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NOVO DESENVOLVIMENTISMO, TRABALHO E EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO BRASIL: ELEMENTOS DE CONTEXTO Epitácio Macário Professor adjunto na Universidade Estadual do Ceará (UECE) na área de Economia Política; É Doutor em educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Integra o Centro de Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser Social (CETROS/UECE). Resumo. A economia política do Brasil contemporâneo repõe as bases do neoliberalismo no plano macroeconômico, mas opera flagrantes inflexões na microeconomia e no financiamento das políticas sociais. Esse artigo objetiva elencar algumas características do modelo político-econômico capitaneado por Lula da Silva e Dilma Rousseff e apresentar alguns de seus impactos na dinâmica do mercado de trabalho, com foco no emprego, na renda e na educação profissional. Introdução Na entrada do novo milênio, vários países latino-americanos que haviam adotado o receituário neoliberal como forma de superar suas crises encontravam-se à beira do colapso em função dos resultados sociais amplamente negativos, das baixíssimas taxas de crescimento econômico e da conflagração de conflitos políticos que derrubaram governos ou sinalizavam o esgotamento da governabilidade na região. Nesse cenário, formuladores de políticas econômicas ligados ao Banco Mundial e autoridades científicas como Joseph Stiglitz passaram a preconizar a necessidade das principais economias da América Latina realizarem ajustes nas suas políticas econômicas, fortalecendo a presença do Estado na regulação e na criação de condições favoráveis ao investimento e ao livre mercado. A ideia era que a combinação de Estado forte com mercado livre e forte abriria rotas para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e maior oferta de empregos o que, combinado com a adoção de políticas de assistência aos mais pobres, deveria resultar num círculo virtuoso de crescimento econômico com maior equidade social. Tais resultados, se alcançados e bem administrados, atuariam positivamente na resolução dos conflitos sociais que tomaram a agenda nacional de vários países da região, garantindo a governança e a governabilidade. No Brasil, tais formulações casaram-se com o programa capitaneado pela aliança de classes que conduziu o ex-metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva ao posto de presidente da república nas eleições de 2002. Com efeito, a opção do Partido dos Trabalhadores (PT), e de outros segmentos de esquerda que giram na sua órbita, foi pela construção de amplo pacto de interesses em torno da ideia da promoção de uma nova etapa de acumulação de capital no País que operasse mudanças de aspectos periféricos da Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02770

NOVO DESENVOLVIMENTISMO, TRABALHO E … NOVO DESENVOLVIMENTI… · Na trilha de Boito Júnior (2012 ... de acumulação capitalista no Brasil, ... ajustes do Estado brasileiro no

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NOVO DESENVOLVIMENTISMO, TRABALHO E EDUCAÇÃO

PROFISSIONAL NO BRASIL: ELEMENTOS DE CONTEXTO

Epitácio Macário Professor adjunto na Universidade Estadual do Ceará (UECE) na área de Economia Política;

É Doutor em educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC);

Integra o Centro de Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser Social (CETROS/UECE).

Resumo. A economia política do Brasil contemporâneo repõe as bases do neoliberalismo

no plano macroeconômico, mas opera flagrantes inflexões na microeconomia e no

financiamento das políticas sociais. Esse artigo objetiva elencar algumas características

do modelo político-econômico capitaneado por Lula da Silva e Dilma Rousseff e

apresentar alguns de seus impactos na dinâmica do mercado de trabalho, com foco no

emprego, na renda e na educação profissional.

Introdução

Na entrada do novo milênio, vários países latino-americanos que haviam adotado

o receituário neoliberal como forma de superar suas crises encontravam-se à beira do

colapso em função dos resultados sociais amplamente negativos, das baixíssimas taxas

de crescimento econômico e da conflagração de conflitos políticos que derrubaram

governos ou sinalizavam o esgotamento da governabilidade na região.

Nesse cenário, formuladores de políticas econômicas ligados ao Banco Mundial e

autoridades científicas como Joseph Stiglitz passaram a preconizar a necessidade das

principais economias da América Latina realizarem ajustes nas suas políticas econômicas,

fortalecendo a presença do Estado na regulação e na criação de condições favoráveis ao

investimento e ao livre mercado. A ideia era que a combinação de Estado forte com

mercado livre e forte abriria rotas para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e

maior oferta de empregos o que, combinado com a adoção de políticas de assistência aos

mais pobres, deveria resultar num círculo virtuoso de crescimento econômico com maior

equidade social. Tais resultados, se alcançados e bem administrados, atuariam

positivamente na resolução dos conflitos sociais que tomaram a agenda nacional de vários

países da região, garantindo a governança e a governabilidade.

No Brasil, tais formulações casaram-se com o programa capitaneado pela aliança

de classes que conduziu o ex-metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva ao posto de presidente

da república nas eleições de 2002. Com efeito, a opção do Partido dos Trabalhadores

(PT), e de outros segmentos de esquerda que giram na sua órbita, foi pela construção de

amplo pacto de interesses em torno da ideia da promoção de uma nova etapa de

acumulação de capital no País que operasse mudanças de aspectos periféricos da

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302770

ortodoxia neoliberal, mantendo as privatizações, a política de superávits primários, a

abertura ao capital transnacional e o Estado gerencialista.

Assim, no que pese a continuidade da orientação macroeconômica neoliberal,

defendiam-se inflexões na intervenção estatal no plano da microeconomia e nalgumas

políticas públicas. De um lado, seria necessário azeitar as correias de transmissão que

operam entre o fundo público, gerido pelos bancos federais, e as grandes empresas

nacionais – do setor da construção civil e mineradoras, por exemplo; defendia-se maior

protagonismo do Estado nos investimentos em infraestrutura mediados pela iniciativa

privada, como se materializou nas Parcerias Público-Privado (PPP), no Programa de

Aceleração do Crescimento (PAC) e, particularmente, no programa Minha Casa Minha

Vida; impunha-se que o Estado manejasse a poupança interna e o fundo público no

sentido de financiar o consumo das massas trabalhadoras, fomentar o empreendedorismo

e apoiar a agricultura familiar; e, ademais, seria indispensável a destinação de verbas

públicas em montantes maiores para garantir o enfrentamento da extrema pobreza e da

miséria por meio do programa Bolsa Família e de outros programas assistenciais como o

Benefício de Prestação Continuada (BPC) destinado aos cidadãos que não conseguem

suprir suas necessidades básicas por seus próprios esforços ou pela ajuda de familiares.

Não que não tenham diferenças importantes, fato é que o encontro e fusão das

propostas do Banco Mundial, de formuladores econômicos pró-sistêmicos – que

defendiam a necessidade de reforma no ideário neoliberal – com o projeto abraçado pelas

forças políticas de esquerda que sustiveram o programa de governo de Lula da Silva

formou um amálgama que daria base à nova fase de acumulação de capital e de inserção

do Brasil na economia internacional. Analistas de linhagens teóricas e vinculação política

diferentes têm chamado essa fase ora de pós-neoliberalismo ora de

neodesenvolvimentismo. Na trilha de Boito Júnior (2012), utilizamos esta última

denominação por falta de melhor conceito.

Nesse artigo, interessa discutir algumas mudanças operadas na dinâmica do

mercado de trabalho que incidem na situação de renda e de qualificação da classe

trabalhadora. Isso será feito em três momentos: no primeiro caracterizamos a fase atual

de acumulação capitalista no Brasil, no segundo inquirimos elementos da dinâmica do

mercado de trabalho e, no terceiro, situamos o debate sobre educação profissional.

1. A fase atual de acumulação de capital no Brasil: mudando para conservar

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302771

O projeto neoliberal implantou-se nos países latino-americanos durante a década

de 1990 e obteve grande sucesso no plano ideológico e cultural, pois engendrou amplo

consenso em torno dos seus princípios: o individualismo possessivo como fundamento

da sociabilidade, o alargamento da lógica mercantil para a área dos direitos e garantias

conquistados pelas classes populares, o deslocamento da intervenção do Estado em favor

da plena liberdade de mercado e, fundamentalmente, trabalhou duro para impor a ideia

de que não existia alternativa numa época de derrotas do socialismo (BORON, 1999, p.

9 ss). Uma década depois, todavia, nos primórdios dos anos 2000, a crítica à ortodoxia

neoliberal ecoava de várias trincheiras, inclusive de formuladores pró-sistêmicos como

acima indicado, motivada principalmente pelo fracasso econômico do projeto que se

expressava na crise que varria o continente e, fundamentalmente, na piora dos indicadores

sociais e nas explosões de conflitos que ameaçavam a governabilidade (vide o caso da

queda de governos na Argentina).

Essa crítica apontou a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento

econômico ancorado no livre mercado com maior intervenção do Estado – uma

combinação de estado forte com mercado forte na formulação de Sicsú, Paula e Michel

(2007). Segundo essa perspectiva, os graves problemas de ordem econômica e social

aprofundados com o neoliberalismo seriam equacionados no bojo de uma pragmática que

procurou expandir o escopo das políticas e programas assistencialistas e intervir na

microeconomia, gerando ambientes favoráveis ao investimento e crescimento setorial,

mantendo intacta a estrutura da propriedade (inclusive os latifúndios!), os acordos de

pagamento da dívida pública, a abertura para o mercado externo, a política de austeridade

fiscal e superávit primário.

Na perspectiva de Bresser-Pereira, um dos mais destacados formuladores dos

ajustes do Estado brasileiro no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o

novo desenvolvimentismo implementado no governo de Lula da Silva caracteriza-se tanto

por implementar mudanças nas diretrizes neoliberais como por distanciar-se da velha

ideologia da “esquerda burocrática”: por um lado, há um redirecionamento da economia

em favor do setor produtivo; o Estado volta a investir sempre nos limites do rígido

equilíbrio fiscal; mantém-se a abertura do mercado por ser benéfico ao aumento da

produtividade e modernização do parque industrial; há incentivo aos setores exportadores

com preocupação para o setor com maior valor agregado. Por outro lado, o modelo

renuncia a ideia do protecionismo e endividamento estatais em prol de políticas de

substituição de importações e de implemento do consumo interno – estas que são

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302772

características do nacional-desenvolvimentismo. Segundo o autor, no novo

desenvolvimentismo a nação é fortalecida pela soldagem de amplo consenso de classe e

fortalecimento das instituições de modo a resguardar tanto os interesses sociais como a

liberdade de mercado.

Em direção oposta, Reinaldo Gonçalves critica o novo desenvolvimentismo à

brasileira naquilo que ele representa de continuidade do neoliberalismo e porque renuncia

ao que havia de positivo no nacional-desenvolvimentismo. Assim, afirma o autor que a

linha geral desse modelo é dada pela busca do crescimento econômico com menor

desigualdade, sem sequer tratar de aspectos estruturais como:

(...) mudanças na estrutura de propriedade; estrutura tributária e distribuição de riqueza;

vulnerabilidade externa estrutural nas esferas comercial, produtiva e tecnológica;

influência de setores dominantes (agronegócio, mineração e bancos); e viés no

deslocamento da fronteira de produção na direção do setor primário. (GONÇALVES,

2012, p. 660).

Passada a primeira década do governo do PT, pode-se dizer que houve maior

crescimento econômico que no hard time do neoliberalismo. Com efeito, a taxa média de

crescimento do PIB entre 1995 e 2002 foi de 2,3% a.a. e no período que vai de 2003 a

2012 a média ficou em 3,6% a.a. O pequeno incremento dessa taxa não deixou de ser

saudado entusiasticamente pelos formuladores da política econômica de Lula e Dilma,

dada a conjuntura de crise que assola as economias desenvolvidas desde 2008. Já para os

técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) os resultados são

medíocres quando comparados com outras economias emergentes, o que eles lamentam

porque o Brasil tem vantagens comparativas como “o tamanho do mercado interno

potencial e as bases produtivas existentes” (IPEA, 2009, p. 28).

Que impactos o atual modelo de acumulação de capital desencadeou sobre o

mercado de trabalho brasileiro e quais rebatimentos sobre os rendimentos, a escolarização

e qualificação da classe trabalhadora?

2. Dinâmicas do trabalho, rendimentos e escolarização dos trabalhadores

O impacto mais notável do modelo atual se expressa na capacidade de

incorporação no mercado de trabalho de parte considerável do imenso exército de reserva

produzido nos anos duros do neoliberalismo. No final da década de 1990, a taxa média

de desemprego total calculada pelo Dieese em seis regiões metropolitanas brasileiras (São

Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Salvador e Recife) ultrapassava os 20%.

Esse indicador caiu pela metade, reduzindo-se para 10,5% em 2012. Houve pequena

melhora na qualidade das ocupações uma vez que a proporção das que se enquadram

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302773

como vulneráveis caiu de 36% no ano de 2000 para 29% em 2010, resultante da geração

de empregos formais durante toda a década. O gráfico 1 expressa a evolução dessas duas

variáveis.

Interessa examinar os empregos gerados na primeira década do milênio que

motivaram a importante redução da taxa de desemprego. A tabela 1 e o gráfico 2 são

instrutivos quanto a isto, pois demonstram que o modelo atual tem demonstrado

importante elasticidade na geração de empregos na base da pirâmide salarial com

prejuízos para os postos de trabalho mais valorizados. Com efeito, os saldos positivos no

fluxo de admissão/demissão se verificam precisamente na faixa de até dois salários

mínimos, enquanto nas faixas acima dessa remuneração os saldos foram sempre

negativos. Continua, pois, o processo de destruição de postos de trabalho melhor

remunerados e a realocação da força de trabalho em empregos com salários menores. Esse

fenômeno é resultante de várias determinantes, dentre as quais o processo de

reestruturação produtiva que tende a extinguir funções e cargos mais elevados (os de

gerência intermediária e controle de qualidade, por exemplo) e realoca-los nos estratos

inferiores da escala salarial. Outro determinante está no fato de os setores mais dinâmicos

na geração de emprego serem precisamente aqueles marcados pela precarização laboral

– como é o caso do comércio, dos serviços e da construção civil.

A tabela um mostra que durante toda a primeira década do novo milênio as

admissões superaram os desligamentos em mais de dezesseis milhões na faixa salarial de

até dois salários mínimos. Dinâmica inversa sofreu a evolução dos postos de trabalho cuja

remuneração ultrapassa dois salários mínimos: em toda a década foram destruídos 3,6

milhões de postos de trabalho nessa faixa salarial. O gráfico dois ilustra muito bem a

tendência de concentração dos empregos na base da pirâmide salarial em detrimento das

demais faixas salariais. Observa-se que a participação das admissões da faixa de até dois

salários mínimos cresceu muito na década, saindo de 54,52% para 85,98%. Ao contrário,

as faixas salariais superiores perderam participação no total das admissões, pois no ano

de 2000 representavam juntas 45,49% das admissões, decaindo para uma participação de

14,02% no total de admitidos no ano de 2010.

Esse fato contrasta com a ideia amplamente difundida nos meios acadêmicos e

gerenciais de que estaríamos vivendo um paradigma que prima pela melhoria contínua

dos postos de trabalho. Antes, os números atualizam a já antiga tese do sociólogo

brasileiro Ruy Mauro Marini (2005) segundo a qual, nas condições de dependência, o

capitalismo brasileiro procura sempre melhorar sua performance no mercado externo por

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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meio da superexploração da força de trabalho. Este ponto de vista é defendido por Luce

(2012) a partir da análise de variáveis como acidentes de trabalho, valor histórico-social

da força de trabalho, produtividade e política de salário mínimo do governo Lula.

Diferentemente da tabela um e do gráfico dois, que medem o fluxo

admissão/desligamentos no emprego formal, o gráfico três ilustra a composição do

estoque de empregos formais contabilizados pelo Ministério do Trabalho por meio da

Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Nele, demonstramos a composição do

estoque de empregos formais por grau de instrução. Com base na ilustração podemos

afirmar que há uma tendência de aumento da escolarização da força de trabalho, pois,

como se observa, no ano de 2006, 36,83% do estoque era composto por trabalhadores

analfabetos ou com ensino fundamental incompleto e completo, índice que decai para

26,17% em 2012. A perda de participação desse estrato se fez em favor do segundo que

engloba os trabalhadores com ensino médio incompleto e completo. Esse segmento gozou

de importante crescimento, saindo de 43,93% no início da série para 52,02% no final.

Quanto ao ensino superior (incompleto e completo) nota-se pequeno crescimento de

participação no estoque total de empregos no período, destacando-se, ainda, que para o

ano de 2012, a RAIS contabilizou uma participação da ordem de 0,57% de trabalhadores

com mestrado e doutorado (este dado não foi incorporado ao gráfico).

Duas reflexões merecem ser feitas aqui. A primeira é que não se deve concluir

apressadamente que a elevação tendencial da escolarização da força de trabalho se deve

unicamente à melhoria da qualidade dos postos de trabalho e a exigências mais complexas

requeridas dos trabalhadores. A literatura da área mostra que não está havendo um

enriquecimento da massa das ocupações, senão formas mais insidiosas de controle e

extração de sobretrabalho por meio, por exemplo, da polivalência e das equipes

multifuncionais, – o que, também, motiva a contratação de pessoas com maiores

capacidades intelectuais, cognitivas e determinadas competências que só se adquirem nos

graus intermediários da escolarização. Ademais, as lutas das classes subalternas

brasileiras tem pautado seriamente o problema da educação e conquistado a vinculação

de fundos para seu financiamento – a exemplo do Fundo de Desenvolvimento do Ensino

Básico (Fundeb) – o que tem impactado positivamente na elevação da escolarização da

juventude brasileira. Assim, as empresas dispõem hoje de contingente considerável de

jovens trabalhadores com escolarização de nível médio disposto a ocupar-se em

atividades de baixa qualidade ao preço de até dois salários mínimos.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302775

A segunda reflexão advém do cruzamento dos dados sobre a composição das

admissões segundo a remuneração e a composição do estoque de empregos segundo a

escolarização. Enquanto se destroem postos de trabalho melhor remunerados e se aloca a

massa da força de trabalho na base da pirâmide salarial (num movimento de nivelamento

por baixo) se exige maior escolarização dos trabalhadores. Isso parece contraditório para

os que analisam tais dinâmicas pelo viés apenas técnico, que normalmente enxerga o

aumento do nível de escolarização motivado pelo enriquecimento de funções e melhorias

gerais dos postos de trabalho gerados na economia. Em verdade, o aparente paradoxo é

expressão do contexto em que se desenrola a luta entre as classes fundamentais, marcado

fundamentalmente pela regressão de direitos. Noutras palavras, o paradoxo expõe a

correlação de forças favorável aos empresários num período de longa duração

caracterizado pelo descenso das lutas dos trabalhadores – o que tem permitido a

imposição de níveis de renda rebaixados mesmo no período de crescimento favorável ao

crescimento.

3. O debate da educação profissional

No bojo do neodesenvolvimentismo, a educação profissional ganha importância,

sendo mobilizada em várias modalidades e por meio de variadas instituições com a

finalidade de aumentar a capacidade produtiva da força de trabalho e melhorar a

performance da economia doméstica em face da concorrência internacional. Ela é, ainda,

importante vetor de socialização da juventude trabalhadora segundo valores que

positivam o exercício profissional como meio de afirmação individual e de contribuição

com a cidadania. Quase sempre, o ensino profissionalizante é realizado sem a devida

crítica das condições econômicas e culturais rebaixadas das massas trabalhadoras. É nesse

diapasão que ocorre a expansão da rede de Institutos Federais de Educação, Ciência e

Tecnologia (IFET) que, segundo demonstra Sicsú (2013, p. 44), ganhou 259 novas

unidades entre 2003 e 2013; que se vincularam vultosas somas de recursos públicos para

o financiamento de programas de qualificação/socialização dos trabalhadores a exemplo

do ProJovem e do Pronatec.

É digno de nota o profícuo debate, fundado no pensamento crítico, que conseguiu

adentar instâncias governamentais e, inclusive, alterar a institucionalidade da educação

profissional com a revogação do Decreto-Lei 2.208/97 pelo Decreto 5.154/2004.

Malgrados aspectos que garantem a desvinculação entre formação para o trabalho e a

elevação dos níveis de escolarização formal dos trabalhadores (CÊA, 2009), o referido

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302776

decreto representa importante deslocamento do ideário neoliberal na institucionalidade

da educação profissional. A nova institucionalidade garante, todavia, que várias

instituições públicas e privadas abocanhem quinhões do fundo público para na promoção

da qualificação dos trabalhadores nas modalidades sequenciais e concomitante em

desfavor da integração entre escolarização de nível médio e qualificação.

No confronto pela nova institucionalidade estava em discussão não apenas

aspectos técnicos e pragmáticos, mas a concepção mesma de educação profissional, o que

permitiu aos educadores e estudiosos que defendem a integração entre formação para o

trabalho e formação geral e humanística uma corajosa – e nem sempre exitosa! –

intervenção no debate. Para Frigotto, Ciavatta e Ramos a defesa da integração entre

formação profissional com a escolarização formal tinha a natureza de “travessia possível”

no contexto dos embates políticos de meados da primeira década. É uma travessia que

aponta para o horizonte da “escola básica unitária e politécnica, centrada no trabalho, na

ciência e na cultura, numa relação mediata com a formação profissional específica que se

consolida em outros níveis e modalidades de ensino.” E Arrematam:

O ensino médio integrado é aquele possível e necessário em uma realidade

conjunturalmente desfavorável – em que os filhos dos trabalhadores precisam

obter uma profissão ainda no nível médio, não podendo adiar este projeto para

o nível superior de ensino – mas que potencialize mudanças para, superando-

se essa conjuntura, constituir-se em uma educação que contenha elementos de

uma sociedade justa. (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005, p. 15).

Como toda travessia, não obstante, esta é eivada de obstáculos e dificuldades cuja

resolução inscreve-se no fragor da luta política desencadeada pelos diversos segmentos

que disputam o fundo público, os rumos e sentidos da educação. Em poucas palavras: os

autores sabiam que a efetivação do ensino médio integrado e de caráter politécnico era

função da própria luta de classes e dos embates políticos e pedagógicos travados pelos

educadores na conjuntura brasileira do início do milênio. A correlação de forças expressas

nos embates políticos em torno da questão frustrou as expectativas dos autores na medida

em que o próprio MEC encarregou-se de garantir velhas e novas formas de fragmentação

do ensino profissionalizante e a esperada mobilização das organizações dos trabalhadores

e estudantes em defesa da efetiva integração de ensino geral e tecnológico não se fez à

altura do que era necessário. Mesmo nos casos dos convênios celebrados entre os entes

federados para a implantação dessa modalidade de ensino, a integração não ultrapassou o

caráter de justaposição de disciplinas específicas, conforme delineado pelos autores:

A despeito da complexidade política e pedagógica que caracteriza o tema, o

que ocorreu foram discussões aligeiradas e, por vezes, encaminhamentos para

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302777

a organização do ensino médio em três séries anuais, seguidas por mais um ano

de estudos profissionalizantes. Reiteramos que a sobreposição de disciplinas

consideradas de formação geral e de formação específica ao longo de um curso

não é o mesmo que integração, assim como não o é a adição de um ano de

estudos profissionais a três de ensino médio. A integração exige que a relação

entre conhecimentos gerais e específicos seja construída continuamente ao

longo da formação, sob os eixos do trabalho, da ciência e da cultura.

(FRIGOTTO, CIAVATA e RAMOS, 2005, p. 1092-1093).

O Estado do Ceará foi ágil na captação dos recursos federais e vem

protagonizando expressiva expansão de escolas de ensino integrado. O processo exibe,

no entanto, contradições que remetem à estrutura da política e aos problemas de ordem

pedagógica ensejados pela implantação dessa modalidade de ensino. Com efeito, as

Escolas Estaduais de Ensino Profissional (EEEPs) se viram frente à inusitada tarefa de

reestruturar seus currículos, metodologias e sistemas de gestão em tempo recorde para

atender minimamente às exigências de integração estipuladas pelo Decreto 6302/2007.

Adotaram, assim, a justaposição de disciplinas de formação geral e formação profissional

e um modelo de gestão intitulado Tecnologia Empresarial Sócio Educacional – TESE,

que segundo a pesquisadora cearense Rejane Andrade trata-se de “uma proposta de gestão

escolar fundamentada no modelo gerencial empresarial, especificamente baseada na

Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO)”.

É sobre as contradições e desafios político-pedagógicos do ensino integrado nas

escolas cearenses que as professoras Maria José Maciel e Rejane Bezerra se pronunciam

em seus textos construídos para essa mesa temática.

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Gráficos e tabelas

Gráfico 1: Evolução das taxas médias de desemprego total* e de trabalho em

condições vulneráveis** em regiões metropolitanas – Brasil 2000-2010 (%)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302779

Faixa de rendimentos Admitidos Desligados Saldos

Até 2 Salários Mínimos 109.004.931 92.615.607 16.389.324

De 2,01 a 4,0 Salários Mínimos 24.943.407 26.198.960 -1.255.553

Mais de 4,0 Salários Mínimos 7.526.609 9.916.778 - 2.390.169

Totais 141.474.947 128.731.345 12.743.602

19,9221,78

17,93

14,43

10,50

36,00

34,56

38,95

29,08

0,00

5,00

10,00

15,00

20,00

25,00

30,00

35,00

40,00

45,00

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Desemprego total Trabalho vulnerável

Fonte: Dieese. Elaboração do autor.

(*) Somatório do desemprego aberto com desemprego oculto.

(**) Inclui os assalariados sem carteira de trabalho assinada, os autônomos que trabalham para

o público, os trabalhadores familiares não remunerados e os empregados.

Tabela 1: Somatório das admissões e desligamentos no emprego formal, segundo

faixa de salário mensal – Brasil 2000-2010

Fonte: MTE – CAGED. Elaboração do autor.

Gráfico 2: Composição das admissões no emprego formal por faixa de rendimentos

em Salários Mínimos – Brasil 2000-2010 (%)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302780

54,52

73,6281,28

85,98

32,87

20,9314,56

10,8512,62

5,45 4,16 3,18

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

100%

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Até 2 SM De 2,01 a 4 SM Mais de 4 SM

36,8331,30

26,17

43,9348,09

52,02

19,25 20,61 21,24

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

100%

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Analfabeto e fundamental Médio incompleto/completo Superior incompleto/completo

Fonte: MTE – CAGED. Elaboração do autor.

Fonte: MTE – CAGED. Elaboração do autor.

Gráfico 3: Composição do estoque de empregos formais, segundo grau de

instrução – Brasil 2006-2012 (%)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302781