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Martha UlhoaMinistério das Relações Exteriores
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Martha Tupinamb de Ulha
Novos ritmos e nomes: Marisa Monte, CarlinhosMarisa Monte
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Rio de Janeiro, canto lrico e samba;
Salvador, culto a Ogun e carnaval de rua;
Recife, hip hop e maracatu. Marisa Monte,
Carlinhos Brown, Chico Science... Novos
nomes e novos ritmos na MPB? Novos
nomes, sim, mas sonoridades nem to
novas assim. O que tm eles em comum? O
ecletismo e a mistura de gneros e ritmos, o
que tradicional para a cultura musical bra-
sileira, uma cultura que se caracteriza pela
absoro e reinterpretao de ritmos e for-
mas das mais variadas procedncias tnicas
e sociais. O rap parece ser uma outra hist-
ria, talvez o nico elemento absolutamente
novo no cenrio da MPB.
Brown, Manguebeat, Rap.
Ana Carolina
Carlinhos Brown
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A carioca Marisa Monte encanta pela fluncia com queinterpreta, de uma maneira refinada, desde sambas tradicio-nais a clssicos do repertrio norte-americano. Incluem-sea recriaes que se tornaram emblemticas, comoChocolate, de Tim Maia, gravado no disco Marisa Monteao Vivo, de 1988. Iniciando-se no canto lrico, MarisaMonte passa posteriormente a interpretar o repertriopopular em casas noturnas, de onde parte para uma carrei-ra artstica. Em seus shows e gravaes introduz tambmcomposies prprias. Nessa categoria destaca-se a parceriacom Arnaldo Antunes, na intrigante Amor I Love You,sucesso de pblico registrado em Memrias, Crnicas eDeclaraes de Amor, de 2000. Um outro campo de atua-o de Marisa a produo musical, seja da ala de composi-tores de uma escola de samba tradicional, como a VelhaGuarda da Portela, seja de discos de outros artistas, comoCarlinhos Brown no disco Omelete Man.1
O baiano Carlinhos Brown fascina pela exibio atlti-ca da sua percusso, que perpassa inclusive suas letras, esco-lhidas mais pela sonoridade do que pela semntica. Sua tra-jetria se inicia na percusso de rua, relacionada cultura decarnaval, dos trios eltricos e da ax music. Mais uma pernade sustentao de Carlinhos est inscrita no prprio nomeartstico: a influncia de James Brown, apontando a prefe-rncia pelo soul/funk e pelo uso do corpo como instrumen-to performtico. A outra base do trip a tradio musicalrelacionada a Ogun, orix africano do ferro cultuado emCandeal Pequeno, territrio onde Carlinhos nasceu e cres-ceu. Foi l que, em 1992, o artista criou a banda Timbalada,um grupo com mais de 100 percussionistas do bairro. Sovrios os cdigos musicais que se misturam. funk, rap,reggae, samba, rock e candombl produzindo uma msicahbrida, ao mesmo tempo pop, globalizada e tambm muitobaiana. Em 1996 lanado Alfagamabetizado (um jogocom a palavra alfabetizado e o primeiro e o ltimo caracterdo grego,alfa e gama), um disco bem recebido pela crticae pelo pblico. Ainda no mesmo ano criada uma escolaprofissional para msicos de rua. Alm da escola e daTimbalada, Carlinhos patrocina tambm uma banda depercusso feminina, chamada Bolacha Maria, e outra bandainfantil, a Lactomania.
O pernambucano Chico Science se destaca mas no
Lenine
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enquanto manifesto (Caranguejos com Crebro, publicadoem 1992) conceitua o Manguebeat (a lama frtil e viva dosmangues potencializada pelos bits da ciberntica). A sono-ridade emergente, a batida do mangue (Manguebeat) noentanto no nica, como mostram os trabalhos das ban-das Mundo Livre S.A. e Mestre Ambrsio, outros gruposrelacionados ao movimento.
So muitos ritmos, tradicionais e importados, locais etransnacionais. Nessa cena globalizada onde fica a especifi-cidade da msica brasileira? A questo sugere uma reflexosobre essa trajetria, com influncias e adaptaes de msi-ca estrangeira e, tambm, com a articulao de uma lingua-gem musical muito particular. O aspecto rtmico semdvida o elemento mais marcante dessa discusso. Mas oritmo muito mais que uma seqncia de duraes organi-zadas num motivo, reconhecvel aqui e ali. Existem aspectosrtmicos muito sutis na msica popular brasileira, respons-veis por seu molho e sua ginga. Esse estilo brasileiro defazer msica foi construdo num longo processo histricode contatos, emprstimos e trocas entre gneros brasileirose estrangeiros.
No sculo XIX a polca empresta a forma de dana agi-tada em pares enlaados tradio da dana de pares soltosdo lundu. Os ritmos que acompanhavam o lundu eram osritmos entrelaados dos tambores de origem africana. Cadabailarino do par desafiante podia fazer uma coreografiaindividual e livre no lundu. A polca de compasso e coreogra-fia sincronizados e regulares rearticulada na nova danaque surge, o maxixe. Dana que estilizada na primeira dca-da do sculo XX pelo danarino Duque nos sales de Paris,se espalha a outros pases latino-americanos. No Brasil,muita msica chamada de polca nessa poca era na realida-de maxixe. Por trs dos primeiros sambas gravados tambmse escondia a nova dana.
O samba se consolida como gnero comercial na dca-da de 1930, numa cristalizao que s seria contestadacerca de 30 anos depois. quando o jazz empresta suas har-monias de acordes alterados renovao do samba,empreendida pela bossa nova. Na segunda metade do scu-lo, o rock, com o som de suas guitarras contribui para aemancipao da msica popular de suas razes tradicionais,atravs do curto mas influente movimento da Tropiclia.
nico dentre vrios representantes do movimento musicalpulsante que surge da regio dos mangues de Recife. Comuma passagem pelo hip hop e rock ps-punk o grupo deChico Science se junta a outros msicos de samba-reggaeformando a banda Chico Science & Nao Zumbi. Osegundo trabalho gravado do grupo, Afrociberdelia (1996)mostra bem o tipo de mistura que se tornou tpica dosrepresentantes do movimento (rap, msica eletrnica, rocke gneros tradicionais de Pernambuco, tais como maracatu,coco, ciranda, etc.). No sem razo que Chico Science eNao Zumbi colocam trs verses do original de JorgeMautner e Nelson Jacobina, Maracatu Atmico no CDmencionado. Maracatu pela relao com o local, o mangue;atmico pela referncia cultura pop global. O movimento
No sculo XIX a polca empresta a forma de danaagitada em pares
enlaados tradio da
dana de paressoltos do lundu.
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Nenhum desses emprstimos, no entanto, interfere nosotaque musical do samba, da Bossa Nova e de outrasmanifestaes da chamada MPB, em especial no que seconhece como diviso, ou seja, na maneira de distribuir asnotas entre melodia e acompanhamento, uma diviso quenem sempre respeita os tempos fortes do compasso. Nacano, o uso dessa maneira frouxa de sincronizar permiteadequar o sistema de acentuaes do portugus, que irre-gular, regularidade mtrica dos compassos musicais. Esseaspecto rtmico, que chamo de mtrica derramada distin-gue o estilo brasileiro na performance de vrios gneros demsica popular (Ulha 1999).
O musiclogo Mrio de Andrade comenta num estu-do sobre o lundu, escrito em 1928, sobre essa liberdade rt-mica que aparece no s no gnero mas tambm em cocos,emboladas e desafios da msica tradicional nordestina. Soformas de metro livre e o que ele chamou de processos sil-bicos e fantasistas de recitativo (Andrade 1976: 80). Omestre est se referindo aos padres de acentuao da ln-gua falada, que carregam para o canto popular tradicionalseu ritmo oratrio. Essa mtrica livre est muito presentenas incurses do pessoal do Manguebeat, assim como amtrica derramada tpica do samba e derivados.
Novos gneros musicais se formam a partir da aodeliberada de msicos ao privilegiar determinadas manifes-taes meldicas, rtmicas, tmbricas e harmnicas. Soprticas musicais, por seu lado fundadas e fundidas a prti-cas sociais histrica e geograficamente especficas. Umexemplo da ao desses agentes a verso da j mencionadapolca pelos msicos de choro no final do sculo XIX.
Introduzida no Brasil em 1845, a polca tem um papelimportante na formao de gneros urbanos no Rio deJaneiro, centro cultural da poca. Apesar de utilizar essadenominao at os primeiros decnios do sculo XX, essadana bomia em compasso binrio de forte acentuaottica com nfase no primeiro tempo dos compassos altamente estilizada na performance pelos msicos popula-res cariocas de choro. Essa estilizao ocorre tambm, eprincipalmente, na dana de pares enlaados que adapta oestilo de desafio coreogrfico individual do lundu quadra-tura da dana de salo. Essa adaptao, como mencionadoacima, vai contribuir para a criao do maxixe, dana e
Zeca Baleiro
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depois cano que aparece muitas vezes sob o nome depolca ou tango, e que ser o precursor do samba.
Chama a ateno em especial o aspecto rtmico desseprocesso de incorporao, no qual a mtrica angular dapolca, em contato com outros ritmos, como a habanera cari-benha e o lundu foi flexibilizada. Um dos aspectos dessa fle-xibilizao a estrutura de tempos fortes e fracos do com-passo, que permanece binrio, como no modelo europeu,mas com o tempo forte deslocado do primeiro para osegundo tempo, como aparece mais tarde no samba. Essedeslocamento do tempo forte bastante bvio no samba-enredo, sendo enfatizado pelo toque do surdo de primeira,o tambor maior e mais potente da orquestra de percusso(bateria) que integra os desfiles da escola de samba.
Outro aspecto peculiar se relaciona sincronizaoentre as partes musicais, novamente precisa no modeloeuropeu e malevel no caso brasileiro. Como comento emrelao mtrica derramada, os prprios limites do com-passo so flexibilizados na performance dos sambas.Nessas canes o nmero de slabas do verso e seu padrode acentuao nem sempre coincidem com o nmero detempos e localizao de acento do compasso musical. Essaindependncia entre melodia e acompanhamento aparecenas partituras sob a forma de sncopes internas e em anteci-paes do tempo forte atravessando a linha imaginria doscompassos.1 Ou seja, nesses casos a msica segue a lgicaeuropia do metro binrio, mas a estrutura do compasso reinterpretada, no pela oposio, fazendo algo completa-mente diferente, mas pela assimilao da diferena. 2
Os gneros musicais estrangeiros so abrasileirados, seno na sua forma, no seu contedo. Foi assim com a polca,com o fox, com o bolero, com o jazz, mesmo com o rock, ouseja, se afirma a identidade pela mistura e pela sutileza aolidar com o outro. Talvez por isso a msica brasileira popu-lar exera um certo fascnio tambm para ouvintes das maisdiversas procedncias culturais.
Se no sculo XIX a polca tem um papel importantepara a formao de gneros de msica urbana brasileiros, nosculo XX o rock que vai ser central para a modernizaoda msica popular. Essa modernizao assinalada pelaatuao de grupos que funcionam como verdadeira van-guarda em seus campos de produo especficos. De umlado, e num primeiro momento, a Jovem Guarda, lideradapor Roberto Carlos, modelo para a produo musical deampla aceitao popular e sucesso comercial. De outro, aTropiclia capitaneada entre outros por Caetano Veloso,modelo de produo preocupada com originalidade e ela-borao artstica. Para ambos os campos, os Beatles sofonte de inspirao musical: para a Jovem Guarda o rockadolescente i-i-i (uma clara aluso cano She lovesyou); para a Tropiclia a experimentao ps albumRevolver.
O rock no foi abrasileirado como a polca, pois foiintroduzido num espao onde j estavam definidos os con-tornos de uma produo nacional. O uso da guitarra eltri-ca foi inclusive questionado pelo segmento da juventude
O rock no foiabrasileirado
como a polca, poisfoi introduzido
num espao ondej estavam
definidos oscontornos de umaproduo nacional.
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universitria engajada com a crtica social na poca (dcadade 1960). O uso de elementos do rock pelos tropicalistas,eles prprios membros dessa comunidade, representou umgesto de auto-crtica, inclusive do samba como o nicorepresentante legtimo de brasilidade. A partir daTropiclia, os cancionistas MPB iriam incorporar gnerosos mais variados ao seu repertrio, no somente de outrasorigens regionais (como o baio nordestino), mas tambmestrangeiros (como o reggae jamaicano). Nesse cenrio aJovem Guarda foi considerada como alienada dos proble-mas sociais e polticos do pas sob ditadura militar. Nasdcadas de 1960 e 1970, o uso de gneros musicais especfi-cos por certos compositores desse segmento (como ChicoBuarque de Hollanda ao compor sambas) tinha uma cono-tao de protesto.
Com a abertura poltica e eleies presidenciais emmeados da dcada de 1980 essa ligao com algum tipo derazes tnicas como ndice crtico se esgota. O apelo iden-tidade nacional se d no mbito do prprio rock, agorareconhecido como Rock Brasileiro. Uma cano emblem-tica dos anos 80 Faroeste Caboclo do grupo LegioUrbana (EMI, 1987), que utiliza vrias texturas de rockcomo trilha sonora para narrar a trajetria de um jovemnordestino que vai para a capital federal (Braslia) para seapaixonar, se envolver com a violncia urbana e morrer emfrente s cmeras da televiso. O elemento de identificaotnica e cultural bastante sutil, pois sonoramente a canono teria nada de particularmente brasileiro a no ser pelouso do portugus. Pois exatamente esse uso da lngua por-tuguesa que quero continuar a explorar.
Faroeste Caboclo j foi comparado pelo crtico de rockArtur Dapieve a Hurricane de Bob Dylan. De fato, assemelhanas so muitas, entre elas o tema, narrando umatrajetria herica e o contorno meldico prximo da fala.No entanto, o modelo prosdico no o do folk-rock nor-teamericano, mas o da tradio brasileira conhecida comorepente. Como menciona o prprio autor de FaroesteCaboclo, Renato Russo, em vrias entrevistas, a cano foifcil de compor por usar o estilo declamatrio de mtricalivre tpico dos desafios improvisados e cocos tradicionaisdo nordeste brasileiro. Nesse estilo de canto declamado, orepente, no observo a questo da mtrica derramada, a no
ser na pouca nfase para os tempos fortes de cada compas-so, uma vez que as frases longas de notas repetidas ou comintervalos de mbito muito curto produzem um resultadosonoro de carter horizontal e sem acentos mtricos. Isso diferente do samba que claramente binrio, mas tambmdiferente do rock em ingls. Esse rtmo prosdico aqueleobservado por Mrio de Andrade, como comentado acima.
Certos padres rtmicos bsicos distinguem a maioriados gneros musicais difundidos pela mdia internacional.Um exemplo disso so os teclados eletrnicos para usocaseiro, que fornecem ao usurio um conjunto dos padresmais comuns na msica pop (tais como rock, valsa, BossaNova, bolero, balada, reggae, salsa, entre outros). Essas sim-plificaes estereotipadas no substituem, no entanto, o
Com a aberturapoltica e eleiespresidenciais emmeados da dcadade 1980 a ligaocom algum tipo de
razes tnicascomo ndice
crtico se esgota.
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vigor e excitao de uma performance criativa, onde o msi-co interfere na construo da base ritmico/harmnica. Issoporque a mquina no consegue simular as indetermina-es rtmicas prprias do discurso musical. E esse discursomusical pressupe uma competncia musical especfica,uma familiaridade com normas gramaticais culturalmentedeterminadas.
Para ficar somente com um exemplo, basta pensar naBossa Nova, que soa pasteurizada quando tocada nosteclados eletrnicos com a base rtmica predeterminada.Ou que soa artificial e dura quando tocada por msicosno familiarizados com a ginga brasileira. E esse elementosutil est, a meu ver, intimamente relacionado ao ritmo dalinguagem falada que se insere na prtica musical.
O portugus brasileiro, como muitas outras lnguas,usa o acento silbico como um meio de identificao fono-lgica. Um exemplo tpico pode ser a palavra de trs slabascujo significado modifica dependendo da localizao daslaba tnica: sabi (o pssaro), cujo acento cai na ltimaslaba;sabia (passado do verbo saber), acentuado na penl-tima slaba; e sbia (pessoa possuidora de sabedoria), comnfase na antepenltima slaba. Um nmero grande daspalavras em portugus est na segunda categoria, ou seja,com acentuao na penltima slaba. Como adequar essatendncia mtrica musical ocidental, cujos compassos seiniciam com um tempo forte? Simples, s iniciar a canoantes do primeiro tempo do compasso.3 Ou seja, a mesmamaneira de acentuar deslocada mencionada acima e quecaracteriza o samba, estando tambm presente de umamaneira sutil na Bossa Nova.
Na performance de certos cantos, a linha meldicaexiste quase independente do tecido sonoro acompanhante.Esse o caso dos gneros estudados por Mrio de Andradee, de certa maneira tambm, do rap que, como o prprionome diz, poesia recitada sobre uma base ritmica. Masuma coisa a mtrica da lngua inglesa, como aparece norap norte-americano, outra a mtrica da lngua portugue-sa como pronunciada no Brasil.
A prosdia usada no Brasil silbica, os versos sendoespecificados pelo seu nmero de slabas (de uma a doze,geralmente, contadas at a ltima slaba acentuada); cadatipo de verso tem um nmero fixo de slabas, delimitados
Zlia Duncam
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pelo acento tnico final. Embora cada palavra possa ter suasslabas tnicas e tonas, a lgica da sentena que prevale-ce. Dependendo da sua localizao num verso ou frase, umapalavra ou slaba acentuada pode ter seu acento negligencia-do, ou variar em termos de limites silbicos. Ou seja, agru-pamentos ritmicos so variados, formando frases de tama-nho e estrutura mtricas diferentes.
interessante notar que, em certas lnguas europias,como no ingls, os padres de acentuao so iscronos,isto , usam uma mesma quantidade de tempo entre umaslaba e outra acentuadas. Portanto, pelo menos no caso dalngua inglesa, a mtrica parece ser organizada em compas-sos regulares. Quando Chico Science canta um hip hop emportugus, como na msica Etnia, do disco Afrociberdlia,usa a diviso mtrica livre da tradio nordestina, e dessamaneira transforma e recria o gnero pela absoro parcialda diferena.
Uma sonoridade absolutamente nova aparece com orap, especialmente o paulista, que imprime nas suas letrasem portugus a regularidade prpria da lngua norte-ame-ricana. Suas bases ritmicas so tambm construdas de umamaneira radicalmente diferente do que aparece na MPB.Em vez da criao de um tecido sonoro composto pela inte-rao entre os instrumentistas, o aproveitamento de sobrasdos samplers pirateados numa colagem mecnica. Em vezdo contorno meldico fluido do canto o metralhar sperodo texto recitado.
O rap introduzido no Brasil por equipes de bailesoul e se desenvolve sobretudo em So Paulo. As letras sodeclamadas sobre bases tiradas de discos de funk e even-tuais scratches. A partir do final dos anos 80, rappers sur-gem em todo pas (Rio de Janeiro, Braslia, Porto Alegre,Belo Horizonte, Recife) mas So Paulo permanece comoo centro de uma produo independente do gnero. Ogrupo mais conhecido de rap, os Racionais MCs despe-jam sobre essas bases um discurso denunciador da condi-o do jovem negro e pobre dos bairros marginalizados deSo Paulo. Conquistam um pblico expressivo para seusshows (alguns com cerca de 10.000 pessoas) e empreen-dem campanhas de conscientizao da juventude sobretemas como drogas, violncia policial e racismo. Seu discomais importante Sobrevivendo no Inferno, uma produ-
o independente de 1998 que vendeu mais de um milhode cpias.
Mas sobretudo na mtrica que o rap paulista se dis-tingue da produo de MPB dominante. O rap contrastacom a tradio da mtrica derramada ao imprimir s pro-dues em portugus o padro de acentuao iscrona doingls, e se apresenta como um elemento estranho s for-mas de expresso musical consolidadas. O rap contrastainclusive com as tradies de cantos recitados nordestinos,de diviso silbica mas sem padres regulares de acentua-o. Por isso a constatao de que o rap se coloca margemda MPB. Os rappers se colocam em oposio ao brasileiroda msica popular e tentam construir para o gnero umespao com suas prprias normas de funcionamento.
No entanto, na terra do manguebeat o rap tem sidoincorporado e integrado a sonoridades e gingas locais.Grupos como Faces do Subrbio declamam letras no ritmo
O rap introduzido no
Brasil porequipes de baile
soul e sedesenvolve
sobretudo em So Paulo.
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dos desafios de embolada por sobre bases utilizando per-cusso de pandeiro, instrumento tradicional. No Rio deJaneiro, MV Bill, o rapper de maior expresso grava commsicos de samba. Ou seja, razes continuam a se misturarcom tendncias estrangeiras reinventadas e novos nomessurgem para revigorar o velho som da msica popular. DeMarisa Monte ao rap o Brasil que canta e dana seu ritmoplural e original.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
Andrade, Mrio de. Lundu do escravo [1928]. In Msica doce
Msica. 2 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora; Braslia: INL, 1976, p.
74-80.
Hollanda, Heloisa Buarque de.The law of the cannibal or How to
deal with the idea of difference in Brazil http://acd.ufrj.br/pacc/litera-
ria/paper1helo.html [1998, com consulta em 03/09/2002]
Sandroni, Carlos. Feitio Decente Transformaes do samba no
Rio de Janeiro (1917-1933) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Editora
UFRJ, 2001.
Ulha, Martha Tupinamb de. Mtrica Derramada: prosdia
musical na Cano Brasileira Popular Brasiliana 2 (maio de 1999):
48-56.
NOTAS
1 O leitor pode encontrar exemplos de mtrica derramada (com o
nome de contrametricidade) em transcries de gravaes de sambas no
estudo de Carlos Sandroni (2002).
2 O termo de Heloisa Buarque de Hollanda (1998), para caracte-
rizar essa preferncia pela absoro constante, apesar de parcial da dife-
rena nos discursos de identidade no Brasil.
3 o fenmeno conhecido em msica como anacruse, ou seja, a
frase musical comea antes e termina depois do primeiro tempo do
compasso.
Martha Tupinamb de Ulha professora titular de musicologia do
Instituto Villa Lobos e do Programa de Ps-Doutorado em Msica na
Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). Primeira secretria da
ANPPOM (Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em
Msica) e Vice-presidente da IASPM-LA (Associao Latino-
Americana de Estudos da Msica Popular). Como pesquisadora do
CNPq tem se dedicado ao estudo da msica brasileira popular.
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