Nulidade Parcial Sem Redução Do Texto No JECrim

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  • OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS LUZ DA JURISDIO

    CONSTITUCIONAL: A filtragem hermenutica a partir da aplicao da

    tcnica da nulidade parcial sem reduo de texto

    Lenio Luiz StreckProcurador de Justia/ RSPs-Doutor em Direito Constitucional e HermenuticaCoordenador Adjunto e Professor do PPGD da UnisinosConselheiro do Instituto de Hermenutica Jurdica

    1) A LEI N 10.259 AVANOS E RECUOS

    Parece no restar dvidas acerca do fato de que a Lei 10.259/2001, ao

    dispor sobre a instituio dos Juizados Cveis e Criminais no mbito da Justia

    Federal, constituiu considervel avano no campo jurdico brasileiro. Com efeito,

    havia visvel malferimento da Constituio no fato de os Juizados Especiais

    estarem, at o advento da Lei em questo, restritos esfera da Justia Comum.

    No desarrazoado afirmar, assim, que se estava diante de uma

    inconstitucionalidade por omisso relativa. Desse modo, a nova Lei veio corrigir

    essa omisso.

    O preenchimento dessa lacuna no sistema no pode, entretanto, passar

    sem a necessria crtica de cariz hermenutico-constitucional. Com efeito,

    algumas questes exsurgentes da Lei esto acarretando acalorado debate, e com

    toda a razo:

    a) Poderia o legislador ter estabelecido, j na Lei 9.099, como critrio para

    aferio do que seja delito de menor potencial ofensivo, a pena mxima no

    superior a um ano? Do mesmo modo, a recente Lei 10.259 poderia ter ampliado

    o alcance da Lei 9.099, acrescentando, a partir do mesmo critrio utilizado na Lei

    9.099, que so considerados infraes penais de menor potencial ofensivo os

    crimes que a lei comine pena mxima no superior a dois anos, ou multa?

    Indagando de outra maneira: constitucional estabelecer como critrio de

    aferio do que seja menor ou maior potencial ofensivo o montante da pena

    (mnima de um ano na Lei 9.099 e mxima de 2 anos, na Lei 10.259? Ser isto

    to simples assim?

  • 2b) De um modo mais simples, a pergunta que cabe : tem o legislador carta

    branca para estabelecer, sem limitaes no que concerne a teoria do bem

    jurdico, o que seja delito de menor potencial ofensivo?

    c) Quais os limites que a Constituio coloca ao legislador?

    d) Ou esses limites inexistem?

    Afinal, os princpios constitucionais vinculam ou no vinculam o legislador

    ordinrio?

    Tenho que a resposta a tais questes no passa, simplesmente, por uma

    anlise horizontal, intra-sistemtica, mas, sobremodo, por uma reflexo vertical,

    que trabalhe com a parametricidade constitucional. Ou seja, no plano da

    resoluo das antinomias parece impossvel solver a controvrsia.

    2) A NOVA LEI E A MORTE DA TEORIA DO BEM JURDICO: A

    VIOLAO DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL

    De pronto, da simples leitura dos dispositivos previstos nas Lei 9.099

    (art. 61) e 10.259 (art. 2, par. nico) exsurge, perigosamente, o

    aniquilamento (canto de cisne) da teoria do bem jurdico, uma vez que, ao

    estabelecer como tabula rasa que so passveis de transao penal porque

    includos fictamente no rol de infraes de menor potencial ofensivo todos os

    crimes a que lei comine pena mxima no superior a 02 (dois) anos -, o

    legislador tratou isonomicamente bens jurdicos absolutamente discrepantes

    entre si, como o patrimnio individual, o patrimnio pblico, o patrimnio social

    (direitos de segunda gerao), o meio-ambiente (direitos de terceira gerao),

    a moralidade pblica, a honra, etc. Isto para dizer o mnimo! Para se ter uma

    idia, veja-se o extenso rol de delitos que hoje passaram a ser epitetados como

    infraes de menor potencial ofensivo ( so mais cinqenta e seis figuras

    tpicas do Cdigo Penal e mais catorze delitos previstos em leis especiais que se

    agregam s dezenas de infraes j enquadradas na Lei 9.099).

    Situaes como essa, criada pela lei n. 10.259/2001, revelam o momento

    de crise pelo qual passa a teoria do bem jurdico. H uma grave controvrsia

  • 3acerca da extenso e das funes desse conceito, a partir do dissenso surgido

    entre a postura dos penalistas liberais, os quais defendem a funo limitadora do

    conceito, e aqueles de orientao comunitarista-garantista, cuja posio quanto

    funcionalidade desta instituio jurdica assenta-se numa concepo

    organizativa, interventiva e transformadora da realidade social. Esta contenda

    no foi ainda suficientemente percebida e apreendida pelo conceito dogmtico de

    bem jurdico, e este conflito acarreta uma confuso quanto aos bens que devem

    prevalecer numa escala hierrquica axiolgica, para fins de serem relevantes

    penalmente e, portanto, merecedores de tutela desta natureza.

    A transferncia desta controvrsia ainda no resolvida para as prticas

    legislativas e judiciais, faz com surjam produtos como a Lei n. 10.259/2001,

    onde bens jurdicos que claramente traduzem interesses de grandes camadas

    sociais so rebaixados axiologicamente e equiparados a outros bens de

    relevncia meramente individual. Mais uma vez privilegia-se o individual em

    detrimento do coletivo.

    Desde o prisma de um Estado Social e Democrtico de Direito, como o

    insculpido no texto constitucional, no ocioso situar os bens merecedores de

    tutela no terreno do social, uma vez que se apresentam como condies

    qualificadas de funcionamento e amlgama da sociedade.1 Isto necessariamente

    tem seus reflexos na delimitao conceitual de bem jurdico penal.

    O que tem ocorrido concretamente nesse aspecto, e, conseqentemente

    dado margem ao aquecimento do debate entre penalistas liberais e

    comunitaristas, que os ltimos tentam introjetar na concepo de bem jurdico

    penal a idia de que uma srie de valores constitucionais coletivos necessitam de

    proteo penal, enquanto os primeiros, ainda presos s matrizes penais

    iluministas, resistem ao obstaculizar a extenso da funo de proteo penal aos

    bens de interesse da comunidade. Continuam, pois, a pensar o Direito a partir da

    idia de que h uma contradio insolvel entre Estado e Sociedade ou entre

    Estado e indivduo. Para eles, o Estado necessariamente mau, opressor, e o

    Direito Penal tem a funo de proteger o indivduo dessa opresso. Por isso,

    boa parte dos penalistas (que aqui denomino de liberais-iluministas) continuam

    1 Sobre a relao Direito Penal Constituio e Estado Democrtico de Direito, consultar Copetti, Andr.Direito Penal e Estado Democrtico de Direito, Livraria do Advogado, 2000.

  • 4no ano de 2002, em pleno Estado Democrtico de Direito, no interior do qual o

    Estado e o Direito assumem (um)a funo transformadora , a falar na mtiga

    figura do Leviat.

    A partir de tais consideraes e do que se pode extrair de uma anlise da

    tradio jurdica brasileira, razovel afirmar que a dogmtica penal no tem

    condies de legitimar teoricamente um novo conceito de bem jurdico. Isto se

    deve a duas razes fundamentais entre outras:

    a) a primeira, porque suas construes contemporneas tm se baseado

    unicamente em sua (in)coerncia interna, prescindindo de

    fundamentaes e correlaes com as correntes mais gerais do

    pensamento humano, especialmente a filosofia poltica;

    b) a segunda, porque todos os seus juzos e anlises esto profundamente

    marcados por pr-conceitos liberais-individualistas. A partir disto,

    estabeleceu-se uma pax dogmtica em torno de uma concepo

    ultrapassada de bem jurdico que continua a macular os produtos

    legislativos pelo desprezo de uma cultura coletiva, geradora de bens

    desta ordem, que se estruturou no pensamento ocidental desde os

    primrdios do sculo XX.

    Dito de outro modo, os bens jurdicos sujeitos tutela penal no so

    mais somente aqueles que compem o rol de bens que estruturaram o arcabouo

    valorativo constituinte do direito penal liberal-iluminista. A tradio cultural penal

    brasileira j indica a necessidade de proteo de bens sociais desde o Cdigo

    Criminal do Imprio, documento normativo que encerrava em sua segunda parte

    os crimes pblicos, mesmo sendo a Constituio de 1824 uma Carta

    Constitucional de flagrante influncia liberal. Tambm desta forma sucedeu com

    o Cdigo Penal de 1890, onde havia uma srie de bens de interesse coletivos

    tutelados, inobstante a Constituio Republicana pouco privilegiar tais bens. E

    assim surgiu uma tradio normativa de prever a tutela de bens coletivos, de

    interesses pblicos que, indubitavelmente, extrapolam o mbito individual. Essa

    situao normativa ficou ainda melhor estruturada a partir das Constituies

    elaboradas na Era Vargas que inspiraram o Cdigo penal da dcada de 40, ainda

    hoje vigente em sua parte especial.

  • 5Essa a nossa cultura que a partir da CF/88 solidificou-se em termos

    normativos, e parece no haver mais qualquer dvida de que o direito penal

    tambm deve servir de instrumento interventivo, organizador e transformador da

    sociedade. Afinal, no demais lembrar que o Direito e o Estado passaram por

    profundas transformaes no decorrer dos sculos: de um Direito meramente

    ordenador, prprio da tradio liberal-individualista, passamos para um Direito

    de feio promovedora e transformadora, produtos do surgimento da concepo

    de Estado Social e Democrtico de Direito.

    Com efeito, apesar de, somente na condio de indivduos, valorizarmos

    certas coisas, julgarmos certas realizaes como boas, considerarmos certas

    experincias como satisfatrias ou certos resultados como positivos, essas

    coisas, como bem leciona Charles Taylor, s podem ser boas de certa maneira,

    ou satisfatrias ou positivas sua forma particular, por causa da compreenso

    de pano de fundo desenvolvida em nossa cultura.2 E a nossa cultura no deixa

    dvidas de que a concepo de vida boa ou de felicidade dos indivduos dentro

    de uma comunidade necessita da tutela de determinados bens que no

    pertencem particularmente a ningum, mas que so de interesse geral e que,

    portanto, tem um importante papel dentro da estrutura social, muito maior do

    que o atribudo a certos bens individuais. E no h como negar, utilizando as

    palavras de Marilena Chau, que toda cultura e cada sociedade institui uma

    moral, isto , valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido,

    e conduta correta, vlidos para todos os seus membros.3

    Portanto, no aceitvel, nem tampouco vlido, que uma penada

    legislativa equipare bens culturalmente to diversos dentro de uma soluo que,

    provavelmente, face ao quadro de descrdito geral da populao em relao ao

    sistema penal e aos poderes pblicos, venha suscetibilizar ainda mais o

    sentimento de reconhecimento dos indivduos como pertencentes a uma

    comunidade de Direito. O direito penal tambm tem esta funo de, mediante a

    proteo de determinados bens jurdicos gerar este sentimento de

    reconhecimento. E no vacilo em afirmar que a possibilidade de transao

    estendida a bens jurdicos to diversos, atravs de uma artificial isonomia legal,

    2 Cf. Taylor, Charles. Argumentos Filosficos. So Paulo: Loyola, 2000, p. 152.3 Cf. Chau, Marilena. Convite filosofia. 9. ed. So Paulo: tica, 1997, p. 339.

  • 6lentamente ir corromper alguns valores de relevante importncia dentro do

    nosso pacto social e jurdico.

    nesta verdadeira "isonomia" s avessas (ou isonomia ad-hoc) que

    reside, pois, a primeira violao da Constituio Federal, uma vez que, se a

    Constituio estabelece que o Brasil uma Repblica Federativa, que se institui

    como Estado Democrtico de Direito, porque, seguindo o moderno

    constitucionalismo, fica implcito que estamos diante de uma Constituio

    normativa e dirigente. Isto, evidncia, acarreta compromissos e inexorveis

    conseqncias no campo da formulao, interpretao e aplicao das leis. Para

    tanto, parto da premissa e no h nenhuma novidade em dizer isto que a

    Constituio de 1988 dirigente e compromissria, apresentando uma direo

    vinculante para a sociedade e o Estado.4

    Logo, em assim sendo, continuo a insistir (e acreditar) que todas as

    normas da Constituio tm eficcia,5 e as assim denominadas normas

    "programticas", como as que estabelecem a busca da igualdade (reduo da

    pobreza, proteo da dignidade etc), comandam a atividade do legislador,

    buscando alcanar o objetivo do constituinte. Esse comando (ordem de legislar)

    traz implcita - por exemplo, no campo do direito penal a necessria

    hierarquizao que deve ser feita na distribuio dos crimes e das penas. Dito

    de outro modo: o estabelecimento de crimes e penas no pode ser um ato

    discricionrio, voluntarista ou produto de cabalas.

    O manejo do Direito Penal fica, portanto, subordinado como no

    poderia deixar de ser materialidade da Constituio. Criminalizaes e

    descriminalizaes devem estar umbilicalmente ligadas aos propsitos do ncleo

    poltico essencial da Constituio. Nesse sentido, vem a magistral lio de

    Palazzo, para quem, enquanto as indicaes constitucionais de fundo (que

    atuam no sentido da descriminalizao) so, ainda, expresso de um quadro

    constitucional caracterstico do Estado Liberal de Direito, pressupondo,

    outrossim, uma implcita relao de "tenso" entre poltica criminal e direito

    4 Ver, para tanto, Streck, Lenio Luiz. Jurisdio Constitucional e Hermenutica Uma Nova Crtica do Direito.Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002, 712 p., em especial captulo 3, onde aponto para a construo deuma Teoria da Constituio Adequada a Pases de Modernidade Tardia.5 Torna-se despiciendo elencar, aqui, os constitucionalistas cujo posicionamento aponta para a ampla eficciade todas as normas da Constituio (Canotilho, Jorge Miranda, Paulo Bonavides, Celso Antonio Bandeira deMelo, Eros Grau, para citar apenas alguns).

  • 7penal, as vertentes orientadas no sentido da criminalizao traduzem a

    expresso de uma viso bem diversa do papel da Constituio no sistema penal:

    as obrigaes de tutela penal no confronto de determinados bens jurdicos, no

    infreqentemente caractersticos do novo quadro de valores constitucionais e,

    seja como for, sempre de relevncia constitucional, contribuem para oferecer a

    imagem de um Estado empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecuo

    de maior nmero de metas propiciadoras de transformao social e da tutela de

    interesses de dimenses ultraindividual e coletivas, exaltando, continuadamente,

    o papel instrumental do direito penal com respeito poltica criminal, ainda

    quando sob os auspcios por assim dizer da Constituio.6

    O jurista italiano afirma, ainda, que junto s expressas clusulas de

    penalizao (registre-se que, no Brasil, h o comando expresso de penalizar com

    rigor os crimes hediondos, da tortura, do racismo, etc) existem outras que,

    tacitamente, obrigam o legislador a estabelecer penalizaes. Isto porque o que

    se acha no bojo da ordem constitucional e impe a proteo penalstica dos

    valores, mesmo no sendo objeto de uma clusula expressa de penalizao, h,

    de qualquer modo, de ser entendido como parte integrante do que foi

    expressamente afirmado pelo constituinte.7

    Dito de outro modo, no h dvida, pois, que as baterias do Direito Penal

    do Estado Democrtico de Direito devem ser direcionadas preferentemente para

    o combate dos crimes que impedem a realizao dos objetivos constitucionais do

    Estado e aqueles que protegem os direitos fundamentais (honra, por exemplo,

    que clusula constitucional ptrea) e os delitos que protegem bens jurdicos

    inerentes ao exerccio da autoridade do Estado (desobedincia, desacato), alm

    da proteo da dignidade da pessoa, como os crimes de abuso de autoridade,

    sem falar nos bens jurdicos de ndole transindividual como os delitos praticados

    contra o meio ambiente, as relaes de consumo, etc..

    6 Cfe. Palazzo, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal. Trad. de Gerson Pereira dos Santos. PortoAlegre, Sergio Fabris, 1989, p. 103.7 Idem, ibidem, p.105.

  • 82.1) A Constituio como remdio contra maiorias

    No h dvida, pois, que o legislador est umbilicalmente obrigado a

    legislar de acordo com a Constituio, entendida no seu todo principiolgico (seu

    contedo material), sendo os princpios a condio de possibilidade do sentido da

    Constituio (no se olvide que princpios so normas e, portanto, vinculam!).

    Nenhuma lei pode ser editada se qualquer de seus dispositivos confrontar um

    princpio da Lei Maior. por isso que a Constituio um remdio contra

    maiorias, como bem lembra Ferrajoli.

    No moderno constitucionalismo, uma das conquistas reside exatamente

    na nova configurao da relao entre os poderes do Estado. A renovada

    supremacia da Constituio vai alm do controle de constitucionalidade e da

    tutela mais eficaz da esfera individual de liberdade. Com as Constituies

    democrticas do sculo XX, outro aspecto assume lugar cimeiro: trata-se da

    circunstncia de as Constituies serem erigidas a condio de norma diretiva

    fundamental, que dirige aos poderes pblicos e condiciona os particulares de tal

    maneira que assegura a realizao dos valores constitucionais (direitos sociais,

    direito educao, subsistncia, segurana, ao trabalho, etc). A nova

    concepo de constitucionalidade une precisamente a idia de Constituio como

    norma fundamental de garantia, com a noo de Constituio enquanto norma

    diretiva fundamental.8

    Nenhum campo do Direito est imune dessa vinculao constitucional.

    Consequentemente, na medida em que a Constituio o alfa e o omega do

    sistema jurdico-social, ocorre uma sensvel alterao no campo de conformao

    legislativa. Ou seja, a partir do paradigma institudo pelo novo constitucionalismo

    e a partir daquilo que o Estado Democrtico de Direito representa na tradio

    jurdica, o legislador no mais detm a liberdade para legislar que tinha no

    paradigma liberal-iluminista. Nesse (novo) contexto, a teoria do bem jurdico,

    que sustenta a idia de tipos penais no Direito Penal, igualmente passa a

    depender da materialidade da Constituio. No pode restar qualquer dvida no

    sentido de que o bem jurdico tem estrita relao com o todo constitucional,

    representado pelos preceitos e princpios que encerram a noo de Estado

    Democrtico e Social de Direito.

    8 Cfe. Fioravanti, Maurizio. Los derechos fundamentales. Madrid, Trotta, 1998.

  • 9No campo do direito penal, em face dos objetivos do Estado Democrtico

    de Direito estabelecidos expressamente na Constituio (erradicao da pobreza,

    reduo das desigualdades sociais e regionais, direito sade, proteo do meio-

    ambiente, proteo integral criana e ao adolescente, etc), os delitos que

    devem ser penalizados com (mais) rigor so exatamente aqueles que, de uma

    maneira ou outra, obstaculizam/dificultam/impedem a concretizao dos

    objetivos do Estado Social e Democrtico. Entendo, assim, que, de forma

    exemplificativa, possvel afirmar que os crimes de sonegao de tributos,

    lavagem de dinheiro e corrupo (para citar apenas alguns) merecem do

    legislador um tratamento mais severo que os crimes que dizem respeito as

    relaes meramente inter-individuais (desde que cometidos sem violncia ou

    grave ameaa, bvio).

    No tenho dvidas em afirmar que existe uma obrigao de criminalizar

    que pode ser retirada da materialidade da Constituio, isto porque a

    fundamentao filosfico-poltica que lhe subjaz no pode ser restringida a um

    carter meramente atomista. Com efeito, preciso destacar que os valores

    culturais positivados constitucionalmente formam um conjunto moral e racional

    polirquico, em que os direitos bsicos de liberdade e a satisfao das

    necessidades fundamentais no podem compor um quadro de rivalizao, como

    o que ora constata-se no mbito da teoria do bem jurdico de vis liberal e,

    conseqentemente, de formulao e incidncia da lei penal.

    possvel afirmar, com razovel firmeza, que h, nos processos de

    criminalizao e descriminalizao, uma necessidade de harmonizao desses

    valores constitucionalizados, sem perder de vista a importncia particularizada

    de cada um deles para a concretizao de um pacto social que no privilegia de

    forma absoluta a autodeterminao dos indivduos. Existe este espao de

    autodeterminao, mas ele no pode ser considerado desde um enfoque

    libertarista ou liberalista, nos quais se considera que os indivduos no

    necessitam de nenhum contexto social para desenvolver e exercer suas

    capacidades. A autodeterminao, noutro sentido, deve ser conceitualizada

    desde a considerao de que esta capacidade somente pode ser exercida em um

    tipo particular de sociedade, com um certo entorno social.9 Conseqentemente,

    9 Ver a respeito Kymlicka, Will. Filosofia poltica contempornea. Una introduccin. Barcelona: Editorial Ariel,1995, p.239 e segs.

  • 10

    torna-se necessrio que diferenciemos bens individuais de bens sociais, para que

    se torne possvel a adequada tutela dos mesmos por via de lei penal, o que no

    se verificou na lei n. 10.259. Isto implica a renncia da neutralidade estatal

    liberal, uma vez que o Estado neutro no pode defender adequadamente o

    ambiente social necessrio para a autodeterminao.

    Nesse sentido, no parece razovel supor que delitos como porte ilegal

    de arma, abuso de autoridade, desacato, desobedincia, crimes contra crianas e

    adolescentes, crimes contra a ordem tributria, crimes nas licitaes, para citar

    apenas alguns, possam ser epitetados como de menor potencial ofensivo (sic) a

    partir de uma simples formalidade legislativa. A propsito: algum acredita que o

    crime de abuso de autoridade ou o crime de abandono de recm nascido sejam

    infraes com pequeno potencial ofensivo? Ou no tem muita importncia a

    autoridade abusar do cidado, o empresrio sonegar tributos, o desacato

    autoridade constituda, ou, ainda, que algum abandone um recm nascido?

    Atravs de uma penada legislativa, tais infraes adquiriram o status de

    crimes proto-insignificantes, soft crimes ou crimes quase-bagatelares,

    seno propriamente crimes de bagatela.

    3) O PRAGMATISMO INCONSEQENTE DA LEI 10.259

    Sejamos claros: estamos diante de uma arrematada fico metafsica,

    onde se perde totalmente aquilo que na fenomenologia hermenutica chamamos

    de diferena ontolgica. O legislador parece ter recebido uma ntida inspirao

    sofstica-nominalista, como a de um personagem de Alice no Pas das Maravilhas,

    que diz: Eu dou s palavras o sentido que quero!. Ou seja: No h tradio (no

    sentido hermenutico). H uma nominao! Ou seja, para o legislador, o crime

    no de menor ou maior potencial ofensivo porque exsurgente de uma relao

    tipo penal-bem jurdico, mas, sim, porque a lei o nomina de menor potencial

    ofensivo.

    Ora, evidente que, se por um lado, um crime no um crime porque o

    tipo penal, ontologicamente (ontologia clssica), refletiria a essncia da coisa

    designada (concepo realista das palavras de Plato, a partir da qual, p. ex., na

    palavra estupro estaria a essncia da estuprez sic), por outro, tambm

  • 11

    parece evidente que um delito no tem sua concepo de lesividade alterada

    simplesmente porque recebeu nova denominao (no caso, o epteto de menor

    potencial ofensivo). Para no ir muito longe, at mesmo a semiologia de

    Saussure poderia dar uma resposta ao problema. Afinal, como dizia o mestre

    genebrino, se queres saber o significado de um significante, pergunte por a...!

    Dizendo de um modo mais simples: perguntemos por ai se o cidado considera

    que o abandono de uma criana ou o abuso de autoridade so ofensas leves,

    pequenssimas, a ponto de poderem ser transacionadas por cestas bsicas

    (sic)?10

    No tenho dvidas em afirmar que, desta vez (ou uma vez mais), o

    legislador foi alm de suas chinelas. Logo, deve ser corrigido, consoante ser

    demonstrado no seguimento, tudo na estrita conformidade da jurisdio

    constitucional.

    A questo, pois, muito mais grave do que possa parecer. A nova Lei

    10.259 tpico exemplo de um pragmatismo inconseqente que destri a

    diferena. Esse pragmatismo vira ceticismo, porque, na medida em que cada ato

    humano tem um contedo ftico, torna-se absolutamente problemtico o

    processamento da validade desse ato. Com efeito, se elimino o elemento

    diferencial que identifica cada ato (valorado como delito), caio no cinismo, uma

    vez que tanto faz qual o delito do extenso rol epitetato como de menor potencial

    ofensivo que vou cometer, porque a punio a mesma, produto de uma

    transao.

    Por isso, est-se diante de um pragmatismo irresponsvel. Ora, a

    delinqncia ocorre quando um ato vulnera algum valor. Ora, no momento que a

    vulnerabilidade subsumida em uma espcie de impunidade de cunho

    universalizante em face da equiparao ad hoc de infraes absolutamente

    10 A praxis tem demonstrado dois problemas, que levam banalizao da idia de transao penal e, assim,dos prprios Juizados Especiais Criminais: o primeiro decorre da construo de penas alternativas sociais,representadas pelas j conhecidas cestas bsicas, sobre o que no necessrio muito dizer..; o segundodecorre da equivocada compreenso dos Juizados Especiais, naquilo que diz respeito ao papel dosconciliadores (leigos), que, na prtica, assumem o papel de magistrados nos JEC`s. Deixar a cargo dosconciliadores a tarefa de transacionar abrir mo da funo jurisdicional. Quando a Constituio estabelece apresena de conciliadores, o faz em forma de prestao de auxlio. Em nenhum momento o conciliador podeassumir o papel reservado estritamente ao juiz togado. Conciliador no tem funo jurisdicional. No pode elerealizar qualquer ato judicial. O conciliador sequer ocupa cargo. Apenas exerce uma funo administrativa.Com isto, a tarefa do juiz togado no meramente a de homologar (ou no) aquilo que os conciliadoresconciliaram. A presena fsica do juiz togado condio de possibilidade da validade do ato. Entender ocontrrio conspurcar a Constituio e sua principiologia. Qualquer transao feita sem a presena do juiztogado nula, pois.

  • 12

    dspares e discrepantes entre si desaparece a funo do Direito enquanto

    interdito. A lei se auto-suprime, em face da possibilidade de todos no mais

    cumpri-la; logo, no ser mais lei. Essa impunidade de cunho universalizante

    nada mais do que o produto de uma pasteurizao das transgresses, no

    interior do qual no d mais para distinguir um ente de outro. Dizendo de um

    modo mais simples, pode-se afirmar que, tendo o legislador isonomizado (sic)

    dezenas de punies, possvel delinqir de 50 ou mais modos diferentes,

    porque exatamente est-se diante de uma zona cinzenta, em que todos os

    gatos so pretos.

    Essa isonomizao abstrata impede a aplicao concreta do princpio da

    lesividade.11 Historicamente este princpio tem desempenhado um papel

    fundamental na configurao do moderno Estado de Direito, especialmente para

    evitar aplicaes absurdas de pena, ao possibilitar a distino em fatos

    efetivamente lesivos e no lesivos. Contrariamente ao expediente legislativo

    adotado na lei n 10.259, que considerou a falta de ofensividade abstratamente,

    o princpio da lesividade somente pode ser aplicado concretamente, o que explica

    a sua necessria indeterminao significativa.12

    11 Esse princpio pode ser recebido em dois planos diversos da operacionalizao jurdica: no plano daelaborao legislativa e no da aplicao judicial da lei. No primeiro, volta-se o princpio da ofensividade aolegislador no momento de formular o tipo penal, forando-o a eleger uma espcie ftica dotada de um realcontedo ofensivo dos bens jurdicos mais relevantes; no segundo dirige-se ao juiz e ao intrprete, paraimpelir-los a averiguar concretamente a existncia no fato histrico da lesividade sobre o bem jurdico atingido.Assim, o princpio da lesividade tem dupla tarefa limitadora: a de seleo do objeto destinado a transformar-seem contedo da norma penal e a de restrio da destinao da lei penal somente a casos concretos em queefetivamente tenha havido uma leso ou dano a bem jurdico relevante. 12 Pontuadamente quanto a esse aspecto de indeterminao do princpio da ofensividade, no dizer de Palazzo,h uma espcie de paradoxo metodolgico que marca o seu funcionamento no juzo de constitucionalidade dasleis: da um lato, si tratta di un principio contenutistico, nel senso sopra precisato di canone attinente al pianodelloggetto della tutela; dallaltro, per, esso privo di un contenuto prescritivo realmente predeterminato algiudizio di costitucionalit da parte della Corte 12. Esta indeterminao conceitual caracterstica do princpio dalesividade vem a ser a sua grande virtude pragmtica. Nesta perspectiva, a observncia do princpio danecessria lesividade do fato histrico estende-se inteiramente sobre o plano concreto da manifestaonaturalstica e material do delito, a partir de um referencial constitucional, excluindo-se qualquer aplicao danorma incriminadora queles fatos concretamente destitudos de ofensividade. Para Pallazo, tale possibilitapplicativa pressuppone una norma incriminatice che sia, nella sua dimensione astratta e legislativa, gi dotatadi un contenuto di disvalore concepibile in termini di offesa ad un bene giuridico. Cf. Palazzo, Francesco.Offensivit e Ragionevolezza nel Controlo di Constituzionalit sul Contenuto delle Leggi Penale. Nopublicado, Firenze, p. 13.

  • 13

    4) DOS OBSTCULOS (CONSTITUCIONAIS) APLICAO DA NOVA

    LEI

    Em face disto, respeitando sobremodo opinies em contrrio, entendo

    estar evidenciado que a nova lei 10.259 no pode abranger a totalidade dos

    delitos cujas penas mximas sejam de dois anos. Isto por vrias razes, a seguir

    delineadas:

    4.!) Tratamento igualitrio de bens jurdicos dspares: uma isonomia

    incompatvel com a Constituio ou de como no devemos

    banalizar/pausteurizar o direito penal

    O dispositivo sob comento encontra srios obstculos para a sua

    aplicao porque, fosse possvel aplicar o benefcio da transao a todas as

    infraes alcanadas lato sensu pela Lei 10.259, estaramos, como j dito,

    solapando a teoria do bem jurdico, eis que colocaramos em p de igualdade

    delitos das mais variadas espcies.

    No se est, evidncia, defendendo a (velha) teoria do bem jurdico

    subjacente ao atual Cdigo Penal. A teoria do bem jurdico, filtrada

    constitucionalmente, deve estar em consonncia com os ditames do novo

    modelo de Direito estabelecido pelo Estado Democrtico de Direito e seus

    objetivos de resgate das promessas da modernidade e do respeito aos princpios

    da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficincia. Impossvel, destarte, por

    incompatibilidade constitucional, a permanncia da serdia teoria do bem jurdico

    que sustenta nosso Cdigo, no interior do qual a propriedade recebe proteo

    infinitamente superior vida, integridade corporal, honra, etc. O Cdigo

    Penal vigente, de h muito, agoniza, pois. Disso parece no restar dvidas.

    O Direito Penal sustenta-se justamente na diversidade dos bens jurdicos

    que os tipos penais protegem. Assim, torna-se quase que despiciendo pela

    obviedade que representa (embora isto seja bvio, esta obviedade deve ser des-

    velada) registrar que no pode uma lei equiparar ou isonomizar delitos como

    abuso de autoridade, a sonegao de tributos e crimes contra o meio-ambiente,

    com os crimes de esbulho possessrio; rixa (sic) e a ofensa a moral e aos bons

    costumes (sic), os primeiros nitidamente crimes graves, que violam e causam

    mltiplas leses a bens jurdicos que vo desde a dignidade humana at os

  • 14

    difusos e coletivos, e os segundos, restritos que so ao patrimnio (meramente)

    individual e comportamental. Simples, pois!

    Esta situao impe que venhamos a repensar e redefinir o princpio da

    fragmentariedade do direito penal. Originariamente, dentro dos cnones do

    direito penal liberal, este princpio determina que a zona de incidncia da lei

    penal deva compor-se pelos fatos mais graves, socialmente intolerveis. Ou seja,

    h uma delimitao do mbito penal em relao aos demais ramos do

    ordenamento jurdico. Poderamos denominar este aspecto de fragmentariedade

    externa. Por outro lado a complexidade da sociedade moderna e a conseqente

    quantidade de bens que passaram a ser protegidos pela lei penal, impe que

    este princpio seja considerado tambm sob o aspecto interno do ordenamento

    jurdico-penal, e sob este aspecto, benefcios como o da transao penal no

    podem ser concedidos, dentro de um mesmo conjunto de condutas, para bens

    que expressam um interesse pblico de alta significao social da mesma forma

    que se estende para outros de natureza meramente individual.

    Dito de outro modo, isonomizar (sic) delitos que lesam bens to dspares

    nada mais do que banalizar/pasteurizar o direito penal, reforando (ainda

    mais) a tese de que o direito penal cumpre uma misso secreta na sociedade,

    qual seja, a de apontar as suas baterias para as camadas excludas da

    sociedade, sem condies de enfrentar, adequadamente, as ditas transaes

    do mesmo modo que as camadas includas o fazem.

    4.2) O conceito de "infraes de menor potencial ofensivo" e o

    fetichismo da lei: uma crtica necessria ou a pergunta que no

    quer calar

    Passados tantos anos desde a entrada em vigor do atual Cdigo Penal,

    parece(ria) razovel supor que o conceito de bem jurdico, enfim, da densificao

    do que seja menor ou maior potencial ofensivo, forjados no modelo liberal-

    individualista, merece(ria)m uma (re)discusso. Afinal, o que significa a

    expresso "infrao de menor potencial ofensivo? Mais do que isto, preciso

    repetir a pergunta: Poderia o legislador fazendo tbula rasa isonomizar tipos

    penais to discrepantes entre si, envolvendo bens jurdicos to dspares?

  • 15

    A noo de bem jurdico, a toda evidncia, deve estar ancorada na

    Constituio, entendida a partir de sua materialidade, engendrada pelo novo

    paradigma estabelecido pelo Estado Democrtico de Direito. O bem jurdico um

    valor que tem direta relao com a concretizao da democracia, dos direitos

    fundamentais e, fundamentalmente, levando em conta que no Brasil a

    modernidade tardia, a realizao dos direitos sociais. nesse sentido que

    Domitilla de Carvalho vai dizer que

    (...) a misso do Direito Penal consiste na proteo dos valores

    elementares da conscincia, do carter tico social e, s por

    acrscimo, a proteo de bens jurdicos particulares. Portanto,

    preciso buscar na Constituio a gnese e funo social do bem

    jurdico. E como a Constituio representa o ideal de direito de

    um determinado momento histrico, no estando alheia, pois, aos

    interesses da estrutura social, nem sobrevindo fora deles, existe

    uma relao entre a norma jurdica e o interesse em que ela se

    alicera. Logo, toda perquirio do bem jurdico tem,

    evidentemente, de levar em considerao a investigao da

    relao social concreta: da posio que nela ocupam os indivduos

    e da integrao sofrida por eles em relao aos outros entes

    existentes no meio social.13

    O lugar cimeiro assumido pela Constituio, entendida em sua

    principiologia, leva, inexoravelmente, ao sopesamento entre os fins almejados

    pelo Estado e os meios aptos a esse desiderato. A materialidade constitucional

    guarda relao intrnseca com a modalizao do bem jurdico-penal. Veja-se,

    assim, de pronto, que:

    a) infraes como abuso de autoridade guardam relao com o direito de

    liberdade, da integridade fsico-intelectual e da dignidade da pessoa;

    b) o delito de desacato guarda direta relao com a preservao do princpio

    da eficincia e da prpria noo de interdito consubstanciado na noo de

    Estado, enquanto produto de uma opo entre civilizao e barbrie;

    13 Cfe. Carvalho, Marcia Domitilla de. Fundamentao Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre, Fabris,1992, p. 37.

  • 16

    c) na mesma linha, esto os demais delitos contra a administrao da

    justia, como o da desobedincia;

    d) em alguns casos, a relao bem jurdico-Estado Social e Democrtico de

    Direito aparece com mais nitidez, como o caso dos crimes de

    sonegao de tributos;

    e) em outros, a moralidade administrativa assume foros de imperiosa

    tipificao, como o caso da corrupo e da lavagem de dinheiro;

    f) finalmente, no que tange aos crimes contra o meio-ambiente, parece

    absolutamente relevante chamara a ateno para o vnculo teleolgico

    entre os objetivos do Estado Democrtico de Direito e a preservao dos

    direitos transindividuais.

    Logo, a partir dessa intrincada principiologia, norteadora da valorizao

    e mensurao da teoria do bem jurdico, que devemos estabelecer as condies

    de possibilidade para o aferimento da noo de infraes de menor (ou maior)

    potencial ofensivo. A lei no tem um sentido em-si-mesmo. Tampouco trs nsito

    um sentido que possa ser desacoplado (Auslegung) pelo intrprete. H, pois,

    uma atribuio de sentido (Sinngebung), que se d no contexto de uma situao

    hermenutica, a partir da pr-compreenso do intrprete.

    No h, assim, uma liberdade de cunho convencionalista, pela qual o

    intrprete do Direito, ou o legislador, venham a atribuir qualquer sentido aos

    entes jurdicos. preciso ter presente que os sentidos no so determinados

    livremente a partir da conscincia de si do pensamento pensante do sujeito-

    intrprete e nem decorrem da aferio da essncia das coisas. O intrprete

    parte sempre de possibilidades. Esse campo de possibilidades est limitado pela

    linguagem em que est inserido o intrprete. H, na esteira do que ensina

    Gadamer, um mundo daquilo que opinvel, no sendo possvel atribuir

    qualquer sentido a algo. Apenas so possveis sentidos possveis. O intrprete

    engendra o processo interpretativo a partir daquilo que Gadamer chama de

    indagao objetiva centrada na coisa mesma (sachliche Fragstellung).14 a

    coisa mesma (Sache selbst), resultante de uma sntese hermenutica,15 que

    14 Cfe. Gadamer, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Tbingen:Mohr, 1990, pp. 295 e segs.15 Ver, para tanto, Streck, Hermenutica, op.cit.

  • 17

    evitar a relativizao ou a arbitrariedade das interpretaes. a coisa mesma

    que suplantar a noo metafsica de deduo ou subsuno.

    Parece evidente, assim, que a atribuio de sentido acerca do que seja

    delito de menor potencial ofensivo no pode decorrer de arbitrariedades

    semnticas, abusos significativos, ou extorses de sentido. Afinal, como j

    indicava Shakespeare, no Ato II de Romeu e Julieta, Que h num simples

    nome? O que chamamos rosa, com outro nome no teria igual perfume?

    Desnecessrio referir que h um campo de possibilidades - engendrado pela

    tradio jurdica na qual estamos todos inseridos que estabelece o limite do

    sentido e o sentido do limite dessa atribuio de sentido. Delito de menor

    potencial ofensivo um sentido atribuvel somente a determinadas infraes

    penais, cujo sentido se d a partir dessa indagao centrada naquilo que os

    juristas tm dito a respeito de cada um dos delitos (cada delito tem sua

    peculiaridade, porque viola um determinado bem jurdico).

    Ou seja, o sentido se d a partir dessa indagao objetiva centrada na

    coisa mesma. Hermeneuticamente, no se pode falar de categorias delituosas

    e tampouco de um conceito universalizante de menor potencialidade

    lesiva/ofensiva. H sempre um determinado delito, pois. Isto significa poder

    dizer que a atribuio de sentido no pode decorrer de fices significativas

    decorrentes de nominaes legislativas, sob pena de concordarmos com a idia

    de que os significados das coisas variam de acordo com o que queremos que elas

    sejam, o que nada mais do que resvalar em direo a um idealismo

    inconseqente.

    Por isto, e do mesmo modo, a discusso acerca da interpretao do

    alcance da nova Lei 10.259 no deve ser simplificada, a partir de uma

    ultrapassada (e perniciosa) liberdade de conformao legislativa, pela qual se

    confere carta branca ao legislador para que, revelia da Constituio,

    estabelece, sponte sua, e sem qualquer controle advindo da jurisdio

    constitucional, que o critrio para o reconhecimento do que seja potencial

    ofensivo advenha de um metafsico nominalismo, fazendo tabula rasa de toda

    teoria do bem jurdico. Ora, o texto legal que um ente no seu ser no pode

    ser abstrado das condies histricas e nem de sua necessria insero na

    sociedade, e que, mais do que isto, hermenutica aplicao; fazer

  • 18

    hermenutica produzir-atribuir sentido ao texto, que passar a ser norma a

    partir da interpretao.

    Essa atribuio de sentido (Sinngebung), como j dito, no livre, pois

    deve levar em conta a Constituio em sua materialidade, isto , com toda carga

    eficacial da principiologia. Por isto, em termos de relao social, mergulhando no

    rio da histria, absolutamente razovel afirmar que o epteto de menor

    potencial ofensivo somente cabvel aos delitos bagatelares (soft crimes), onde

    se enquadram condutas que no apresentam potencial de lesividade e que no

    tem o carter de transcendncia em relao a terceiros, entendida aqui uma

    comunidade organizada regida por uma Constituio que, a toda evidncia,

    hierarquiza bens jurdicos. Neste exato sentido, , e at para comprovar a

    veracidade/plausabilidade da assertiva anterior, poder-se-ia perguntar se algum

    tem dvidas que o crime de sonegao de impostos causa mais danosidade

    social do que determinados crimes contra o patrimnio individual. Ou se algum

    tem dvidas que o crime de porte de arma apresenta forte (ou maior) potencial

    ofensivo? Retornando a Saussure: Se algum tem dvidas, pergunte por ai...

    Repito, pois, a pergunta que no quer calar: tinha o legislador carta

    branca, isto , tinha ele absoluta discricionariedade para equiparar e estabelecer

    o elenco de infraes passveis de receber o epteto de menor potencial

    ofensivo e, portanto, passveis de receber o favor legis de transacionar? Tinha o

    legislador discricionariedade para equiparar/isonomizar crimes do naipe da

    sonegao de tributos (de cunho transindividual, por lesarem milhes de

    pessoas, cometidos pelas camadas mdio-superiores da sociedade), com delitos

    de cunho interindividual, como esbulho, perturbao do sossego (sic), ameaa,

    esbulho, etc, cometidos, via de regra, pela patulia?

    4.3) A necessria incidncia da Constituio na discusso dos critrios

    para a aplicao da Lei 10.259

    As condies de possibilidades para a aplicao do novo dispositivo legal

    demandam, definitivamente, uma discusso acerca da efetiva insero do direito

    penal no mbito do direito constitucional. Parece no haver dvida de que o

    direito penal do Estado Democrtico de Direito implica uma indispensvel

  • 19

    adequao da tipicidade penal aos valores e princpios constitucionais,

    discutindo-se os limites criminalizao e a vinculao do poder legiferante aos

    princpios da Constituio. Dito de outro modo, preciso retirar essa espcie de

    blindagem posta em torna do direito penal, que o torna praticamente imune e

    imunizado em relao jurisdio constitucional.

    Isto ocorre porque no campo da assim denominada dogmtica jurdica

    tecnicista ocorre uma metafsica equiparao entre vigncia e validade da lei.

    Vigente a lei, todos passam a interpreta-la como se fosse produto de uma

    vontade divina. No mximo, discute-se eventual contradio da lei no contexto

    das antinomias. Entretanto, no mais das vezes esta a contradio secundria

    do problema, uma vez que a contradio principal se localiza na falta de uma

    anlise que leve em conta a parametricidade constitucional. o caso da Lei

    10.259, em que at mesmo os setores mais conservadores do direito penal se

    renderam cedo mera vigncia da Lei, sucumbindo diante do conflito de

    antinomias.

    Para ser mais claro e incisivo, de h muito estou convicto de que o

    "legislador" no tem liberdade para incluir ou excluir tipos penais de leis que

    visem beneficiar acusados de crimes e tampouco para prejudic-los. Do mesmo

    modo que a hediondez de um crime, isto , as condies de possibilidades de um

    determinado delito ser ou no tipificado pela lei como "hediondo", h de ser

    perquirida na Constituio visto que a lei penal no pode criar tutelas que

    desatendam hierarquia dos bens jurdicos constitucionais e tampouco ignorar o

    valor atribudo pela Constituio aos interesses de dimenses ultra-individuais e

    coletivas no tenho dvida em afirmar que tambm o elenco dos delitos sob o

    manto da nova lei 10.259 deve estar condizente com os valores Constitucionais.

    Desse modo, o legislador ordinrio, ao estabelecer que qualquer infrao

    cuja pena mxima no ultrapasse 02 (dois) anos uma infrao de menor

    potencial ofensivo, sem exigir qualquer outro requisito de ordem objetiva ou

    subjetiva, violou, frontal e escandalosamente, preceitos fundamentais e a

    principiologia do Estado Democrtico de Direito previsto na Constituio. Entre a

    Constituio e seus valores e as exigncias de uma efetividade quantitativa do

    sistema penal, o legislador brasileiro optou pelo caminho mais fcil, isto , por

    uma pragmtica inconseqente, prximo a uma razo cnica, no interior da qual,

  • 20

    como bem ironizava Peter Sloterdijk, invertendo uma famosa frase de Marx (Sie

    wissen das nicht, aber sie tun es), eles sabem o que fazem (e como sabem...), e

    continuam fazendo do mesmo modo!

    Ora, a teoria do delito deve ter utilidade social. Crime uma ao

    (interpretada como) tpica, ilcita e culpvel. A tipicidade material/substancial.

    Calha registrar, neste ponto, a lio de Bricola, que conceitua o delito como um

    fato previsto de forma taxativa pela lei, de realizao exclusiva do agente ou

    reconduzvel ao mesmo atravs de uma atitude culpvel (dolosa ou culposa),

    idnea para ofender um valor constitucionalmente significativo, ameaado com

    uma pena proporcional tambm ao significado do valor tutelado, e

    estruturalmente caracterizado pelo teleologismo constitucionalmente atribudo

    sano penal.16 A errnea compreenso acerca da (inexorvel) relao entre

    delito, bem jurdico e Constituio, pode levar banalizao do direito penal. Se

    o legislador pode tudo, no pode surpreender ningum que, amanh, estabelea

    em lei que o delito de atentado violento ao pudor, cometido sem violncia fsica,

    de menor potencial ofensivo... Afinal, o atentado ao pudor, mediante fraude, j

    foi incorporado ao elenco dos crimes de menor potencial ofensivo! Portanto, nada

    est a justificar a isonomia feita s avessas, equiparando infraes penais no

    equiparveis.

    5) DA DERROGAO DA EXCEO ESTABELECIDA PELO ART. 61 DA

    LEI 9.099 A QUESTO DOS PROCEDIMENTOS ESPECIAIS: Uma

    discusso anterior ao exame da (in)constitucionalidade do art. 2,

    par. nico, da Lei 10.259

    Uma questo que suscita grandes controvrsias diz respeito derrogao

    ou no por parte da Lei 10.259 da exceo prevista no art. 61 da Lei 9.099,

    acerca dos procedimentos especiais. Uma corrente se posiciona no sentido de

    que a exceo permanece, no sendo a nova Lei aplicvel, portanto, s infraes

    a que a lei prev procedimento especial. Para esta, fixada a competncia, se no

    houver restrio, aplicar-se- a todos os casos a ela submetidos. No caso sob

    exame, os procedimentos especiais estariam nela compreendidos. Outro grupo

    16 Cfe. Bricola, Franco. Novssimo Digesto Italiano, Editrice Torinese, 31 ed., 1957.

  • 21

    sustenta que a nova Lei derrogou a antiga exceo, aplicando-se o favor legis a

    todas as infraes cuja pena mxima no ultrapasse os 02 (dois) anos.

    Creio que a segunda posio a mais razovel.17 A nova Lei se aplica

    independentemente do procedimento (com exceo, talvez, do crime de abuso

    de autoridade, em face da especificidade da pena autnoma de perda de cargo).

    Se assim no fosse, a prpria Lei poderia ficar esvaziada, porque muito poucos

    delitos ficariam sob a abrangncia dos JECs. De outra banda, a menor

    potencialidade (ou a baixa lesividade ou proto-insignificncia) no decorre de

    uma mera nominao legislativa, mas, sim, do valor que os bens jurdicos

    possuem. Logo, contendo um delito um baixo teor de ofensividade, no o

    procedimento especial que ter o condo de retir-lo do mbito do favor legis.

    17 Nesse sentido, a posio firmada pelo Superior Tribunal de Justia, em julgamento proferido pela QuintaTurma, entendendo que o art. 61 da Lei 9.099 foi derrogado pela Lei 10.259, sendo o limite de um ano alteradopara dois (RHC 12.033-MS, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 13.08.2002). Na ocasio, o STJ decidiu estenderos benefcios da Lei 10.259, deixando assentado que a mudana de 1 para 2 anos de que fala a nova Lei deveser acrescentada parte final da Smula 243, visto que as alteraes da lei penal que so benficas para osrus devem retroagir. No caso sub exame, o STJ deu provimento ao RHC para afastar o limite de um ano eestabelecer o de dois anos para a concesso da suspenso condicional do processo. Tenho que a deciso doSTJ mostrou-se equivocada. No plano pragmtico, a deciso tem o condo de a prevalecer tal entendimento -abarcar parcela considervel dos tipos penais do Cdigo Penal e das leis esparsas. No se pode olvidar que asuspenso do processo instituto previsto na Lei 9.099, que trata dos Juizados Especiais, portanto, matriaque diz respeito, no plano conceitual, ao julgamento de soft crimes (crimes de menor potencial ofensivo). Aextenso procedida pelo STJ refoge ao ncleo essencial da idia de Juizados Especiais prevista na Constituio(art. 98). A Lei 10259, ao elevar o patamar de 1 para 2 anos como pena mxima para receber o benefcio datransao penal, no tem o condo de, automaticamente, alterar o disposto no art. 89 da Lei 9.099, que tratade outro instituto (suspenso condicional do processo). Assim agindo, o STJ confundiu os institutos datransao e da suspenso do processo. Com efeito, considerando-se revogado o art. 61 da Lei 9.009 (e nesteponto est correto o STJ), tem-se que so passveis de transao penal todos os delitos cuja pena MXIMA noultrapasse os 2 anos (com as ressalvas que fao acima, acerca da no liberdade de conformao legislativa). Aconsiderar correta a tese esgrimida pela 5 Turma do STJ, estaro, agora, passveis de receber o benefcio dasuspenso condicional do processo todos os crimes cuja pena MNIMA no ultrapasse os mesmos 2 anosfixados na nova Lei 10.259. Ora, h que se diferenciar limites mximos de limites mnimos de pena. Teto no piso. Alis, a equiparao de um balizamento mximo com um balizamento mnimo demonstra exatamente aimpossibilidade da equao. H uma contradio insoluvel. O art. 89 no trata da transao, mas, sim,somente da suspenso condicional do processo. Neste ponto, poder-se-ia apontar para a prpriainconstitucionalidade parcial do art. 89, que, ao incluir a suspenso do processo em uma lei destinada aregulamentar o art. 98 da CF que tratou apenas de delitos de menor potencial ofensivo estendeu/equiparouconceitos no equiparveis. O resultado disto que, alterado o limite MXIMO para 2 anos nos casos de delitosde menor potencial ofensivo (Lei 10.259), tal circunstncia acarretar sendo vencedora a tese da 5 Turma doSTJ em uma banalizao da idia nuclear do que sejam crimes de menor potencial ofensivo, ratio da Lei9.099, e, ao mesmo tempo, crimes que meream o benefcio da suspenso condicional do processo. Para tanto,basta ver que crimes como abuso de incapazes, sonegao de tributos, corrupo, concusso, peculato, paracitar apenas alguns, passariam (passaro?) a fazer parte de um extenso rol de crimes aos quais se poderiaaplicar a suspenso condicional do processo, o que afronta qualquer critrio de proporcionalidade e derazoabilidade, alm de solapar a teoria do bem jurdico penal-constitucional. Ora, a suspenso do processo, porter sido includa (criada) no bojo da Lei que regulamentou o art. 98 da CF, tem a sua ratio ligada ao que sejadelitos de menor potencial ofensivo. Dito de outro modo, quando o art. 98 diz abrangidos ou no por esta Lei,isto no significa que os crimes no abrangidos pela Lei dos Juizados Especiais sejam outros que no depotencialidade lesiva pequena. Ao estabelecer a equiparao ficta para fins de suspenso (pela expresso ouno), o legislador desbordou da Constituio, uma vez que igualou crimes sujeitos ao benefcio da transaocom crimes submetidos ao regime mais grave, que o da suspenso. Dito de outro modo: na medida em que oinstituto da suspenso condicional do processo est umbilicalmente ligado idia de crimes de menor potencialofensivo, tem-se que a interpretao da 5 Turma do STJ incluiu indevidamente no rol de crimes de menorpotencial ofensivo um conjunto de delitos absolutamente incompatveis com a tese dos Juizados. Por isto, pordesbordar da idia de Juizados Especiais previstos na Constituio e por violar os princpios da razoabilidade eda proporcionalidade, entendo como inconstitucional a deciso proferida pela 5 Turma do STJ, na parte em

  • 22

    Dito de outro modo, o favor legis no decorre do procedimento, mas,

    sim, de sua baixa lesividade. Desse modo, considero despicienda e sem maior

    importncia a discusso intra-sistemtica acerca da derrogao ou no da

    exceo constante no art. 61 da Lei 9.099. A no meno/repetio da exceo

    no texto da Lei 10.259 no lacunar e tampouco fruto de silncio eloqente do

    legislador. O que existe o texto legal que estabelece novo regramento sobre a

    matria. Tampouco importa buscar a inteno do legislador ou indagar acerca

    da vontade da norma (sic). Na moderna hermenutica tais argumentos no

    passam se artifcios de retrica. Alis, tivesse alguma validade cientfica o

    argumento da busca da inteno do legislador, poder-se-ia dizer que, quisesse

    o legislador manter a exceo dos procedimentos excepcionais, teria

    expressamente assim se posicionado. Assim, ao no mais falar sobre a exceo,

    falou, atravs de um silncio eloqente. Em outras palavras: ao no dizer,

    disse. Isto, porm, no necessrio. A nova Lei contm outro tipo de vcio. O

    problema no est em catapultar dezenas de infraes para o seio dos JECs.

    Afinal, isto decorre da prpria Constituio. Logo, o procedimento porque em

    algumas infraes especial no pode servir de obstculo aplicao da

    Constituio. O problema est, sim, nos critrios utilizados para a aferio do

    que seja infraes de menor potencial ofensivo. Este o ponto, pois.

    6) DO EXAME DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE STRICTO SENSU DO

    PARGRAFO NICO DO ART. 2 DA LEI 10.259

    Como veremos no decorrer da exposio, a problemtica tem dois

    mbitos, uma vez que a nova Lei 10.259, alm de aumentar o limite de

    incidncia dos delitos aptos transao, teria, em face do silncio (eloqente) do

    legislador, estendido o favor legis tambm s infraes regidas por

    procedimentos especiais. Nesse sentido, tenho que o problema dos

    procedimentos um ponto acessrio a ser debatido. Antes de tudo,

    independentemente dos procedimentos, deve estar a discusso acerca das

    condies de possibilidade de o legislador ter feito tabula rasa para a incluso

    das assim denominadas infraes de menor potencial ofensivo.

    que procedeu o afastamento do limite de 1 ano e estabeleceu o de 2 anos para a concesso do benefcio dasuspenso condicional do processo.

  • 23

    6.1) A inconstitucionalidade da incluso de infraes incompatveis

    com o nomen juris de "infraes de menor potencial ofensivo": a

    necessidade da correo mediante a aplicao da tcnica da

    nulidade parcial sem reduo de texto

    Por tudo isto, na discusso em tela, em que se coloca em xeque a

    aplicao genrica (tbula rasa) da nova Lei a todos as infraes cujas penas

    cominadas em abstrato no ultrapassem 02 (dois) anos, necessrio que se faa

    um exame acerca da constitucionalidade da citada Lei. Com efeito, no sendo o

    Poder encarregado de elaborar as leis, livre para estabelecer quais os delitos que

    podem receber os favores de uma transao penal (pela simples razo de que

    no dispunha de carta branca para tal!), a questo deve ser resolvida no mbito

    do controle da constitucionalidade, com a necessria interveno do Poder

    Judicirio. Repita-se: a Constituio remdio contra maiorias parlamentrias!

    No caso em pauta, est-se diante de um tpico caso de declarao de

    nulidade parcial sem reduo de texto, ou, se quiser, inconstitucionalidade sem

    reduo de texto, tcnica derivada do direito alemo (Teilnichtigerklrung ohne

    Normtextreduzierung) que, alis, o Supremo Tribunal j vem adotando em nosso

    direito.18 Muito embora a confuso que se possa fazer entre a declarao de

    nulidade sem reduo de texto com a interpretao conforme a Constituio,

    deve ficar claro, com Gilmar Ferreira Mendes, que, enquanto nesta se tem,

    dogmaticamente, a declarao de que uma lei constitucional com a

    interpretao que lhe conferida pelo rgo judicial, naquela ocorre a expressa

    excluso, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hiptese(s) de aplicao

    (Anwendungsflle) do programa normativo sem que se produza alterao

    expressa do texto legal.19

    Mais ainda, diz Mendes, se se pretende realar que determinada

    aplicao do texto normativo inconstitucional e este o caso em discusso,

    uma vez que algumas hipteses penais no podem ser objeto da aplicao da Lei

    10.259 , dispe o Tribunal da declarao de inconstitucionalidade sem reduo

    de texto, que, alm de mostrar-se tecnicamente adequada para essas situaes,

    18 Nesse sentido, remeto o leitor aos seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal: ADIn n. 319, rel. Min.Moreira Alves, DJ 30.04.93, p. 7563; ADIn n. 491, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 137, pp. 90 e segs; ADIn 1370-0-DF.19 Cfe. Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdio Constitucional. So Paulo, Saraiva, 1998, p. 275.

  • 24

    tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurana jurdica expressa na

    parte dispositiva da deciso20 (no caso em exame, o pargrafo nico do art. 2 da

    Lei 10.259 inconstitucional se aplicvel s seguintes hipteses: abuso de

    autoridade, desacato, etc...; ou, a contrrio sensu, como constou na deciso da

    ADIn 491, a norma impugnada s constitucional se se lhe der a interpretao

    que este Tribunal entende compatvel com a Constituio).21 o que se chama

    de inconstitucionalidade parcial qualitativa.22

    Advirta-se que, em sede de controle difuso, a ser feito pelo juiz singular

    ou pelo rgo fracionrio do Tribunal, a frmula dir respeito quele

    determinado delito (caso concreto) que est sub judice (obviamente se se

    enquadrar no elenco de infraes que no poderiam ter sido classificadas como

    de menor potencial ofensivo). Assim: a norma do art. 2 par. nico da Lei

    10.259 inconstitucional se interpretada no sentido de que o seu mbito

    alcance o crime X, por no ser esta uma infrao a que se comine o epteto de

    menor potencial ofensivo; a incluso da infrao X viola o seguinte princpio ou

    preceito da Constituio... Desnecessrio dizer que, na hiptese de controle

    concentrado, o Supremo Tribunal Federal dever elencar o conjunto de delitos

    que devem ser expungidos do sentido da norma.

    No se pode olvidar que a tcnica da inconstitucionalidade parcial sem

    reduo de texto (do mesmo que a interpretao conforme a Constituio)

    objetiva salvar o texto da lei, apenas com uma nova interpretao. Ou seja, no

    se est a dizer que todo o pargrafo nico do art. 2 da Lei 10.259

    inconstitucional, at porque algumas infraes, de fato, mesmo que suas penas

    mximas chegam ao limite de dois anos, corretamente devem estar sob a gide

    dos Juizados Especiais Criminais. Contesta-se apenas a incluso de determinados

    delitos que, nem de longe, poderiam Ter sido epitetados como "de menor

    potencial ofensivo". Desse modo, em tais circunstncias, ao se aplicar a tcnica

    da nulidade parcial sem reduo de texto, o dispositivo permanece vigente,

    sendo sua interpretao condicionada a uma releitura constitucional. Tal

    possibilidade est prevista na Lei 9.868/99,23 onde o legislador reconhece,

    20 Cfe. Mendes, op.cit., p.275. 21 Para uma melhor compreenso acerca do funcionamento dos institutos da interpretao conforme e danulidade parcial sem reduo de texto, ver Streck, Jurisdio Constitucional, op.cit., pp. 512 a 536.22 Exemplo nesse sentido podem ser vistos nos Acrdos 75/85, 132/85 e 336/86 do TC de Portugal. Cfe.Streck, Jurisdio, op.cit., p.477.23 Ver, para tanto, Streck, Jurisdio, op.cit, em especial cap. 11.

  • 25

    explicitamente, a possibilidade de o Poder Judicirio aplicar corrigendas aos

    textos legais aprovados pelo parlamento.

    Mas, poderia algum objetar, se ela, a lei (pargrafo nico do art. 2)

    permanece inteiramente vigente no sistema, o que autoriza o Poder Judicirio a

    no aplicar essa Lei? Somente uma resposta, in casu, possvel: porque parte

    dela isto , algumas de suas incidncias - inconstitucional.

    Consequentemente, em sede de Tribunal de segundo grau, bastar que se

    aplique a tcnica, sem qualquer necessidade de suscitao do respectivo

    incidente de inconstitucionalidade.24 J em sede de julgamento em primeiro

    grau, bastar que o juiz faa a aplicao da tcnica nos moldes aqui

    preconizados, uma vez que o controle difuso de constitucionalidade concede essa

    prerrogativa ao magistrado.25 Com efeito, entendo que no h qualquer bice

    constitucional que impea juizes e tribunais de aplicarem a interpretao

    conforme e a nulidade parcial sem reduo de texto. 26 Entender o contrrio seria

    admitir que juizes e tribunais (que no o STF) estivessem obrigados a declarar

    inconstitucionais dispositivos que pudessem, no mnimo em parte, ser

    salvaguardados no sistema, mediante a aplicao das citadas tcnicas de

    controle. Em sntese, a suscitao do incidente somente tem fundamento quando

    um texto expungido do sistema.

    Observo que a Lei 9.868, no pargrafo nico do art. 28, ao estabelecer o

    efeito vinculante s decises decorrentes do controle abstrato de

    constitucionalidade, equiparou a declarao de inconstitucionalidade stricto sensu

    24 Sobre a desnecessidade de suscitao de incidente de inconstitucionalidade nos casos deinconstitucionalidade parcial sem reduo de texto, ver meu Jurisdio Constitucional e Hermenutica, op.cit,cap. 11.25 Em face da complexidade que envolve a aplicao das tcnicas da interpretao conforme e a declarao deinconstitucionalidade parcial sem reduo de texto, permito-me remeter o leitor ao meu JurisdioConstitucional e Hermenutica, op.cit.26 Veja-se, neste sentido, interessante exemplo advindo do direito espanhol, mais especificamente a sentena105/88 do Tribunal Constitucional. Nesse julgamento, esteve em discusso a constitucionalidade do art. 509 doCdigo Penal, que penalizava com pena de priso todo aquele que fosse detido na posse de gazas ou outrosinstrumentos destinados a praticar furtos e no pudesse dar suficientes explicaes acerca de sua aquisio ouposse. Apreciando um caso concreto, o Tribunal entendeu que aquele texto normativo era contrrio Constituio (princpio da presuno de inocncia), qualquer interpretao do tipo penal que castigue a simplesposse dos instrumentos idneos, isto , (...) en cuanto se interprete que la posesin de instrumentos idneospara ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da su poseedor es la ejecucin detal delito. No caso hispnico, o texto permaneceu na integra, sendo inconstitucional somente se (ouenquanto, na medida em que ou na parte que, para utilizar a frmula do Tribunal Constitucional dePortugal) interpretado de determinada maneira. Observe-se, tambm, a deciso do Tribunal Constitucional daAlemanha, de 30 de outubro de 1963, interpretando restritivamente o art. 129 do Cdigo Penal, queestabelecia penas de priso aos membros de associaes que promovessem determinadas atividadesinconstitucionais. O dispositivo foi considerado vlido, desde que se exclusse da noo de associaes ospartidos polticos. Cfe. Bguin, Jean-Claude. Le contrle de la constitutionnalit des lois em Rpublique FdraleDAllemagne. Paris, Economica, 1982, p.194.

  • 26

    declarao de inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto e at mesmo

    interpretao conforme Constituio. Isso significa dizer que, no caso

    especfico, qualquer tribunal pode, alm de declarar a inconstitucionalidade de

    uma lei em sede de acolhimento total ou parcial quantitativa , entender, por

    exemplo, que esta somente parcialmente inconstitucional, permanecendo o

    dispositivo em sua literalidade. Ou seja, assim como o controle de

    constitucionalidade no prerrogativa do Supremo Tribunal, os seus diversos

    mecanismos includos a a interpretao conforme e a nulidade parcial

    tambm no o so. Por que m Juiz de Direito que, desde a Constituio de

    1891 sempre esteve autorizado a deixar de aplicar uma lei na integra por

    entende-la inconstitucional no pode, tambm hoje, em pleno Estado

    Democrtico de Direito, aplic-la to somente em parte? O mesmo se aplica aos

    Tribunais, que, neste caso, no esto dispensados de suscitar o incidente de

    inconstitucionalidade, quando se tratar da tcnica da nulidade parcial sem

    reduo de texto.

    Dito de outro modo, a possibilidade de os tribunais e at mesmo o juiz

    singular fazer uso dos citados mecanismos fundamenta-se no controle difuso de

    constitucionalidade. Impedir esse uso pelos juizes e tribunais inferiores seria

    restringir a prpria modalidade de controle difuso; seria uma espcie de meio-

    controle. E no se objete com o exemplo dos Tribunais Constitucionais europeus,

    como, v.g., o da Alemanha, isto porque, no modelo tedesco, existe o instituto do

    incidente de inconstitucionalidade, pelo qual toda questo constitucional deve ser

    submetida diretamente Corte Constitucional (Lei Fundamental, art. 100, I;

    Constituio austraca, art. 140, (1)). Na Alemanha, na ustria e na Espanha,

    para citar alguns modelos, os Tribunais Constitucionais detm o monoplio do

    controle de constitucionalidade.

    J no Brasil, no existe esse monoplio stricto sensu, em face da vigncia

    do controle difuso (incidental) de constitucionalidade. Desse modo, se entre os

    vrios modos de controlar a constitucionalidade se inserem mecanismos como o

    da interpretao conforme e o da nulidade parcial sem reduo de texto, parece

    razovel sustentar que tais instrumentos tambm podem ser manejados no

    mbito do controle incidenter tantum.

  • 27

    Em apoio tese da possibilidade de Tribunais e Juizes aplicarem a

    interpretao conforme a Constituio e a nulidade parcial sem reduo de texto

    vem o texto de Vitalino Canas, para quem, seja a interpretao conforme a

    Constituio uma regra para a concretizao da Constituio, uma regra de

    fiscalizao da constitucionalidade, ou uma regra de interpretao, sempre o juiz

    ordinrio ter competncia para a sua utilizao. Na verdade, ele encontra-se

    diretamente subordinado Constituio, sendo, tambm, os Tribunais rgos de

    fiscalizao da constitucionalidade e competindo-lhes a interpretao da lei.27 No

    mesmo sentido, Rui Medeiros,28 que entende que no h fundamento para

    atribuir ao fiscal da constitucionalidade (Tribunal Constitucional) uma maior

    liberdade no recurso interpretao conforme do que aquela de que dispem os

    tribunais em geral.

    O exemplo austraco vem corroborar a tese aqui exposta. L, o uso da

    interpretao conforme no constitui um monoplio do Tribunal Constitucional,

    no obstante ser um sistema em que no h controle difuso de

    constitucionalidade. Com efeito, todo o rgo estadual aplicador de normas,

    especialmente os demais Tribunais Superiores, tm de entender o material

    jurdico a aplicar em cada caso em conformidade com a Constituio. De referir

    que, quando o Tribunal Constitucional, no controle abstrato ou concreto de

    normas, interpreta uma lei em conformidade com a Constituio, ele apenas

    afasta aquela(s) hipteses(s) de interpretao que conduz(em) a um resultado

    inconstitucional. Ao contrrio de outros rgos aplicadores da lei, ele no tem,

    pois, competncia para, sem mais, declarar qual dentre as vrias interpretaes

    possveis conformes a Constituio a correta. O Tribunal Constitucional devia,

    desse modo, limitar-se, tambm ao fazer uso da interpretao conforme a

    Constituio, funo do legislador negativo, no atribuindo lei um nico

    sentido, a seu ver o mais correto. Ou seja, constitui tarefa do Tribunal

    Constitucional, no mbito da interpretao conforme a Constituio das leis,

    apenas o afastamento do sentido da lei considerado inconstitucional e no o

    27 Cfe. Canas, Vitalino. Introduo s decises de provimento do Tribunal Constitucional, op.cit., p. 38.Embora o autor trate do sistema jurdico portugus, importante notar que, como no Brasil, Portugal adota adplice frmula de controle de constitucionalidade: concentrado e difuso.28 Cfe. Medeiros, Rui. A deciso de inconstitucionalidade. Lisboa, Univ. Catlica, 2000, p. 309.

  • 28

    apuramento de um contedo nico conforme a Constituio. A prtica do

    Tribunal, no entanto, no observa tais consideraes em toda a sua extenso.29

    Assim, sendo pacfica, pois, no direito comparado, a possibilidade de os

    tribunais inferiores e os juizes singulares lanarem mo da interpretao

    conforme a Constituio e da inconstitucionalidade parcial qualitativa (sem

    reduo de texto), h que discutir acerca da necessidade ou no da suscitao

    do respectivo incidente de inconstitucionalidade pelos rgos fracionrios dos

    Tribunais da Repblica. Pelas peculiaridades com que se revestem tais institutos,

    entendo dispensvel tal suscitao. Afinal, como bem diz Mendes, quando, pela

    interpretao conforme, se fixa uma dada interpretao, o Tribunal no declara

    nem poderia faz-lo a inconstitucionalidade de todas as possveis

    interpretaes de certo texto normativo. No mbito da interpretao conforme, a

    norma no declarada inconstitucional e sim, constitucional, sendo que esta

    continuar, aps a declarao, carecendo de interpretao em suas outras

    aplicaes e os Tribunais ordinrios, que tambm so competentes para a

    aplicao do direito, podem desenvolver outras interpretaes em conformidade

    com a Constituio.30

    Em se tratando de deciso de acolhimento parcial qualitativa, isto ,

    quando uma das incidncias (preceito ideal) abduzida do texto, permanecendo,

    portanto, o texto em sua integralidade, o raciocnio deve ser o mesmo. Desse

    modo, a soluo est justamente na diferena entre ao que seja

    inconstitucionalidade parcial qualitativa e inconstitucionalidade parcial

    quantitativa. Com efeito, enquanto na primeira o texto permanece intacto no

    sistema, na segunda ocorre a expuno formal de uma parte do dispositivo ou da

    lei.

    Veja-se, neste sentido, interessante exemplo advindo do direito

    espanhol, mais especificamente a sentena 105/88 do Tribunal Constitucional.

    Nesse julgamento, esteve em discusso a constitucionalidade do art. 509 do

    Cdigo Penal, que penalizava com pena de priso todo aquele que fosse detido

    na posse de gazas ou outros instrumentos destinados a praticar furtos e no

    pudesse dar suficientes explicaes acerca de sua aquisio ou posse.

    29 Cfe. Oberndorfer, Peter. A justia constitucional no quadro das funes estaduais, op.cit., p.159 e segs.30 Cfe. Mendes, Jurisdio, op.cit, p. 228 e 275.

  • 29

    Apreciando um caso concreto, o Tribunal entendeu que aquele texto normativo

    era contrrio Constituio (princpio da presuno de inocncia), qualquer

    interpretao do tipo penal que castigue a simples posse dos instrumentos

    idneos, isto , (...) en cuanto se interprete que la posesin de instrumentos

    idneos para ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que

    les da su poseedor es la ejecucin de tal delito. No caso hispnico, o texto

    permaneceu na integra, sendo inconstitucional somente se (ou enquanto, na

    medida em que ou na parte que, para utilizar a frmula do Tribunal

    Constitucional de Portugal) interpretado de determinada maneira.

    Assim, no o fato de a nulidade parcial sem reduo de texto ser uma

    tcnica de controle de constitucionalidade que ter o condo de obrigar a

    suscitao do incidente de inconstitucionalidade, at porque a interpretao

    conforme tambm um mecanismo de controle e no se h de falar em suscitar

    incidente para tal. Na verdade, a caracterstica de sentenas interpretativas

    que torna dispensvel o incidente. Apenas um dos sentidos da lei (portanto,

    repita-se, o texto permanece) que afrontar a Constituio. O texto, do mesmo

    modo como ocorre com a interpretao conforme a Constituio, foi otimizado.31

    Em sntese, a suscitao do incidente somente tem fundamento quando um texto

    expungido do sistema.

    Por ltimo, releva anotar, parafraseando Medeiros e Prm, que no se

    justifica aplicar o regime de fiscalizao concreta, ou seja, suscitar o incidente de

    inconstitucionalidade que o modo previsto no sistema jurdico brasileiro de

    aferir a constitucionalidade no controle difuso de forma stricto senso aos casos

    em que esteja em causa to somente a inconstitucionalidade de uma das

    possveis interpretaes da lei, pois o juzo de inconstitucionalidade de uma

    determinada interpretao da lei no afeta a lei em si mesma, no, pondo em

    causa, portanto, a obra do legislador.32 De novo, aqui, a importncia da

    hermenutica, no sentido de que a interpretao implica, sempre, em um

    processo de applicatio, ou seja, h sempre uma hiptese em que o texto tem

    31 Observe-se a deciso do Tribunal Constitucional da Alemanha, de 30 de outubro de 1963, interpretandorestritivamente o art. 129 do Cdigo Penal, que estabelecia penas de priso aos membros de associaes quepromovessem determinadas atividades inconstitucionais. O dispositivo foi considerado vlido, desde que seexclusse da noo de associaes os partidos polticos. Cfe. Bguin, Jean-Claude. Le contrle de laconstitutionnalit des lois em Rpublique Fdrale DAllemagne. Paris, Economica, 1982, p.194. 32 Ver, nesse sentido, Medeiros, op.cit., p. 330, e Prm, Hans Paul. Verfassung und Methodik, Berlin, 1977, pp.188 e segs.

  • 30

    uma determinada incidncia, emanando da, uma norma. No h um texto que

    no esteja relacionado com uma determinada situao hermenutica.33

    Ainda aqui vale referir uma questo que, de certo modo, j foi exposta,

    no sentido de que, mesmo que se equipare (como querem autores do porte de

    Wassilius Skouris, Albert Von Mutius e Karl Bettermann), isto , mesmo que se

    d o mesmo tratamento aos institutos da interpretao conforme a Constituio

    e nulidade parcial sem reduo de texto, sempre estar-se- excluindo os

    sentidos do texto normativo que o conduzem inconstitucionalidade. Permanece,

    pois, o texto normativo no sistema, afastando-se to somente aquele (ou um

    dos) sentido(s) contrrio(s) Constituio. Por isso, a desnecessidade da

    suscitao do incidente.

    Em face do exposto, proponho que, na aplicao do pargrafo nico do

    art. 2 da Lei 10.259 seja declarada a nulidade parcial do aludido dispositivo

    sem reduo de texto, afastando-se a sua incidncia nas hipteses de infraes

    penais que, efetivamente, no podem ser classificadas como de menor potencial

    ofensivo. toda evidncia, a tarefa de especificar o elenco de delitos que devem

    ser excludos no nada fcil. Se de um lado h um leque de infraes que,

    nitidamente, devem ser excludas do rol dos crimes que tenham menor potencial

    ofensivo, h outro conjunto de infraes que ficam em uma zona cinzenta.

    Entendo a preocupao de setores da comunidade jurdica com a questo

    de se retirar a incidncia de algumas hipteses previstas pela Lei. Miranda

    Coutinho34 diz ter srias dvidas em deixar para os juzes (ou o judicirio no

    plano do controle concentrado) a escolha de quais seriam as infraes que no

    poderiam receber o epteto de menor potencial ofensivo. Segundo o professor

    paranaense, estar-se-, assim, retirando do legislador a atribuio constitucional

    de estabelecer os citados critrios. Muito embora, em tese, haja razes de sobra

    para essa desconfiana com o Judicirio, h que se entender que a jurisdio

    constitucional apresenta sempre esse risco, at mesmo quando os juzes

    (controle difuso) ou o Supremo Tribunal Federal (controle concentrado) atua

    como legislador negativo. As preocupaes de Miranda Coutinho so

    pertinentes. Entretanto, sou mais otimista. Com efeito, entendo que os

    33 Nesse sentido, ver Streck, Jurisdio, op. Cit. 34 Miranda Coutinho, Jacinto Nelson. Debate acerca da Lei 10.259. Porto Alegre, 16 de agosto de 2002.

  • 31

    mecanismos da interpretao conforme a Constituio e a nulidade parcial sem

    reduo de texto j esto incorporados na tradio do Estado Democrtico de

    Direito (e at mesmo na legislao brasileira Lei 9.868). Creio que, em sendo a

    Constituio remdio contra maiorias, h momentos em que e a histria do

    constitucionalismo prdigo em exemplos a justia constitucional (difusa ou

    concentradamente) tem a tarefa de corrigir as distores operadas por leis que

    desbordam da Constituio. Alis, o garantismo de Ferrajolli aponta exatamente

    nessa direo, a partir da distino entre vigncia e validade. Trago a colao,

    propsito, julgado da 5a Cmara Criminal do TJRS, aplicando a tcnica da

    inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto:

    Penal. Roubo majorado. Circunstncia agravante. Crime

    cometido contra irm. Controle da constitucionalidade. Agresso

    aos princpios da igualdade, secularizao e racionalidade.

    Inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto do art. 61, inc.

    II, e, do Cdigo Penal. O patrimnio e a integridade da irm

    do denunciado, enquanto bens jurdicos, merecem a mesma

    proteo que alcanada a qualquer do povo, sob pena de

    violao ao princpio constitucional da igualdade. Se a condio

    parental no facilitou a consumao do crime, tampouco revestiu

    descumprimento de dever jurdico assistencial ou causou dano

    psicolgico vtima, no h razo alguma para o acrscimo de

    pena, pois a valorao de circunstncia que em nada altera o

    juzo de reprovao agride o princpio da racionalidade. A

    exasperao da pena, calcada to-somente no descumprimento

    de um dever moral de fidelidade de um irmo para com o outro,

    agride o princpio constitucional da secularizao. Compete ao

    julgador fiscalizar a constitucionalidade da lei, suprimindo, dentre

    seus sentidos possveis, aqueles incompatveis com os preceitos

    constitucionais utilizando-se da tcnica da inconstitucionalidade

    parcial sem reduo de texto (lio do Prof. Lenio Luiz Streck).

    unanimidade, deram parcial provimento ao apelo (TJRGS Ap.

    70004388724 Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho).

    Em face do exposto, proponho que, na aplicao do pargrafo nico do

    art. 2 da Lei 10.259 seja declarada a nulidade parcial do aludido dispositivo

  • 32

    sem reduo de texto, afastando-se a sua incidncia nas hipteses de infraes

    penais que, efetivamente, no podem ser classificadas como de menor potencial

    ofensivo. toda evidncia, a tarefa de especificar o elenco de delitos que devem

    ser excludos no nada fcil. Se de um lado h um leque de infraes que,

    nitidamente, devem ser excludas do rol dos crimes que tenham menor potencial

    ofensivo, h outro conjunto de infraes que ficam em uma zona cinzenta.

    De todo modo, como se trata de aplicar a tcnica da inconstitucionalidade

    parcial sem reduo de texto, pela qual retiraremos a incidncia do pargrafo

    nico do artigo 2o em alguns tipos penais, possvel deixar assentado, desde j

    e com razovel margem se segurana, um rol inicial de delitos que jamais

    poderiam ter sido epitetados como de menor potencial ofensivo. Ou seja, a

    pergunta que cabe : a transgresso a um delito que est umbilicalmente ligado

    a um bem jurdico protegido pela Constituio pode ser classificado como de

    menor potencial ofensivo? Se a resposta for negativa, est diante de uma

    indevida incluso no rol estabelecido pela Lei 10.259. Assim, no so de menor

    potencial ofensivo as seguintes infraes penais, que podem ser classificadas em

    dois grupos: o primeiro diz respeito s infraes com penas at dois anos,

    previstos no Cdigo Penal e em leis especiais, e o segundo, que abrange o

    elenco de infraes a que a lei prev procedimentos especiais. Assim:

    6.1.1) Primeiro grupo infraes previstas no Cdigo Penal e em

    leis especiais sem previso de procedimento especial:

    a) EXPOSIO OU ABANDONO DE RESCM NASCIDO (art. 134) e

    SUBTRAO DE INCAPAZES (art. 249): a insero destes crimes no rol de

    infraes de menor ofensivo viola explicitamente os arts. 1, III, e 227 da CF; a

    criana e o adolescente recebem especial tratamento constitucional, no

    podendo o legislador, de forma ficta, retirar a gravidade da ofensividade de tais

    infraes, existentes no sistema para proteger esses relevantes bens jurdicos.

    b) VIOLAO DE DOMICLIO, cometido durante a noite ou em lugar ermo,

    ou com o emprego de violncia ou de arma ou por duas ou mais pessoas (art.

    150, par. 1): no h liberdade de conformao do legislador para transformar

    esse crime em quase bagatelar, pela simples razo de que a casa o asilo

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    inviolvel do cidado, clusula ptrea constitucional. No se pode olvidar que h

    uma contradio em si mesma nessa incluso no rol das infraes de menor

    potencial ofensivo, traduzido pelo prprio tipo penal: um crime cometido com

    emprego de violncia ou de arma... Logo, h que se indagar: onde est a

    lesividade light desse crime?

    c) FRUSTRAO DE DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA (art.

    203), cuja pena de 1 a 2 anos foi estabelecida recentemente pela Lei 9.777/98:

    a toda evidncia, trata-se de bem jurdico visceralmente ligado aos captulo dos

    direitos sociais previstos na Constituio Federal. No parece razovel supor que

    a violao de um direito trabalhista assegurado por lei (leia-se,

    fundamentalmente, a Constituio da Repblica) possa vir a ser considerado

    como infrao de baixa lesividade (soft crime).

    d) ATENTADO AO PUDOR MEDIANTE FRAUDE (art. 216): a incluso deste

    crime no rol dos que tm menor (ou baixo) potencial ofensivo aponta para a

    flagrante violao do princpio da dignidade humana e da liberdade sexual. Nem

    de longe razovel supor que o legislador tenha liberdade de conformao para

    transformar um delito dessa jaez em um crime passvel de transao penal.

    e) DESACATO (art. 331), DESOBEDIENCIA (art. 359) e FRAUDE

    PROCESSUAL (art. 347): a incluso destes crimes no rol de infraes proto-

    bagatelares representa confronto com o princpio da eficincia do Estado (art.

    37, caput, da CF), sem mencionar a funo do Estado e do Direito enquanto

    interditos. Parece arrematada fico (ou irresponsabilidade legislativa) fazer

    pouco caso de delitos que objetivam proteger bens jurdicos que dizem respeito

    ao exerccio da autoridade pelo Estado soberano, que deve zelar pela eficincia

    da administrao lato sensu e pela probidade administrativa. Numa palavra:

    admitir que uma fraude processual tenha menor potencial ofensivo colocar

    uma p de cal na teoria do bem jurdico!

    f) CRIMES CONTRA ORDEM TRIBUTRIA (art. 2 da Lei 8.137): sua incluso

    no rol de infraes de menor potencial ofensivo ofende frontalmente o art. 3, I,

    III, 4, II, da CF, normas-programa que apontam para a construo de um

    Estado Social, representado por uma sociedade justa e igualitria, com a

    obrigao da erradicao das desigualdades sociais, pelas quais, toda

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    evidncia, crimes como sonegao de impostos, no podem ser equiparados - e

    nem receber o mesmo favor legis - a crimes como esbulho, dano ou qualquer

    contraveno penal etc... (aqui, a violao do art. 5, caput), alm da violao

    dos princpios constitucionais como da proporcionalidade e da razoabilidade (a

    Lei 10.259 representa um desvio de finalidade em relao Lei 8.137); alm de

    que absolutamente despropositado a Constituio apontar para a realizao de

    um Estado Social, onde est nsita a tese de que o recolhimento de impostos

    um caminho privilegiado da efetivao de direitos sociais (sade, educao, etc),

    (h, sem dvida, um dever fundamental de pagar impostos) e ao mesmo tempo

    uma Lei ordinria (des)classificar o crime de sonegao de tributos para a classe

    de infraes de menor potencial ofensivo, ao ponto de considera-lo menos

    ofensivo que o crime de furto simples. A violao da Constituio , mais do que

    visceral, escandalosa.

    g) CRIMES AMBIENTAIS (art. 45 da Lei 9.605): esta espcie de tipo penal

    protege bens jurdicos de terceira gerao, albergados no art. 225 da CF); a

    aceitar a tese do legislador, mais grave isto , bem mais grave passar um

    cheque sem fundos do que incendiar uma floresta. Trata-se de flagrante violao

    de bens jurdicos de ndole transindividual.

    h) CRIMES COMETIDOS CONTRA CRIANA E ADOLESCENTE (arts. 228,

    229, 230, 232, 234, 235, 236, 242, 243 e 244 da Lei 8.069): a insero destes

    crimes no rol de infraes de menor ofensivo viola explicitamente os arts. 1, III

    e 227 da CF. Uma simples leitura do rol de crimes previstos no ECA e, agora,

    reunidos sob a nominao de menor potencial ofensivo, demonstra o

    pragmatismo inconseqente do legislador. Com efeito, como convencer o

    homem de la caje, que o ato de ministrar ou entregar a uma criana produtos

    que causem dependncia fsica (como substncias txicas), seja um soft crime?

    E o ato de privar a criana ou o adolescente de sua liberdade? ato a ser

    considerado de baixa lesividade, a ponto de a punio ser barganhada? No se

    ignora, aqui, a importncia da subsidiarie