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A imoralidade de um sofrimento inútil Ano: 2010 . nr 06 . Mês: Julho . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço0,01 € 07 . 10 NR 06 WWW.JORNALOSUL.COM «O touro entra na praça. Entra sempre, creio. Este veio em alegre corre- ria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à liberdade. Animal tonto, ingénuo, ignorante também, inocência irremediável, não sabe que não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem descanso. O touro atravessa a correr a praça, olha os “tendidos” sem perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em dois segundos acha-se do outro lado, era uma ilusão, julgava investir contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais do que uma nuvem. Em verdade, que mundo vê o touro?» (…) «O touro vai morrer. Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade, para merecer o título de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do matador, que renuncie à brutalidade, que saia da vida tão puro como nela entrou, tão puro como viveu, casto de espírito como o está de corpo, pois virgem irá morrer. Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um certo momento, embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre a vida e a morte» José Saramago (Prémio Nobel da Literatura 1998) « Excêntricos, e de pouco juízo. As riquezas africanas e asiáticas, que poderiam ter impulsionado as artes e as indústrias, ser- viram para erguer conventos e praças de touros. Não sabes talvez o que eram no ocidente as praças de touros, e é bom que o não saibas, para não mareares por qualquer maneira a ideia sublime que formas da humanidade.» Extracto de uma das cartas de Terramarique ao sábio Policosmo sobre Portugal, in Lisboa no ano três mil, Cândido de Figueiredo, Frenesi, Lisboa, 2003, p. 21 O grau de civilização mede-se pelos espectáculos... Entrevista a Manuel Pisco PÁG. 08 Teatro para todos PÁG. 1 1

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infer nal que apla udir á, grita mor rer. Tere i med o pelo eram no ocid ente as praç as de tour os. Não sabe s « Excê ntric os, e de pouc o juízo era mais do que uma não sairá vivo dest e anel de espí rito com o o está ediá vel, não sabe que nuo, igno rant e tamb e Port ugal , in Lisb oa no ano três mil, ta uma port a para que o não saiba s, para é só seu, entr e a vida ém, inoc ênci a irrem um capo te, em para ergu er conv o atra vess a a corr desc anso . O tour a Man uel 1

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A imoralidade

de um sofrimento inútil

Ano: 2010 . nr 06 . Mês: Julho . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço0,01 €

07.10 NR

06

www.jornalosul.com

«O touro entra na praça. Entra sempre, creio. Este veio em alegre corre-

ria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à

liberdade. Animal tonto, in

génuo, ignorante também, inocência irremediável, n

ão sabe que

não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem

descanso. O touro atravessa a correr a praça, olha os “tendidos” sem

perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim

arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em

dois segundos acha-se do outro lado, era uma ilusão, julgava investir

contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais do que uma

nuvem. Em verdade, que mundo vê o touro?» (…)

«O touro vai morrer. Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade,

para merecer o título de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do

matador, que renuncie à brutalidade, que saia da vida tão puro como nela entrou,

tão puro como viveu, casto de espírito como o está de corpo, pois virgem irá

morrer. Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante

das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um

certo momento, embora continue vivo, já não existe, entrou num

sonho que é só seu, entre a vida e a morte»

José Saramago (Prémio Nobel da Literatura 1998)

« Excêntricos, e de pouco juízo. As riquezas africanas e asiáticas,

que poderiam ter impulsionado as artes e as indústrias, ser-

viram para erguer conventos e praças de touros. Não sabes

talvez o que eram no ocidente as praças de

touros, e é bom que o não saibas, para não

mareares por qualquer maneira a ideia

sublime que formas da humanidade.»

Extracto de uma das cartas de Terramarique

ao sábio Policosmo sobre Portugal, in Lisboa no ano três mil,

Cândido de Figueiredo, Frenesi, Lisboa, 2003, p. 21

O grau de civilização mede-se pelos espectáculos...

Entrevista

a Manuel

Pisco

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Viver na Natureza (e ter o ICNB como vizinho)Suponho que viver no meio

da natureza seja sonho para muita gente. E como não? Pense-se apenas na solidão. No sossego. Na serenidade. Na vista sobre um horizonte infindável, banhado pela per-feição que só um pôr-do-sol pode oferecer. Imagine-se agora apreciar tudo isto na companhia encantadora de Scarlett Johansson. (Suspiro. Duplo Suspiro.) Nem o paraíso poderia ser tão perfeito.

A isto se chama ter uma ‘vida simples’. Viver da terra e para a terra. Nos entretan-tos, ler prosa selecta. Muito selecta. Pensar. Escrever. A Scarlett e um copo de vinho. Pensar mais um pouco. Ler idem. Receber, ocasional-mente, um ou outro amigo mais próximo. Uma pessoa sonha com isto e sente-se um verdadeiro Henry David Tho-reau. Na verdade, uma pessoa sonha com isto e deseja real-mente ser Thoureau.

Infelizmente, e como Thou-reau bem sabia, nem nessa ideia simples estamos com-pletamente livres de poderes transcendentes que, fatal-mente, nos relembram a dura e miserável realidade de que este é um luxo a que já ninguém tem direito. Que o diga quem, até há bem pouco tempo, tinha habitação no Par-que Natural da Arrábida, junto à Aldeia da Piedade, perto de Azeitão, e a viu ser demo-lida coerciva-mente pelo ICNB (Instituto da Con-servação da Natu-reza e da Biodi-versidade). Apa-rentemente , e desta vez, foram três casas. Uma, a de Ana Merelo. A outra, a de Mário Pereira Alves . Pessoas a quem, e como se não bastasse, será exigido o pagamento das ope-rações, assim como, suponho, uma nota escrita de agradeci-mento pelo distinto trabalho executado.

Mas eu falei de três demo-lições? Erro meu. A mais dra-mática, a do agricultor Flo-rentino Duarte e família, foi

poupada por ordem do tribu-nal. A filha que com ele reside está grávida de oito meses. O

tribunal, aqui, foi caridoso, numa dádiva pouco habi-tual. Não obs-tante ser esta uma dádiva com data de e x p i r a ç ã o . Mal a criança nasça a demo-lição avança. O h o m e m , sem meio de sustento senão a sua quinta, será mandado para debaixo da ponte com

um novo neto nos braços. É como se diz: vida nova, casa nova.

O ICNB, pelo seu Presidente Tito Rosa, a cara da vergo-nha, não se condói e explica que as casas foram constru-ídas ilegalmente, há mais de 20 anos, numa zona protegida. Repito o pormenor: constru-

ídas há mais de 20 anos. O sr. Rosa explica que é a lei. E que a lei é para todos. Ainda que venha que com uma vida de atraso. Porque, de facto, de uma vida de atraso se trata. O Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, o qual regula as construções no espaço protegido, só foi aprovado em 2005. Minu-dências, claro. Antes da imple-m e n t a ç ã o d o mesmo, já exis-tiriam «algumas regras de cons-trução» (sic), as quais, suponho, foram estipuladas a olho e ao sabor do vento. Inacre-ditável como, na altura, ninguém estava esclarecido.

Durante todo este tempo (20 anos, minha gente, 20 anos), Florentino Duarte, na sua ino-cência, ali foi gastando as eco-nomias a montar uma vida

enquanto os poderes públicos não eram vistos nem apareci-dos. Agora isso de nada vale. O ambiente, claro, está em primeiro lugar. Os vizinhos, incrédulos, leigos em direito ambiental, não compreen-dem como é possível que meia

dúzia de casas sejam demo-lidas quando, nas suas tra-seiras, pedrei-ras esventram pacientemente, faz anos, uma S e r r a p r o -teg ida pe lo mesmo ICNB. Não duvido que seja uma ques-tão de priorida-des. Ou melhor, de facilidade. O ICNB, que nunca serviu

nada nem ninguém senão a sua própria idiotice, acha que são estas habitações quem com-prometem fatalmente o Parque Natural. E perante isto, claro, o drama humano não passa de

uma coisa secundária e sem importância. Obviamente.

Felizmente, há um vislum-bre de salvação. Os poderes autárquicos, que, aparente-mente, nunca se preocuparam antes com o assunto, acorda-ram, como é hábito, perante a tragédia iminente e já pro-meteram intervir no sentido de impedir a demolição da casa do sr. Florentino Duarte. Admito que não tenho grande fé. O ICNB está convicto das suas beneméritas acções na conservação da natureza e da biodiversidade. Aliás, que estas incluam a redução a um monte de escombros um con-junto de habitações que a nada nem a ninguém afectam, des-truindo umas quantas vidas pelo caminho, na tentativa de aprimorar uma paisagem límpida sobre uma pedreira, não deixa de ser uma metá-fora perfeita para o excelso trabalho que todos os dias o ICNB luta por realizar.

Tiago Apolinário BaltazarEstudante Universitário

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“ Os vizinhos, incrédulos, leigos em direito ambiental, não compreendem como é possível que meia dúzia de casas sejam demolidas quando, nas suas traseiras, pedreiras esventram paciente-mente, faz anos, uma Serra protegida pelo mesmo ICNB.

“ que estas incluam a redução a um monte de es-combros um con-junto de habitações que a nada nem a ninguém afectam, destruindo umas quantas vidas pelo caminho, na tentati-va de aprimorar uma paisagem límpida sobre uma pedreira

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O Festival e as Bandas FilarmónicasNos dias 25, 26 e 27 de

Junho passados, Setúbal foi palco, uma vez mais, do Fes-tival de Bandas Filarmóni-cas da Cidade de Setúbal. O evento, que vai na sua 6ª edi-ção, trouxe à margem do Sado mais de 400 músicos, de 10 formações de distintas regi-ões do país. O público con-firmou o seu apreço pela ini-ciativa com uma expressiva participação nos seus diver-sos momentos.

O festival experimentou já diferentes modelos, tendo, desde a edição de 2009, encontrado o formato que mais o projecta, mais valo-riza as bandas e maior expres-são de público encontra. Este evento é um projecto da Socie-dade Musical Capricho Setu-balense, que foi prontamente acolhido pela Câmara Muni-cipal de Setúbal. Estava assim criada a parceria que se vem consolidando ano após ano e que assume como objec-tivos centrais a promoção da música e da música filar-mónica em particular, dar a conhecer o trabalho desen-volvido por estas forma-ções musicais e fortalecer os laços de cooperação e ami-zade entre as bandas, os músi-cos e as colectividades que se dedicam ao ensino e à divul-gação da música.

No âmbito das práticas cul-turais, as bandas filarmónicas, em Portugal, são um produto do século XIX. Para o com-preender, há que recuar um pouco no tempo.

No final do Antigo Regime o absolutismo marcava a Europa. A pro-dução cultural era, assim, cen-tralizada. A par-tir de 1750 surge a e m e r g ê n c i a de uma cultura urbana. Nas prin-cipais cidades da Europa, a classe média urbana desenvolve uma prática de sepa-ração do espaço religioso do pro-fano. Criam-se os espaços públicos de sociabilidade e

abre-se o espaço doméstico, à imagem do que a aristocra-cia praticava desde a Idade Média. Em Portugal, toda-via, há uma grande limitação ao encontro público fora do contexto religioso, pelo que a sociabilidade se desenvolve no espaço doméstico, o que abre uma nova realidade para as actividades culturais.

A Igreja perde rendimentos que lhe permi-tam assegu-rar uma pro-dução cultu-ral de ponta, passand o a garantir ape-nas a liturgia t radic ional . Simultanea-mente desa-parecem as ordens reli-giosas, sub-sistindo uni-

camente as mendicantes e as assistencialistas. Dá-se o

desaparecimento sucessivo dos ducados. Com as revolu-ções liberais, desenvolve-se, cada vez mais, uma cultura urbana, difundindo-se as bibliotecas, a literatura de cor-del, a música urbana. O Estado e a Igreja reduzem significa-tivamente o mecenato cultu-ral, pelo que na maior parte dos países europeus esta fun-ção foi assumida pela grande burguesia urbana. No nosso país, assim não aconteceu. A rápida ascensão desta classe não lhe permitiu apropriar-se das ferramentas necessárias a um gosto cultural sofisticado e contrariamente ao que se verificou generalizadamente pela Europa, não chamou a si essa responsabilidade.

Em meados do século XIX existe, em Lisboa e, de algum modo, no Porto uma elite fechada que acompanha e está a par do que de melhor se faz em Paris, em Londres ou

em Berlim. Embora o território nacional continue a caracteri-zar-se por uma prática cultu-ral rural, associada às colhei-tas e às estações, nas cidades do país afirmase uma elite bur-guesa local – os donos das fábri-cas, das terras, das casas – que enri-quece muito rapi-damente, con-quanto nem sem-pre de forma legal, já que por vezes associados ao tráfico de escra-vos. Começam a copiar o que vêm em Lisboa e no Porto e aparecem deste modo alguns equipamentos, como os teatros de modelo italiano, algumas bibliotecas, associações. Na impossibi-lidade de formar músicos, e consequentemente orquestras, fora de Lisboa, por iniciativa

da média burguesia urbana, começam a formar-se bandas filarmónicas, que beneficia-ram de ampla disseminação no séc. XIX e durante a primeira

República. As bandas filar-mónicas e as colectividades a elas asso-ciadas foram e continuam a ser estrutu-ras de cultura que imprimi-ram a descon-centração de equipamentos culturais e a democratiza-ção do acesso

ao ensino da música, num país onde a concentração da acti-vidade e dos equipamentos culturais mantém caracterís-ticas próprias de um regime absolutista.

Nuno Marques

Sociedade Musical Capricho Setubalense - 1928

“ O festival experimentou já diferentes modelos, tendo, desde a edi-ção de 2009, encon-trado o formato que mais o projecta, mais valoriza as bandas e maior expressão de público encontra.

“ o trabalho desenvolvido por estas formações mu-sicais e fortalecer os laços de cooperação e amizade entre as bandas, os músicos e as colectividades que se dedicam ao ensino e à divulga-ção da música.

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No passado dia 30 de Junho do corrente ano foi apresentada, na última Assembleia Munici-pal de Setúbal, a Plataforma pela Ética Animal de Setúbal, conhecida por “ES Animal”. Um texto fundamentado chamava a atenção para a importância da defesa dos animais, da salva-guarda do património natural, salvaguarda e recuperação do património construído em mau estado e/ou risco de derrocada, e investimento no Centro Histó-rico, entre outros aspectos julgados de importância fundamental para a cultura e história de Setúbal. E para a problemática das “touradas na Feira de Santiago”. O texto e o vasto grupo de pessoas que o apresenta-ram, consideram as mesmas como actos de barbá-rie, um espectá-culo condenável e desumano, sem respeito pela dignidade de outros animais, os “touros”, que são apenas um pouco diferen-tes dos “Homens”.

Tantas outras tradições, ao longo da história, no complexo processo de evolução das men-talidades, têm vindo a evoluir no sentido do respeito por todos os seres humanos, e, em Setúbal, a rea-lidade não é seme-lhante à dos con-celhos vizinhos da Moita, Montijo e Alcochete, nem detém arreiga-das práticas tauromáquicas.

Assim, não se compreende esta necessidade de recupera-ção de uma dita tradição tau-romáquica, cujas tradições mais profundas estão liga-

das aos rituais naturais, sob influência do meio ambiente em que se envolve.

Assim parece ao comum dos cidadãos que gosta da sua terra, que quer vê-la crescer e pro-gredir. Para quê fazer a tourada na Feira de Santiago?

Quando há tanto por fazer, os parcos recursos financeiros existentes deverão ser melhor canalizados.

O desenvolvimento de Setúbal deverá assentar nas suas riquezas naturais, como sustentáculo do desenvol-vimento eco-nómico real, e não na pro-moção de um espectáculo cruel e desi-gual entre o “homem e o animal”.

Os valores dos setuba-lenses estão na

Serra da Arrábida e no Estuá-rio do Sado, veículo cultural, histórico e religioso, susceptí-vel de promoção de emprego e riqueza, designadamente atra-vés das actividades económi-cas tradicionais como o pas-toreio, a produção de quei-jos e vinho, da gastronomia da região, apanha de ostras

e da pesca, da sobrevivência da comuni-dade de roazes corvineiros, o turismo, e de

todo ecossistema da região da Arrábida que urge defender, promover e salvaguardar.

Estamos num período da his-tória, em que a crise económica/financeira nos deverá levar a uma profunda reflexão sobre o

que pretendemos para a nossa região e aproveitando as nefas-tas circunstâncias para dar o salto em frente e mudar o para-digma económico de desenvol-vimento industrial para outro, com base nos recursos natu-rais, promovendo o desenvolvi-mento sustentável numa região única e que se encontra num processo de candidatura a patri-mónio mundial pela Unesco.

Ao contrário de assistirmos,

mais ou menos passivamente, à destruição deste tesouro, deveríamos investir na salva-guarda do mesmo. A cultura e a tradição dos setubalenses dizem muito mais que qual-quer tourada que tenha exis-tido na Feira de Santiago.

Se existiu alguma tradição de touradas em Setúbal, nin-guém as poderá comparar com as tradições culturais, históricas e religiosas que estão no ser e

sentir mais profundo de uma comunidade que ama a Arrá-bida e o Sado e que vê, com tristeza, estes a serem destruí-dos diariamente pela acção das pedreiras, da co-incineração e por uma política económica errada para a região. Para tou-rada já nos basta esta!

Fernanda Rodrigues

Associação dos Cidadãos pela Arrábida e Estuário do Sado

Touradas na Feira de Santiago, não obrigado

“ Se existiu alguma tradição de touradas em Setúbal, ninguém as poderá comparar com as tradições culturais, históricas e religiosas que estão no ser e sentir mais profundo de uma comunidade que ama a Arrábida e o Sado

“ Para quê fazer a tourada na Feira de Santiago?

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Em 1982 é editado Memo-rial do Convento que alcança um êxito que ultrapassa fron-teiras e torna conhecido José Saramago, então com 60 anos, à escala internacional. Antes, entre outros, já tinha escrito Levantado do Chão (1980) e Viagem a Portugal (1981), dois livros fundamen-tais na sua obra. Nessas três obras inscreve-se o dispo-sitivo narrativo que torna a escrita de Saramago impar.

Uma mesma frase é parti-lhada por diversos persona-gens, incluindo o narrador. A cons-trução sintáctica é reconstruída por uma pon-tuação, de vír-gula flutuante, que subverte as regras gramáti-cas para se sub-meter ao ritmo social da l in-guagem. As nar-rativas são cons-truídas a partir de uma obser-vação profunda da condi-ção humana, de uma pers-pectiva histórica que ques-tiona ideologicamente o que a historiografia oficial dá por adquirido. Desloca o centro da acção para um colectivo, tipificado em personagens, que emergem de uma mul-tidão anónima que, assim, fica nomeada. Os Mau-Tempo, Baltasar Sete-Sóis, Blimunda, o sr. José, Joana Carda, Joaquim Sassa e tan-tos outros que ganham iden-tidade para melhor repre-sentarem o todo, de onde sobressaem sem nunca a ele se subtraírem.

Os episódios ocorridos e registados pela realidade, no seu sentido mais plano e

estrito, adquirem uma nova significação por se tornarem relevantes as forças mate-riais que fazem a História. Por mostrar os indivíduos agindo à base dos seus dramas pes-soais, dos seus interesses e conflitos de classe.

Essa insubordinação con-tra a história oficial, que já existia em Levantado do Chão ou Memorial do Convento, continua no Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo e será

retomada com novo enqua-dramento na V i a g e m d o Elefante ou e m C a i m o s e u ú l t i m o romance.

E n t r e o Evangelho e a Viagem, o d i s p o s i t i vo narrativo de S a r a m a g o inflecte a par-t i r de Jan-

gada de Pedra. A trama dos romances e/ou novelas centra-se e, contraditoria-mente, dilui-se no questionar o presente. É o que sucede em Todos os Nomes, Ensaio sobre a Cegueira, Ensaio sobre a Lucidez ou as Intermitências da Morte.

O que nunca se perde é uma depurada saga-cidade que se plasma num dis-curso literário de uma criatividade fulgurante, sem nunca a lite-ratura se subordinar à polí-tica, mas sem deixar de ser política.

Com Saramago, a língua

portuguesa alargou a estrada da sua inesgotável beleza, ganhou uma fama mundial

que não tinha. Justamente d is t inguido com o Nobel da Literatura, em 1998, o discurso de aceitação do prémio anun-cia a inten-

ção de tornar mais conhe-cido Portugal e a literatura de língua portuguesa, mas também o de dar mais visi-bilidade às causas dos opri-

midos, da justiça social e da paz, sempre com lúcida mili-tância comunista.

José Saramago, um escri-tor que só no último terço da sua vida é reconhecido, vê alguns dos seus roman-ces entrarem para o cânone da literatura mundial. Fazem parte dos livros que a huma-nidade deve necessaria-mente conhecer, deve ler com urgência para encon-trar, para aprofundar a sua dimensão. Apesar disso, nunca deixou de ser um escritor fundamente enrai-zado na sua pátria. Viagem

a Portugal é uma frondosa sementeira onde se colhem os saberes que irá espalhar pela sua ficção. Um livro de expandido amor pelas ter-ras lusitanas que deveria estar nas estantes de todos os portugueses.

Haveria um dia, há sempre um dia, em que se deixa de estar, em que não se escrevem mais romances, nem mais se confraterniza com os amigos, nem se cruza uma esquina do acaso para apertar a mão de um desconhecido que não nos conhece, mas nos leu. Nesse dia começa a caminhada para a nuvem habitada por outros escritores, igualmente notá-veis, a quem a memória atira para um progressivo esque-cimento que nem o Nobel conquistado consegue pro-teger. Não podemos deixar que esses dias se aproximem de José Saramago, com ele outros resgataremos. Não podemos deixar que o nevo-eiro comece a invadir essa escrita plantada num terri-tório político e social que é nosso e que proporciona a todos o sublime prazer da lei-tura que lavra o pensamento, tornando-o mais fecundo.

José Saramago continuará a ser lido nas sete partidas do mundo, enquanto o mundo for mundo, para glória da literatura e de Portugal.

Obrigado José Saramago pelos livros que escreveste para todos nós. Obrigado pelo orgulho que sentimos em ser-mos da mesma pátria.

Um obrigado, mais íntimo e pessoal, por termos sido amigos e camaradas. Mais, muito mais que muitos outros alguma vez foram, e que parti-lhámos com tantos outros.

Manuel Augusto Araújo

José Saramago in memoriam

“ O que nunca se perde é uma de-purada sagacidade que se plasma num discurso literário de uma criativida-de fulgurante, sem nunca a literatura se subordinar à políti-ca, mas sem deixar de ser política.

“ A trama dos romances e/ou novelas centra-se e, contraditoriamente, dilui-se no questio-nar o presente.

Estátua do escritor, em Azinhaga do Ribeiro, sua terra natal

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A desvalorização do escudo funcionou de uma forma mais eficaz do que a mais feroz pauta proteccionista; é ver-dade que Alfredo da Silva soube aproveitar, como pou-cos, esta oportunidade, por-que o Barreiro, com as condi-ções naturais naquela altura, lhe ofereceu o progresso dos transportes no Rio e no Comboio, que foram para a CUF as grandes vias rápi-das do futuro. Serviram para o escoamento dos seus pro-dutos, com a eficácia e rapi-dez que os negócios de uma empresa em crescimento no século XX exigia, bem como a defesa dos seus interesses pessoais, das suas ambições e do futuro que assegurou aos seus herdeiros.

É verdade que eu, jovem operária, quando cheguei ao mundo do trabalho em 1969, encontrei refeitórios e comida de qualidade, cre-ches tecnicamente equipadas e com pessoal especiali-zado (onde muitas gerações de crian-ças foram criadas), serviços de medi-cina no trabalho apoiados por téc-nicos competentes e com preparação científica, colónia de férias para os filhos dos traba-lhadores, escolas primárias e pro-fissionais, centros educativos, bairros habitacio-nais, onde viviam muitos dos seus trabalhadores. Recordo que tinham prioridade, no acesso a casa da empresa, os trabalhadores que apresentas-sem o cartão de Legionário ou da PIDE e que fossem casados pela Igreja Católica. O Hospital da CUF era o melhor hospital, mas não devemos esquecer que operários com saúde produzem mais e muitos adoeciam a tra-balhar. A “despensa” era a loja onde tudo se vendia exclusiva-

mente para os trabalhadores do grupo CUF, mas esta organiza-ção do trabalho e da vida dos trabalhadores e suas famílias,

era um verda-deiro carros-sel de retorno e c o n ó m i c o . Os trabalhado-res recebiam o ordenado por um lado, mas devolviam-no integralmente à procedência, no pagamento dos géneros alimentícios, do vestuário, da bicicleta, da mota, da renda de casa,

da água, da luz, etc.. Eram exigidos ritmos de

quantidade e organização do trabalho muito violentos e muito duros, particularmente do trabalho feminino, crono-metrado ao segundo; havia um profissional que tinha a função de cronometrar todos os movimentos realizados no exercício da nossa função, que se colocava junto de cada tra-balhador durante 15 minutos, para multiplicando as unida-des produzidas nesse tempo,

pelo horário de trabalho diário, fixar a quantidade individual da produção diária exigida a cada trabalhador. Considerei na altura, e hoje continuo a considerar, esta forma de orga-nização do trabalho vexante e indigna, porque era é a roboti-zação absoluta dos trabalha-dores, não havia tempos des-contados para beber água, ir à casa de banho, ver as horas, enfiar a máquina quando aca-bava ou se partia o fio, limpar o suor, etc.

Quero aqui dar um exem-plo: um saco, chamado in -diano, pesava 900 gramas, uma chapa de sacos eram 30. A costureira fazia 6 chapas por hora, ou seja 180 sacos e eu tinha que os ir buscar num carro por mim puxado, e colo-car na bancada das 6 costureiras, que eu tinha a responsabilidade de alimen-tar. Ou seja, eram 1080 sacos que eu carregava por hora. Por dia eram 8640, o que

representava que eu tinha que manusear diariamente 7776 kg, porque a semana de traba-lho era de seis dias, eu carre-gava por semana 46.656 kg”.Os horários eram muito rígi-dos (de entrada eram à meia noite e meia hora, às sete, às oito, às nove e às dezasseis horas). Se o pessoal operá-rio chegasse 3 minutos atra-sado ao portão, descontava 15 minutos e, durante o ano de trabalho, só podia che-gar 4 vezes atrasado, mesmo

que fossem só 3 minutos, porque à 5.ª vez tinha uma repreen-são registada. Na altura, os trans-portes públi-cos não eram o s a c t u a i s e ninguém tinha carro.

H a v i a n o s locais de trabalho muito pó, muita poluição, muito calor no verão. Um exemplo: os

trabalhadores das máquinas no feltro, na tecelagem, na fia-ção, na sacaria, nas carpetes, etc., ao fim de uma hora de trabalho, tinham mais de 2

dedos de altura de cotão de juta em cima dos ombros.

O que mais me surpreen-deu foi ter encontrado dentro da fábrica ao lado do refeitó-rio 3, um quartel da GNR, com soldados que todos os meses se renovavam no batalhão, militares com os quais todos os dias me cruzava no refei-tório, porque quando os tra-balhadores chegavam para almoçar às 11H30, já lá esta-vam comendo os soldados da GNR. A CUF do Barreiro é a única fábrica que teve uma força militarizada dentro das suas instalações. Todos os tra-balhadores reagiam a esta pre-sença indesejada e que diaria-mente era ostensiva e provo-catoriamente imposta, e que para todos representava uma afronta ultrajante à dignidade dos trabalhadores e ao respeito pelo trabalho. Nunca aceitei, não aceito aquela afronta e imposição da acção da mili-tarização do trabalho na CUF do Barreiro; não esqueço o ambiente de repressão, de más condições de trabalho, da intimidação, do autorita-rismo e de discriminação de que todos os trabalhadores eram vítimas, (como exem-plo, só os trabalhadores eram revistados à saída).

Não posso deixar de dizer para memória futura que tra-balhei na fábrica da CUF do Barreiro, que tinha lá dentro das suas instalações um quar-tel da GNR, que durante cerca de 40 anos vigiou, intimidou, reprimiu e humilhou muitos milhares de trabalhadores, homens e mulheres e que também matou (este quartel só depois do 25 de Novembro de 1975, deixou de estar dentro dos muros da fábrica).

Não posso deixar de aqui recordar o medo que sig-nificava ver os cavalos da GNR a cavalgarem nas ruas do Barreiro. Esta memória não é apenas minha, é uma memória colectiva, da popu-lação do Barreiro e de todos aqueles que foram trabalha-dores da CUF, porque estes cavalos tinham a função de demonstrar a força da inti-midação e da repressão.

Ercília TalhadasJurista

“Contributos da Memória Operária, para a História do Trabalho” II

No Centenário da Repú-blica, hoje no século XXI, todos temos a obriga-ção de trazer ao debate a memória da vida vivida no mundo do trabalho no século XX.

“ CUF do Bar-reiro, que tinha lá dentro das suas ins-talações um quartel da GNR, que duran-te cerca de 40 anos vigiou, intimidou, reprimiu e humilhou muitos milhares de trabalhadores, homens e mulheres e que também matou

“ Os trabalha-dores recebiam o or-denado por um lado, mas devolviam-no integralmente à procedência, no pa-gamento dos géneros alimentícios, do vestuário, da bicicle-ta, da mota, da renda de casa, da água, da luz, etc.

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Guilherme Augusto de Vasconcelos Abreu

Guilherme Augusto de Vas-concelos Abreu nasceu no dia 20 de Maio de 1842 e deixou-nos a 1 de Fevereiro de 1907.

No contexto da literatura portuguesa é descrito como fazendo parte da Geração de Setenta, conhecida pela con-tribuição original e histórica que deu à vida cul-tural em Portu-gal, sob múlti-plos aspectos.

O meu pro-pósito é ofere-cer um vislum-bre acerca da sua biografia intelec-tual, preenchendo uma lacuna que existe na história do Orientalismo em Portugal, bem como iluminar o enorme signifi-cado da contri-buição monu-mental de Gui-lherme de Vas-concelos em relação à Sans-critologia, no contexto do Orientalismo no Ocidente.

Entre 1850 e 1970, aproxi-madamente, o Orientalismo em geral e a Sanscritologia em particular, atraíram alguns jovens estudantes da Univer-sidade de Coimbra.

Basílio Telles é disso tes-temunha afirmando na sua obra “Do Ultimatum ao 31 de Janeiro”: “Logo após, desen-terradas de sob os escom-bros do tempo, como fósseis

gigantescos de sob as cama-das terciárias, monumentos veneráveis de velhas civiliza-ções desaparecidas, surgem os Vedas, Puranas, Mahabarath, Ramayana, as Leis de Manu, Panchtantra, Avesta, etc”.

De igual modo, Eça de Quei-r o z , a m i g o íntimo de Vas-concelos de Abreu, infor-ma-nos das preferências intelectuais da referida Gera-ção de 70, na Universidade de Coimbra: “Conhecer os p r i n c í p i o s das civiliza-ções primiti-vas, consti-tuía , então, em Coimbra, um distintivo de superio-ridade e ele-gância inte-

lectual. Os Vedas, o Maha-barath, Ramayana, o Zend-Avestha, eram os livros sobre os quais nos precipitávamos, com a gula tumultuosa da mocidade que devora.”

Vasconcelos de Abreu começou, então, por estudar a Literatura Sânscrita, debru-çando-se cuidadosamente sobre as traduções francesas e alemãs de algumas das mais importantes obras da cultura Indiana, como Ramayana, Mahabarath, o livro das leis

de Manu e Baghvad Gita.Na sua obra “Mosaico Lite-

rário”, publicada em Coim-bra, tomámos conhecimento do modo como Vasconcelos de Abreu iniciou um estudo sério, tanto da língua como da cul-tura sânscrita.

Embora aluno de Matemá-tica na Universidade de Coim-bra, dedicava-se intensamente ao estudo da sanscritologia, de tal modo que Abel Bergaigne escreveu, em 1875, de Paris a Vasconcelos de Abreu para que

fosse para Berlim estudar com Martin Haug, que tinha experi-ência na Índia, nomeadamente em Poona e Bombay.

Vasconcellos de Abreu desenvolveu todos os esfor-ços possíveis, no sentido de convencer o Governo de Por-tugal da importância cultural e administrativa do estudo da Sanscritologia. Feliz-mente, foi bem sucedido, o que podemos constatar pela carta da Secretaria dos Negó-cios Estrangeiros:

“… Manda sua Magestade El Rei…

Considerando quão extra-ordinário e fértil tem sido para o conhecimento das ori-gens históricas dos povos da Europa e da parte principal da Ásia o estudo da língua Védica e do Sânscrito…

Considerando que estas lín-guas são a chave dos problemas mais recônditos da Philologia, e melhor guia que o Grego e o Latim para o conhecimento da estructura, connexão histórica e correlação das línguas de toda a família Aryana ou Indo-eu-ropeia, a que pertence a Por-tuguesa, e que o Sânscrito é a língua dos homens mais con-siderados entre os Índios e a das leis, instituições e litera-turas d’estes…

Considerando que Portugal não pode fundar já estabeleci-mentos scientíficos, a exemplo da Allemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos da América, deve, porém, suprir, a exemplo da Itália, estas necessi-dades da civilização actual, sub-sidiando em país estrangeiro os indivíduos que mais vocação mostrem por estas disciplinas, para depois poderem vir fomen-tar estudos. (…) Há por bem que o bacharel em Matemática, Gui-lherme Augusto de Vasconcellos Abreu, passe a seguir na Alle-manha, em França, e se o jul-gar necessário, em Inglaterra, os cursos de Philologia Oriental.”

Anil SamarthHistoriador

A sua descoberta cultural da Índia

“ Conhecer os princípios das civi-lizações primitivas, constituía, então, em Coimbra, um distintivo de supe-rioridade e elegância intelectual. Os Ve-das, o Mahabarath, Ramayana, o Zend-Avestha, eram os livros sobre os quais nos precipitávamos, com a gula tumultu-osa da mocidade que devora.”

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graças à generosidade das gentes de setúbal - Fonte nova e zona ribeirinha - a edição deste jornal Foi possível.

a solidariedade constrói-se.

obrigado!

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O Sul - É compatível o ensino da cidadania numa escola profissional?

Manuel Pisco – Erro, erro, erro de percepção. A educa-ção para a cidadania deve ser transversal em todas as áreas de formação. Eu digo que está errada a formulação da pergunta porque trans-pira de preconceitos. Há a percepção geral que uma EP serve para fazer técnicos. Mas veja-se, por exemplo a escola profissional Bento de Jesus Caraça, que serviu de modelo a muitas outras, porque escolheu para seu patrono um pedagogo, que pugnava sempre para a for-mação integral do indivíduo. Nós também procurarmos essa formação integral do indivíduo. É preciso formar o técnico, mas igualmente e antes de mais, formar a pes-soa e formar o cidadão. Só há educação se houver a for-mação integral do indivíduo. É o saber, saber ser e saber fazer. Sem o nível de cultura adequado ninguém pode ser um bom técnico.

S - Mas como ensinar cida-dania num currículo tão sobrecarregado de áreas técnicas?

MP - Em todas as unidades curriculares tem de existir um ensino integrado. Contudo, todos os cursos têm uma uni-dade disciplinar que se chama “Integração”. Essa disciplina pretende fazer a integração de todos os valores culturais, preparar o aluno para a sua integração social e profissio-nal, o que pode não passar sis-tematicamente nas disciplinas científicas e técnicas. Ao con-trário do se pensa por vezes, é nas escolas profissionais que há espaço para procurar atin-gir o objectivo da formação integral das pessoas.

S - Já era assim anterior-mente?

MP - No início de 2002, quando assumi a direcção da EPS, verifiquei que havia, ao nível da gestão pedagó-gica, uma orgânica repeti-tiva daquilo que era o para-digma da escola secundária. Não é uma crítica, pois não

nos podemos esquecer que a escola funcionou nos primei-ros 10 anos dentro da Escola Superior de Tecnologia do Ins-tituto Politécnico de Setúbal. Nunca teve, portanto, nesse período, autonomia orgâ-nica e uma verdadeira auto-nomia pedagógica. Tudo era gerido em função da “disciplina” e das disponibili-dades dos pro-fessores de cada disciplina e foi necessário reo-rientar a gestão pedagógica para o perfil do aluno e perfil de curso. N ã o d e v e m o s pensar que ensi-nar é apenas “dar a matéria”. Ensinar é, antes de mais, edu-car o jovem.

Quando assumi a direcção, conjuntamente com a minha equipa, alterámos procedi-mentos e processos, acabá-mos com situações estra-nhas de alunos que tinham certificação profissional e não tinham diploma escolar, que

faziam estágios finais sem terem os planos curriculares concluídos e onde nem sequer as classificações dos alunos eram lançadas nos “Livros de Termos”. Nos primeiros 10 anos, a EPS funcionou sem instalações próprias, com as turmas dos cursos profissio-nais a funcionar nas salas da Escola Superior de Tecnologia (a quem temos que agradecer o acolhimento que permitiu o arranque da EPS) e com as turmas de Aprendizagem a funcionar nas instalações do próprio IEFP, que financiava e acolhia no seu espaço essa formação, feita em nome da EPS. É a isso que o PS, numa tentativa constante de parti-darizar esta instituição, chama de “período de reconhecidos méritos gestionários...” Mas veja-se o que são as coisas: durante os primeiros 10 anos, a EPS nem sequer teve exis-tência física. O edifício onde hoje funciona a Escola foi

i n a u g u r a d o em Dezem-bro de 2001, em cima das eleições que o PS perdeu. Eu assumi a Administra-ção da Funda-ção em Março de 2002 e foi desde então que teve que

se concluir a obra, refazendo as fundações do edifício, uma boa parte das infraestruturas e toda a obra de arranjos exte-riores, porque tudo tinha sido feito à pressa, para inaugurar a tempo das eleições... Mais, foi sob a minha administra-ção que teve que ser refeito e concluído todo o processo de reconhecimento da Fun-

dação que no tal “período de reconhecidos méritos ges-tionários” tinha ficado aban-donado. No início de 2002, não havia um só professor no quadro de efectivos – estavam todos com contratos a prazo ou de prestação de serviços. Hoje, há 20 professores do quadro permanente, com a sua carreira estabilizada. Os funcionários administrativos, mesmo na mesma categoria, cada um tinha um vencimento diferente, mesmo com os mais antigos a ganhar menos que os mais recentes, sem se per-ceber com que critério. Tudo isto teve que ser regularizado, mas o PS, só vê “méritos ges-tionários” no tempo em que todos os membros dos cor-pos sociais tinham cartão PS e os recrutamentos de pessoal seguiam o mesmo critério. Mas nós não nos impressioná-mos com isso. Quem está, está e é com esses que trabalha-mos. Com a minha adminis-tração o partidarismo nunca foi critério. Todos os que tra-balham na Fundação o podem testemunhar e basta ver quem já passou e quem está no Con-selho de Administração, com pessoas que têm no seu curri-culum elevadas responsabili-dades assumidas nas áreas da formação profissional, mesmo com nomeações de governos socialistas.

S - Não virão, as escolas secundárias com ensino pro-fissionalizante, a fazer exacta-mente o mesmo que até aqui tem sido o papel das escolas profissionais?

MP - Espero bem que sim. A integração da vertente pro-fissional da rede pública de ensino é o reconhecimento formal e oficial da validade

“É preciso formar o técnico, mas igualmente formar a pessoa e formar o cidadão” entrevista ao Director da Escola Profissional de Setúbal

Manuel Pisco, Director da Escola Profissional de Setúbal, assume-se como um filho da revolução do 25 de Abril. As suas experiências de vida confirmam-no, pois é no mundo sindical que encontrou a sua plena realização. Na CGTP/IN, onde trabalhou na área de formação de quadros, colabora na criação da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, ainda no seu início, em 1989, che-gando a ser, posteriormente, seu director. É em 1989, na qualidade de verea-dor da oposição, que propõe a Mata Cáceres a criação de uma escola profis-sional em Setúbal, proposta essa prontamente rejeitada e só aceite quando outras câmaras socialistas tomaram a iniciativa. Comprometido solidaria-mente com esta cidade e as lutas sindicais e dos trabalhadores nos seus anos mais duros, os do desmantelamento do tecido industrial, no seu trajecto sin-dicalista, no Sindicato das Indústrias Eléctricas do Sul e Ilhas, na União dos Sindicatos de Setúbal e na CGTP-IN, sempre trabalhou nas áreas da formação de quadros, educação e formação profissional. No primeiro mandato de Car-los de Sousa, em 2001, vindo da presidência da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, naquela altura a maior do país e com a Presidência da Assem-bleia Geral da Associação Nacional de Escolas Profissionais, assume a direcção da Escola Profissional de Setúbal, em simultâneo com a vereação dos Recur-sos Humanos.

“ Ao contrá-rio do se pensa por vezes, é nas escolas profissionais que há espaço para procurar atingir o objectivo da formação integral das pessoas.

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“É preciso formar o técnico, mas igualmente formar a pessoa e formar o cidadão” entrevista ao Director da Escola Profissional de Setúbal

do ensino que temos prestado ao longo dos anos. Durante muitos anos os governos, fos-sem mais à esquerda ou mais à direita, todos reconheceram a validade do ensino pro-fissional. No entanto fun-cionou sempre com numerus c lausus , ou seja, um limite para o número d e a l u n o s que o Fundo Social Europeu pagava. Uma estupidez, porque sempre se viu que ficava mais barata uma turma de ensino pro-fissional que uma turma da escola pública. No entanto, iam reconhecendo a sua mais-valia, porque tinha taxas de aproveitamento muito superiores ao ensino regu-lar e taxas de empregabili-dade, mercê da relação com as empresas, esmagadora-mente melhores.

S – Será que o ensino pro-fissionalizante nas escolas secundárias trará consigo e s s e s a l t o s í n d i c e s d e empregabili-dade?

MP – Não sei se traz – e tam-bém não quero fazer críticas ao trabalho de outros – mas que há condi-ções mais difí-ceis para obter estes resulta-dos, é preciso reconhecer. Um dos receios das escolas profis-sionais é que esta experiência no ensino regular não venha a ter os mesmos resultados e que, por isso, possa vir a contami-nar a imagem que existe de alto índice de empregabilidade e da excelência no ensino técnico que as escolas profissionais detêm. Os índices de empre-gabilidade não dependem só do trabalho do professor, que tem de dar aulas. Mas a empre-gabilidade implica a saída da escola, pois implica a audi-ção e a comunicação estreita com as empresas, a adequa-ção permanente dos programas

e o acompanhamento perso-nalizado ao aluno, da forma-ção em contexto de trabalho. Não basta dar conhecimentos técnicos. O conhecimento téc-

nico rapidamente se adquire e rapi-damente perde actualidade. É pre-ciso leccionar com o objectivo de dar as competências culturais e rela-cionais ao aluno, para que este se integre com faci-lidade nas empre-sas. Não sei se as

escolas secundárias têm condi-ções organizativas para serem capazes de tudo isto.

S - Será que o ensino pro-fissionalizante serve para diminuir o abandono esco-lar?

MP - As escolas profis-sionais e as formações de dupla certificação contribu-íram para o decréscimo das taxas de abandono escolar e melhoria dos resultados. Os cursos profissionais sempre tiveram melhores resulta-dos no aproveitamento dos

alunos e regres-são do aban-dono. Quando os números são todos mistura-dos na estr u-tura pública de ensino, os resul-t a d o s g e r a i s melhoram, dando melhores estatís-ticas. Mistura-se maus resultados com um sector

com bons resultados e, assim, faz-se a média subir.

S - Qual a média de empre-gabilidade da EPS?

MP - Podíamos dar núme-ros fabulosos, como 60% no primeiro ano, 70% no segundo ano após terminar o curso. Mas, com a generalização dos cursos profissionais e os tempos de crise, não creio que isso seja o mais importante. O importante é que a EPS acom-panha as carreiras dos seus ex-alunos, indicando-lhes opor-tunidades e redireccionan-do-os, sempre que possível. Todavia, os Gabinetes de Inte-

gração Profissional, financia-dos pelo IEFP, não foram apro-vados para a EPS nem para o IPS, mas sim para outras enti-dades com níveis de eficácia duvidosa, retirando-nos a pos-sibilidade de utilizar algumas verbas justamente destinadas ao que fazemos todos os dias. Hoje em dia, porém, muitos dos alunos seguem para cur-

sos superiores, pois muitos dos que concorrem a esta institui-ção já são dos melhores no 9.º ano de escolaridade. A EPS não somente é uma escola local, mas sim uma escola regional, com alunos que vêm de todo o distrito, porque escolhem esta escola. Apesar do alargamento da oferta de cursos profissio-nais, este ano já temos o dobro

dos alunos inscritos face ao ano passado.

S - Atendendo a tudo que foi dito, porquê criar os cur-sos de assistente de arqueó-logo e assistente de conserva-ção e restauro, num período de crise económica?

MP - Nós fazemos uma oferta formativa em função da neces-sidade ou saturação da oferta educativa e da procura do mer-cado de trabalho e esta é uma das áreas que demonstra maior carência. Em primeiro lugar a nossa preocupação sãos os alu-nos, pois em primeiro lugar a escola trabalha para eles, com uma perspectiva de oportunida-des no futuro. Em segundo pen-samos nas necessidades orga-nizativas e nos professores que devemos ter. Não há uma oferta estruturada nas áreas da cultura e há espaço para essa oferta. Nas novas formações que vamos iniciar, nas áreas de animação, 2D e 3D, já temos alunos em excesso, mas no caso dos assis-tentes de arqueologia e conser-vação e restauro nem tanto. È uma formação nova cujo inte-resse ainda não foi bem per-cepcionado, mas vamos insistir, pois o que é normal nas novas formações, é que quando não abre no primeiro ano, abre no segundo. Não pretendemos for-mar técnicos só na área da tec-nologia pura e dura, mas tam-bém técnicos na área da cultura. A indústria da cultura é geradora de riqueza mais que suficiente para se ter em conta e os qua-dros intermédios são pratica-mente inexistentes.

S - Podemos esperar uma cidade mais cosmopolita com esta aposta?

MP - Não podemos pen-sar que a EPS vem resolver o problema, mas, sem dúvida, vem dar o seu pequeno con-tributo. Creio que, futura-mente, devemos apostar no teatro, artes performativas e nalgumas outras áreas. Nós temos artistas e outros profis-sionais nessas áreas. Temos de saber extrair o seu contributo. Há condições para uma oferta estruturada para as áreas cul-turais. Este é o desafio.

José Luís Netojosé[email protected]

“ É preciso lec-cionar com o objecti-vo de dar as compe-tências culturais e relacionais ao aluno, para que este se in-tegre com facilidade nas empresas.

“ A integração da vertente pro-fissional da rede pública de ensino é o reconhecimento formal e oficial da validade do ensino que temos prestado ao longo dos anos.

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A pouco mais de quinze dias de ter completado, no dia 20 de Junho, 89 anos, morreu, no passado dia 6 de Julho, Matilde Rosa Araújo (1921 - 2010), uma das grandes refe-rências da literatura portu-guesa contemporânea. Faleceu enquanto dormia, aos primei-ros alvores do dia, de forma delicada e suave, como tudo o que fez ao longo da vida.

Escritora, professora, peda-goga, tradutora, colaboradora da imprensa nacional e regio-nal e de revistas literárias de referência, defen-sora dos valo-res da cidadania, Matilde apôs a sua assinatura e colaborou acti-vamente em mui-tas causas, sobre-tudo naquelas em que a criança era o centro, tendo, entre outros, inte-grado os grupos fundadores do Comité Portu-guês da UNI-CEF e do Instituto de Apoio à Criança, IAC. Anteriormente, em Outubro de 1974, integrara a Comissão de Honra das manifestações do “Dia Mun-dial da Infância", ao lado de outros nomes da vida social e cultural de então.

Após ter feito os estudos primários e liceais em casa, Matilde Rosa Araújo começou

a frequentar, em 1941, o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Uni-versidade de Lisboa. Aí conhe-ceu, entre outros, Sebastião da Gama, com quem desen-volverá laços de profunda amizade, vivos até ao fim. É como estudante que, em 1943, conquista o primeiro lugar no concurso literário “Procura-se um Novelista”, organizado pelo jornal O Século, com a novela A Garrana. Em 1945 ganha o primeiro prémio dos Jogos Florais Universitários

com os contos reunidos sob o título Estrada s e m N o m e . Com O Livro da Tila, can-tigas peque-ninas (1957) e Desenho e Poesia (1958), Matilde inau-gura a sua pro-dução poética para e sobre a infância. A sua bibl iograf ia

compreende quase meia cen-tena de títulos, entre poesia, conto, novela, obra pedagó-gica e ensaística. Assina textos em cerca de trinta antologias e obras colectivas. São inúme-ros os prefácios e posfácios que a sua generosidade levou a escrever. Três dos seus títu-los estão editados em Braille. Somam centenas os artigos

que publicou em jornais e revistas.

A literatura para a infância e juventude ocupou grande parte da sua vida, não só ao nível da produção, mas tam-bém da reflexão e da acção. Entre muitas acções que poderiam aqui ser evoca-das recorde-se o facto de Matilde ter integrado, em 1979, o grupo que transmi-tiu a Manuela Eanes, esposa do Presidente da República de então, as suas preocupa-ções pela “situação de des-favor a que estava votada, no nosso país, a literatura para crianças”. Desse encon-tro resultou a criação de um grupo de trabalho para tentar responder às ques-tões e preocupa-ções entretanto levantadas e que passou a reu-nir-se nos Ser-viços de Biblio-tecas Itinerantes e Fixas da Fun-dação Calouste Gulbenkian. Daí resultaram os Encontros Gul-benkian de Literatura Infan-til, tão importantes ao longo das últimas décadas.

Sem medo de consequên-

cias, assumindo consciente-mente riscos e responsabi-lidades, as suas acções em defesa da literatura não se prenderam apenas com a lite-ratura de recepção infantil. Em 1962, Matilde foi um dos membros da direcção da Socie-dade Portuguesa de Escritores que nesse ano tomou posse, sob a presi-dência de Aquilino Ribeiro, direcção que se manteve em funções até 1964. Em 1970 voltou a integrar o grupo que esteve na origem da recons-trução da mesma, após o seu encerramento por razões polí-

ticas, de todos sobejamente conhecidas.

Matilde Ro - sa Araújo viu a sua obra rece-ber alguns dos mais reconhe-cidos prémios literários por-tugueses, foi t raduzida e

premiada fora de portas, foi homenageada pela Socie-dade Portuguesa de Autores, recebeu uma condecoração

das mãos de Jorge Sampaio, mas aquilo que realmente a recompensava era saber que as crianças liam os seus tex-tos e gostavam deles. Os sorri-

sos e os olhos brilhantes de emoção das crianças e -ram as suas "medalhas" mais impor-tantes.

Talvez se possa já con-siderar o a - no de 2010

um annus horribilis para as letras portuguesas, tanto pelo número de escritores que nos deixaram como pela sua relevância nacional e inter-nacional. Um deles é Matilde Rosa Araújo, sem dúvida uma figura maior da nossa litera-tura, legando-nos uma obra que irá ultrapassar a barreira do tempo porque fala do ser humano e de sentimentos que são intemporais e uni-versais. O nosso maior tri-buto à escritora será lê-la e divulgar a preciosidade das suas mensagens e a beleza da sua escrita.

Fátima Ribeiro de MedeirosIELT, FCSH - UNL

Evocação de Matilde Rosa Araújo«É a vida! Nasce-se, morre-se, assim como o Sol que, todos os dias, nasce e morre [...].»

in O gato dourado

«O passarinho viúvo sentiu mais frio [...]. Apete-ceu-lhe morrer para ali. Mas elevou-se no ar. E cantou. Como se escrevesse com o bico riscos de tinta roxa no ar frio. Riscos tristes. [...] »

in O passarinho viúvo

“ Faleceu enquanto dormia, aos primeiros alvores do dia, de forma delicada e suave, como tudo o que fez ao longo da vida.“ Sem medo

de consequências, assumindo cons-cientemente riscos e responsabilidades, as suas acções em defesa da literatura não se prenderam apenas com a lite-ratura de recepção infantil. “ aquilo

que realmente a recompensava era saber que as crianças liam os seus textos e gostavam deles.

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O momento em que nos deparamos com uma nova ideia é, com frequência, muito inquietante e, em simultâneo, extremamente estimulante.

Neste paradoxo vive a criação artística; neste paradoxo vive, desde o ano de 1997, o Teatro do Elefante, perante cada novo projecto.

P a r a d o x o de actores e e n c e n a d o r que se tornou f a s c i n a n t e no momento de criar um espectáculo para bebés. Em primeiro lugar, pela sensação de pioneirismo, de encetar uma caminhada em liberdade (quase) total; em

segundo lugar, pela consciên-cia de, finalmente, nos dirigir-mos a todos os públicos, sem quaisquer excepções.

Pois, se fazer teatro é um acto abrangente, do ponto de

vista dos meios, l i n g u a g e n s e recursos envolvi-dos; o teatro para bebés revela-se um acto universal quanto ao público destinatário.

Num primeiro tempo dirige-se a um especta-dor (aliás, pouco comum...), ainda, n o s p r i m e i -ros momentos

da sua vida; num segundo tempo (segundo, mas não de menor importância), pro-põe-se envolver toda a famí-

lia – pais, mães, irmãos mais velhos e avôs –numa parti-lha de experiências significa-tivas entre todas as gerações.

E ele é, também, um convite para educadores e bebés crescerem em con-junto, partilharem vivências, troca-rem histórias, per-sonagens e, sobre-tudo, sensações, sons e outras cum-plicidades.

Com isto, enten-der-se-á com faci-lidade como as inquietações iniciais se cumprem em pra-zer, divertimento e aprendi-zagens.

Prazer porque abrimos uma janela para mais uma parcela do mundo; parcela imensa

como o futuro que cresce diante dos nossos olhos.

Divertimento porque, deste modo, parti-lhamos sor-risos, gestos e estórias com pequenos e graúdos.

Aprendi-zagens por-que, assim, se revelam actos e sabe-res comuns e se desco-brem as mais simples for-

mas de comunicar, na comple-xidade dos sentidos, entre uns e outros –actores e especta-dores– na suprema soberania da sua condição de cidadãos.

Entendemos a fruição da cul-tura como um direito de todas

as idades. Como tal, os espec-táculos surgem naturalmente entre as criações que apre-sentamos. Ao procurar esta-belecer novos elos de ligação com os espectadores, os acto-res do Teatro do Elefante que-rem estar mais perto da festa, transformar o mundo, tantas vezes (ainda) distante, do palco num espaço tão comum com o público quanto possível.

Trata-se, muitas vezes, de uma aturada pesquisa sobre as formas, as linguagens e, sobre-tudo, de experimentação em torno da nossa capacidade de expressão através do corpo, nos silêncios que nos permi-tem também olhar, tocar, chei-rar, ouvir... em suma, sentir.

Fernando CasacaDirector Artístico do Teatro do [email protected]

Teatro para todos

“ (...) se fazer teatro é um acto abrangente, do ponto de vista dos meios, linguagens e recursos envolvidos; o teatro para bebés revela-se um acto universal quanto ao público destinatário.

“ (...) um convite para educadores e bebés crescerem em conjunto, par-tilharem vivências, trocarem histórias, personagens e, so-bretudo, sensações, sons e outras cum-plicidades.

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Fontenova soma e segueA celebrar os 25 anos de

existência, o Teatro Estúdio Fontenova está numa acção cultural intensa, tendo levado até meio do presente ano o espantoso número de qua-tro peças em cena. Foi o caso de “Corte de Luz”, do “Pro-jecto Maria Parda”, a reposi-ção de “Audição com Daisy ao vivo no Odre Marítimo” e, em Junho, “2 meias 1 malha & 1 curta”. Com esta última pretende o grupo homena-gear Anton Tchekhov (1860 – 1904). Já na escolha do autor haveria muito a dizer, pois não se trata de um ilus-tre desconhecido, antes um dos escritores mais impor-tantes para a dramaturgia universal, um dos autores mais fortes e conhecidos da literatura russa. Neto de um liberto, numa família nume-rosa e estigmatizada, fez-se a pulso e a golpes de talento, muitas das vezes entrando em conflito aberto com as elites culturais coevas. Tchekhov é tanto uma referência, como símbolo e metáfora.

A peça consiste em, nas palavras da sinopse facul-tada ao público pelo TEF: “ Um relutante conferencista apresenta-se ao respeitável público com o objectivo de palestrar sobre “Os Malefícios do tabaco”. Apesar da sua boa vontade a palestra desvia-se constantemente para os aspec-tos mais sórdi-dos da sua vida. Partindo do mote condutor pro-porcionado pelo “Os Malefícios do tabaco” inicia-se uma pequena viagem cómi-co-trágica pelas peças em um acto de Anton Tchekhov (Um pedido de Casamento, O trá-

gico à força e O Urso). Com um espectáculo multidiscipli-nar (teatro, cinema e dança) se visitam as peripécias e vivên-cias de um pobre diabo.”

Sem surpresas assistimos a algumas das característi-cas que marcam a estética e a dramaturgia que reconhe-cemos a este grupo de tea-

tro. Decór sim-ples, trazendo para o cen-tro da acção o trabalho do actor. Cenário e acessórios reduzidos ao essencial, forte

polivalência técnica dos acto-res (teatro, cinema e dança) e encenação meticulosamente trabalhada. Nada está a mais,

nada está esquecido e ali os acasos têm sentido. Quanto à peça, temos duas partes cómico-trágicas intercala-das com um drama, dividido em duas partes. E o drama é poderoso, acerca de um homem velho, dilacerado quando se confronta com o que foi a sua vida, quando ref lecte sobre as suas esco-lhas, quando se vê a si mesmo como mestre e marioneta, opressor-opri-mido. Desta feita o TEF faz uma das mais violentas inter-pelações de sempre à classe pequeno-burguesa urbana. Há uma confrontação feroz e esquizofrénica com o povo, com quem deixaram, pelo

menos no tempo do drama, de haver laços de solidariedade. É o olhar nu sobre o mal que os medos e a ignorância provo-cam, um manifesto desapie-dado contra a mesquinhez, a

cobardia, a indiferença, a absten-ção, o adia-mento, que têm levado a v ida de c a d a u m ,

das comunidades e do país, ao lamaçal onde nos encon-tramos. O TEF marcou a linha divisória, vincou o fosso que divide intelectuais e povo, entre os que sabem por-que conhecem e os que não sabem porque nem querem saber. É um olhar cru, des-

pido da misericórdia cristã e da solidariedade comunista. Por isso mesmo é também espelho para as consequên-cias das não-escolhas, das não-inscrições. É, por fim, um arraial de pancada sobre a endémica falta de rasgo e de génio. Note-se que até o texto do flyer destinado ao público, com subtis erros gramaticais e ortográficos, impensáveis a quem ganha o pão a modelar e representar a língua portu-guesa, visa demonstrar isso mesmo às “vida cinzentas e mesquinhas da pequena burguesia (…) olhai-vos um poucochinho e vêde até que ponto a vossa vida é má e sombria”.

Em palco, Eduardo Dias e José Lobo, fizeram jus ao esta-tuto que lhes reconhecemos. Talentosos jovens actores, coube-lhes o duro papel do drama, em excelentes desem-penhos. Mérito também para a Sofia Belchior/Dançarte pela coreografia. Surpresas muito agradáveis de Carla Garcia (Um pedido de Casamento e O Urso) e Tiago Cruz (O Urso), actores ligados a esta produ-ção específica. Nota positiva à curta de António Aleixo e Pedro Soares/Low Cost Films, com a actuação de José Maria Dias. Sobre todos, gostaria de salientar o regresso de Gra-ziela Dias ao palco, numa per-formance de forte presença, que vi com extremo agrado. Por fim, algo que transpareceu para o público e que enobrece o TEF, foi o facto de se ter sen-tido e visto o gozo, o prazer, que os actores conseguiam ter ao representar. Tal é raro, tal permite momentos únicos, tal dá origem a beleza.

José Luís [email protected]

“ Decór simples, trazendo para o centro da acção o trabalho do actor.

“ Tal é raro, tal permite momentos únicos, tal dá origem a beleza.

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Setúbal, talvez não seja só um dormitório dela própria. Para lá das sonolências, fervilham ideias, actividades, gente que sonha e faz e luta. Talvez Setú-bal queira muito mais e, na sua ambição, ensandece e torna-se cega para os muitos que aqui vão germinando e tecendo poe-sia, pintura, romance, história, música, dança e canto.

Parabéns a todos os que não desistem, não se deixam aba-ter por uma proximidade lis-boeta que também só epifenó-micamente está acordada.

Parabéns a António Gal-rinho, a António Trabulo e a José Luís Neto.

António Galrinho obteve uma menção honrosa no Pré-mio Literário Miguel Torga/ Cidade de Coimbra, edição de 2010 com o seu romance O Homem que fazia Círculos. Aqui deixamos uma sinopse desse romance:

« Um turista espanhol, inte-ressado por arte-sanato, perdeu-se numa viagem pelo interior de Portu-gal, indo parar a uma aldeia que não existia no seu mapa de estra-das. Aí depara com pessoas, lendas e tradi-ções peculiares, pelas quais se apaixona. O homem dos círcu-los é um dos aldeãos. Oriundo de uma família bastante abas-tada, ainda jovem trocou a vida auspiciosa que lhe estava reser-vada pela vida simples a pacata da aldeia onde escolheu viver como artesão.

O romance relata as vivências que o turista teve com a aldeia e seus habitantes, em especial o homem dos círculos, através

de uma realidade ficcionada, por vezes de contornos inverosí-meis, chegando a pisar o sur-real. Nele se lança um olhar, ora bem-humorado, ora dramático, sobre uma certa portugalidade, ainda viva nalguns locais, mas tão ignorada e desprezada em muitos noutros.

Ao longo dos oito capítulos, que apresentam surpresas umas atrás das outras, existe um fio condutor em torno do respeito pelas pessoas, pelos animais e pela natureza. Trata-se de uma visão completamente descom-prometida de tendências morais ou políticas vigentes, mostrando que se pode pensar e agir fora dos cânones formatados e limi-tadores que a sociedade oferece e impõe.»

António Trabulo recebeu o Prémio Fialho de Almeida, rela-

tivo ao ano de 2009, atribu-ído pela Socie-dade Portu-guesa de Escri-tores e Artistas Médicos ao seu romance R e t o r n a d o s – O Adeus a África.

«É sabido que as duas grandes guer-ras que marca-ram a primeira

metade do século XX fizeram mudar de dono vastas regiões do mundo. No final da primeira, caiu o antigo império otomano. No termo da segunda, as velhas potências coloniais foram reco-nhecendo a independência aos imensos territórios que admi-nistravam na África e na Ásia.Milhões de colonos brancos dei-xaram as possessões em que tinham sepultado pais e avós e regressaram aos países de ori-gem. O Reino Unido, a Holanda,

a França e a Bélgica tiveram de acolher e integrar populações numerosas com hábitos de vida modificados. Quem vinha, trazia na bagagem frustração, amar-gura e sentimentos de perda.

Os portugueses foram os últimos a voltar. Agarrados à terra e propensos a mis-turar sangues e ideias, terão sofrido mais. Alguns chega-ram a sonhar com Pátrias novas, outros brasis.

Dando seguimento ao pro-jecto iniciado com “Os colo-nos”, António Trabulo voltou a África. “Retornados” é um tra-balho que aborda, com o rigor possível numa obra de ficção, a tragédia de quase meio milhão de portugueses que se viram envolvidos numa volta da His-tória, à semelhança de mari-nheiros arrastados por uma onda imparável.

O neurocirurgião desbrida de forma desassombrada uma das feridas mal cicatrizadas do nosso passado recente.

Fá-lo com a imaginação, o sentido de equilíbrio e a qualidade da escrita a que já habituou os seus leitores. O romance“Retornados” relata de forma descomplexada e tão exacta como possível o nosso conturbado pro-cesso de desco-lonização. »

José Luís Neto viu aprovada, na Universidade de Salamanca, com distinção e louvor, no final de Abril, a tese de douto-ramento intitu-lada «A Idade do Ouro Branco: o contributo da arqueologia pós-medie-val para o conhecimento de Setúbal, uma cidade portuá-ria portuguesa.»

O autor defende que a ocupa-ção humana é precoce e signifi-cativa numa região que foi alvo de investigações arqueológi-cas desde o Século XVI. Por isso

mesmo é uma das zonas de Por-tugal que mais trabalhos cien-tíficos tem tido, com estações que exercem um poderoso fas-cínio nos investigadores, como a cidade romana de Tróia, identi-ficada desde o Século XVI como a antiga Caetobriga.

A tese divide-se em duas partes. A primeira procura desvendar as intenções dos investigadores que procura-ram definir as raízes e a his-tória das populações que aí vivem, bem como das ins-tituições que patrocinaram estes estudos, para além de se procurar ver qual o papel das narrativas históricas na cons-trução da imagem colectiva.

A segunda parte procura, através de um estudo de arque-ologia pós-medieval, observar a dinâmica económica, social e mental do período mais impor-tante da história do povoado, onde Setúbal procurava dispu-tar o estatuto de segunda cidade do país, rivalizando com o Porto. Gerada pela riqueza da explo-ração e exportação do sal, essa Idade do Ouro foi ficcionada

posteriormente pelos investi-gadores locais. Submetendo as metodologias arqueológicas e as da história a meros instru-mentos utilitá-rios, consegui-mos vislumbrar as dinâmicas de

funcionamento de uma cidade ibérica, católica e comerciante, cujo modelo-padrão foi disse-minado e copiado em África, na América e na Ásia.

PARABÉNS A SETÚBAL!

Anita VilarSubdirectora de O SUL

Três setubalenses em destaque

“ Talvez Se-túbal queira mui-to mais e, na sua ambição, ensandece e torna-se cega para os muitos que aqui vão germinando e tecendo poesia, pintura, romance, história, música, dança e canto.

“ Parabéns a todos os que não desistem, não se deixam abater por uma proximidade lisboeta que também só epifenómicamen-te está acordada.

Menina lendo, Vladimir Ezhakov, s/ data, óleo sobre tela, 30x48 cm

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Sul - Como é que a pintura surge na tua vida? Rui Ventura - Eu acho que ela não surgiu, mas sem-pre existiu. A diferença é que eu nunca a deixei mor-rer. Quando somos crian-ças, todos nós desenhamos, pintamos e desenvolvemos o nosso lado mais criativo. À medida que crescemos vamos perdendo essas capa-cidades abstractas e cria-tivas. Ao pintar mantenho vivo esse meu lado criativo que é fundamental para a minha vida.

S - Quando é que começaste a pintar?RV - A pintura sempre esteve presente na minha vida, mas foi em 2004 que decidi come-

çar a partilhá-la com o Mundo. Foi em 2004 que organizei a minha primeira exposição e a partir daí tenho organizado diversas exposições a solo e participado em diversos pro-jectos colectivos.

S - Qual foi o teu primeiro trabalho?RV - F o i u m c o n j u n t o de pequenas te las , fe i-tas enquanto estudava, ou melhor, em vez de estudar, que contavam uma história em 24 horas com diferen-tes personagens e que con-tinham elementos que liga-vam toda a obra. No total eram 24 telas e as mesmas foram expostas com Lupas para se poder ver em por-menor cada tela.

S - O que te inspira?RV - O Mundo. As viagens que faço, a música que ouço, as pessoas que conheço, o conhecimento adquirido, a sociedade de consumo, a memorabilia, o mundo das marcas e dos cartoons. É difí-cil apontar uma área de ins-piração apenas.

S - Como é que saltaste do anonimato para as grandes exposições em Lisboa, Porto, NY?RV - Acho que continuo no ano-nimato. As exposições nesses locais acabam por ser o reco-nhecimento do meu trabalho.

S - O projecto mais marcante da tua vida? RV - A minha filha.

S - Novos projectos?RV - Estou a preparar novos trabalhos para uma nova exposição em que o tema será a Máfia. Mas não posso adiantar muito mais.

S - Trabalhas na área da Comu-nicação, tens uma vida muito agitada, como é que ainda tens tempo para pintar?RV - “O tempo é o que se faz com ele”, e, de facto, tento utilizar o tempo que dispo-nho da melhor forma. É ver-

dade que o meu trabalho é muito absorvente, mas nor-malmente pinto à noite, uso o silêncio e a calma da noite para criar.

S - Como descreverias as tuas obras?RV - São intensas, são con-templativas e são o que quem as vê quiser.

S - Q u a l o t e u m a i o r sonho?RV - O meu maior sonho. Poder viajar por todo o Mundo e pin-tar em cada um desses locais.

Marta Louçada Coelho

“A pintura sempre esteve presente na minha vida”

Rui Ventura nasceu em Setúbal, mas podia ter nas-cido em qualquer parte do mundo. Espírito livre e criativo, é no silêncio da noite que pinta os seus quadros e executa as suas obras com uma ligação perfeita ao nosso imaginário, transpondo ícones da sociedade actual, marcas publicitárias sobejamente familiares, cartoons e tudo o que o inspira.

A sua apresentação ao mundo deu-se em 2004 quando organizou pela primeira vez uma exposi-ção, o projecto Urban Pegasus, na Galeria Abraço, em Lisboa. Também participou na exposição A life from Portland, na galeria da EURO RSCG. Este ano já expôs no MUDE, Museu do Design e da Moda, em Lisboa, e participou em Maio na iniciativa Castilho Fashion Street, Spring Art, no parque exterior da Rua Castilho onde podem ver-se actualmente os seus trabalhos numa espécie de “galeria urbana”. Nas suas obras utiliza posters, sobreposição de peque-nas imagens fragmentadas que funcionam com um equilibrio perfeito entre as colagens e as, muitas, pinceladas que dão vida às suas telas. Estas contam pequenas histórias urbanas e actuais num estilo street art muito próprio.

As viagens, as pessoas, as suas próprias vivências, marcam os seus trabalhos e não deixam ninguém indi-ferente. Licenciado em Comunicação Social, trabalha na área do Marketing e da Publicidade, mas é nas artes plásticas que dá asas à imaginação e são as suas telas uma das formas mais genuínas de comunicar com o mundo. Um privilégio que não é para todos.

entrevista a Rui Ventura

ACADEMIA PROBLEMÁTICA E OBSCURA

rua DEPuTaDo HEnrIQuE carDoso nr 34 , sETÚBal . http://primafolia.blogspot.com . [email protected] . TEl: 96 388 31 43

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A partir de dia 9 de Julho encontrarás as Problemáticas habituais na Rua de Fran Paxeco n.º 176 - 178, mais Obscuras que nunca, pois estará aberta todos os dias, das 19 às 24 horas. Um prédio de e para a cultura, a Academia de sempre, a questionar desde 1721 contigo, connosco.

a questionar desde 1721

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FICHA TÉCNICA:Propriedade e Editor: Prima Folia - Cooperativa Cultural, CRL Morada: Largo António Joaquim Correia, nr 7 1º Dto, 2900-231 Setúbal Telefone: 96 388 31 43 NIF: 508254418 Director: António Serzedelo Subdirectores: Anita Vilar e José Luís Neto Consultor Especial: Fernando Dacosta e Raul Tavares Conselho Editorial: Catarina Marcelino, Daniel Correia, Fernanda Rodrigues, Hugo Silva, Leonardo da Silva, Luís Paixão, Maria Madalena Fialho, Patrícia Trindade Coelho, Paulo Costa e Regina Bronze Directora de Arte: Rita Oliveira Martins Consultor Artístico: João Raminhos Morada da redacção: Rua Fran Pacheco n.º 176 1.º andar 2900-374 Setúbal E-mail: [email protected] Site: http://www.jornalosul.com Registo ERC: 125830 Depósito Legal: 305788/10 Periodicidade: Mensal Tiragem: 10.000 exemplares Impressão: Tipografia Rápida de Setúbal Morada da tipografia: Travessa Gaspar Agostinho, nr 1 - 2º - 2900-389 Setúbal Telefone: 265 539 690 Fax: 265 539 698 E-mail: [email protected]

“Que força é essa amigo?” A rua da Misericórdia é o

cartão de visita do Bairro Alto, pedaço de uma Lisboa cosmo-polita, vanguardista, meta-moderna e contra-cultural. Passado e presente mistu-ram-se de tal forma que é quase impossível destrinçá-los. Os eléctricos atraves-sam os seus caminhos pré-determinados, os turistas calcorreiam-na, os maçóni-cos adoptaram-na como sua, com museu, instituições e imóveis que na sua história se inspiraram, os noctívagos de há muito lhe pertencem, bem como lá está, sempre, a leitaria da Dona Matilde, húmus popular onde assenta toda esta misógina constru-ção social e cultural. O lotea-mento do bairro data de 1513. Em 1527 já tinha 408 edifícios e 1600 habitantes, na maioria ligados a actividades maríti-mas. Nos inícios de seiscentos existia um povoamento dife-rente: clero com conventos, nobreza com quintas e palá-cios austeros, e várias ruas, com prédios que chegavam ao quinto andar, e casebres, bem como actividades comer-ciais e outras, consequência da atracção fortíssima exer-cida pela Companhia de Jesus. No final do século XVIII aí se instalaram as prostitutas e seu séquito relacio-nal. No século XIX, decai com evidência o nível social do Bairro Alto e, com ele, se instala o fado. O final do século XX trás um novo cariz – o turismo nacional e estran-geiro , com as casas de fado e restaurantes típicos. Uma paisagem de cultura urbana nocturna, de cosmopolitismo internacionalista, fruto da

integração europeia e conti-nuísta da natureza inclusiva do tecido social e mental da

cidade de Lis-boa. A par sur-gem centros de cultura, lojas caras e cria-tivas, vivên-c i a s f u g a -zes, momen-tos de fusão entre o antigo e o pós-mo-derno, que só ali se casam. À portuguesa, ali se reúnem os

múltiplos ingredientes, com um ligante imaterial que a todos congrega.

Lá, não expõe apenas quem

quer, mas quem tem algo de original, criativo e de quali-dade; quem é, na sua essên-cia, verdadeiro artista. Foi a consciência disso mesmo que me levou à dita rua da Misericórdia, ao imponente edifício da Asso-ciação 25 de Abril, para ver Colec-tivo SSS. Essa exposição conta com Rita Fra-zão, Guilherme Almeida Ribeiro, Jaime Raposo, para além de um natural de Setúbal, Fran-cisco Noá. Sobre Noá não há muito a dizer que já não tenha sido sublinhado. Confesso a

minha admiração pelo mesmo, já exposta em outros artigos, onde o apelidei de artista nas trincheiras da periferia, que

encerra todas as incongruên-cias da guerri-lha do quoti-diano de vida d o s s u b ú r-bios. Porém, este espanto perante a sua obra é mais v a s t o . P o r exemplo, Fer-nando Baptista

Pereira, acerca da sua pro-dução plástica, diz-nos que: “raras vezes deparei com uma tão radical irredutibilidade do eu à própria ideia de arte, à

própria obra, ao próprio gesto que a produz.”

O artista que se revela nesta apresentação a um dos públi-cos mais exigentes do nosso país está muito diferente daquele que arrebatou, sem qualquer contestação possí-vel, o primeiro prémio do 1.º Concurso de Artes Plásticas da RESARTE. Trata-se de um jovem artista talentoso, com um estilo próprio e cheio de potencialidades. As obras de então, parecem agora esbo-ços ingénuos do que outrora se revelava. As quatro peças que estão na A25A são bem distintas. A sua dimensão foi condensada, a expressividade foi potenciada, a comunicação tornou-se poderosa e eficaz, num novo conjunto de obras explosivas, onde a crueldade e fealdade humana se aliam à redenção e à beleza que todos os seres encerram, na encar-nação da “tragédia sublime”. Perturbantes e hipnóticas, há nelas um eco comum ao que nos comove nas cavalgadas de Wagner, nas radicalidades de Nietzsche; emanam um sen-tir Faustiano. Há o risco, há uma fronteira, e há que saber reconhecer quem a ultrapas-sou. A linguagem plástica de Noá universalizou-se. Racio-nalista e emocional em simul-tâneo, é agora compreensível em qualquer lugar do deno-minado mundo Ocidental, a quem interpela, a quem ques-tiona e, mais do que nunca, acusa. É justo reconhecer-lhe o seu lugar de direito entre a vanguarda artística portu-guesa, nesse bairro que é o recreio da arte avançada lusi-tana. Para além das mistifica-ções e mal-entendidos, é pre-ciso entender claramente, que com Noá dá-se início à nova revolta dos escravos.

José Luís [email protected]

“ (...) onde o apelidei de artista nas trincheiras da periferia, que encerra todas as incongru-ências da guerrilha do quotidiano de vida dos subúrbios.

“ a expressivi-dade foi potencia-da, a comunicação tornou-se poderosa e eficaz, num novo conjunto de obras explosivas, onde a crueldade e fealdade humana se aliam à redenção e à beleza

Y.F.L.B.A.T.F., Francisco Noá, Impressão em Clear-film, 40 x 50 cm

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possuir o 9º ano de escolaridadenão ter concluído o ensino secundárionão ter mais de 25 anos

condiçÕes de acesso12º ano de escolaridadeQualificação profissional de nível 3

dUpla certiFicação:

ASSISTENTE DE CONSERVAÇÃO E RESTAURO

INSCRIÇÕES ABERTASisenção de propinas de FreQUÊncia

rUa proF. borges Marcelo. 2910-001 setúbaltel. 265 729 920 FaX. 265 729 901 [email protected] www.eps.pt

possuir o 9º ano de escolaridadenão ter concluído o ensino secundárionão ter mais de 25 anos

condiçÕes de acesso12º ano de escolaridadeQualificação profissional de nível 3

dUpla certiFicação:

ASSISTENTE DE ARQUEÓLOGO

INSCRIÇÕES ABERTASisenção de propinas de FreQUÊncia

rUa proF. borges Marcelo. 2910-001 setúbaltel. 265 729 920 FaX. 265 729 901 [email protected] www.eps.pt