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162 Urdimento, v.1, n.31, p.162-177, Abril 2018 Nádia Moroz Luciani Notas sobre a luz performativa 1 em Darwin Notes on the performative light in Darwin Nádia Moroz Luciani 2 DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101312018162 1 Conceito usado para designar o resultado ou o caráter de atuação e interferência da luz em um espetáculo cênico por meio de sua linguagem, seu desenvol- vimento no tempo e no espaço e sua recepção por parte do espectador. Considera ainda o desempenho, mais ou menos virtuoso, da iluminação performativa e sua ação ao vivo (just in time) durante a apresentação do espetáculo. Atividade teatral normalmente classificada como “técnica” (luz, som, cenário, figurino), em contraponto com as chamadas “artísticas” (atores, bailarinos ou músicos), a iluminação em sua expressão performativa pode ser entendida a partir dos conceitos de performance (Marvin Carlson, 2009) e de performatividade (Josette Féral, 2015), considerando que toda ação cênica possui um caráter performativo calcado na experiência e na consciência performativa do performer. Alia, assim, duas propriedades da expressão performática: a arte e a técnica, onde quer que ocorra (música, teatro, dança, interpretação, expressão vocal ou corporal, iluminação, sonorização, composição musical ou construção cenográfica, entre outras).

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Notas sobre a luz performativa1 em Darwin1

Notes on the performative light in Darwin

Nádia Moroz Luciani 2

DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101312018162

1 Conceito usado para designar o resultado ou o caráter de atuação e interferência da luz em um espetáculo cênico por meio de sua linguagem, seu desenvol-vimento no tempo e no espaço e sua recepção por parte do espectador. Considera ainda o desempenho, mais ou menos virtuoso, da iluminação performativa e sua ação ao vivo (just in time) durante a apresentação do espetáculo. Atividade teatral normalmente classificada como “técnica” (luz, som, cenário, figurino), em contraponto com as chamadas “artísticas” (atores, bailarinos ou músicos), a iluminação em sua expressão performativa pode ser entendida a partir dos conceitos de performance (Marvin Carlson, 2009) e de performatividade (Josette Féral, 2015), considerando que toda ação cênica possui um caráter performativo calcado na experiência e na consciência performativa do performer. Alia, assim, duas propriedades da expressão performática: a arte e a técnica, onde quer que ocorra (música, teatro, dança, interpretação, expressão vocal ou corporal, iluminação, sonorização, composição musical ou construção cenográfica, entre outras).

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Abstract

This article reports the creative pro-cess of the lighting design project for the theatre piece Darwin and its collab-orative and performative aspects. It also intends to present the possible proper-ties of a performative light applied to the process of participatory creation and the light performance in interaction with the scene and the other performers and sen-sorialities of the spectacle. On this goal, it faces the Marvin Carlson’s concept of performance and Josette Féral’s perfor-mativity with the new concept of lighting performativity, considering stage lighting as a performative act and its creation and expression as a constitutive element of perfomative theatre.

Keywords: Lighting design; perfor-mativity; creation; theatrical sensoriali-ties

ISSN: 1414.5731E-ISSN: 2358.6958

Resumo

Este artigo relata o processo de criação do projeto de iluminação cênica para o espetáculo Darwin e seus aspec-tos colaborativos e performativos. Pre-tende ainda apresentar as possíveis pro-priedades da luz performativa aplicadas ao processo de criação participativa e a atuação do performer da luz em intera-ção com a cena e os demais performers e sensorialidades do espetáculo. Para isso, confronta os conceitos de performance de Marvin Carlson e performatividade de Josette Féral com o de performatividade da luz, considerando a iluminação como ato performativo e sua criação e expres-são como elemento constitutivo do tea-tro performativo.

Palavras-chave:Iluminação cênica; performatividade; criação; sensorialida-des cênicas

2 Profa. Ms. Bacharelado em Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná - Centro de Área de Artes – UNESPAR. Designer e Iluminadora Teatral - [email protected]

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A ignorância gera confiança com mais frequência do que o conhecimento: são aqueles que sabem pouco, e não aqueles que sabem muito, que tão positivamente afirmam que esse ou aquele problema jamais será resolvido pela ciência. (Charles Darwin)3

A montagem do espetáculo

O espetáculo Darwin4 foi construído a partir de um processo colaborativo pro-posto pelo diretor, Fábio Salvatti, para a equipe de criação e o elenco, aos quais foi solicitado que trouxessem, como resultado de suas pesquisas individuais ou conhe-cimento prévios, elementos sobre a vida e a obra de Charles Darwin, como suas fa-çanhas científicas e particularidades de sua história pessoal. A proposta era expor suas próprias impressões e opiniões a respeito do cientista e suas teorias, bem como relatos pessoais ou profissionais que pudessem ter alguma relação com a temática, ressaltando que, mais do que representar ou contar uma história, o espetáculo tinha como premissa o compartilhamento de experiências individuais e coletivas. Foram sugeridas algumas referências5, mas todos ficaram livres para buscar em suas pró-prias fontes as possíveis conexões que estabeleceriam com o tema e as cenas. As re-ferências sugeridas pretendiam, principalmente, evidenciar o espaço existente entre o conhecimento científico e a curiosidade popular, as experiências de vida e a ciência, ou seja, o lugar onde esses dois universos se encontram e o que pode acontecer nele.

Neste percurso, foram descobertos temas periféricos como herança (genética, econômica, cultural), ordem dos primatas, fenômenos naturais, experimentos cientí-ficos, religião, preconceito, ciência e tecnologia, entre outros, que inspiraram a pro-posição das cenas que acabaram por constituir, com o arranjo final do diretor, a tessi-tura do espetáculo. Alguns destes temas ficaram explícitos no resultado do trabalho, outros nem tanto, mas todos apresentavam as referências, inicialmente compartilha-das no processo criativo e depois com o público. Era possível perceber, durante as apresentações, o misto de incredulidade e identificação com o espetáculo resultante, pois mesmo que parecesse não haver, em alguns momentos, muita coerência entre as cenas e passagens da peça, os espectadores reconheciam algo que as relacionava, de alguma forma, ao tema proposto. Havia, na sequencia de cenas, a sugestão de um fio condutor da partitura dramática exibida pelos atores, personagens e elementos da criação, além do encantamento provocado pelo aspecto lúdico, cômico, provocador ou irônico dessas cenas e sua capacidade de cativar ou promover uma identificação pessoal nos espectadores.

3 Texto retirado de material de divulgação do espetáculo Darwin. Fonte: http://www.processo.art.br/darwin. Acesso em 20 de dezembro de 2017.4 Espetáculo teatral da produtora curitibana Processo Multiartes, concebido e dirigido por Fábio Salvatti, com cenário de Paulo Vinícius, iluminação de Nadia Lucia-ni, figurinos de Maureen Miranda, composição musical de Octávio Camargo e vídeos de Fábio Alon. No elenco, Alan Raffo, Andrew Knoll, Carolina Fauquemont, Chiris Gomes e Marísia Brüning. Estreou em 23 de fevereiro de 2012 no TEUNI – Teatro Experimental Universitário da UFPR em Curitiba e foi remontado para a Mostra de Novos Repertórios no Festival de Curitiba e para o Festival de Antonina, em março e julho do mesmo ano, respectivamente.5 As principais referências foram o livro Além de Darwin. Evolução: o que sabemos sobre a historia e o destino da vida”, de Reinaldo José Lopes (Globo, 2009), recomendado igualmente para leigos e cientistas, defensores ou inimigos da teoria evolucionista de Darwin e o filme Criação, de Randal Keynes, tataraneto de Darwin, realizado sobre sua vida, com direção de Jon Amiel, em 2009.

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Com ingredientes multimídia, poesia e humor crítico, o espetáculo toma como ponto de partida a obra Origem das Espécies, revolucionário livro do pesquisador britânico Charles Darwin. A partir das teorias de Darwin, a montagem promove um mergulho em questões da sociedade contemporânea, expandindo suas impli-cações para outros campos que não os exclusivamente biológicos. Xenofobia, neoliberalismo, pesquisa genética, evolucionismo, criacionismo no ambiente da escola e movimentos fascistas são alguns dos temas abordados – sempre a partir de possíveis “ecos” do pensamento evolucionista na atualidade.Não se trata de uma adaptação da obra de Darwin, mas sim a construção de uma dramaturgia original. A peça tem roteiro criado a partir de um processo colabo-rativo entre atores e diretor, utilizando também materiais não dramáticos, como notícias e relatos científicos. Trechos de obras como Rei Lear, de Shakespeare, e Catatau, de Paulo Leminski, também fazem parte da mistura de referências. Mú-sicas da trilha sonora e vídeos produzidos especialmente para o espetáculo, com-pletam os recursos da dramaturgia. O resultado – apresentado no formato de uma “peça-conferência”, sem personagens ou enredo – busca principalmente levantar questionamentos, mais do que apontar respostas. Com ironia e uma linguagem teatral ágil, o espetáculo mistura história, ciência e política. Pelos caminhos desta expedição poética e cênica, vê nos homens de hoje, e em sua sociedade, os “sinais indeléveis de sua origem primitiva”.6

Figura 1 – Material de divulgação do espetáculo

O espaço-cena e a concepção da luz

Apesar do Teatro Experimental Universitário – TEUNI, ser um espaço alternativo, cuja plateia pode ser montada em diferentes formatos de acordo com a concepção do espetáculo apresentado, o espaço cênico para a peça Darwin foi concebido à ita-liana, cuja relação frontal entre palco e plateia permite ao público apenas um ponto de vista, com os espectadores dispostos em arquibancadas ascendentes à frente da área destinada à atuação. Essa visualização da cena e as marcações propostas pelo elenco e pelo diretor inspiraram e possibilitaram muitos dos efeitos de luz criados para o espetáculo. Neste espaço alternativo a posição da cabine de luz não é fixa, permitindo que a mesa seja posicionada no lugar desejado para cada montagem. Para este espetáculo ela foi colocada atrás da plateia, ao centro, o que permitia uma melhor visualização da cena pelo operador de luz, cuja luz de serviço também não interferia na visão do público.6 Sinopse elaborada a partir de material promocional do espetáculo. Fonte: http://teatrofigurinoecena.blogspot.com.br/2012/02/processo-multiartes-estreia-darwin.html. Acesso em 20 de dezembro de 2017.

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A decisão do uso da projeção como linguagem e elemento de transição das cenas foi determinante na definição da proposta de cenografia7 do espetáculo, cujo cenário foi, então, concebido a partir de uma estrutura rígida ao fundo do palco que seria usada como tela de projeção, mas que também dominava, demarcava e instituía o espaço à sua frente como área de atuação. Sua superfície, dividida em partes meno-res, permitia interessantes efeitos de luz e sombra, e quando iluminada pela projeção, sugeria um conjunto de monitores ou telas que fragmentavam a imagem. O cenário era composto ainda por outros elementos, específicos para cada cena, introduzidos e retirados da área de atuação conforme a demanda e o desenrolar das cenas.

Figura 2 - Uso da contraluz para valorização dos painéis, usados também como tela de projeção e fundo de cena. Foto: Rosana Roberta da Silva.

Acompanhando a concepção geral da cenografia, as varas de luz foram rebaixa-das e afinadas em uma perspectiva forçada, cuja disposição das primeiras em posição mais alta e das últimas mais baixas, quase tocando a tela de projeção ao fundo gerava um efeito de rebaixamento, que tinha como objetivo trazer os refletores para a cena e revelar sua presença, evitando efeitos ilusionistas ao revelar os mecanismos e o funcio-namento da luz e do teatro. Essa opção operava ainda em consonância com as coxias abertas, os adereços e elementos de cenário visíveis, mesmo quando fora de cena, as trocas de figurino, entradas e saídas de cena dos performers às vistas do público, desti-tuindo a cena de qualquer teatralidade e trazendo à luz sua performatividade.

7 É importante destacar a distinção feita neste artigo entre cenário, elementos de construção e caracterização da cena, e cenografia, termo usado em seu sentido mais amplo para designar a “grafia da cena”, ou seja, a configuração total do espetáculo em sua relação com o público, considerando os elementos visuais, sonoros e demais estímulos aos quais o espectador é submetido, ou seja, o conjunto de linguagens sensoriais do espetáculo. Também pode ser definida como “resposta narrativa e gráfica à dramaturgia” (Bueno, 2007, p.12) de uma performance, encenação ou espetáculo cênico.

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Figura 2 - Altura da área cênica rebaixada pela afinação das varas de luz em perspectiva decrescente da plateia em direção ao fundo do palco. Foto: Rosana Roberta da Silva.

O processo de criação do projeto de iluminação teve início com o convite para participar do projeto pelo diretor do espetáculo, que logo explicou a temática do tra-balho e os procedimentos que norteariam o desenvolvimento do espetáculo, ainda antes de serem iniciados os trabalhos de grupo com o elenco e equipe. O processo de pesquisa teve duração de quatro meses, um período relativamente longo que per-mitiu a importante incubação do desafio lançado e o constante estímulo criativo de toda a equipe. No início dos ensaios ainda não havia qualquer texto ou cena defini-dos, mas foi neste momento que foram surgindo experiências e referências individu-ais do elenco e da equipe de criação, de forma colaborativa, com incentivos e pro-vocações lançados de e para os performers, cujos resultados eram compartilhados com todos os membros da equipe, de maneira individual ou coletiva, dependendo das particularidades de cada proposta. Surgiam proposições de cena, de temática, de ambientação, composição musical ou sonoplastia, figurino, cenário ou luz, com insights, soluções e respostas emergindo simultaneamente do mesmo processo de cooperação e criação coletiva.

O desenho do espaço definido à frente da tela de projeção como área de re-presentação balizou de forma determinante o conceito geral da luz, que acabou por explicitar a fronteira entre área de representação (dentro) e coxias8 imaginárias (fora), visto que não seria usado nenhum tipo de roupagem cênica9. Logo na entrada, o pú-blico era recebido no espaço por uma luz recortada que demarcava a área de atuação e se difundia pelas arquibancadas, paredes do teatro e painel de fundo.

8 Toda área do palco não visível ao público e destinada à troca de figurinos ou cenários, espera dos atores ou bailarinos para entrar em cena ou permanência de técnicos, contrarregras ou maquinistas que devam atuar no espetáculo sem serem ser vistos.9 Conjunto de tecidos que definem a caixa cênica do palco tipo italiano cujas funções principais são ocultar o que não deve ser visto pelo publico e delimitar o ta-manho da área de atuação: na altura pelas Bambolinas, na largura pelas Pernas e na profundidade pela Rotunda. Cada conjunto de duas pernas e uma bambolina forma um rompimento, molduras sequenciadas na profundidade da caixa cênica que conferem ao palco a sensação de perspectiva e profundidade, favorecendo o ilusionismo característico do palco italiano. Pode ser preto, colorido ou decorado e são complementados pelos bastidores, a cortina ou pano de boca e a bambolina mestra que, confeccionados em tecido e cor diferenciados, regulam a abertura da boca de cena, linha divisória entre o palco e a plateia.

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Figura 3 - Cena inicial da apresentação, cujas coxias imaginárias são definidas pela luz, usada também para a entrada do público. Foto: Rosana Roberta da Silva.

A luz projetada atingia igualmente essas coxias imaginárias e a plateia, integran-do-as numa mesma tonalidade de luz que, ao mesmo tempo, excluía a caixa cênica. O efeito da luz neste primeiro momento sugeria que o espetáculo ainda não havia começado, mesmo com os atores circulando por todo o espaço enquanto cantaro-lavam o tema musical, considerando que a área cênica, propriamente dita, não estava iluminada. A diferenciação entre área de “cena” e “não-cena” também indicava que este espaço seria utilizado pela ação dos atores quando a luz mudasse, dando início ao espetáculo. Os locais externos à área de atuação, definida pela “não-luz”, eram re-servados para as “não-cenas”, ou seja, as trocas de figurino e espera do atores antes de entrarem “em cena”. Com isso, revelava-se o fazer teatral como característica de um teatro performativo cuja presença constante dos atores estimula a participação do pu-blico e sua interação na criação das cenas, na dissolução e reconstrução permanente dos sentidos e no compartilhamento de sensações entre performers e espectadores.

Segundo Josette Féral (2015, p. 125), os espetáculos performativos instalam si-tuações nas quais é a inter-relação entre o performer, os objetos e os corpos que é primordial. O objetivo não é o de construir signos com um sentido definitivo, mas instalar a ambiguidade das significações, o deslocamento dos códigos, o deslizamen-to dos sentidos. Assim, explica-se a escolha das cores usadas na luz, pois elas não de-veriam representar signos ou elementos definidos, mas sim permitir uma percepção imprecisa e subjetiva das tonalidades, tanto pela exploração da transparência quanto pela diferença cromática das cenas. Com a palheta de cores do figurino já definida em tons ocre e verde musgo, seguindo uma tendência rústica, selvagem, com tons de vegetação e terra, e numa possível alusão às viagens e expedições de Darwin, e com o cenário, em sentido contraditório, tendendo fortemente para o branco e su-gerindo assepsia e limpeza, coube à luz a função de atuar de maneira dúbia, perme-ando os dois conceitos.

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Detalhamento técnico do projeto de iluminação

A construção do ambiente cromático do espetáculo encontrou recurso em dois lançamentos de gelatina10 do catálogo da fabricante Rosco™11, pois mesmo que com alusão aos tons âmbar e verde do figurino, apresentavam transparência e tonalidades sutis e suaves, sem sucumbir ao brilho e tom forte das gelatinas normalmente usa-das em teatro nessas duas cores. Os novos filtros corretivos12 ajudaram a imprimir nas cenas colorações esmaecidas e desbotadas, com certa carga tecnológica e um pouco cibernéticas. Ajudaram ainda a intensificar e valorizar as tramas e cores dos figurinos, ressaltando-as. Com diferentes temperaturas de cor13, o filtro corretivo ur-ban vapor, de colocação mais quente, usado na iluminação feita com refletores Set Light 14, das coxias, plateia e painel de fundo, atuava em contraponto com o filtro corretivo industrial vapor, usado na contra-luz de refletores PAR6415 que preenchia, em determinados momentos, algumas áreas do palco com uma luminosidade mais fria e levemente esverdeada.

Figura 4 – Contra-luz em tonalidade fria para contrapor o tom quente usado nas coxias e painel de fundo. Foto: Rosana Roberta da Silva.

O uso constante da projeção, as mudanças entre as cenas projetadas ao fundo e as cenas dos atores ao vivo e a relação estabelecida entre ambas, forte caracte-

10 Filtros coloridos ou corretivos em material termorresistente, flexível e com diferentes graus de translucidez usados na iluminação para cinema, teatro, fotografia e vídeo. Colocados à frente das fontes luminosas (refletores), têm a função de colorir ou corrigir a temperatura de cor dos feixes luminosos. Também existem filtros de efeito como difusores, perfurates e rebatedores, em três marcas disponíveis no mercado brasileiro: Rosco™, GAM Colour™ e Lee™.11 Marca americana de equipamentos de iluminação para teatro, cinema e arquitetura e acessórios para as artes cênicas em geral.12 As gelatinas usadas no espetáculo Darwin foram os filtros de correção #3150 Industrial Vapor e #3152 Urban Vapor da linha Cinegel da marca Rosco™, indica-dos para corrigir a tonalidade das lâmpadas de tungstênio em vapor de sódio.13 A temperatura de cor corresponde à aparência de cor da luz branca emitida por uma fonte luminosa, cuja temperatura absoluta da luz emitida tem relação com a temperatura da chama, cujo aspecto é mais azulado quanto mais alta e mais amarelado quanto mais baixa e podendo ser comparada às sensações térmicas provocadas pela luz do dia, mais baixa e quente no nascer e por do sol e mais alta e fria ao meio-dia. Sua unidade de medida é o kelvin, em referência ao matemático e físico Irlandês Lord William Thomson, Barão Kelvin de Largs, (1824-1907). As lâmpadas alógenas com filamento de tungstênio emitem uma luz próxima a 3.200K e as lâmpadas com vapor metálico ou fluorescentes emitem luz que podem ir de 5.600K (HMI – hidrogênio, mercúrio e iodeto metálico) a 6.500K (fluorescentes comuns.14 Tipo de refletor com lâmpada halógena tipo lapiseira usado para iluminar cenários, cicloramas ou grandes superfícies com feixe de luz amplo e intenso. Dispo-nível nas versões de 500W e 1000W com espelho simétrico ou assimétrico.15 Parabolic Aluminized Reflector - Tipo de refletor com conjunto de lâmpada alógena, lente e espelho parabólico, disponível em quatro amplitudes de facho lumi-noso: F#1 (VNSP – Very Narrow Spot – CP60), F#2 (NSP – Narrow Spot – CP61), F#5 (MFL – Medium Flood – CP62) e F#6 (WFL – Wide Flood – CP95), sempre com consumo de 1000W, disponível nas potências de 110 ou 220 volts. A amplitude e a intensidade do facho luminoso são inversamente proporcionais, ou seja, quanto maior a amplitude, menor a intensidade e alcance do facho luminoso e vice-versa.

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rística do teatro performativo, conferiam alguns desafios a mais para a iluminação: quando projeção e cena aconteciam simultaneamente, a luminosidade de uma não poderia prejudicar a da outra; necessidade de favorecer a transição entre cenas inter-caladas por projeção, reforçando a relação entre elas; estabelecer a relação triádica entre projeção, público e cena com precisão e sincronia. Nesse sentido, a atuação do operador, que também fez a assistência de iluminação neste espetáculo, demandava total conhecimento da peça e sequencia de cenas, atenção e entrosamento com o palco, ritmo da projeção e movimentação dos atores, cuja performance era também influenciada por todos esses fatores conjuntos. Em determinados momentos do es-petáculo a tela apresentava relatos autobiográficos dos performers e relacionavam, de forma dúbia, esses relatos com as cenas que os precediam ou se seguiam a eles, confrontando as imagens das cenas ao vivo com as cenas produzidas pelos vídeos sem qualquer rastro de teatralidade ou linearidade narrativa. A iluminação atuava fa-vorecendo o diálogo entre as cenas (performers, objetos e ações) e as projeções, per-mitindo a realização de ambas, revelando o processo, o uso e exploração do recurso tecnológico e colaborando com sua linguagem na ação performativa do espetáculo.

Figura 5 - Projeção de imagens com depoimentos auto-referenciais do performers do espetáculo, inseridas entre cenas ao longo da peça. Foto: Rosana Roberta da Silva.

Como as projeções não eram usadas durante todo o espetáculo e a tela, por ser branca, não se era fácil de ocultar visualmente, o filtro corretivo urban vapor permi-tiu dar a ela um aspecto aquecido, suave e sutil, ideal para atuar apenas como pano de fundo para as cenas. A resistência do filamento em baixa luminosidade resultava numa tonalidade de luz ainda mais aquecida, o que permitiu seu uso na cena da evo-lução da espécie, na qual os atores simularam a célebre ilustração de Darwin com uma movimentação repetitiva e sequenciada do processo de seleção natural como uma brincadeira infantil competitiva. A cena toda foi apresentada em silhueta16, valo-rizando as formas e os movimentos dos atores para gerar e auxiliar na identificação da referida imagem.

16 Efeito de luz no qual é delineado o contorno de uma figura ou objeto colocado à frente de uma superfície fartamente iluminada, diferente da sombra ou da sombra-chinesa, quando a imagem é projetada numa superfície, desenhando sua forma.

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Figura 6 - Cena da evolução da espécie feita em silhueta contra painel de fundo iluminado.Foto: Rosana Roberta da Silva.

A operação da luz, ou seja, os efeitos e movimentos de luz17, foi sendo definida à medida que personagens e cenas surgiam da mente criativa dos diferentes partici-pantes do processo e seus resultados eram apresentados ao grupo. As mudanças de luz acompanhavam o desenrolar das cenas, muitas vezes apenas conduzindo, dentro da estética pré-definida, a atenção do espectador, ou seja, orientando, vivificando e editando as cenas, mas também acompanhando as movimentações dos performers, estimulando a experiência sensorial no palco e na plateia, sugerindo espaços e de-finindo climas e texturas. As luzes, alternadas entre setorizadas, que encerravam a área de atuação, e gerais, que permitiam ver o espaço todo de maneira equalizada, ambientavam e animavam o palco. No primeiro caso, cada cena demandava e rece-bia um tratamento especial condizente com a temática, marcação e sensorialidade da encenação propostas pelos performers e pela direção. As luzes gerais já seguiam mais a proposição do cenário, dos figurinos e da sonorização, editando as cenas e orientando seu acompanhamento e leitura pelos espectadores.

A atuação da luz revelou-se mais contundente em algumas cenas específicas, como a da evolução da espécie, já citada, e a cena do Lear18 , relacionada a ques-tões de herança e sucessão, cuja encenação foi elaborada conjuntamente por toda a equipe a partir da proposição de um dos atores. A luz acabou por definir o triân-gulo de tensão formado pelas três filhas de Lear numa área demarcada pelas facas de recorte de três refletores elipsoidais19 posicionados no ângulo de projeção da luz ideal para permitir a exata alteração de luminosidade nas diferentes posições das três atrizes durante a cena.

17 Toda alteração no aspecto visual da cena ou do palco resultante de uma ação executada na mesa de comando pelo acender e apagar das luzes e seus efeitos.18 Rei Lear, tragédia de William Shakespeare, escrita e encenada pela primeira vez em Londres no ano de 1606.19 Tipo de refletor com lâmpada alógena, jogo de lentes plano-convexo, espelho elíptico e diversos acessórios que permitem o recorte da luz (facas de recorte), o ajuste da amplitude do facho luminoso (íris), a projeção de imagens e desenhos (gobos e porta-gobo) e a coloração do facho luminoso (gelatinas e porta-filtro). Disponível na versão zoom ou em diferentes graus fixos de abertura (5º, 10º, 19º, 26º, 36º, 50º, 70º e 90º para a marca ETC).

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Figura 7 - Uso da forma geométrica do triângulo para evidenciar a marcação da cena e o conflito instaurado entre as personagens assumidas para a cena. Foto: Rosana Roberta da Silva.

No início da cena, as três atrizes ficavam completamente fora da luz, cada uma em um dos vértices do triângulo, de frente para o centro, sendo levemente ilumina-das pela reflexão vinda no piso de madeira clara. Em seguida, elas avançavam e eram iluminadas pela contraluz que delineava levemente suas silhuetas e, por fim, antes de falarem seus textos, entravam no “reinado de Lear”, majestosamente sentado em seu trono ao centro do triângulo, fartamente iluminado por uma luz de três pontos, além de um pino sobre a cadeira, todos feitos com refletores PC20 de 1000W. A subjetivida-de das condições de iluminação da cena ficava expressa pelas variações de intensi-dade, ângulo, e temperatura de cor natural da lâmpada incandescente usada nos dois tipos de refletor. Ao final da cena, a luz do triângulo era apagada em sincronia com a saída das três atrizes, ficando apenas a luz central do Lear para seu texto final.

Figura 8 - Uso dos refletores elipsoidal e PAR36 para efeitos de destaque de corpos e rostos em cenas específicas. Foto: Rosana Roberta da Silva.

Refletores do tipo elipsoidal também foram usados para luzes fechadas e focos de destaque de ações ou textos específicos, cuja atenção requerida difere da cena anterior, posterior ou das ações paralelas ou simultâneas. Foram usados refletores

20 Tipo de refletor com lâmpada alógena, espelho esférico e lente plano-convexa, disponível nas versões de 500W ou 1000W. Um carrinho permite aumentar e diminuir a amplitude e intensidade do facho luminoso ao aproximar e afastar a lâmpada da lente.

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PAR3621 afinados em posições fixas para destacar os rostos dos atores em uma cena que exigia isolamento e concentração do olhar dos espectadores nos rostos e ex-pressões faciais dos atores, que se colocavam, imóveis, em marcações pré-determi-nadas do palco, descrevendo uma forma circular com um microfone ao centro para os textos, falados sucessivamente. Os atores se moviam em círculo, depois de cada texto, saindo e entrando nos fachos de luz projetados, criando assim uma falsa im-pressão de movimento da luz, dada somente pela movimentação dos atores e pelo “acender” e “apagar” dos seus rostos sem que nada fosse feito na mesa de luz, ou seja, nenhum refletor aceso ou apagado.

Ao final do espetáculo, uma cena complexa que conjugava texto declamado, projeção e coreografia foi resolvida com um conjunto de efeitos, composto por um foco cruzado na narradora do texto, feito com um refletor elipsoidal e uma luz lateral, que permite valorizar as formas e os movimentos coreográficos, feita com quatro re-fletores fresnel22, com recorte do chão, da frente do palco e do painel de fundo pelo uso de barndoors à frente dos refletores. O recorte do chão tinha o propósito de su-gerir um efeito de “flutuação” dos atores (recorte inferior), intensificado pela entrada de luz sutil e suave, acompanhando o efeito de som e o movimento coreográfico dos atores. Já os recortes laterais serviam para impedir que a luz da coreografia atingisse também a atriz declamando o texto (recorte frontal) ou interferisse na projeção da imagem no telão (recorte posterior).

Figura 9 - Efeito de flutuação com luz lateral recortada e destaque com foco cruzado. Foto: Rosana Roberta da Silva.

A cena performativa e sua luz

Teatro performativo é, segundo Féral, o melhor termo para designar o teatro denominado por Hans-Thies Lehman (2005) de pós-dramático, que, para ele, é um teatro que exige um evento ou acontecimento cênico que seria, a tal ponto, pura presentificação do teatro que apagaria toda ideia de repetição do real (Lehman, apud Féral, 2009, p. 129). Féral afirma que este teatro apresenta uma noção de performati-

21 Tipo de refletor com conjunto de lâmpada alógena, lente e espelho parabólico (PAR – Parabolic Aluminized Reflector), consumo de 50W e transformador embuti-do. Produz um facho luminoso extremamente concentrado que permite o destaque luminoso de pequenos detalhes e por isso também conhecido como Pin Beam.22 Tipo de refletor similar ao PC, mas com um modelo especial de lente, desenhada pelo engenheiro Augustin Fresnel (1788-1827) para uso em faróis de sinaliza-ção marítima com uma forte concentração da luz no centro e dispersão gradativa para as bordas do feixe luminoso. É mais usado em cinema e televisão do que em teatro por sua natureza difusa e leva um acessório chamado barndoor para controlar a dispersão de luz em direções indesejadas.

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vidade que ela acredita estar no centro de seu funcionamento, com base no conceito de performance popularizado por Schechner e que traduz, melhor que o sentido de pós-dramático. O gênero do teatro dramático modificado pelas aquisições da per-formance, que transformaram o ator em performer e a representação em descrição da ação cênica, deslocando o foco do espetáculo do texto para a imagem e a ação e fazendo apelo à uma receptividade especular do espectador (Féral, 2009, p. 113-14). Com isso, entende-se que o fazer toma a frente do representar e a ação cênica cen-traliza-se no seu agente, no seu executor, no performer que lança mão dos recursos de que dispõe (as articulações do corpo e da voz, no caso do ator, ou as máquinas, os objetos ou equipamentos tecnológicos, se considerarmos o encenador) ou na pró-pria configuração estrutural da cena para inscrever uma performatividade da qual a ação se torna pressuposto fundamental.

Tanto durante o processo de criação e concepção do projeto de iluminação, nos ensaios, quanto na atividade de operação da luz, durante as apresentações a publico do espetáculo Darwin, é possível detectar seu caráter performativo, cuja principal característica é sua interatividade com a cena e seus performers, considerando que a luz atua, interage, interfere e se modifica conforme o desenrolar das cenas, o desem-penho dos atores, o andamento e o ritmo do espetáculo. É impossível dissociar a atu-ação da luz da atuação e performance de cada elemento cênico, de cada performer, da sonoplastia, da movimentação dos elementos cenográficos ou das trocas de figu-rino; e essa interferência mútua confere tanto a performatividade deste teatro dito contemporâneo, chamado de pós-dramático por Lehmann, ou performativo, como prefere Josette Féral, quanto da luz que o anima, vivifica e edita. Para Forjaz (2013, p. 32), o movimento não é um elemento, mas um estado, uma maneira de ser, e a luz é o elemento que traz em si a mobilidade capaz de articular tempo e espaço, vivificar a relação entre o ator e a cena. Esta luz que Appia chama de “luz ativa” transforma o espaço, tornando-o móvel e vivo, actante da cena.

Segundo Féral (2015), “no teatro performativo, o ator é chamado a fazer (doing), a estar presente, a assumir os riscos”, ou seja, “a afirmar a performatividade do pro-cesso”. Para ela, “a atenção do espectador se coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução permanente”, quando uma estética da presença se instaura” (Féral, 2015, p. 131). Considerando que a presença do personagem ou da performance é instaurada pela presença do ator e sua “ação” na cena, é possível conceber que o iluminador, ou o operador de luz, está presente, atua, age na cena por meio dos fachos de luz e efeitos luminosos que instaura, que “presentifica”, que torna presentes no palco através da manipulação dos equipamen-tos, ou seja, da luz realizada, materializada, presente e ativa na cena, que constrói formas, desfaz e restaura signos e estabelece referências para o espectador atento às transformações que provoca e promove.

A iluminação, nestes casos, é performativa porque é estrutural e estruturante do espetáculo, das cenas, das ações cênicas. Ela se explicita em cena, em ação, em atu-ação conjunta com os demais elementos e seu discurso compartilhado com o espec-tador, que interfere e constrói igualmente a ação, articulando tempo e espaço, ator e cenário, numa afetação mútua e constante. A luz performativa intensifica o atrito entre ficção e realidade, um facho luminoso não pode ser nada além de um facho lu-

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minoso, mas que provoca percepções, identificações e reações. Não é um raio de sol, a luz que penetra por uma porta ou janela, a representação do sonho ou da paixão, é apenas luz, frequência luminosa e cromática que interage com a cena, no tempo da cena, no espaço dado. Ela tem consequências, responsabilidades e atribuições, cujo resultado afeta e é afetado pela cena e sua interação com o público. É linguagem e expressão, ativa e atuante, age e reage no tempo e no espaço da ação.

Para Guénoun (2004), o espectador deste teatro deseja, ao invés de deixar-se envolver ou iludir pela narrativa, descobrir uma operação de teatralização, que en-tendo aqui como uma operação teatral ou cênica, mas que também pode ser per-formática, na medida em que acontece aqui e agora, diante de espectadores atentos e ativos. Para ele, os espectadores contemporâneos vão ao teatro para “ver teatro, para ver o advento do acontecimento singular do teatro, naquele lugar, naquela hora [...], as práticas da cena enquanto práticas, ver como fazem aqueles que ali se apre-sentam” (2004, p. 139). Apesar de Guénoun tratar especificamente do jogo do ator, penso que essas reflexões podem ser facilmente transpostas para outras linguagens do espetáculo, referindo-se também às manifestações da luz e de seus efeitos sobre a cena. Féral (2009, p.19) afirma, a respeito de uma obra de Robert Lepage, que o que “o espectador olha, aquilo pelo que se deixa seduzir, é precisamente a arte da esquiva, da falsa aparência, do jogo”. Se o público vai ao teatro interessado nas ações interpretativas dos atores e da encenação, mais ou menos performativas, estará tam-bém atento às da luz, inclusas a sua concepção vinculada à cena e a atuação do ilu-minador ou do operador, os performers da luz.

Para Schechner (apud Féral 2009, p. 117-18), a ação do performer, no sentido do engajamento num espetáculo, num jogo ou num ritual, implica em três opera-ções principais: being (ser/estar), doing (fazer) e showing (mostrar), que consiste em dar-se em espetáculo, mostrar fazendo, estar em cena. No caso do performer da luz, estar em cena é mostrar, por meio da operação da luz, a ação que executa. Significa materializar a luz, realizar os efeitos pelo acender e apagar dos refletores, como um manipulador de bonecos no teatro de animação, que faz do objeto inanimado uma extensão de seu próprio corpo, animando-o e dando-lhe vida, mas cuja atenção está centrada no movimento que realiza e no resultado da ação, muito mais do que no equipamento que opera ou no seu funcionamento elétrico ou mecânico. Com isso, conduz a cena, direciona a atenção do publico, edita o espetáculo e vivifica o espaço, de forma ativa, presente e dinâmica.

A caminho do fim

A iluminação cênica, dentre os diversos elementos sensoriais das artes cênicas, é o que apresenta, ao lado da música e do uso corrente de projeções e outros dis-positivos tecnológicos, grande potencial performativo, dada sua execução ao vivo e a situação real de interação com a cena e a ação dos performers. Esse potencial performativo como expressão e ação integrada à encenação, criada e executada em consonância com as atuações performáticas de atores, bailarinos e artistas, ou seja, performers da cena, permite vislumbrar o criador/operador da luz como o agente que executa movimentos de luz atuantes em relação direta e permanente com a cena

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em toda sua capacidade de improvisação, atuação, conjunção com a ação cênica performativa, definindo-o, também, como um performer.

Carlson (2010, p. 107) cita a observação de Maholy-Nagy a respeito, numa per-formance, da “rejeição do conceito tradicional do performer como interprete de um texto literário em favor do performer como criador de um ato ou uma ação”, que se entende como não necessariamente uma ação corporal ou vocal, mas qualquer outra na composição da cena, desde que performada conjuntamente no tempo e no espaço da ação. Ele define, ainda, o artista da performance como um indivíduo que combina muitas atuações do teatro tradicional – ator, designer ou dramaturgo, e que não é trazido à tona por outra agência autenticadora, mas que constitui, por si, o resultado da própria decisão do performer de que a apresentação para uma audiên-cia aconteça (Carlson, 2010, p. 68). Acredito que essa decisão voluntária possa não implicar necessariamente na presença física do performer, mas também naquilo que ele opera, na atuação, mesmo que em uma ausência, presentificada por aquilo que ele realiza e pela ação de fazê-lo.

É possível afirmar, com isso, que a operação da luz, durante a apresentação de um espetáculo, coloca essa luz em cena e transforma cada efeito ou facho de luz que acende ou apaga, ilumina ou escurece, revela ou oculta, em manifestação real da ação que a realiza, marcando sua presença, mesmo que seu agente atue de fora da cena, pelo gesto e ação invisível através dos equipamentos, mas cujo resultado, no momento da ação, expõe seu risco, imprevisibilidade e reação ao que acontece em cena. Féral (2009, p. 128) afirma que a performatividade (e o teatro performativo) faz seus diferentes elementos da cena, visuais ou verbais (dos performers, do texto, das imagens ou das coisas) dialogarem em conjunto, completarem-se e se contradi-zerem ao mesmo tempo, insistindo no aspecto lúdico do discurso sob suas múltiplas formas. A presença do performer é substituída, nesse caso, pela expressão e manifes-tação performativa de efeitos e movimentos de luz que acompanham a movimenta-ção dos atores, as transformações do cenário, as inserções de som ou imagem e as trocas de cena.

Desta forma, ao ser executada, essa luz performada integra-se à ação cênica, faz parte dela, seguindo um plano pré-estabelecido, mas sensível e predisposto a toda sorte de variação, alteração ou manipulação dos recursos de que dispõe pela construção, montagem e planejamento do projeto da iluminação proposto. Proje-to esse, é muito importante ressaltar, elaborado e constituído simultaneamente ao processo de construção das cenas, criação de eventuais personagens, dos sons, ima-gens, situações e ações cênicas, na mesma dinâmica estabelecida pelos performers atores, dançarinos, cantores e músicos. A capacidade performativa da luz revela-se pela relação estabelecida entre o processo de criação, que resulta numa previsibili-dade do espetáculo constituído, e sua potencialidade de ação, risco, improviso, in-terferência, estímulo e interpretação que os movimentos de luz podem provocar nos corpos presentes, performers e espectadores, objetos e máquinas, estabelecendo e favorecendo sua relação e interação.

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Referências

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FERAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.

FORJAZ, Cibele. À luz da linguagem. A Iluminação Cênica: de Instrumento da visibili-dade à ‘Scriptura do Visível’. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – PPGAC, ECA, USP. São Paulo, 2013.

GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004.

JOSÉ LOPES, Reinaldo. Além de Darwin. Evolução: o que sabemos sobre a historia e o destino da vida. Rio de Janeiro: Globo, 2009.

LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

LUCIANI, Nadia Moroz. Iluminação Cênica: uma experiência de ensino fundamentada nos princípios do design. Dissertação (Mestrado em Teatro) – PPGT, CEART, UDESC. Florianópolis, 2014.

MOSTAÇO, Edélcio; OROFINO, Isabel; BAUMGÄRTEL, Stephan; COLLAÇO, Vera (Orgs.). Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009.

Recebido em: 27/01/2018 Aprovado em: 14/03/2018