao pblico a se satisfazer, com simplificaes abusivas,o silncio do tempo sem frase, segundo a expresso de Patrice Loraux,5neces-srio ao trabalho metablico do pensamento e da Cultura.

    Dele, a assero de Hannah Arendt, emSistema totalitrio, segundo a qual onazismo como ideologia havia sido realizado de modo to completo que o seu

    3Cf. La Dmocratie et les partis politiques, Paris, edio Fayard, 1993.4Robert Antelme, Charlotte Delbo, Primo Levi e Hermann Langbein que fez a seguinteobservao: Ns pensvamos, confusamente, que depois de Auschwitz tudo deveria mudar,melhorar, que a humanidade tiraria uma lio das nossas experincias. Ora, constatamos que

    ela no se interessava de modo algum pelo assunto. No lugar disso, testemunhou uma piedadea priori, inoportuna, freqentemente fingida. (Hommes et femmes Auschwitz, Paris, edies Fayard,1975).5Cf. Le Temps de la pense, Paris, Seuil, 1993.

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    contedo havia cessado de existir como um conjunto de doutrinas autnomas,parece pecar desta vez por otimismo. Seria prefervel, guisa de advertncia,reter como indicador de caminho o comentrio de Pierre Legendre: o nazismo

    constituiu para o Ocidente um prazo histrico e um episdio de desestruturaodos quais as sociedades contemporneas permanecem tributrias.6Ele reen-contra aqui esta observao feita por Karl Jaspers, ao sair da guerra aps a derrotamilitar e o desmoronamento do regime nazista: Foi na Alemanha que se produ-ziu a exploso de tudo o que estava se desenvolvendo no mundo ocidental sob aforma de uma crise do esprito, da f.

    2

    Desde ento, as proposies de interpretao do nazismo, intuitivas ou precipi-tadas, ideolgicas ou analticas, se multiplicaram.7Elas precederam, acompanha-ram, ou seguiram, os trabalhos dos historiadores que fizeram do nazismo seucampo de trabalho. Muitas delas no escaparam captura de um face-a-face po-ltico, imobilizado entre teorias de obedincia marxista e interpretaes marxis-tas. Ecos segregativos da ideologia dos blocos, avatares do pensamento emetiquetas, segundo a expresso de Max Horkheimer e Theodor Adorno. s suasradicalidades dbeis e caricaturais, encontramos de um lado o relatrio de Dimitrovno VII Congresso do Komitern (1935), que dilui o nazismo no fascismo e faz

    deste ltimo a ditadura terrorista declarada dos elementos mais reacionrios,mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro. E, do outro, o ncausal de Ernst Nolte, que constri o nazismo como uma espcie de dano colateraldo bolchevismo, do qual ele seria o simples reagente. E nesse el, faz daexterminao dos judeus apenas um erro de perspectiva de Hitler. Rplica aqui,reacionria, tardia e no menos vulgar s prescries das formulaes estereoti-padas kominternianas. Note-se, de passagem, que Ernst Nolte8se desvela numlapso pouco notado por seus comentadores e comensais, ao datar do dia 8 de

    maio de 1945, e no de janeiro de 1933, a catstrofe nacional da Alemanha...

    3

    Mas o que deve reter principalmente a ateno o que h em comum em todas astentativas de interpretao do nazismo. Por mais contrastantes, divergentes e pou-co sintetizveis que paream. Elas compartilham em essncia o fato de serem mor-tificadas, quanto ao seu fundo, pela dilacerao do sonho acordado do Progresso;do qual o horror nazista dos campos de exterminao constitui o acidente

    6Cf. La 901me conclusion, Paris, Fayard, 1998.7Cf. Ian Kershaw,Quest-ce que le nazisme?, Paris, Gallimard, 1997.8Cf. La Guerre civile europenne 1917-1945, Paris, ditions des Syrtes, 2000.

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    revelador.9E se cada uma delas tem, por objetivo explcito, fornecer uma expli-caoque se sustente, elas tm, como desgnio implcito, reduzir, maneira doidealismo pregnante do Iluminismo, o estrondo daaporiabrbara na modernidade.

    Pois aqui que se encontra o objeto dasiderao. Intensificada proporo doscrimes cometidos. A Barbrie se assinala doravante como uma possibilidade damodernidade. Na dcima primeira badalada do Ocidente, se estendeu uma noitesem fim.

    4

    Durante muito tempo o mundo do progresso dormiu cedo. Todo o sculo XIXviu construir-se um conjunto de aparelhagens de conceitos polticos, de utopiashiginicas, de metodologias cientficas, de aberturas de campos de conhecimen-tos, se justificando de modo sui generispor contribuir para a felicidade da Hu-manidade. Eles fizeram do Saber e da Tcnica os vetores do progresso social e osaliados da emancipao cidad e democrtica. A efetividade do nazismo veiodesmentir, percutindo-a, esta iluso. Nada do apetite predador e das pulses des-truidoras que trabalham a humanidade havia sido debelado. Ao contrrio, con-vm constatar com Max Horkheimer que se os homens no se tornaram melho-res com o desenvolvimento das faculdades trazidas pelo Saber, significa entoque eles se tornam piores.

    Em 1938, ao modo de indicao testamental, Sigmund Freud j apontava, emMoiss e o monotesmo, esta decepo: vivemos um tempo particularmente curioso.Descobrimos com surpresa que o progresso concluiu um pacto com a Barbrie.

    Levar em conta o incontornvel acontecimento do nazismo no deixa outrasalternativas seno um dilema: fazer ou no o luto das canduras etiolgicas,ossaturas de vento, sobre as quais se construiu a modernidade ocidental.

    5

    Tomei conscincia do fato de que o holocausto era no apenas um aconteci-mento sinistro e terrvel, mas tambm difcil de apreender em termos habituais,ordinrios. Este acontecimento havia sido redigido num cdigo prprio e erapreciso em primeiro lugar quebrar esse cdigo antes de torn-lo compreensvel(p.10), testemunha Zygmunt Bauman, no prefcio de Modernidade e Holocausto.O ensaio no tem por objetivo elucidar a obscuridade nazista, mas buscar resol-ver o que foi a sua caracterstica criminal emblemtica: a industrializao doassassinato em massa. Diferenciando-se das diversas contores sedativas quevisam apenas recobrir a abertura do sentido e o desmoronamento das tranqili-

    9Retomamos aqui uma noo central aos trabalhos de Paul Virilio.

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    dades que se haviam produzido aqui, no Ocidente, Bauman no se esquiva daquesto da intercesso da modernidade com a efetividade do holocausto.10

    Para isso, ele no passa por uma das interpretaes patrimoniais das cincias

    sociais mas programa quebrar o seu cdigo. que Bauman, socilogo, deveconstatar, em seu incisivo captulo de abertura sobre a sociologia depois doholocausto, que este ltimo teria mais a dizer sobre o estado da sociologia,que a sociologia, em seu estado atual, seria capaz de enriquecer o nosso conhe-cimento do holocausto (p.24).11Esse deslocamento uma ruptura cognitivaassumida, que no escamoteia e registra a fratura que tal acontecimento inscre-veu no entendimento comum estupefato pela magnitude de Auschwitz. Estereviramento de perspectiva imps-se a ele como um imperativo obrigatrio.Teria se afirmado como a condio indispensvel, como odetonador fundador paraempreender a decifrao que ele nos prope.

    Observemos, de passagem, que se trata aqui de um imperativo geral. Pois oque vale para as cincias sociais vale tambm para as diversas tentativas de inter-pretaes teolgicas da exterminao. Elas no discernem melhor, mesmo comtoda a sua recuperao de um sentido anterior, que no h mais lugar para umainterpretao metafsica do holocausto. Pois este que doravante interpreta emnegativo o estado da civilizao no Ocidente,12e as promessas escatolgicas quealimentavam o seu Ideal.

    6

    O holocausto foi o encontro nico entre as velhas tenses que a modernidadesempre ignorou, desdenhou ou fracassou em resolver, e os poderosos instru-mentos da ao racional e eficaz aos quais a evoluo moderna deu origem(p.20), tal a tese exposta e sustentada por Zygmunt Bauman.

    No captulo das velhas tenses, em seu n, o autor coloca o anti-semitismo.

    10Bauman emprega o termo Holocausto segundo a expresso comum anglo-saxnica. Nspreferimos, por motivos apresentados em nossa obraQuestions sur la Shoa, o uso do termoShoah.Mas aqui admitiremos, por comodidade ocasional, o termo utilizado por Bauman.11Bauman se dedica, sem razo em nossa opinio, a uma tarefa antiweberiana a propsito daidealizao, que ele atribui a Weber, da racionalidade legal da burocracia. De fato, Weber nodeixou de notar o horizonte do risco niilista da impersonalidade burocrtica. Quanto ao resto,a marginalidade da sociologia quanto ao estudo do holocausto, a ausncia de crtica ao mode-lo de sociedade moderna que serviu de contexto terico e de legitimao pragmtica prticasociolgica no deixam de ser verdade. A interpelao, se no a mais certa, ao menos saudavel-

    mente incisiva, de Bauman, reside no comentrio de que expresses tais como o cartersagrado da vida humana ou o dever moral parecem to bizarras em um seminrio de socio-logia quanto nos escritrios asspticos e no-fumantes de uma administrao.12Cf. o captulo Une mtaphysique de la Shoah?, emQuestions sur la Shoah.

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    E no da ao racional: o esquema cultural, enquistado em conseqncias men-tais, do esprito da racionalidade instrumental.

    7Sobre o anti-semitismo Bauman no nos ensina nada de novo. Fora a formulaodo conceito de categoria prismtica, mais adequada segundo ele para ilustrar asituao dos judeus como grupo, em substituio ao conceito marxista de classemvel.13Para os vivos, o judeu um morto; para os autctones um estrangei-ro; para os pobres um milionrio; para os patriotas um aptrida, retoma Baumande Jckel.14Lista dotada de um mecanismo aberto, e que no parou de crescer.Descoberta sociopoltica interessante, mas tardia e limitada. sua leitura, exces-so decortesociolgico, falta o que a teoria literria (Steiner), a filosofia (de Heschela Lvinas) e a psicanlise (de Freud a Lacan) puderam aprofundar e instruirsobre esse tema. Ao menos, ele no passa ao largo das polimorfias do anti-semitismo ao mesmo tempo inumerveis e invariveis. E tambm leva em contaesta longa Psychantijudaica, bem sintetizada por ele, que se perpetua atravs dosressentimentos das projees sociais, os kits de esteretipos e as perpetuaes defantasias acusadoras, que permanecem encravadas e fossilizadas tal como umquarto secreto nos esquemas culturais do Ocidente.

    Mas no tanto, para Bauman, a fim de revelar no anti-semitismo, e de inter-

    rogar nele, o fogo de um dio iterativo que encontra no Judeu o vulnervelobjeto da sua crueldade,15quanto para decifrar nele as fobias antimodernistasque iam poder se descarregar por vias e sob formas que apenas a modernidadeera capaz de engendrar (p.88). No tanto para interrogar as condiesteleolgicas do desejo do Ocidente e o lugar de mau objeto concedido partede origem hebraica no seu dispositivo,16quanto para estabelecer o racismo comomodalidade da mentalidade moderna. Confundir a heterofobia e o crime orga-nizado do tipo holocausto, escreve Bauman, ao mesmo tempo fonte de horror

    e potencialmente perigoso pois isto acaba por desviar a ateno das verdadeirascausas do desastre, as quais so fundadas em certos aspectos da mentalidademoderna e na organizao moderna (p.142). Pois o tema de Bauman a

    13Cf. Anna Zuk, A mobile class. The subjective element in the social perception of Jews,Polinv.2, Oxford, Polity Press, 1987.14Cf. Eberhard Jckel,Hitler in History, Boston, 1964.15Como escreve Alice Miller emCest pour ton bien: Odeia-se o judeu porque se carrega um diointerditado e se experimenta a necessidade de legitim-lo.

    16Cf. com o que j dizia Renan a esse respeito emDu judasme et du christianisme, ed. DDB, Paris,1995 ; ou ainda Lo Strauss, Athnes et Jerusalm, in tudes de philosophie politique platonicienne, Belin,1992. Aluso dupla origem da cultura ocidental, geralmente evocada sob os topnimos Ate-nas e Jerusalm. A noo de mau objeto aqui emprestada de Melanie Klein.

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    modernidade da qual o holocausto o teste: A civilizao moderna no foi acondio suficiente do holocausto, mas ela foi sua condio necessria. Sem ela oholocausto seria inimaginvel (p.40).

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    Portanto, o que Bauman se prope a estabelecer aideografiamoderna que contri-buiu com a realizao criminosa do holocausto: O composto mortfero erafeito de uma mistura de ambio tipicamente moderna visando redesenhar ereconstruir a sociedade, e de uma concentrao tipicamente moderna de poder,de recursos e de competncias administrativas (p.135).

    Em seu primeiro crculo, ele designa o arcabouo do crime debureau. A redeadministrativa da gesto do holocausto pelos dispositivos burocrticos. Tratava-se apenas de planificar cuidadosamente, de conceber uma tecnologia e um equi-pamento tcnico apropriado, de estabelecer um oramento, de calcular e demobilizar os recursos necessrios, em suma uma mera e banal rotina burocrti-ca. No conforto do crime debureau, ele posiciona a mediao da ao. Umdos traos mais salientes e mais originais da sociedade moderna segundo JohnLachs. que a intermediao tem por efeito esconder do olhar do ator as conse-qncias da ao. E se este no est em contato com os seus atos, mesmo omelhor dos homens se move em um vazio moral (p.58). Esta colocao dis-

    tncia, este modo de matar o mandarim permitia com vantagem, na empresaexterminadora, superar o que Hannah Arendt concebia como o problema maisrduo de seus instigadores: a pena animal que sentem os indivduos normaisdiante do espetculo do sofrimento fsico.17Ela reduz j de modo considervelo nmero de seus atores de proximidade. Quanto mediao da ao, ela um efeito da diviso hierrquica e funcional do trabalho. A decomposio emtarefas funcionais com finalidades mltiplas permitindo a execuo de operaespor agentes indiferentes,18no tendo nenhum conhecimento da natureza real da

    tarefa em questo. Qualquer possibilidade de avaliao moral se encontrando as-sim em curto-circuito nessa separao funcional das operaes, o resultado desta,sublinha Bauman, umasubstituio da responsabilidade moral pela responsabilidade tcnica.O que importa saber se a tarefa foi executada segundo o melhor mtodotecnolgico disponvel, e se ela rentvel (p.167) quanto aos seus objetivos.

    Em seu segundo crculo, Bauman identifica uma predominncia tendencialda engenharia social. Usando uma imagem incerta: o Estado jardineiro mo-

    17Deveramos um dia parar e nos interrogarmos sobre a qualificao por Hannah Arendt dapiedade como animal. H aqui sob a sua pluma um sinal sobretudo perturbador.18A estrada de Auschwitz construda pelo dio foi pavimentada de indiferena, observa porsua vez Ian Kerschaw emLopinin allemande sous le nazisme, ed. Paris, CNRS, 1995.

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    derno, que considera a sociedade que ele governa como um objeto a se culti-var e a livrar de suas ervas daninhas (p.39). O racismo e o higienismo polti-co constituem os principais operadores instrumentais e instauradores desta en-

    genharia social.Eles encontram seu fundamento nas reorganizaes ideais da modernidade ena substituio dos precedentes recursos de reflexes normativas que consti-tuam a religio e a tica pelo discurso da cincia. Pelo fato de a religio e a ticaserem impotentes para legitimar racionalmente suas exigncias em relao con-duta humana, elas se encontraram irremediavelmente condenadas sua autori-dade ultrajada. Como os valores e as normas haviam sido proclamados definitivae irremediavelmente subjetivos, a instrumentalizao permanecia o nico setorno qual a busca da excelncia era possvel. A cincia pretendia-se desprovida devalores e se orgulhava de s-lo. E serviu-se das presses institucionais e da ironiapara fazer com que aqueles que pregavam a moralidade se calassem (p.182).Alis, Bauman no deixa de sublinhar como o racismo e o higienismo polticose autorizavam a partir do aumento das foras referenciais das cincias da natu-reza e da vida, biologia e medicina, ao longo do sculo XIX. Seja com funo demetforas organicistas,19seja como servio de reservatrios lexicais.20

    assim, por um lado, que o racismo se constri, segundo Bauman, comosubstituto racional das segregaes jurdicas pr-modernas, com base nos

    modelos dos atributos hereditrios. Na poca pr-moderna, os Judeus eramuma casta entre outras, uma categoria entre outras, um estado entre outros. A suaespecificidade no era uma questo espinhosa e as prticas segregacionistas ha-bituais e quase espontneas impediam que ela assim se tornasse. Com a chegadada modernidade, a sua separao passou a ser efetivamente uma questo espi-nhosa. Como todos os outros componentes da sociedade, este devia doravanteser fabricado, elaborado, argumentado de modo racional, concebido, adminis-trado e controlado segundo um modo tecnolgico (p.105).

    Mas o racismo vem acrescentar uma virada suplementar s estratgias dedistanciamento das segregaes anteriores. O seu biologismo organiza o acen-to de irreversibilidade e de incurabilidade da alteridade do outro. O racismo sedistingue por uma prtica da qual ele faz parte e que ele racionaliza: uma prticaque combina as estratgias de arquitetura e de jardinagem com as da medicinapara servir elaborao de uma ordem social artificial, e isto eliminando os

    19Para um estudo aprofundado dos usos heursticos, polmicos e polticos dos valores do

    organismo, assinalemos o estudo admirvel de Judith Schlanger: Les mtaphores de lorganisme,Paris, ed. Vrin, 1971.20Sobre este aspecto atual, a nossa contribuio Von der Allmacht der Verdinglichung undvom wissenschaftlichen Denken in Ethik und Wissenschaft in Europa, Freiburg, ed. Alber, 2000.

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    elementos da realidade presente que no coincidem com a realidade perfeitaimaginria e no podem ser modificados para alcan-la (p.117).

    assim, por outro lado, que o higienismo poltico, como no deixa de

    sublinhar Bauman, se abastece das semnticas de Pasteur. A linguagem e a ret-rica de Hitler transbordavam de imagens de doena, de infeco, de contgio, deputrefao e de pestilncia. Ele comparava o cristianismo e o bolchevismo sfi-lis ou peste, ele falava dos judeus como se estes fossem bacilos, germes dedecomposio ou vermes (p.125). Os executantes da vontade de Hitler fala-vam da execuo dos judeus como cura da Europa, autolimpeza e limpezada mancha judaica (p.126). Com pertinncia, Bauman sublinha o lao, rara-mente levado em conta, entre os projetos eugenistas e eutansicos do podernazista, programa T4 de eliminao dos deficientes mentais, entrevados, etc.,tentativas montadas de eugenismo positivo do Lebensborn, e a poltica de exter-mnio. Unidos sob uma mesma rede semntica mortfera, reunidos pela transfe-rncia, para o extermnio, procedimentos (morte pelo gs) e competncias (m-dicos SS) adquiridos na ocasio do programa T4.

    portanto naconflunciaafim da engenharia social, como princpio polticosubjacente da modernidade, e na instituio da malha rotineira da burocracia,como prtica gestionria moderna do societal, que Bauman estabelece a possibi-lidade realizada do holocausto. Mas ainda porque ambas so filhas do esprito

    da racionalidade instrumental. As regras da racionalidade instrumental sosingularmente incapazes de impedir tais fenmenos (p.46). No h nada nasregras da racionalidade instrumental que desqualifique os mtodos de enge-nharia social do tipo holocausto como sendo imprprias e irracionais (p.47).A razo instrumental comporta de modo sui generisos mecanismos de liquidaodas empatias e a desresponsabilizao moral de cada sujeito. Na verdade, a his-tria da organizao do holocausto poderia tornar-se um manual de gesto cien-tfica (p.244). assim que Bauman pode afirmar que o holocausto no foi o

    transbordamento irracional dos resduos persistentes de uma barbrie pr-mo-derna. Ele era o residente legtimo da casa modernidade e no estaria realmenteem casa em nenhum outro lugar (p.46).21Disso no decorre que amodernidade constitui um holocausto. O holocausto um subproduto da ten-dncia moderna para um mundo totalmente planificado e totalmente controla-do, quando esta tendncia escapa a qualquer controle e torna-se louca (p.159).

    21Distinguimos bem em Bauman a influncia da leitura radical que fazem Horkheimer eAdorno da Razo kantiana em La Dialectique de la raison(especialmente nas pginas 94-99). Masele no se aventura no que faz deste texto um golpe de mestre: a ligao induzida pelos doistericos de Frankfurt entre Kant e Sade.

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    Muitos outros traos do nazismo, no ligados realizao da poltica de exterm-nio, que Bauman no evoca, poderiam ainda ser articulados transversal de sua

    tese e vir apoi-la. Tudo o que o historiador norte-americano Jeffrey Herf cha-mou, por sua vez, de modernismo reacionrio.22E que constitui o tema dolivro de Peter ReichelLa fascination du nazisme.23A organizao dos lazeres operriospela comunidade nacional socialistaA Fora pela alegria. A domesticao das massaspela indstria meditica dos prazeres narcotizantes (rdio, cinema, etc.) orques-trada por Goebbels. As reformas sanitrias da luta nazista contra o cncer.24At oprprio anti-semitismo, corao teolgico-poltico do nazismo, mas tambminstrumento de desestruturao dos valores normativos do Ocidente cristianizado.Os povos que entregam seus judeus abandonam com eles seu modo de viverdeterminado pelo falso ideal, penetrado pela influncia judaica, de liberdade quetinham antes, declarava o doutor Bost, chefe SS, no dia 27 de julho de 1942.E instrumentalizado como meio que assegurava as complacncias e as cumplici-dades alm das fronteiras do Reich, utenslio do seu empreendimento. o queobservava Hannah Arendt quando notava que o anti-semitismo nazista jamaishavia sido uma questo de nacionalismo extremo, mas sim que havia funcionadodesde o incio como uma Internacional.

    Contudo, ao fazer da revoluo nazista apenas um exerccio de engenharia

    social numa escala grandiosa, cuja cepa racial era a rede fundamental da ca-deia das manipulaes (p.119), ele reconduz a confuso poltico-histrica dops-guerra entre a figura do Leviate a do Beemot. Entre a figura do Estado totalcoercitivo e a do Caos integral, da desordem moral da ausncia de Lei. Umadistino de herana hobbesiana. Confuso da qual o pensamento contempor-neo do poltico permanece tributrio e estorvado. E que ele prolonga ao conti-nuar construindo o poder nazista como Leviat.

    que ele negligencia, para a comodidade do estabelecimento da sua tese

    meritoriamente incmoda, numerosos aspectos do nazismo em atos. Comean-do pela tcnica nazista do poder e seus hbitos polticos. A intimidao, acorrupo, a chantagem, o logro, a extorso, o comprometimento, a falsificao,o assassinato so modelos combinados destes. Assim, ele negligencia, por exem-plo, a corrupo abertamente encorajada, ligada arianizao dos bens dosjudeus e s espoliaes. Ela fazia dos beneficirios comprometidos (desde o che-fe de empresa ou o financeiro at a soldadesca e o conjunto dos corpos interme-

    22Cf. Reactionary Modernism: Technology, Culture and Politics in Weimar and the Third Reich, CambridgeUniversity Press, 1984.23Ed. Odile Jacob, Paris, 1993.24Cf. Robert N. Proctor, La guerre des nazis contre le cancer, ed. Paris, Les Belles Lettres, 2001.

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    dirios, funcionrios, cobradores de impostos, que recebiam parte da receitaredistribuda) um aglomerado de cmplices. A corrupo sem limites dos fun-cionrios do regime, particularmente em relao com a expropriao dos ju-

    deus, observa Hans Mommsen, contribuiu para diminuir a crtica deportaoe ao extermnio.25Assim, ele omite tambm que o Estado nacional-socialistaera na realidade pluralista, num sentido funesto do termo. A vontade polticaformava-se nele atravs da concorrncia selvagem doslobbiessociais mais podero-sos (Theodor Adorno). O que Franz Neumann havia analisado minuciosa emagistralmente no seuBehemont, structure et pratique du national-socialisme.26Assim, eleparece ignorar tambm como a autodestrutiva perseguio infinita do poderpoltico conduziu destruio da economia alem notavelmente estudada porT.W. Mason.27Esses aspectos por si ss indicam a necessidade de atenuar ointegralismo da construo de Bauman. H no nazismo uma destrutividade funda-mental em ao, que deve ser escutada, e que, sem desqualificar o que ele traz,pede, no mnimo, para ser articulada a ele.

    O projeto de Bauman, de quebrar o cdigo do holocausto, um abalofrutfero. H outros no menos indispensveis. Desfazer o equvoco entreLeviateBeemot.28Equvoco engodado na noo excessivamente genrica agora de totali-tarismo. Libertar a noo de barbrie da sua conotao, at Bauman, de pr-moderna, de arcaica. Para reconfigur-la: no involutiva, trans-histrica.29

    Mas sobretudo esses aspectos, no menos fundamentais do nazismo, suge-rem, com mais gravidade, que uma abordagem inversa de Bauman no me-nos pertinente. Que talvez no seja pelo holocausto que deciframos o nazismo.Que seria antes pela decifrao da marca criminal do nazismo que acederamosao holocausto.

    25Cf. Le national-socialisme et la socitallemande, Maison des Sciences de lhomme, Paris, 1998. Ver

    tambm R. Hilberg La destruction des Juifs dEurope, A corrupo era inerente ao processo de des-truio. Apenas a corrupo oficiosa era proibida. Bauman comete a esse respeito um erro:os ganhos e os motivos pessoais eram em geral reprovados e punidos (p.50). No apenas osfatos tal como comeam a interessar hoje aos historiadores o desmentem, mas HermanRauschning, j em seu Hitler ma dit, dava esta chave. Cf. o captulo 16 do seu testemunho:Enriqueam !26Ed. Payot, Paris, 1987. Franz Neuman se interroga sobre a possibilidade de chamar a Alema-nha nazista de um Estado. muito mais uma gangue onde os chefes so obrigados a secolocar de acordo aps as desavenas.27Cf. Primat de la politique et rapport de la politique lconomie dans lAllemagne national-socialiste, apndice La Rvolution brune,de David Schoenbaum, Paris, Gallimard, 1966.

    28Cf. o nosso artigo Carnets du Jusant, in Barcan.13, nov. 1999.29Cf. a nossa comunicao Figuras da Barbrie no Frum Antijudaismo e barbrie, Col-gio dos Estudos Judaicos, Paris, 2003. Ver tambm Joel Birman, Aux frontires de la barbarie,in Civilisation et barbarie, rflexions sur le terrorisme contemporain, Paris, PUF, 2002.

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    Para desenhar o panorama ideogrfico do holocausto, Bauman deixa escaparo seu ator crucial: o nazismo como constelao de paixes criminais. A primeira conse-qncia dessa falha consiste em erigir Eichman na figura emblemtica do espri-

    to nazista.30

    Abrir a caixa preta do nazismo passa pela considerao da sua realidadehumana. Por mais que ela fosse to abominvel quanto esta. Ora, a realidadehumana no apenas o fato da organizao social, mas tambm uma relaosubjetiva e a expresso de esquemas culturais conservados em esquemas mentais.

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    A psicanlise est habituada a adivinhar coisas secretas e escondidas a partir detraos subestimados ou dos quais no nos damos conta a partir do resduo dorecusado da observao disse Freud um dia.

    Nopassodestadmarche, identificar oTraobrbaro que assombra a modernidadenos convida tambma fixar a nossa ateno nas figuras da agressividade nazista.Discernimos nela ento uma marca criminal, que no lhe exclusiva mas que onazismo levou ao paroxismo. Instalando-a na poltica e colocando a seu servio oaparelho do Estado, e o conjunto dos dispositivos de regulao tcnico-modernoe administrativo dos quais ela se apropriou, para transform-los nesses instru-mentos do homicdio de fluxo constante. Tais como Bauman nos convida a

    reconhec-los.Ao menos algum decifrou de sada essamarca criminal, de modo no metaf-

    rico mas literal: trata-se de Bertold Brecht em A irresistvel ascenso de Arturo Ui, obrafreqentementeaclamada pela sua performancede agitpropmas insuficientementepor seu efeito de verdade. Ao menos algum confirmou tal marca, alm do pos-svel e issoantesda guerra, por ter freqentado durante algum tempo os nazistas,sem ter sido escutado a tempo: trata-se de Hermann Rauchning, cujo testemu-nhoHitler ma dit e o ensaio La rvolution du nihilismeso fontes de primeira impor-

    tncia, alis escamoteadas com constncia na proporo desta importncia.Mas, de fato, recebemos a indicao desta marca em vrios autores e testemu-nhas de referncias: Robert Antelme, Primo Levi, Hermann Langbein, EugenKogon, Golo Mann, Franz Neumann, Joseph Kessel, Siegfried Kracauer, DouglasSirk, Klauss Mann, Ernst Bloch, Lo Strauss, etc. Cada um deles no tendo deixa-

    30Esta tendncia encontra evidentemente no comentrio de Hannah Arendt sobre a banalida-de do Mal, na ocasio do seu acompanhamento do processo de Eichman em Jerusalm, umsuporte de peso. No temos o direito de supor que a Lio de Hannah Arendt teria sido abso-

    lutamente outra, diante do que teria sido esclarecido sobre um processo, caso se tratasse doprocesso de outros criminosos no menos emblemticos do nazismo: Goebbels, Goring,Himmler, Mengele, por exemplo? Mas alm disso, o efeito de lupa do processo de Eichmanoculta Martin Bormann enquanto encarnao do esprito da regulamentao burocrtica.

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    do de comparar, formal ou indiretamente, os nazistas a gngsteres.31 No in-sensato dar-lhes crdito. No desprezar uma intuio jamais desenvolvida mas repetida e oriunda da experincia vivida, enquadrando tais indicaes

    como analogias formais ou polmicas.Pelo contrrio, convm lev-los a srio, passar de suas intuies ao trabalhocientfico de identificao das eventuais homologias estruturais entremodus operandi,condutas de vida, e savoirs-faireespecficos dos bandos de criminosos e dosnazistas.

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    No pela Histria das idias ou por uma sociologia da cultura que atingimosessamarca criminal do nazismo, mas por uma antropologia clnica dos hbitos nosentido que lhes do W.G. Sumner e V. Hartman.32Ela nos leva subcultura mafiosa.

    Os socilogos e os antroplogos, levados a trabalhar a subcultura da Mfiatradicional (Pino Arlacchi, Herman Hess, Anton Block, Francis Ianni, para citarapenas estes) identificaram nela traos, motivos para interrogaes. A se reterapenas o que nos ensinam os trabalhos de Pino Arlacchi33sobre a subculturamafiosa as regras de coragem, de astcia, de ferocidades, de prticas do rouboe da fraude, a concepo real da honra, fundada na aptido violncia homi-cida, a prtica sistemtica do discurso duplo, do engano, o imperativo da subor-

    dinao, o estatuto das mulheres, a guerra de todos contra todos, a livre dispo-sio sdica sobre os fracos e os sem defesa, a audcia, a hierarquia fundada napredominncia do mais forte, do mais agressivo, do mais astucioso encontra-mos seus homlogos na Schwarze Korpse na Schutz Saffel. Nos castelos da minhaordem, crescer uma juventude que aterrorizar o mundo. Eu quero uma juven-tude violenta, desptica, sem medo, cruel... confiava Hitler a Hermann Raschning(cf.Hitler ma dit).

    Ou ainda, da sessowerewolf (lobisomem), da SS, especializada no terrorismo

    e no assassinato individual, ele exigia: Vocs devem ser indiferentes dor. Nodevem conhecer nem ternura nem piedade. Quero ver nos olhos de um jovemimpiedoso o claro de orgulho e de independncia que leio no olhar de umanimal de caa.34

    31E evidentemente, Hannah Arendt, cuja intuio da fascinao do mundo do crime sobre aselites merece uma ateno frutfera (cf.O sistema totalitrio, captulo 1).32Os modos servem de meio de regulao dos comportamentos polticos, sociais e religiososdo indivduo que, de certa maneira, no se serve da razo (V. Hartman); Os modos contm

    noes, doutrinas e mximas, mas so antes de tudo fatos (W. Summer).33Cf.Mafia et compagnies, lthique mafieuse et lespri t du capitalisme, Grenoble, ed. PUG, 1986.Les Hommesdu dshonneur, Paris, ed. Albin Michel, 1992.34Citado por Brian Frost, Book of the WereWolf, Londres, ed. London Spher Books, 1973.

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    Ser membro da Honrosa sociedade significa ser um homem valoroso e orgu-lhoso, que menospreza o risco, decidido a tudo, sem nenhum escrpulo. O uso

    da violncia homicida indispensvel ao homem honrado. Ela at mesmo oseu critrio de iniciao. Uma acusao por agresso fsica significa que um jo-vem honrado distinguiu-se por sua arrogncia e sua audcia. E quanto mais gra-ve for o delito, mais alta ser a considerao do grupo. A agressividade e a violn-cia so sempre sancionadas positivamente. Apenas a vitria obtida por todos osmeios na luta pela supremacia decide o podermafioso. Os critrios de seleo daelite mafiosa baseiam-se nos princpios da rivalidade impiedosa. Um nvel eleva-do de agressividade, de solidez dos nervos, de inteligncia, de ferocidade, decapacidade para tomar rapidamente decises so condies necessrias para diri-gir um grupo mafioso. Donde o fato de o princpio absoluto de subordinao sera sua nica garantia temporria.

    Disso decorre, evidentemente, que todas as vidas no tm o mesmo valor.A vida de alguns vale menos que a vida de outros. Certos homens podem, portan-to, ser mortos sem que isso seja um ato condenvel. O corolrio : que a falsabondade, a condescendncia, a gentileza, como armadilhas insuspeitveis e mor-tais para os recalcitrantes, os infames, os indignos so prprios da relao comos homens comuns e os inimigos. Constatao similar feita por Varlam Chalamov,

    escritor dogulag, a propsito dos bandos de criminosos, em seusEnsaios sobre o mundodo crime: A mentira, a falsidade, a provocao dirigida pessoa que no faz partedeste bando mesmo que se deva a vida a ela tudo isso est no apenas naordem das coisas, mas at mesmo um ttulo de glria, uma lei do bando.

    Essa descargaheroicisadada agressividade, da crueldade, da mentira, da perfdiacomo ser no mundo idntica quase que termo a termo descarga daheroizaodo super-homem, tal como o nazismo o apresenta. Estaheroizaoest no centrodos propsitos de Hitler, de Himmler, etc. a heroizao da SS como guarda

    pretoriana, na qualidade de corpo de elite e na funo de n da nova Or-dem. A SS no um apndice perifrico do poder nazista, encarregado dostrabalhos sujos, tal como o poder poltico clssico pode s vezes usar malfeitores,nas zonas cinzas do seu exerccio. A SS encontra-se no centro do sistema nazistada dominao. O que coerente com os princpios de seleo e de promoo daselites e dos dirigentes do nazismo e do seu prprio ser no mundo.

    Esta maneira de ser no mundo, este estado de conjuraopermanente, comocompreende Rauchning, no antinmico com os princpios de represso decomportamentos no conformes. Assim, a Mfia tradicional combater os la-

    dres, os bandidos, os vagabundos, os homossexuais, do mesmo modo que osnazistas os deportaro. Ao mesmo tempo fazendo deles auxiliares, se necessrio,nas cercanias da cidade, para a Mfia, e nos campos de concentrao, para os

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    nazistas. No so ento, evidentemente, o roubo, o assassinato ou a associalidadeque so condenadas, mas a sua insubordinao ao poder das confrarias mafiosasou dos senhorios nazistas.

    No seria mais uma vez uma manifestao destaheroizao da violnciacomo serno mundo a violncia to particular da linguagem nazista: termos pejorativos, cal-nias, insultos, invectivas,ameaas? Assim como a suaironiacruel como postura jubilatria:os campos de concentrao dos quais Eugne Kogon35nos relata uma alcunhanazista Konzerlager para design-los, a inscrio Arbeit macht Frei no fronto deAuschwitz, a orquestra que acompanhava a chegada dos deportados, os deporta-dos designados pelos vocbulos coisificantes stuck (peas), figuren (bonecas),Schmatts (trapos), o co Barry em Sobibor treinado para mutilar os detentos edenominado homem: homem, rasgue esse co. At mesmo talvez aseufemizaes da sua linguagem codificada: soluo final, passagem pela eclu-sa, desinsetizao, evacuao, tratamento especial, pelas quais no secompreendeu at aqui seno uma operao de dissimulao. E seguramente soamtambmcomo um escrnio a vala em direo s cmaras de gs, batizada de ca-minho do cu, e estas ltimas chamadas de sala de ducha.

    O riso de Hitler, relatou Hermann Rachning, no outra coisa seno umaforma de insulto e desprezo. O que est de acordo com esta declarao de prin-cpio hitleriano: a conscincia uma inveno judaica, , como a circunciso,

    uma mutilao do homem...

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    No caminho da identificao da marca criminal, na sua permanncia nas prticasmafiosas e nazistas, seria preciso arriscar-se a se perguntar se a vontade de sumircom os cadveres dos assassinados nos campos de concentrao, de apag-los,concerne apenas industrializao da morte, ou se ela refletiria em sua pr-pria possibilidade a significao que os mafiosos e os bandos de criminosos do

    a esta vontade quando procedem da mesma maneira: um ltimo sinal de injriase de desprezo. E ainda, se os dispositivos de neutralizao, de siderao, empre-gados pelos nazistas para deportar os judeus e lev-los at as cmaras de gs noso os equivalentes em grande escala dos dispositivos utilizados correntementepelos mafiosos de alvio e tranqilizao da vtima j condenada com o intuitode execut-la com mais segurana, sem despertar suspeitas nela, nem na opiniopblica,. Relatrio de um Einsatzgruppen (datado de 3 de novembro de 1941):trinta mil judeus se reuniram (aps uma chamada) e graas a uma organizaoextremamente bem concebida, eles no deixaram de acreditar que seriam

    reinstalados de novo at o momento da execuo.

    35Cf Ltat S.S., Paris, Du Seuil, 1970.

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    Se Bauman depreende da mixrdia ideolgica nazista que faz uso da sugesto e doirracional , da sua viso do mundo mistura de ocultismo, de mitos pagos, de

    milenarismo poltico, de semnticas camponesas e de lxicos de Pasteur ,operadores semnticos da engenharia social, ele no faz dela unicamente umadoutrina de conseqncias criminosas, mas a roupagem semntica e narrativa deuma inteno criminal primeira. A doutrina nazista rene e justape um agregadode enunciados extrados das produes do sculo XIX e dos esquemas mentaisconstitutivos do campons-burgus36que d as suas marcas ideolgicas a umaconjurao e ao oportunismo niilista que a acompanha. Essas semnticas consti-turam tantos veculos de propagao societal quanto as roupas de emprstimonecessrias para que os gozos no saiam nus.

    A tcnica nazista do poder, seus hbitos polticos so esclarecedores. Eles cons-tituram omodus operandicom o qual os nazistas ao mesmo tempo asseguraram asua dominao, estupefizeram as massas, confundiram seus adversrios, sideraramsuas vtimas. Ogangsterismodos nazistas, vrias vezes evocado pelos testemunhos,no uma metfora grandiloqente e excessiva, mas a sua maca mental. E noest menos no cerne da realizaoefetivado holocausto.

    Podemos entrever a vacuidade do debate de escola opondo os historiadoresfuncionalistas aos historiadores intencionalistas: saber se os nazistas tinham

    a inteno por princpio de exterminar os judeus ou se o objetivo do exterm-nio apareceu ao longo do caminho, como uma direo nica nascida das con-dies da guerra. A interrogao emergiu do que pareceu ser uma racionalizaotcnica progressivados mtodos e dos meios colocados em ao para a realizaodaEndlsung(a soluo final).

    Aqui, Bauman levado a juntar-se rpido demais ao campo dos fun-cionalistas: A lio mais transtornante que se extrai da anlise do caminhotortuoso para Auschwitz que, finalmente, a escolha do extermnio como o

    melhor meio para chegar Entfernungera o produto de procedimentos burocrti-cos ordinrios: clculo da relao meio-fim, equilbrio do oramento, aplicaode regras de valor universal (p.45).

    A lgica criminal do gangsterismo psicocultural nazista podia conter comoestruturao extermnio. Os tateamentos observveis no so o seu desmentido, masa sua prpria cintica. Eles no so seno a manifestao do trao de gozo queanima o nazismo: a heroizao da violncia. Com ele, ser sempre a deciso maisviolenta, a pior das invenes que suplantar a cada vez as outras. O caos mort-fero e mrbido dos campos de concentrao ainda o seu testemunho.

    36Cf. La Rvolution brune, de David Schoembaum, j citado.

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    Durante o primeiro quarto do sculo XX espreitava-se, com esperana ou pa-vor, a plebe. O sculo esperava o proletariado. Foi a escria poltica que che-

    gou. Modos de vagabundos, uma esttica de larpios, com modos de malfeito-res, prazeres de crpula. O nazismo foi essa reunio. No o nome genrico deuma poltica com conseqncias criminais, mas a emergncia no campo deao do poltico domodus operandi e dapistmedos gngsteres. No mais os lar-pios evoluindo s margens do poltico, na zona cinza das baixas manobras,trocas de servios ocultos e repartio de influncias, mas uma associao cri-minosa instalada no seu centro, unificada em partido e enfim proprietria doEstado moderno.37

    16Pela justaposio da subcultura mafiosa e da fria nazista se descobre aMarca crimi-nal: uma paixo peladepredao, umdeleitecom a duplicidade, umjbilocom o esma-gamento dos vulnerveis. O trilhamento de um gozo sem freio que vem se estabe-lecer, ordenar e prosperar como forma mortfera do lao social. O gozo da onipo-tncia, que bem poderia ser o trao brbaro. Hannah Arendt, emDa mentira violncia,observava o quanto a natureza era por natureza instrumentalizante. A heroizaoda violncia, como modo de ser no mundo, , por dinmica prpria, produtora

    de comportamentos instrumentalizantes e de enunciaes coisificantes.A crtica que Bauman faz do Estado moderno, da racionalidade instrumental,e da administrao burocrtica das coisas e dos humanos reduzidos a estas lti-mas, pertinente. Mas esta crtica, no fim das contas, nos diz menos a respeitodo arco de gozo mortfero determinante do nazismo do que da sua recepoem uma configurao moderna. A violncia tornou-se uma tcnica, analisaBauman (p.166). Mas ela nunca deixou de s-lo ao longo da histria humana.Como nunca deixou de ser tetanizante esubjugadora. Inquietante esedutora.E para terminar: sempre capturante. O que est em questo a permeabilidadedaracionalidade instrumental violncia extrema. Posto que a racionalidade ins-trumental traz nela, desde j, pelas suas lgicas coisificantes, sem o saber, umaviolncia. Mas alm disso essa porosidade um fator de amplificao. A ins-trumentalizao coisificante inerente racionalidade instrumental torna-se porsua vez um instrumento nas mos da heroizao da violncia infiltrada. O quepertence dimenso do Leviat absorvido pelo Beemot. O que Bauman deixaescapar a agregao, ou ainda a afinidade eletiva, realizada entre o tropismocriminal da heroizao da violncia, em funo do Ideal do eu no nazismo,

    37O Mnchner Postfoi o primeiro e com constncia no abandonou esta abordagem. Cf. RonRosenbaum, Pourquoi Hitler?, Paris, JC Latts, 1998.

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    e a racionalidade instrumental e seus subentendidos coisificantes. O que Baumanperde a representao modelo da representao daQuimera.

    O nazismo umaquimera. Feita de gangsterismo da ao, de gesto campons,

    de biologismo mdico, de racionalidade instrumental.38

    esta quimera que te-ceu a tela do extermnio.

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    Seria uma injustia com esse livro srio, e com seu autor, suspeitar de sua tese,no obstante estar excessivamente impregnado dos vestgios de um esquemahegeliano-marxista e de sua busca de totalidade explicativa, esquema do qualBaumann no se livra tanto quanto desejaria? Seria correr o risco de invalid-losublinhar, com pesar, o quanto a sua crtica interna da sociologia no alcana acrtica da unilateralidade da abordagem sociolgica, como produtora pertinentede anlises exigveis? Seria talvez necessrio reconhecer, no que sublinha Z. Baumane na unidimensionalidade significante que ele ali constri da modernidade, emtorno da engenharia social realizada, um desprendimento insuficiente das ar-madilhas que ele denuncia, cedendo rpido demais s tentaes de um trabalhocom sentido excessivamente sinttico, por demais unificador, dos quais se sub-traem os entrelaamentos do acontecimento nazista.

    Mas com a notvel diferena dos padres triviais e falsamente consoladores

    das premissas do hegeliano-marxismo, assim como do exclusivismo sociolgi-co, ele os articula, por experincia, a um valor de pessimismo.Aqui reside, ento, osegundo detonador da originalidade mobilizadora do seu trabalho. Ao qual convmdar crdito, e no qual convm, alm disso, meditar.

    Quanto s conseqncias dessa escorregadela, elas so importantes. Ao me-nos, segundo o que afirma j aqui Z. Bauman, o futuro to cedo nocorre o risco de ser feliz.39

    18Quando consignou a sua missiva antes citada, no recndito de sua ltima obra,Sigmund Freud perseguia, ali, o que havia constitudo o alicerce poltico doconjunto das suas incurses socioantropolgicas. Ele mantinha a barra do quehavia constitudo a sua trama tica. Excelentemente resumida por Paul-LaurentAssoun em seu ensaioO entendimento freudiano: O pessimismo o destino tico dateoria das pulses. O que sugeria a surpresa freudiana sobre o pacto conclu-do pelo Progresso com a Barbrie que no h involuobrbara.

    38O que havia de fato entrevisto Ernst Bloch emHritage de ce temps, Paris, ed. Payot, 1978.39O autor est se referindo aqui ao slogancomunista de G. Pri des lendemains qui chantent, quepode ser traduzido por um futuro feliz. (N. da T.)

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    Do mesmo modo que a barbrie no poderia ser pensada como um acidenteregressivo, apreendido no vetor linear temporal de uma maturao cultural se-gundo o modo pelo qual a apreende Karl Manheim,40tampouco ela um outro

    nome para primitivo. As sociedades ditas primitivas observadas pelos antro-plogos no so, por serem primitivas, brbaras. A barbrie jaz, oculta, eterna,nas profundezas daPsychhumana. De modo previsvel, a barbrie co-presente,ou mesmo co-extensiva ao Progresso. Ela fora nele as suas brechas. A assero,parcialmente consoladora, de Hlderlin Ali onde cresce o mal, cresce tambmo remdio vale da mesma forma ao ser invertida: ali onde cresce o Progressocrescem tambm na mesma proporo as possibilidades destruidoras do Mal.

    A Liopoder ser escrita assim: toda autntica cincia poltica nova comoa que invocava outrora imperativamente Tocqueville, e que ele convocava co-mo uma necessidade alarmada no surgir doravante seno de uma tica daDesiluso, portal das obras de lucidez. Provavelmente, no haver mais outra ticapertinente hoje seno a que se esboa na orientao deste eixo. Que estabelecenele as suas bases. Que no diz o Bem, mas que escruta antes o Mal.

    apenas a partir desta tica, incitando a construir a inteligncia de vigliasobre as foras mortferas que vagueiam, que possvel esperar se destacar umpouco quem sabe!? das exultaes da onipotncia; que seria possvelaproximar enfim! o outro como o seu prximo, embarcado na mesma

    canoa furada.

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    Nada est resolvido. A civilizao inclui hoje campos da morte e muselmnnerentre os seus produtos materiais e espirituais, consignava Richard Rubinstein eJohn Roth,41citados por Bauman. Mas alm disso, a racionalidade instrumentalestendeu de modo considervel o campo das suas manufaturas coisificantes. Con-taminando as diferentes sees da Cultura contempornea, ela continua a conso-

    lidar nesta o seu domnio.Enquanto que a heroizao da violncia dos criminosos do eu42recor-ta novas silhuetas das multides intercambiveis das democracias de massa.43

    E enquanto que o compromisso lento, a servido voluntria, a falta de vigorgregria, e o gozo por procurao das violncias delegadas continuaro a instalar

    40Cf. o seu artigo de 1940 Rational and irrational elements in contemporary society e o seucomentrio por Judith Schlanger, antes citado.

    41Cf. Auschwitz, tentatives dexplication.42Cf. Jacques Lacan, Prmisses tout developpement possible de la criminologie, in Autrescrits, Paris, d du Seuil, 2001.43Cf. o nosso artigo Le trafiquant et ses caves, in Travailler n.7.

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    seus cantes na Espcie humana. Todas eternas fornecedoras de agentes de servi-o para eficazes oficinas do assassinato.

    Por esta razo, no podemos seno compartilhar a ansiedade diagnstica de

    Bauman diante do fato de que nenhuma das condies sociais que tornaramAuschwitz possvel verdadeiramente desapareceu e que nenhuma medida eficazfoi tomada para impedir essas possibilidades e esses princpios de produzir ou-tras catstrofes da mesma natureza (p.37).

    O Holocausto testemunha o progresso da civilizao, dizia ainda Richard Ru-binstein. Temamos de modo salubre o que nos designa este aforisma, em amargooximoro. Ser possvel que a marcha da humanidade moderna no seja mais doque um catico priplo para a realizao do seu prprio desejo de morte? Labo-riosamente retido em sua marcha por um Eros cambaleante.

    Uma nova reunio proporcional ao que foi a quimera nazista no est, comefeito, de modo algum excluda. As suas possibilidades permanecem, ou at mesmose reforam. Qualquer que seja a vestimentasemntica e postural sob as quais elaspoderiam se realizar.

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    Na fronteira das terras tenebrosas do Mal radical, Bauman no falhou. Ele man-tm bem o seu acampamento de posto avanado. Mesmo se no podemos conside-

    rar a sua valiosa contribuio como um avano decisivo na resoluo do enigma donazismo e da destrutividade moderna. que a identificao do pacto passadoentre o progresso e a barbrie, e a viglia dos pactos que potencialmente viro,dever mobilizar mais do que apenas a sociologia. Mesmo que ela viesse a reco-nhecer certos ataques de ferro a ela dirigidos pela crtica de Z. Bauman. Mesmose o deslocamento incontornvel que opera a pistmfreudiana e o seumtododeescuta clnica nos paream excessivamente ausentes neste autor. Adequadas pararasgar de modo mais provvel alguns vus suplementares de falsas aparncias, sem

    que se trate por isso de levar a interpretao psicanaltica para fora do campo dotratamento. Mesmo se ele nos parece se privar das chaves da construo do campoantropolgico de observao e da fenomenologia dovivido, das abordagens semn-ticas e filolgicas sofisticadas ao modo de Klemperer,44ou at mesmo da histriacultural segundo a maneira como Erwin Panofsky a explora. Ao menos ele caminhaindubitavelmente na trilhada desiluso. E isso que importa, aqui.

    Pelo simples fato de pegar essa trilha, ele permite ocupar, no seio do mundodo qual no podemos cair, uma posio de extraterritorialidade. Posio, em todocaso, na qual se corre o risco como ele faz de produzir livros fortes. Ou seja:

    assinaladores de incndios.

    44Cf LTI, la langue du IIIme Reich, Paris,ed. Albin Michel, 1996.