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Núcleo 4 – Experimento 3 Daniel Luz e Daniele Veiga O Paticídio Música “pati”. Há duas faixas de segurança cruzando o espaço, como se fosse o meio da rua. Um coro de patis entra. Movem-se de forma igual, como numa coreografia, executando ações patis como arrumar o cabelo, passar batom, lixar as unhas, mexer no iphone 8... Quando a música para, as patis estão todas de costas umas para as outras, e, em uníssono, cumprimentam o público com “Oi, eu sou a Patrícia, mas pode me chamar de Pati!”. Neste momento percebem as outras patis e começam a analisar umas às outras. Pati 1 – Eu sou a Pati! Pati 2 – Eu sou! Pati 3 – Com esse cabelo, querida? Pati 4 – Olha quem está falando, a mal-vestida. Pati 1 – Essa aí deve pegar trem pra vir pra facul! Pati 5 – Um trem, dois ônibus e três metrôs! Pati 2 – Toda trabalhada na condução. Continuam por alguns momentos achando defeito umas nas outras, exageradas no clichê pati. Pati 5 – Meu amor, você já se olhou no espelho? (tira um espelho da bolsa e mostra para Pati4) Pati 6 – Tipo assim, você já se olhou?

Núcleo 4

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Núcleo 4

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Núcleo 4 – Experimento 3 Daniel Luz e Daniele Veiga

O Paticídio

Música “pati”. Há duas faixas de segurança cruzando o espaço, como se fosse o meio da rua. Um coro de patis entra. Movem-se de forma igual, como numa coreografia, executando ações patis como arrumar o cabelo, passar batom, lixar as unhas, mexer no iphone 8...

Quando a música para, as patis estão todas de costas umas para as outras, e, em uníssono, cumprimentam o público com “Oi, eu sou a Patrícia, mas pode me chamar de Pati!”. Neste momento percebem as outras patis e começam a analisar umas às outras.

Pati 1 – Eu sou a Pati!

Pati 2 – Eu sou!

Pati 3 – Com esse cabelo, querida?

Pati 4 – Olha quem está falando, a mal-vestida.

Pati 1 – Essa aí deve pegar trem pra vir pra facul!

Pati 5 – Um trem, dois ônibus e três metrôs!

Pati 2 – Toda trabalhada na condução.

Continuam por alguns momentos achando defeito umas nas outras, exageradas no clichê pati.

Pati 5 – Meu amor, você já se olhou no espelho? (tira um espelho da bolsa e mostra para Pati4)

Pati 6 – Tipo assim, você já se olhou?

Todas tiram um espelhinho da bolsa e botam na cara uma da outra. Elas olham para seus reflexos, surpresas. Analisam por alguns segundos. Percebem que talvez não sejam a Patrícia e ficam confusas.

Semi Pati 1 – Espera... realmente... acho que não sou a pati. Não, não...

Semi Pati 2 – Nem eu. Me sinto até meio...

Semi Pati 3 – Olha pra esse rosto! Nããão... eu definitivamente não sou essa tal pati aí.

Semi Pati 4 – Bom, eu até que sou bonita! Mas inteligente demais pra ser uma rata de shopping.

Semi Pati 5 – Parece que tenho barba. Pati tem barba?

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Semi Pati6 - Tem alguma patrícia aqui, afinal?

Semi Pati 4 - Deve ter.

Semi Pati 2 - Quem?

Semi Pati 6 - E ela acha que é especial?

Semi Pati 5 - Deve achar!

Semi Pati 3 - E quem é?

Semi Pati 4- Nossa, mas que metida! Bem coisa de pati, mesmo!

Semi pati 1– Vamos resolver isso. Abram as bolsas, já! Passem pra cá o RG.

Todas fuçam em suas bolsas e entregam os RGs para Ricardo, que analisa um por um, sobe num bloco e declara:

Ex Pati1/Ricardo – Há uma Patrícia entre nós!

Todos ficam surpresos. “Uma?!” Olham ao redor com desconfiança. De repente ser pati é quase um crime: inverte-se o jogo e ser pati passa a ser um grande defeito, uma vergonha entre os estudantes.

Ex Pati 3/Cecília – Quem é essa Pati arrogante?

Ex Pati 4/Lua – Eu não sou!

Ex Pati 5/Marcelo– Por que não? Como vamos saber? As patis são mentirosas. Não são?

Ex Pati2/Cora – São sim! Eu vi uma pati uma vez! Horrível!

Ricardo – Viu? Você não é cega?

Cora – Gente! É verdade, sou cega! Bom... não existe pati cega, né?

Lua – Ela é cega?

Cecília (para Jota) – Você!

Ex Pati 6/Jota (assustado) Eu o que?

Ricardo – Pati.

Jota – Não. Meu nome é Jota.

Lua – Jota não é nome.

Jota – Qual o teu nome, então?

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Lua – Lua.

Jota – Lua o que?

Lua – Lua. Tipo Luana se o na.

Cecília – Nome pela metade é coisa de pati. “ a Ju, a Cá, a Fê, a Gi...”

Marcelo – É verdade...

Ricardo – Mas como você sabe que teu nome é Lua, e o teu é Jota? Não era pati?

Marcelo – Eu sou Marcelo. Tenho certeza. Acabei de lembrar.

Cora (pra Marcelo) – E você? Por acaso não é a Patrícia? Tem voz de pati.

Marcelo – Então... é que parece que eu sou homem, né! Acho que eu não posso ser a pati.

Ricardo – A gente nunca sabe...

Marcelo– Ó, eu sou Marcelo, prazer, tenho X anos, sou... [fala um pouco sobre si e enquanto fala vai se caracterizando com roupas e acessórios.]

Lua, Jota, Cora, Cecília e Ricardo fazem o mesmo, um de cada vez. Quando Marcelo termina, fica um silêncio estranho; todos estão em círculo, olhando um para a cara do outro com desconfiança.

Cora – Alguém está mentindo!

Cecília – Alguém de marca!

Marcelo – Alguém com frescura!

Jota – Alguém sem noção!

Lua – Alguém capitalista reaça!

Ricardo – Alguém que não trabalha!

Começa uma discussão. Todos se acusam.

[Interrogatório dos alunos – qual seu curso – por que estuda isso – em quem votou nas últimas eleições – quais são as marcas de suas roupas – onde mora – o modelo do celular – se anda batendo panelas ultimamente – qual sua religião – que tipo de música gosta – quais canais assiste – Cuba ou Miami – etc.

Durante o interrogatório algumas acusações serão feitas. Estas acusações são relacionadas com aspectos que teoricamente estejam dentro do universo pati, mas que na verdade podem afetar diversas camadas sócio-econômico-culturais. Uma personagem pode ser, por exemplo, acusada de ser branca, de ter renda de mais de R$ 1.356,00 mensal, de morar numa região “boa” da cidade, da cor dos olhos, do cabelo,

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da marca do tênis/celular, de ter estudado numa escola particular quando criança, de não ser bolsista ou não precisar trabalhar, da ascendência, etc.

Ninguém vai tomar as acusações como totalmente injustas. Ao contrário, irão muitas vezes se sentir culpados, como se ser branco, por exemplo, bastasse para tornar alguém uma pati insensível ao resto da humanidade.

Depois das acusações, Ricardo sobe de volta no cubo.

Ricardo – Parem! Ouçam! Eu sei como podemos resolver isso!

Alguém – Como?

Ricardo – Acho que só há uma maneira!

Alguém – Fala!

Ricardo – Com uma fogueira!

Silêncio. Todos pensam por alguns segundos. Depois se junta em círculo fechado e cochicham brevemente. Em seguida:

Todos – Fogueira!

Partem para a fogueira, arrastam um latão ao centro, talvez, ou vão para algum canto, juntam algumas coisas para “queimar”. A luz vem apenas da fogueira, dando um ar sinistro ao lugar, cheio de sombras, meio ritualístico. Todos estão ao redor da fogueira. Ricardo se aproxima solenemente. Silêncio e tensão. Então ele ergue as duas mãos sobre a fogueira e joga nela todos os RGs. Todos gritam, satisfeitos.

Cora – Queimou?

Lua – Queimou!

Jota – Que alívio!

Cecília – Então ta tudo bem agora, né?

Marcelo – Tudo ótimo! Vamos? Ta na hora da aula já.

Todos saem conversando trivialidades da vida, como se nada tivesse acontecido. Apenas um fica para trás. A verdadeira pati.

Final alternativo 1 – A pati é Ricardo, que espera todos saírem, volta ao registro inicial do coro, se reapresenta como Patrícia para a platéia e sai super pati desfilando na mesma música inicial.

Final alternativo 2 – A pati é Cora, que espera todos saírem, tira os óculos de cega, solta os cabelos, passa um batom olhando num espelhinho, se reapresenta como Patrícia para a platéia e sai super pati desfilando na mesma música inicial.