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Governador do AmazonasOmar José Abdel Aziz

Reitor da Universidade do Estado do AmazonasProfo. Dr. José Aldemir de Oliveira

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ANO-7,Nº 13 MANAUS, JULHO-DEZEMBRO,2009

ANO-8,Nº 14MANAUS, JANEIRO-JUNHO,2010

UNIVERSIDADE

DO ESTADO DO

A M A Z O N A SEdições

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Copyright © 2007Governo do Estado do Amazonas

Omar José Abidel AzisSecretaria de Estado da Cultura

Universidade do Estado do Amazonas – UEA

Universidade do Estado do AmazonasReitor José Aldemir de Oliveira

Vice-Reitora Marly GuimarãesPró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Maria das Graças Vale Barbosa

Escola Superior de Ciências SociaisDiretor Randolpho de Souza Bittencourt

Programa de Pós-Graduação em Direito AmbientalCoordenador: Serguei Aily Franco de Camargo (2009-atual).

Solicita-se permutaSolicitase canje

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEAPrograma de Pós-Graduação em Direito Ambiental

Rua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar,Centro, CEP: 69010-170

Manaus – Amazonas – BrasilTel./Fax. 55 92 3627-2725

E-mail: [email protected]: www.pos.uea.edu.br/direitoambiental/

Coordenadores(as)Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa

Coordenação EditorialProf. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProf. Dr. Walmir de Albuquerque BarbosaProf. Dr. Ozório José de Menezes Fonseca

Conselho EditorialProfa. Dra. Cristiane DeraniProf. Dr. David Sánchez RubioProf. Dr. Fernando Antonio de Carvalho DantasProf. Dr. Joaquim Shiraishi NetoProf. Dr. Luiz Edson FachinProf. Dr. Ozorio José de Menezes FonsecaProf. Dr. Raymundo Juliano FeitosaProf. Dr. Sandro Nahmias MeloProf. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProfa. Dra. Solange Teles da SilvaProf. Dr. Walmir Albuquerque Barbosa

Revisão Técnica e NormativaDenison Melo de Aguiar

Diagramação e Projeto GráficoFrancisco Ricardo Lopes de Araújo

Revisão OrtográficaProfa. Rosa Suzana Batista Farias

Ficha catalográficaLucia Helena Santana Ferreira – CRB 2/1243

Hiléia: Revista de Direito Ambiental daAmazônia. ano 7-9, n.º 13-14. UEA - EdiçõesGoverno do Estado do Amazonas / Universidade do Estadodo Amazonas, 2010.

p. 336 ISSN: 1679-9321 (Semestral)

1. Direito Ambiental – Amazônia II.Universidade do Estado do Amazonas. Programa de Pós- Graduação em Direito Ambiental.

CDD: 344.046811

CDU 349.6 (811.3)(05)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...............................................................................11

PARTE I

ANTROPOLOGIA OU DIREITO?CRÍTICA A AUTOSUFICIÊNCIA DO DIREITOCarlos Marés.........................................................................................17

AS MÚLTIPLAS TEORIAS SOBRE CRIME ORGANIZADO E AS SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICASErivaldo Cavalcanti..............................................................................33

NOTAS SOBRE O OBJETO CONTRATUAL EM FACE DA BIOTECNOLOGIA A PARTIR DO “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”Laura Garbini Both Rosalice Fidalgo Pinheiro.....................................................................57

A LEI DE SEMENTES E OS SEUS IMPACTOS SOBRE A AGROBIODIVERSIDADEJuliana Santilli.......................................................................................79

MEIO AMBIENTE, PROPRIEDADE E COBERTURA FLORESTALEdilson Pereira Nobre Júnior............................................................115

EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SULGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza.................................................................133

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PARTE II

ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADEOzorio J. M. Fonseca..........................................................................157

PROTEÇÃO AMBIENTAL YANOMAMI: convergências cosmológicas, culturais e de sustentabilidade com suporte constitucional no Estado BrasileiroEdson Damas da Silveira....................................................................175

A EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA GARANTIA DE PREVALÊNCIA DOS DIREITOS TRANSISNDIVIDUAIS EM FACE DOS DANOS AO MEIO AMBIENTEAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.......................................................195

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃO AMBIENTALRaymundo Juliano FeitosaAlexandre Henrique Salema Ferreira...............................................209

A PÓS-MODERNIDADE E AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃOWalmir de Albuquerque Barbosa.......................................................231

A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIAAline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim..............................................................247

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PARTE III

POR UMA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS: uma análise sobre a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu – AMDenison Melo de Aguiar......................................................................277

A EFETIVIDADE DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA COMO TRATADO-QUADRO DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DA FAUNA E DA FLORA DO BRASILDiogo de Oliveira Lins........................................................................303

PARTE IV - RESUMOS....................................................................317

DISSERTAÇÕES DE MESTRADO (JANEIRO/2008 – DEZEMBRO/2009)

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CONTENTS

PRESENTATION.................................................................................11

PART I

ANTHROPOLOGY OR RIGHT?Critical of the right to self-suffi ciencyCarlos Marés.........................................................................................17

THE MULTIPLE THEORIES ABOUT ORGANIZED CRIME AND ITS MAIN FEATURESErivaldo Cavalcanti..............................................................................33

NOTES ON THE OBJECT IN CONTRACT FACE OF BIOTECHNOLOGY FROM THE “ESSAY ON THE GIFT”Laura Garbini Both Rosalice Fidalgo Pinheiro.....................................................................57

THE LAW OF SEEDS AND THEIR IMPACTS ON AGROBIOVERSITYJuliana Santilli.......................................................................................79

ENVIRONMENT, PROPERTY AND FOREST COVER Edilson Pereira Nobre Júnior.............................................................115

THE EFFECTUATION OF ETHNIC AND COLLECTIVES LAWS: A BATTLE FOR THE TRADITIONAL COMMUNITIES OF THE SOUTH REGION Gladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza..................................................................133

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PART II

ACCESS AND USE OF BIODIVERSITYOzorio J. M. Fonseca..........................................................................157

ENVIRONMENTAL PROTECTION YANOMAMI: COSMOLOGICAL CONVERGENCES, CULTURAL ANDA SUSTAINABILITY WITH CONSTITUTIONAL SUPPORT IN THE BRAZILIAN STATE Edson Damas da Silveira...................................................................175

THE PROCEDURAL EFFECTIVENESS OF CLASS ACTION IN SERVICE GUARANTEE PREVALENCE TRANSISNDIVIDUAIS RIGHTS BY THE DAMAGE TO THE ENVIRONMENTAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo......................................................195

ECONOMIC DEVELOPMENT, TAXATION AND ENVIRONMENTAL INDUCTIONRaymundo Juliano FeitosaAlexandre Henrique Salema Ferreira...............................................209

THE POST- MODERN AND THE COMMUNICATION SCIENCES Walmir de Alburquerque Barbosa.....................................................231

THE NEED FOR CRIMINAL PROTECTION AGAINST THE BIOPIRACY IN THE AMAZON Aline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim..............................................................247

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PART III

FOR A LEGAL ALTERY IN SOCIAL ENVIRONMENTAL FISHERIES CONFLICTS: AN ANALYSIS ABOUT SANTO ANTÔNIO DO RIO URUBU COMMUNITY – AMDenison Melo de Aguiar......................................................................277

THE EFFECTIVENESS OF THE AMAZON COOPERATION TREATY ORGANIZATION AS FRAMEWORK FOR ENVIRONMENTAL PROTECTION OF FAUNA AND FLORA OF BRAZIL Diogo de Oliveira Lins........................................................................303

PART IV - MASTERS DEGREE DISSERTATIONS (JANUARY/2008 – DECEMBER/2009)...........................................................................317

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APRESENTAÇÃO

A Hiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia, tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento de conhecimento científi co que corresponda às realidades sociais que são estudadas por pesquisadores no campo do Direito Ambiental e áreas afi ns. Possuindo, neste sentido, uma variedade de temas relacionados à complexidade das questões Amazônicas.

Esta edição é a condensação de dois números: 13 e 14 da Revista. Correspondente ao segundo semestre do ano 7 da revista (número 13-julho a dezembro de 2009), e primeiro semestre do ano 8 da revista (número 14-janeiro a junho de 2010), na qual se encontram conteúdo científi co de Direito Ambiental e diversas áreas afi ns. Os artigos desta edição envolvem questões relativas aos povos e comunidades tradicionais, Direito Ambiental Penal, Propriedade Intelectual e questões que se entrelaçam com as realidades da Amazônia Brasileira.

Importante também, agradecermos aos nossos (as) colaboradores (as): Professor Doutor José Aldemir de Oliveira, Magnífi co Reitor da UEA e a Professora Doutora Maria das Graças Vale Barbosa, Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa que garantiram os recursos necessários à atualização da periodização da revista; aos Professores Doutores Ozorio Jose de Menezes Fonseca e Walmir de Albuquerque Barbosa e ao Mestrando Denison Melo de Aguiar (bolsista CAPES), aos quais foram repassados os encargos de organização editorial dos dois números da Hiléia, agora entregues aos nossos leitores; aos professores e colaboradores externos; e, fi nalmente, aos mestrandos e seus orientadores, e demais autores que contribuíram com seus estudos nesta revista.

Agradecemos, em especial, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e ao Conselho Nacional Científi co e Tecnológico - CNPQ pelo apoio fi nanceiro ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental.

Prof. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoCoordenador do Programa de pós-graduação em Direito Ambiental – Universidade do Estado do Amazonas

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ÍNDICE - PARTE I

ANTROPOLOGIA OU DIREITO?Crítica a autosufi ciência do direitoCarlos Marés...................................................................................................17

Introdução; 1 Os estados nacionais e os povos indígenas; 2 A autosufi ciência do direito; 3 A autosufi ciência do direito e as outras ciências; 4 O direito e os direitos coletivos; 5 Os direitos coletivos e a antropologia; Conclusão.

AS MÚLTIPLAS TEORIAS SOBRE CRIME ORGANIZADO E AS SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICASErivaldo Cavalcanti........................................................................................33

Introdução; 1 Explicado o crime organizando; 1.1 Teorias centradas em patologias individuais; 1.2 Teoria da desorganização social; 1.3 teoria da associação diferencial; 1.4 Teoria do controle social; 1.5 Teoria do autocontrole; 1.6 Teoria da anomia; 1.7 Teoria interacional; 1.8 Teoria da escolha racional; 2 Escolha racional: um enfoque teórico-metodológico para a explicação de crime organizado; 2.1 Trajetória de Jonh Elster; 2.2 A explicação por meio do individualismo metodológico, do reducionismo e a intecionalidade-causalidade; 2.3 A explicação por meio de mecanismos; 3 as principais organizações criminosas no mundo; 3.1 A Cosa Nostra Italiana; 3.2 Ndrangheta; 3.3. A Camorra; 3.4 AS tríades chinesas; 3.5 A yakusa;

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3.6 A Máfi a Russa;3.7 OS Cartéis Colombianos; 3.8 O Primeiro Comando da Capital; Conclusão;

Referências.

NOTAS SOBRE O OBJETO CONTRATUAL EM FACE DA BIOTECNOLOGIA A PARTIR DO “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”Laura Garbini Both Rosalice Fidalgo Pinheiro...............................................................................57

Introdução1. “Vivant”: um novo objeto contratual2. Do contrato ao “don”: notas de ressignifi cação do contrato3. O “ensaio sobre a dádiva”: um novo “mito fundante”4. A dádiva e a etnografi a do “vivant”: outra liberdade possível?ConclusãoReferências

A LEI DE SEMENTES E OS SEUS IMPACTOS SOBRE A AGROBIODIVERSIDADEJuliana Santilli.................................................................................................79

Introdução1. A agrobiodiversidade: um conceito em construção2. Agrobiodiversidade e segurança alimentar, nutrição, saúde e sustentabilidade ambi-ental3. As leis de sementes e a infl uência do modelo agrícola industrial4. As sementes e os sistemas agrícolas locais5. A lei de sementes brasileira6. As sementes locais, tradicionais ou crioulas7.As sementes “para uso próprio”ConclusãoReferências Bibliográfi cas

MEIO AMBIENTE, PROPRIEDADE E COBERTURA FLORESTALEdilson Pereira Nobre Júnior.......................................................................115

1. Função social da propriedade e a tutela do meio ambiente2. Intervenção estatal na propriedade e meio ambiente3. Das fl orestas de preservação permanente

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4. A reserva legal5. Agrupamento das situações que ensejam indenização e modo de sua quantifi cação

Referências

EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SULGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza............................................................................133

Introdução; 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta; 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate; 2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas específi cas; 2.2.1. Quilombolas; 2.2.2. Faxinalenses; 2.2.3. Indígenas; 2.2.4. Pescadores Artesanais; 2.2.5. Cipozeiras; 2.2.6. Ilhéus; 3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão; Referência Bibliográfi ca

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ANTROPOLOGIA OU DIREITO?Crítica a autosufi ciência do direito

Carlos Marés

Sumário: Introdução; 1 Os estados nacionais e os povos indígenas; 2 A autosufi ciência do direito; 3 A autosufi ciência do direito e as outras ciências; 4 O direito e os direitos coletivos; 5 Os direitos coletivos e a antropologia; Conclusão.

INTRODUÇÃO

“A lei é uma invenção, se a lei não reconhece o direitos dos índios, os brancos que inventem outra lei” disse Paiaré, incontestável liderança da resistência do povo Gavião da Montanha contra a construção da hidroelétrica de Tucuruí.1

Que jurista, por mais ortodoxo e dogmático que seja, pode contestar esta afi rmação vinda de uma pessoa que vê o sistema jurídico brasileiro como a lei do outro? Que antropólogo pode negá-la sabendo que, realmente, a lei moderna

Resumo: Analisa a relação difícil dos po-vos indígenas e o direito na América Latina e a necessidade de haver uma profunda in-terlocução do direito com a antropologia, especialmente agora, a partir do fi nal do séc. XX, quando os Estados latinoamerica-nos passaram a aceitar os povos indígenas como sujeitos de direitos coletivos.

Resumen: Hace un análisis de la difícil relación entre los pueblos indígenas y el derecho em América Latina y la necesidad de un profundo diálogo entre el derecho y la antropología. Muy especialmente desde los fi nales del siglo XX, cuando los estados nacionales latinoamericanos empezaran a aceptar los pueblos indígenas como sujetos de derechos colectivos.

* Carlos Frederico Marés de Souza Filho é Professor Titular de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, no Programa de Mestrado e Doutorado, e graduação de Direito Socioambiental. É Procurador do Estado do Paraná, membro do ILSA, ISA, IBAP. Foi Secretário de Cultura de Curitiba, Presidente da Fundação Cultural de Curi-tiba, Procurador Geral do Estado do Paraná, Presidente da FUNAI, Procurador Geral do INCRA e Presidente do BRDE. É autor de vários livros e artigos sobre direito, terras, índios, patrimônio cultural e direitos coletivos e socioambientais..1 Ver “O renascer dos povos indígenas para o Direito”.

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é um acordo criado num pequeno centro de poder, portanto uma invenção?É claro que a afi rmação pode ser interpretada, reinterpretada, desconstruída

e desqualifi cada, mas sempre fi ca a irrespondível e dura verdade da criação dos Estados Nacionais latinoamericanos, e suas leis, sem qualquer consulta, pergunta ou acordo com as centenas de povos do continente. Os povos que não pediram para ser súditos da lei inventada. Se fossem consultados talvez não quisessem ou nem mesmo compreendessem a razão de ser de um Estado Nacional concebido e arranjado para outra forma de vida e produção. A dura realidade é, também, que os Estados Nacionais sempre imaginaram que sua Lei é muito mais do que uma invenção, chegando às raias de uma ciência ou arte que interpreta o justo universal e engloba a ética humana, não sendo necessário, por isso, perguntar aos outros se querem ou gostam de sua aplicação. D. João VI, rei de Portugal, acreditava que um dia os índios haveriam de entender o quão era bom viver como súditos das justas, humanas e doces lei do seu reino2. Paiaré não pertence ao reino e consegue compreender a natureza da Lei e sabe que, com a clareza de quem olha as coisas como elas são, que ela é fruto de criação, cuja legitimidade só pode existir na lógica de quem a aceitou por nascença ou opção.

Paiaré e os Gavião da Montanha não são exceções na América latina. Ao contrário, embora densa e diversa a população da Amazônia brasileira, seguramente não é a região de maior confl ito, nem de maiores difi culdades de relacionamento entre os povos indígenas e os respectivos Estados Nacionais. A condição de sucesso na implantação dos Estados Nacionais latinoamericanos têm sido exatamente a devastação de sua natureza e integração como trabalhadores assalariados de seus povos. Tudo, evidentemente, passando pela cristianização de seus costumes e a submissão de suas condutas às chamadas normas legais e estados de direito. Assim, quanto maior o sucesso da implantação do Estado moderno, do capitalismo, tanto maior o confl ito, até chegar a aniquilação, que, afi nal, como dizia o rei português, é o estado de paz.

Nessa medida, fi ca quase impossível estudar ou conviver com os povos indígenas na América Latina sem relaciona-los com os Estados Nacionais que exercem soberania sobre os territórios que lhes coube viver. Também é quase impossível conhecer e estudar os direitos nacionais latinoamericanos sem tratar da questão indígena, porque seria sempre um estudo parcial. Esta é uma característica marcante dos sistemas jurídicos da América Latina que há muito tempo mantém um velado confl ito com os povos originários do continente e

2 Carta Régia de 5 de novembro de 1808, assinada pelo Príncipe D. João VI que deter-mina que faça a guerra aos índios botocudos do Paraná, já que foi impossível trazê-los à civilização para “gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacífi ca e doce, debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos”.

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que no fi nal do século XX têm buscado incluir seus direitos coletivos como excepcionais e de difícil aplicação, mas obviamente existentes.

Assim, a Antropologia e o Direito, na América Latina, tiveram que andar de mãos dadas, entendendo-se mutuamente para colmatar as lacunas que a realidade historicamente insiste em abrir nas duas ciências, artes ou estudos. Não apenas na academia e nos estudos de natureza teórica, mas na prática do dia a dia, seja dos tribunais, seja do cotidiano das populações indígenas, o antropólogo e o advogado se veem obrigados a trabalhar juntos, aquele entendendo ou buscando entender a lógica individualista e contratualista do direito, este se vendo na contingência de se despir desta lógica para entender que nem sempre direito e obrigação se equivalem como exige teoricamente o contrato. Talvez seja mais difícil para o advogado ou juiz ter essa compreensão, exatamente porque aprendeu em sua “ciência” que a realidade deve se adequar às leis legitimamente elaboradas dentro do Estado de Direito. Ao antropólogo talvez seja mais fácil, acostumado com a diversidade cultural, é capaz de entender o caráter da lei e compreender que suas mutações não são fruto de um decantado aprimoramento do sistema, mas de uma nem sempre surda luta de interesses, de uma correlação de forças dentro da sociedade chamada envolvente, moderna e capitalista.

Dentro desta idéia, o presente trabalho não pretende encerrar uma análise teórica da Antropologia Jurídica, mas uma análise concreta da realidade latinoamericana, sua multiculturalidade em confronto com os sistemas jurídicos nacionais que, embora sejam próprios de cada país, tem uma única fonte e lógica: a racionalidade moderna.

1 OS ESTADOS NACIONAIS E OS POVOS

Os Estados Nacionais latinoamericanos foram criados, constituídos é mais correto dizer, à imagem e semelhança dos europeus. Os libertadores do continente tinham como ideário o pensamento de Napoleão Bonaparte: conquistar, libertar e impor leis civis. Liberdade, igualdade e fraternidade traduzidas para as constituições nacionais como liberdade, igualdade, propriedade e segurança, foram as palavras chaves das nações nascentes. Uma depois de outra foram sendo escritas as constituições, muito parecidas entre si, precedidas de acerto de contas das elites, de divisões territoriais inimagináveis e arbitrárias, obedecendo somente os interesses e os poderes de grupos e de capitais. Todas esqueceram seus povos, seus índios! A maior parte não conseguiu sequer libertar os escravos, criando uma lacuna ou omissão jurídica tão grande que nela cabia a base principal da produção nacional.

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A interpretação das duas palavras fortes do ideário, liberdade e igualdade, se enfrentou com uma realidade muito diferente na América indígena. A produção que correspondia aos estados nascentes tinha como base o trabalho escravo e, como consequência, a liberdade foi traduzida como liberdade do Estado, isto é, a liberdade dos nascentes estados latinoamericanos frente ao colonialismo europeu. Os mais autenticamente liberais lutaram contra a escravidão, mas compreendiam a liberdade simplesmente como o expurgo do trabalho não contratado, do trabalho escravo. Quer dizer, em grande medida, os novos estados latinoamericanos compreenderam com mais precisão o duplo signifi cado capitalista desta liberdade: a liberdade contratual e a soberania do Estado. O duplo signifi cado da liberdade implica na exclusão de grupos e povos. O Estado soberano deve ter apenas um povo, que são todos os indivíduos livres para contratar. Complementando esta idéia, o conceito de igualdade retira qualquer vínculo grupal dos indivíduos, para tornar cada um igual enquanto pessoa. Estes dois conceitos juntos formam um todo coerente e dramático para a realidade americana: os escravos, africanos ou indígenas, deveriam ser transformados em trabalhadores livres, despossuídos, prontos para, enquanto indivíduos, contratar com seus patrões. Para isso deveriam ser iguais entre si, desconsideradas todas as idiossincrasias coletivas, culturais, hierárquicas do povo a que originalmente pertencessem. A organização, língua, religião, direito de cada povo estaria destinado ao ralo da história. É claro que tudo isto deveria ser facilmente substituído pela organização social, língua, religião e direito do estado moderno recém constituído.

Diferente da Europa, a constituição do estado moderno capitalista na América Latina encontrou uma sociedade extremamente diversifi cada não por classes sociais, mas povos diferenciados com graus de contato e de relação muito variados. Isto fez com que o direito que nasceu a partir daí atendesse somente parcela relativamente pequena da sociedade, aqueles integrados nos negócios dos novos países e herdeiros do poder colonial. Os juristas, por sua vez, ao interpretarem e teorizarem o direito criado, com interpretações e teorias também importadas da Europa, não perceberam a profunda e radical diferença dos povos locais e imaginaram um direito cuja meta mais generosa haveria de ser integrar as pessoas indígenas como trabalhadores contratados, livres e, de preferência, cristãos. E aos escravos o só direito de receber um salário ao fi nal do mês se conseguissem continuar trabalhando e se “valessem” a remuneração por receber.

Há exceções, é bem verdade. Em alguns lugares e países houve quase o extermínio da população indígena, como Cuba e Uruguai. Em outros, juristas mais sensíveis perceberam as diferenças e propuseram direitos diferenciados.

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Mesmos os excepcionais juristas que entenderam as diferenças sociais e, em consequência, reclamaram por normas legais que as atendessem, tiveram em mente que a situação indígena seria provisória e tão logo pudessem compreender a harmonia do sistema jurídico e estatal, o chamado Estado Social de Direito, deixariam de ser índios, isto é, deixariam de ter uma nacionalidade, etnia, grupo ou tribo, para viver como indivíduo, pessoa, cidadão, súdito livre do Estado Nacional. De tão raras, as exceções apenas confi rmam a regra geral3.

A política ofi cial historicamente foi no sentido de tratar os índios como trabalhadores. Triste ironia, equiparados aos trabalhadores estrangeiros. Não por outra razão a Organização Internacional do Trabalho, OIT, aprovou uma resolução em 1957, a Convenção de número 107, “concernente à proteção e integração das populações indígenas e outras populações tribais e semi-tribais de países independentes”. A lógica desta Convenção é a integração pelo trabalho, quer dizer, regulamentava uma política e legislação de exceção enquanto permanecessem as diferenças culturais, o que a convenção chamava de estado de segregação. As normas legais e as políticas, porém, deveriam ser de tal ordem que não prolongassem o chamado “estado de segregação”. Era uma política de bondosa eliminação de povos. É claro que se tivesse sido totalmente bem sucedida esta política de assimilação a antropologia estaria condenada a estudar somente culturas mortas.

A convenção 107 foi substituída pela 169, em 1989. Fruto de um novo pensamento sobre os povos indígenas, especialmente nas Américas, e do nascimento de muitos estados nacionais africanos saídos do colonialismo, a nova convenção adota “novas normas internacionais nesse assunto a fi m de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores”.

Não foram somente as normas internacionais que sofreram mudanças, também as leis nacionais e suas constituições passaram a reconhecer o direito dos povos a continuar a ser povos, independentemente do grau, vontade ou perspectiva de integração na chamada ”comunhão nacional”. De fato, na América Latina o fi nal dos anos 80 e durante todo os 90 muitos países reescreveram suas constituições reconhecendo-se como estados pluri-étnicos e multiculturais. Ao mesmo tempo que isto acontecia, havia um reclamo por leis que protegessem a natureza e a incluísse no sistema jurídico como objeto ou sujeito de direitos. Este duplo movimento seria uma quebra de paradigma, já que o direito criado e constituído a partir do século XIX era individualista, fundado no contrato e nos

3 No Brasil se pode citar um dos maiores nomes do direito nacional, Cló-vis Bevilacqua.

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direitos de um sujeito individual, principalmente no direito de propriedade. Por outro lado, o objeto deste direito haveria de ser uma coisa transformada pelo trabalho humano, útil e com valor econômico capaz de ser patrimonializado como propriedade de uma pessoa; a natureza como tal, estaria fora. A inclusão dos índios e da natureza haveria de romper com este individualismo porque os povos passaram a ser sujeitos de direito e a natureza, não objeto de propriedade, passou a ser tutelada juridicamente.

Embora isto não tenha quebrado o direito individual, o contrato e a propriedade privada, mantendo, portanto, o capitalismo, introduziu uma vasta possibilidade de modifi cações e mutações na teoria e na prática do direito. É verdade que estas mutações, especialmente as práticas, ainda não estão revestidas de efi cácia quando confrontadas com os direitos individuais mais duros do sistema, como a propriedade privada e a manutenção do patrimônio individual. O direito, porém, foi e estã sendo reinventado, atendendo o profético pedido de Paiaré.

2 A AUTOSUFICIÊNCIA DO DIREITO.

Porém, é evidente que este duplo movimento não é neutro para o sistema. Há mudanças! Talvez a mais importante seja o fato de que a decantada independência do Direito tenha sido posto em xeque. No século XIX se dizia que as partes dariam os fatos e o juiz aplicaria o direito. Os fatos sempre eram controvérsias individuais ou violações de normas penais. Podia se imaginar que todo o universo de problemas oriundo das relações sociais estivessem cobertos pela lei e, se não, competia ao juiz encontrar a solução possível, usando as fontes infra legais, jurisprudência, analogia ou costumes. Assim ditava o abrangente Código Civil dos Franceses, de 1803, e que serviu de base e lição para quantos códigos lhe sucederam: “O juiz que se recuse a julgar sob pretexto de silêncio, de obscuridade ou de insufi ciência da lei, poderá se processado como responsável por denegação de justiça”. Está claro que essa idéia remete a uma “razão pura do direito”, para cumprir sua meta e função, o Estado deveria apenas legislar e os indivíduos contratar. O juiz, o interprete, o acusador ou o defensor cumpririam sua tarefa se entendessem “o que a lei determina” em suas expressas palavras; qualquer outro valor ou princípio, como justiça, vida, amor ou simplesmente sobrevivência da espécie ou povo, eram considerados metajurídicos, fora do Direito, ausente de sua lógica, e não mais afeto à sua disciplina. O direito assim pensado com seu Estado formulador e criador era sufi ciente em si, bastava a seus aplicadores e intérpretes a quem se exige o bom conhecimento do vernáculo e,

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quiças, bom trato da gramática. Os conceitos haveriam de ser apenas jurídicos.Os erros, neste sistema, são de pouca monta, porque o que se julga e decide

são apenas relações contratuais. Pode haver cruéis injustiças, mas são sempre individuais, ora se pune um réu inocente, ora se transfere o patrimônio do justo ao desonesto. Porém, por mais cruéis injustiças cometidas, o patrimônio social e a ordem social continuam sem alterações profundas. O capitalismo nunca se propôs a ser justo, apenas seguro.

A simplicidade deste sistema foi abalada com o ingresso da natureza sem dono como objeto de direito e dos coletivos como sujeito. A relação jurídica cuidadosamente construída no século XIX para fazer do Estado apenas uma ferramenta para o cumprimento dos contratos, fi cou ameaçada. Quando um povo indígena adquire direito como povo dentro do sistema, o sistema acaba por reconhecer um direito fora dele. O sistema, em geral a Constituição, lei máxima do sistema, reconhece, como tem reconhecido na América Latina, direito de organização social aos povos indígenas; com a organização social, o direito ao uso da língua, religião, costumes e terra. É claro que está neste particular afi rmando a existência de um direito coletivo à cultura e à terra, este direito está delimitado entre os direitos do sistema e, portanto, se contrapõe aos direitos de propriedade, de livre negociação, de disponibilidade, etc. Esta contradição já é em si um problema para solução de eventual lide, mas além disso, quando as constituições latino-americanas e os tratados e convenções internacionais, admitem que os povos indígenas poderão ter sua própria organização social, isto é, manter ou “inventar” seus direitos internos, fi ca criada uma instância fora do direito, para cuja solução não basta o conhecimento técnico das leis criadas pelo Estado, é necessário um saber mais amplo.

A mesma situação se dá com o ingresso da natureza como objeto de direito. Sempre foram considerados objetos do direito os bens naturais modifi cados, isto é, aqueles transformados pela ação humana a ponto de serem bens patrimonialmente relevantes e, afi nal, transformadas em mercadorias. Assim uma árvore seria objeto do direito enquanto bem acessório ao terreno, ou um bem em si, como madeira ou lenha, se dele já extraído. Se não tivesse serventia, utilidade, a coisa natural não seria objeto de direito, passando a ser somente quando e se pudesse ser útil a alguém. Quando no fi nal do século XX a norma jurídica passa a proteger a natureza, seja com o nome de meio ambiente, biodiversidade, bem natural, estabelece nessa proteção uma relação diferente, nova, sem sujeito defi nido, chamando-o de sujeito difuso ou coletivo, não concretizando uma relação de direito individual de propriedade. Ao contrário, a norma afasta a possibilidade de aquisição individual, opõe esta tutela à propriedade privada, quer dizer, a natureza com dono ou sem dono, objeto ou

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não do direito de propriedade privada, passa a ser protegida por outros valores que não o desejo, vontade ou liberdade do proprietário.

Esta proteção genérica e ao mesmo tempo realizável pontualmente gera um novo confl ito que ultrapassa a lide interpessoal. Para esta nova situação jurídica, que introduz no direito moderno e capitalista, velhos direitos que foram por ele excluídos, como os direitos dos povos e os da natureza, são necessários novos critérios de intervenção e julgamento. O velho e novecentista poder judiciário, formado por técnicos em direito, que estudam leis e não as diversas formas de vida da natureza ou da humanidade não é sufi ciente porque não consegue com sua técnica limitada, normativa e, como dizia Paiaré, inventada, dar conta da solução de confl itos que não cabem nos códigos, como a vida e cultura de uma comunidade em disputa com um parque ecológico.

A autosufi ciência do direito foi, assim, posta a prova. Não são mais dois direitos absolutos e individuais que se contrapõem em relação a um objeto ou obrigação. Resolver esta equação sempre foi fácil, já que são direitos excludentes, ao ser reconhecido o direito de um, necessária e peremptoriamente, está excluído o direito de outrem. Trata-se de adequar a realidade ao estabelecido na norma ou no contrato, que é norma entre partes. A possibilidade de equívoco é formal e uma gama enorme de formalidades foi criada pelo direito para mitigá-lo ou anulá-lo, como a prescrição, a preclusão, a boa-fé, as presunções de legitimidade, as formas processuais, a coisa julgada, etc. Enfi m, dito o direito de um excluído está o direito de outro. Eis a autosufi ciência! Nem outra ciência, religião ou crença poderá desfazer a intervenção do Estado no cumprimento desta decisão. Esta arrogante autosufi ciência foi questionada com o ingresso de povos e bens fora do mercado e sem titular. A aplicação de formalidades processuais e procedimentais não resulta sufi ciente porque a opção pela manutenção de um direito individual concreto não exclui a existência de um direito coletivo ou de proteção da natureza. Pior. Ainda, quando ambos devem subsistir.

3 A AUTOSUFICIENCIA DO DIREITO E AS OUTRAS CIENCIAS.

A discussão acerca da natureza do Direito, se é uma ciência, arte ou profi ssão é tão antiga como inócua. A discussão interna do Direito sobre como se constrói ou verifi ca a legitimidade, também é antiga e inócua. Não importa saber se a legitimidade das normas está limitada a seu espaço puramente jurídico ou fl ui de uma razão aparentemente meta-jurídica, como a justiça, a dignidade humana, a integridade pessoal ou patrimonial dos indivíduos ou qualquer outra coisa ditada pelo sentimento, fi losofi a, moral ou religião. Durante praticamente

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toda a sua vida o Direito foi entendido como autosufi ciente, independentemente da origem de sua legitimidade. Quer dizer, a legitimidade seria garantida por uma norma, regra ou princípio, anterior ou maior que fosse seu fundamento. Mas atenção, escrita a norma, com uma presunção de legitimidade intrínseca, resta a todos os indivíduos cumprirem. Do princípio fundante à regra executória, tudo é direito. As outras ciências são complementares e apenas enriquecem a norma jurídica. O direito da modernidade cabe em si mesmo: estabelece as regras, as aplica e julga a justeza de sua aplicação.

Assim, nos cursos de Direito, ainda hoje, as ciências que são ensinadas apenas explicam as normas jurídicas. A chamada medicina legal, ciência auxiliar, serve para esclarecer se houve morte causada ou suicídio, mas quem decide o homicídio, sua gravidade e pena é o juiz, cuja formação é tão somente jurídica. A história jurídica se transforma rapidamente em história das leis, a história da evolução dos institutos no tempo e o aprimorante das teses no espaço, neste raciocínio, pensar em Antropologia Jurídica é pensar apenas na análise antropológica do Direito ou, ainda melhor, na análise antropológica da lei. No Direito imbuído de uma dogmática estrita e de uma sacralização à literalidade da Lei, qualquer ciência, da gramática à antropologia, devem ser servis à interpretação do profi ssional do direito. Tudo isto porque interessa ao Direito o deslinde do contrato e a certeza da culpa na violação da norma.

Nesta perspectiva, como o princípio fundante é individual e protetor de coisas como bens de propriedade, qualquer estudo que não contemple a relação de pessoas e sua extensão aos bens, não interessam à velha dogmática jurídica capaz de reduzir tudo, sentimentos, conhecimentos, saberes e fazeres, crenças e temores, ao interesse patrimonial do indivíduo. Exatamente por isso a autosufi ciência do direito relega todo conhecimento a um papel secundário. Na prática, o sistema jurídico apresenta esta autosufi ciência de modo a considerar que ninguém é capaz de defender seu direito senão por meio de um advogado formado em “ciências jurídicas” que apresentará sua defesa também diante de um “cientista do direito”, chamado juiz. Os papéis de advogado, juiz, acusador são privativos, mesmo nos tribunais colegiados, as exceções são tão raras que apenas confi rmam a regra. Assim, o que acusa, defende ou julga, precisa eventualmente de auxiliares que são chamados “peritos”. Tecnicamente o perito não deve saber e muito menos dizer o direito, dirá apenas de sua técnica; as partes e o juiz devem analisar o chamado laudo pericial como se fossem fatos e aplicar o direito. Volta aqui com toda plenitude a máxima dos juízes do século XIX: “dá-me os fatos que lhe darei o direito”. O perito será um engenheiro, psicólogo, biólogo, agrimensor ou antropólogo, mas será sempre um técnico alheio ao direito, será um analista de fatos, enquanto o jurista se dirá o analista

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da justiça e harmonia da sociedade, mas apenas decidirá sobre a forma, isto é, a adequação do fato à lei.

Tudo isto foi assim, e assim tem sido, porque o direito estava concebido como um apêndice do Estado que, por seu turno, tem por função garantir os direitos individuais, ser o guardião da propriedade privada e do contrato. Toda esta organização e estrutura se assentam na concepção constitucional do século XIX, em que deveria haver um território apenas e um só povo que entrega, ou empresta, nos termos de Rousseau, a soberania à organização chamada Estado. Além desta soberania haveria apenas de existir a vontade individual soberana (livre e igual): nenhum poder que medeie o Estado e o cidadão, na clássica formulação da Revolução Francesa4. Aqui, a ordem jurídica nada tem a ver com as ciências senão para conhecer os fatos e aplicar a Justiça.

O Direito, autosufi ciente, pode viver ao largo das ciências e das artes preocupado apenas com as relações interpessoais e a necessidade do Estado salvaguarda-las.

4 O DIREITO E OS DIREITOS COLETIVOS

Pois bem, esta arrumada ordenação estava funcionando para dirimir os confl itos interpessoais e reafi rmava cada vez mais a independência do Direito a ponto de tornar os profi ssionais do ramo como fi scais privilegiados da própria sociedade. Estes juristas fi scais passaram a ser ainda mais importantes nos países que criaram os Tribunais Constitucionais, formados por juízes togados bacharéis em Direito e o Ministério Público com legitimidade para propor ações civis. Com o ingresso dos direitos coletivos e os objetos difusos o sistema começou a mostrar suas lacunas, não admitidas na autosufi ciência, mas claras na incapacidade de solucionar os confl itos

Por direitos coletivos, aqui, se entende o conjunto de direitos que um grupo humano tem sobre determinado objeto coletivo (coisas, relação, sistema ou conhecimento) sem poder ser chamado de direito de propriedade. O direito coletivo não pode ser confundido com a propriedade coletiva que existe e sempre existiu no direito moderno. Propriedade coletiva signifi ca que mais de uma pessoa têm direito sobre um mesmo bem. A diferença é que o direito

4 Ver a propósito o livro “O contrato social”, de Jean Jacques Rousseau. Ver também a chamada Lei de Le Chapellier, originada na revolução francesa, em 1791, que proibia qualquer organização social, incluindo sindicatos, em nome da livre iniciativa empre-sarial, que dizer de povos indígenas. Esta lei vigorou em França até 1864.

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de propriedade é sempre individual, ainda que uma pluralidade de agentes o detenha, neste caso se pode dizer que cada titular é proprietário de sua porção, ainda que indivisível, sobre ela recaindo as regras estabelecidas para o direito de propriedade individual, sucessão, disponibilidade, etc. Portanto, há um grupo titular da propriedade coletiva formado por indivíduos, e o direito do grupo é o resultado da soma dos direitos de propriedade individual de seus integrantes. Somente é possível integrar este grupo com a aquisição de parte da propriedade dos outros integrantes, portanto somente é possível ingressar ao grupo por meio da aquisição da propriedade. Ao contrário disto, o direito coletivo não é propriedade. O grupo é titular enquanto grupo e nenhum dos seus membros tem direito a parcela do todo: todos tem direito a tudo, mas ninguém tem direito a parte. Isto tem como consequência que ninguém tem direito a transferir sua parte a outrem e tampouco alguém pode ingressar no grupo por aquisição de parte do direito. Em resumo, o primeiro é fruto de um contrato que forma o grupo e, neste segundo caso, não há contrato, o grupo é “naturalmente” formado. Por isso o direito coletivo é próprio daquelas situações em que um grupo de pessoas se reúne por difusos interesses comuns, como família, clãs, povo, ou organização social e cultural comum, cujos exemplos mais signifi cativos são os povos indígenas na América latina.

A propriedade coletiva se difere dos direitos coletivos, portanto, porque aquela está unida por um contrato, isto é, por obrigações mútuas de pessoas que para tal manifestaram e expressaram sua vontade de adquirir o bem e assumir as obrigações inerentes ao contrato; já a origem dos direito coletivos nem longinquamente é contratual, ao contrário, nasce de uma situação natural de estado, isto é, o fato é mais relevante que o direito. Se na primeira, propriedade coletiva, permanece intacta a idéia de propriedade privada individual, portanto um sujeito individual de direito, na segunda há um sujeito coletivo que afasta e inibe a existência de um sujeito individual.

A maioria dos sistemas jurídicos latinoamericanos, hoje, aceita a existência de um direito coletivo, mas poucos admitem em sua prática judiciária a existência do sujeito coletivo de direito. Esta aparente incongruência se dá pelo fato de que o reconhecimento em juízo dos direitos coletivos tem se dado, na maioria das vezes, como direitos de sujeitos difusos, isto é, não caracterizados, não delimitados, não claramente conhecidos.

Expliquemos melhor isto. Ao lado do sujeito coletivo de direito está um objeto, elevado a categoria de bem jurídico que não integra nenhum patrimônio individual. Os sistemas jurídicos da América Latina, a partir de 1988, pelo menos, aceitam a existência destes objetos (bens jurídicos não patrimonializados) como bens ambientais ou culturais, material e imaterialmente considerados, e também,

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se assemelhando a estes bens, as políticas públicas de saúde, moradia, educação, de trabalho ou renda. Todos estes direitos podem se realizar individualmente, real ou fi cticiamente, além de ser um direito da coletividade. Até mesmo o meio ambiente e patrimônio cultural podem ser reduzidos ao interesse individual de proteção, na idéia de que todos, isto é cada um, tem direito a eles. Apesar de imprópria, porque todos aqui signifi ca “ninguém tem direito individual sobre a coisa”. esta redução tem sido feita. De qualquer forma, quando é difícil esta redução ao individuo, como o meio ambiente e a cultura, os sistemas tem entendido como “bens protegidos” e ao não ter um sujeito defi nido, individual, o chamam de direito “difuso”. Note-se que o direito assim entendido se realiza pelo objeto, independentemente do sujeito, por isso alguns menos avisados sustentem que o sujeito do direito pode ser o próprio bem.

Muito diferente disto são os direitos que se defi nem coletivos porque o sujeito é naturalmente coletivo, como os povos indígenas, quilombolas, ciganos e outras comunidades que se diferenciam por não estarem unidas por relações contratuais. Neste caso o objeto, bem jurídico, se defi ne pela existência do grupo como seu titular, como a terra, a organização social, língua, crenças religião, cultura, etc. Reconhecer este direito em sua plenitude tem sido muito difícil mesmo para os mais avançados sistemas da América Latina.

O não reconhecimento demonstra uma resistência do sistema aos próprios direitos coletivos, preferindo chama-los de interesses ou mesmo caracterizá-los pelo objeto. O Direito do fi nal do século XX resolveu proteger situações, relações e bens não integrantes dos patrimônios privados, sob a ameaça de destruição ambiental e cultural. Assim, o Direito passou a proteger fl orestas, animais, ecossistemas, biodiversidade, mas também bens arquitetônicos, históricos, artísticos, materiais e imateriais5. Ao proteger estes bens o faz de forma genérica, sob uma teoria de que são bens sem titulares de direitos, quando muito tratam como se o titular do direito de proteção fosse todo o povo, no mais amplo sentido que a modernidade deu a povo, titular da soberania do Estado. Daí que este titular é difuso, e, portanto, a própria idéia de que este direito de proteção ao meio ambiente e cultura seja difuso.

5 A proteção dos chamados bens culturais ou históricos, artísticos e paisagísticos são an-teriores e remontam o início do século XX, mas somente vieram a ter alguma relevância e estudo jurídico a partir do fi nal, quando foram equiparados aos ambientais.

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5 OS DIREITO COLETIVOS E A ANTROPOLOGIA

A teoria jurídica ainda busca explicações para o fenômeno dos direitos coletivos e bens jurídicos não personalizados, mas se debate na justifi cativa dogmática da aceitação de normas protetoras tão heterodoxas. Alguns dogmas fortemente estabelecidos foram rompidos, como o da irresponsabilidade penal da pessoa jurídica, o da patrimonialização dos bens jurídicos, da legitimidade e interesse de agir para estar em juízo, do caráter absoluto da propriedade privada da terra, da relação jurídica sem contrato e outros. Tem sido difícil para os juristas, juízes e outros profi ssionais do direito, aceitar estas “novidades”. É claro que a discussão quando não inclui povos indígenas e outras sociedades humanas diferenciadas, se limita a entender o fenômeno do objeto de direito sem sujeito ou com um sujeito difuso. Mas mesmo nesta limitada discussão que se encerra com a aceitação de que a norma jurídica pode estabelecer proteções especiais para o meio ambiente, para a cultura, para o bem estar de cada um, como se fossem aprofundamentos das políticas públicas ou a transformação das políticas publicas em direitos coletivos, há uma visível abertura do Direito.

De fato, para entender este fenômeno jurídico, o profi ssional precisa conhecer, ter informações seguras de outras ciências, impensáveis para a velha dogmática, como biologia, zoologia, geologia, arquitetura, paleontologia, entre muitíssimas outras. Ainda que o Direito continue tratando estas novidades conceituais como peritagem, já é claro que há uma profunda diferença entre o perito informante de fatos e este cientista, que não é um profi ssional, mas um acadêmico que discutirá conceitos, remetidos pela lei. Portanto, entrará no campo da interpretação jurídica ao lado do juiz ou do advogado. Nesta confi guração, é o cientista não jurista que indica as razões do direito e não ao contrário. Na interpretação das leis de proteção ambiental o jurista tem pouco a dizer a mais do que repetir a própria lei, quem diz o que é equilíbrio, fauna em extinção, patrimônio cultural, dano ambiental, são outros cientistas. Mais uma vez deve-se notar aqui que a lei moderna tratava apenas de relações interpessoais, em grande medida se reduzindo à propriedade privada e ao patrimônio individual. Desta forma, ao discorrer sobre uma árvore ou fruto pendente, o direito discutia apenas a propriedade ou os danos causados ao patrimônio alheiro em relação à arvore ou fruto pendente. O papel do jurista ou juiz, portanto, era entender os fatos para aplicar o direito, daí a necessidade, no máximo, de um perito para dizer onde se localizava a árvore ou onde cairia naturalmente o fruto. Com o ingresso dos direitos coletivos e objetos despatrimonializados, surgiu uma complexidade que exige interpretação científi ca da lei e não apenas dos fatos. O cientista não jurista passa a ser intérprete deste direito e não apenas colaborador

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para matéria de fato.É claro que ainda há uma relutância muito grande de parte da dogmática

tradicional, assim como ainda há uma relutância das outras ciências, que tampouco restaram puras com a necessidade de cotejar direitos. O que há, de fato, é uma aproximação para que juristas e cientistas possam se entender, quebrando a autosufi ciência da interpretação jurídica e introduzindo normatividade e garantias típicas do direito no conceitual das outras ciências.

A relação do direito com as outras ciências teriam mudado profundamente se apenas tivesse sido mexido nas coisas, bens jurídicos, objeto de direito. Mas estas mudanças se tornam ainda mais imperiosa e muito mais profunda, quando se torna visível que as alterações extrapolam o objeto do direito de propriedade, e alcançam o sujeito de direito. Então, as ciências que quebram a autosufi ciência não são apenas as refentes ao ambiente e a natureza, mas também ao ser humano. Passa a haver uma necessidade de interpretação da lei sobre conceitos de comunidade, povos, etnias, organizações sociais diferenciadas, etc. objeto das ciências sociais, especialmente da antropologia. Portanto com a introdução dos sujeitos coletivos de direito, a velha dogmática jurídica se vê na obrigação de compartilhar os conceitos com as ciências sociais, além das outras ciências descritoras de realidades fáticas.

Além disto, os sujeitos coletivos de direito alteram em muito maior profundidade a velha dogmática individualista e é claro que assim o seja. Enquanto tratávamos de objeto, a lei apenas cobria o bem jurídico com um manto de proteção, criando sanções administrativas ou penais para aquele que a violasse, mas quando falamos de sujeitos coletivos de direitos, tocamos dogmas rígidos, como o da igualdade e da liberdade individuais. Aqui o sistema estremece. A igualdade coletiva, todos os coletivos iguais em direito, signifi ca que todos tem que respeitar o sistema de todos, nem sempre internamente iguais. Quer dizer, as relações internas de um coletivo pode não estabelecer como princípio a igualdade, exatamente porque as co-obrigações não são fundadas em contratos, mas em relações de solidariedade, religiosidade, respeito ou dádiva. Estes coletivos, assim organizados, têm direitos próprios e comuns, se submetendo como um todo, e não individualmente, na comunhão nacional. Na América Latina, o melhor exemplo destes coletivos são os povos indígenas que sobrevivem praticamente em todos os Estados nacionais.

Neste cenário, a Antropologia entra direta e profundamente porque é a ciência que deve compartilhar com o Direito o entendimento da relação dos povos, ou que nome se dê a estes grupos humanos, com os Estados Nacionais.

Há neste compartilhamento uma dupla afetação: por um lado o direito não consegue resolver sozinho esta relação porque é incapaz de decidir sobre direitos

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que são estranhos a seus códigos e a antropologia, por seu turno, tem que agregar a seus fundamentos teóricos a normatividade do direito. Esta junção, ora vista com lentes mais antropológicas, ora mais jurídicas, rompe com a autosufi ciência do direito, mas rompe, também, com o isolamento da antropologia. Quer dizer, a partir destes olhares múltiplos, talvez mais fácil para os antropólogos acostumados com realidades múltiplas, nasce a necessidade desta unidade que se pode nominar antropologia jurídica. Fique claro, porém, que não se trata de uma antropologia que estuda o direito vigente em determinada época e sociedade, nem um direito que analisa institutos de sociedades diferenciadas se apropriando das ferramentas da antropologia, mas o estudo de como os sujeitos coletivos de direito se relacionam com a contraparte estatal ou privada individual.

CONCLUSÃO

Colocando em termos mais claros, as sociedades latinoamericanas são múltiplas e complexas, formada por muitos povos e comunidades diferenciadas com maior ou menor grau de integração e relação com os Estados nacionais. Os Estados nacionais construíram uma fi cção de que todas as pessoas estariam integradas individualmente como cidadãos ou sujeitos individuais de direitos, negando assim o reconhecimento dos grupos, povos e comunidades, que, apesar deste não reconhecimento continuam a existir. O Direito se ocupou sempre desta fi cão e, portanto, desconsiderou a existência dos povos. A Antropologia se ocupou sempre dos povos, despreocupando-se dos direitos nacionais que pouco tinham a ver com os povos originários salvo na qualidade de genocida.

Ocorre que no fi nal do século XX o Direito na América Latina abriu-se para o reconhecimento dos povos originários e seus direitos coletivos, passando a reconhecer, ainda que com pouca efi cácia, a natureza de sujeitos coletivos de direito a estes povos. Surge então, para o Direito, uma necessidade imperiosa, a de se valer dos métodos e instrumentais antropológicos para entender este novo sujeito reconhecido, já que não pode ser integrado nos códigos de forma uniforme porque afi nal, cada povo é único, não se admitindo generalizações que proporcionem uma “igualdade” entre eles.

Por outro lado, ao serem reconhecidos como sujeitos de direitos, estes povos passaram a ter, querendo ou não, sabendo ou não, uma relação com os Estados nacionais e seu direito. Então surge para a Antropologia uma necessidade imperiosa de conhecer, interpretar relacionar-se com o mundo das normas

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“inventadas” pelos Estados nacionais, precisando do método e instrumentais geralmente retóricos da Direito.

Estes dois caminhos, um trilhado pelo jurista e outro pelo antropólogo, se encontram numa clareira de horizontes arqueados e distantes em que os dois métodos se utilizam mas não se confundem, que um conhecimento continua necessitando imperiosamente do outro, cuja divisão de trabalho, tão ao gosto da ciência moderna, fi ca comprometida, seja porque não se juntam por obrigações recíprocas (contrato), nem se estabelecem na mutação do que sempre foi (cultura). Esta clareira, difi cilmente habitada por uma só pessoa, se chama antropologia jurídica.

Artigo recebido em: junho /2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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AS MÚLTIPLAS TEORIAS SOBRE CRIME ORGANIZADO E AS SUAS PRINCIPAIS

CARACTERÍSTICAS

Erivaldo Cavalcanti*

Sumário: Introdução; 1 Explicado o crime organizando; 1.1 Teorias centradas em pa-tologias individuais; 1.2 Teoria da desorganização social; 1.3 teoria da associação dife-rencial; 1.4 Teoria do controle social; 1.5 Teoria do autocontrole; 1.6 Teoria da anomia; 1.7 Teoria interacional; 1.8 Teoria da escolha racional; 2 Escolha racional: um enfoque teórico-metodológico para a explicação de crime organizado; 2.1 Trajetória de Jonh Elster; 2.2 A explicação por meio do individualismo metodológico, do reducionismo e a intecionalidade-causalidade; 2.3 A explicação por meio de mecanismos; 3 as principais organizações criminosas no mundo; 3.1 A Cosa Nostra Italiana; 3.2 Ndrangheta; 3.3. A Camorra; 3.4 AS tríades chinesas; 3.5 A yakusa; 3.6 A Máfi a Russa; 3.7 OS Cartéis Colombianos; 3.8 O Primeiro Comando da Capital; Conclusão e Referências.

Resumo: Neste trabalho descritivo-explicativo nossa preocupação foi apresentar as principais teorias acerca de crime organizado. Trata-se de uma complexa cadeia que se inicia com conceitos de organização criminosa, tanto do ponto de vista jurídico, como político e sociológico, açambarcamos desde as teorias do controle social, do autocontrole, da anomia, a interacional e a escolha racional, a qual nos atemos com maior rigor dado aos seus meios explicativos. Para a partir daí adentrarmos nas principais organizações criminosas vigentes no mundo.

Palavras-chave: Teorias do crime; crime organizado; organizações criminosas.

Abstract: In this descriptive-explanatory work our concern was to present the main theories about organized crime. This is a complex chain that starts with concepts of criminal organization, both from a legal standpoint, such political and sociological, embezzled from the theories of social control, self-control, of anomie, the interactive, rational choice, the which we abide more strictly to its facilities as explanatory. From there we turn to the major criminal organizations existing in the world.

Keywords: Theories of crime, organized crime, criminal organizations.

* Prof. Dr. do Curso de Direito do Centro Universitário Nilton Lins (UniNilton Lins) e do Centro Universitário do Norte (Uninorte).

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INTRODUÇÃO

O perigo apresentado pelo adensamento das atividades das organizações criminosas é, na contemporaneidade, um fenômeno de escala planetária. O crime organizado tem-se convertido em um dos maiores obstáculos enfrentados pelos governos e pela sociedade, dentro dos mais díspares contextos do cenário político internacional.

A ação dos grupos criminosos no seio dos Estados traz conseqüências profundamente deletérias, sejam em países democráticos como os Estados Unidos, em processo de amadurecimento democrático como na Rússia, desenvolvidos economicamente como na Espanha e Itália ou em desenvolvimento como no Brasil.

O crime organizado tem expandido signifi cativamente seu raio de alcance, atuando em diversas áreas e trazendo prejuízo às instituições e a sociedade civil como um todo. O crescente poder dessas associações criminosas abala as estruturas do Estado democrático de direito, promovendo insegurança, o descrédito e ameaçando as garantias e liberdades fundamentais.

Apesar de a expressão “crime organizado” já fazer parte do vocabulário corrente, sendo empregada para designar as complexas cadeias articuladas pelas facções criminosas, o grau de teorização acadêmica no que concerne a essa temática, permanece limitado. Os empreendimentos analíticos que se desenvolvem a compreensão deste fenômeno e as pesquisas empíricas que fornecem subsídios explicativos a respeito deste objeto de estudo, são, muitas vezes, pouco claras e estritamente caracterizadoras que garantem no máximo um conceito e deixam uma lacuna na comprovação e explicação de seus mecanismos e de sua dinâmica.

Percebe-se, então, que a maioria dos trabalhos que buscam caracterizar o crime organizado não se preocupam com indagações fundamentais para sua adequada compreensão. Situação essa sintetizada por Oliveira (2004, p. 16).:

Para apreender de modo abrangente o sofi sticado fenômeno do crime organizado é necessário à busca de respostas para as seguintes indagações: 1) o que é crime organizado? 2) por que surgem as organizações criminosas? 3) por que atores estatais cooperam com a criminalidade organizada? as buscas dessas respostas requerem dados empíricos e caminhos teóricos preestabelecidos

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Nesse sentido, cabe destacar, que, em decorrência das análises imprecisas e da multiplicidade das interpretações a respeito da temática em apreço, não existem elementos sufi cientes capazes de viabilizar um ponto teórico preciso a fi m de seguir em tal abordagem.

Entretanto, em conseqüência da necessidade de se estabelecer bases para essa análise, faz-se necessário utilizar um quadro teórico que possibilite o entendimento da questão aqui abordada. Para tanto, procuramos lançar mão de pressupostos teórico-metodológicos que se têm revelado mais adequados ao entendimento deste fenômeno social: o neo-instutucionalismo, que é a combinação do instrumentalismo sociológico, histórico e da escolha racional (HALL e TAYLOR, 2003), bem como das elaborações teórica de Elster (1994) em sua explicação por mecanismos.

Desse modo, esta investigação tem como objetivo proceder à construção de um signifi cado mínimo do que seja crime organizado e explicar seus mecanismos de atuação. As características desse crime são apontadas por meio de uma revisão bibliográfi ca das principais vertentes explicativas que dão conta do aludido fenômeno. A partir daí procuramos construir uma defi nição que toma por base analítica perspectivas das Ciências Sociais, explicando os mecanismos de atuação das organizações criminosas por meio das relações causais, possibilitando, assim, a construção de uma teoria explicativa (OLIVEIRA, 2004, passim).

Dividimos nossa abordagem em quatro tópicos, inicialmente procuramos explicar o crime organizado tendo como fonte norteadora a explicação das principais teorias sociológicas que versam sobre o tema posto, para isso fomos das teorias centradas nas patologias individuais a teoria interacional; em seguida, tratamos de expor a escolha racional em busca de estabelecer critérios objetivos; e por fi m, apresentamos as principais organizações criminosas presentes na atualidade.

1 EXPLICADO O CRIME ORGANIZANDO

Determinadas abordagens na Sociologia utilizam-se do conceito de “conduta desviada” para explicar o crime como desvio social, ou seja, um comportamento que se afasta das expectativas sociais e contraria os padrões e modelos da maioria social. A esse respeito, defi ne Boudon (1995, p.414).:

O desvio é o conjunto de comportamentos e situações que os membros de um grupo consideram não conformes às suas expectativas, normas ou valores e que, por isso, ocor-

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rem o risco de suscitar condenação e sanções de sua parte. Isso signifi ca que o sociólogo considera desviante as ações e as maneiras de ser que são mal vista e sancionadas pela maioria dos membros de um grupo

Assim, um desvio corresponde a uma atitude reprovável, e para que semelhante fato possa ocorrer é necessário que se tenha a noção daquilo que venha a ser reprovável. Não é possível efetivamente falar em injustiça sem antes conhecer o signifi cado daquilo entendido por justiça, isto é, não se classifi ca algo como falso sem antes conhecer o que é verdadeiro. Logo, o desvio pressupõe a existências de um universo normativo, o qual raramente constitui-se um conjunto homogêneo. Dessa forma, a distinção entre o que seja desvio ou não desvio é variável, dependendo do universo normativo de cada grupo.

Como conseqüência, tem-se que o conceito de um ato como criminosos varia em relação ao juízo que é feito pela sociedade sobre esse ato, ou seja, o principal critério para se classifi car uma conduta como desviante é a reação que ela provoca. Alenta Durkheim (2000): “não o reprovamos por ser crime, mas é um crime por que reprovamos”.

A sociologia Criminal é uma ciência que não se ocupa unicamente em explicar a origem da criminalidade, mas também, e de forma incisiva, em analisá-la. Dessa forma, o estudo do fenômeno criminoso não é realizado apenas mediante uma abordagem historicista, mas também por intermédio de metodologias que se preocupam em compreendê-lo empiricamente. As teorias que buscam explicar as causas de um crime lançam mão de um conjunto de variáveis e fatores considerados relevantes para seu entendimento. Consequentemente utiliza um expressivo número de modelos teóricos e empíricos, não raro, divergentes entre si.

Segundo Cano (2002, passim) é possível identifi car as diversas abordagens sobre as causas do crime em cinco grupos: teorias que tentam explicar o crime em termos de patologia individual; teorias centradas no homo econômicos, isto é, no crime como uma atividade racional de maximização dos lucros; teorias que consideram o crime como subproduto de um sistema social perverso ou defi ciente; teorias que entendem o crime como uma perda de controle e da desorganização social na sociedade moderna; e, correntes que defendem explicações do crime em função de fatores situacionais ou de oportunidades.

A Sociologia Criminal contemporânea tem duas grandes vertentes: a norte-americana e a européia. O modelo europeu estrutura-se sobre o legado intelectual do Sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), tendo como maior instrumento analítico a chamada teoria da anomia social. Esta percebe o crime como se tratasse de um fator constituinte da ordem social dotado de

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funcionalidade, mas que toma aspecto patológico depois de ultrapassar certos limites aceitos coletivamente, gerando, assim, um estado de anomia. Esta tese representou uma nova forma de perceber o crime, deixando de entender esse fenômeno com base estrita nas características individuais negativas (físicas e psicológicas) dos infratores considerados individualmente, e passando a explicar o comportamento criminal por meio de processos macros sociológicos próprios do ordenamento sociopolítico.

O modelo norte-americano, por sua vez, relaciona-se com a Escola de Chicago, da qual nasceram os demais esquemas teóricos. Os modelos sociológicos, que progressivamente passaram a explicar as origens e o modus operandi da criminalidade, partem da premissa do crime como fenômeno social seletivo, estreitamente ligado a processos, estruturas e confl itos sociais. Tais elaborações contribuíram para um conhecimento realista do problema criminal, apresentando a natureza “social” do problema, como também a multiplicidade de fatores que nele atuam.

1.1 TEORIAS CENTRADAS EM PATOLOGIAS INDIVIDUAIS

As teorias baseadas nas patologias podem ser divididas essencialmente em três grandes grupos ou categorias: as de natureza biológica, psicológica e psiquiátrica. As teorias de natureza biológica têm Cesare Lombroso (1835-1909) seu principal representante. O referido autor pretendeu encontrar uma causa geral para o comportamento criminoso. Baseado em critérios antropométricos e raciológicos, o teórico afi rmava que determinadas características físicas condicionavam aspectos socioculturais dos indivíduos, explicando suas disposições morais e consequentemente a natureza de comportamento. Dentro da perspectiva delineada por Lombroso, certos fatores como as formações ósseas do crânio, o formato das orelhas, entre outras características, tornavam possível encontrar os indicadores da patologia criminosa.

A mencionada ênfase biológica das causas do crime colocada pelas teses do médico criminologista italiano teve inicialmente grande projeção nos meios acadêmicos devido ao método empírico do qual se valeu em suas investigações (com autópsias e medições cranianas, por exemplo). As idéias lombrosianas foram posteriormente criticadas por conta do seu conteúdo evolucionista extremado, pelo suposto caráter atávico do chamado delinqüente nato e em função do papel atribuído aos estigmas, classifi cados em sua teoria como fatores degenerativos.

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Por não levar em consideração os condicionantes exógenos e sociais, essa tradição analítica perdeu credibilidade e foi aos poucos sendo abandonada, principalmente após a Segunda Grande Guerra, com a derrota da Alemanha Nazista e a denúncia dos crimes de guerra do III Reich colocou-se fi m à possibilidade de se sustentar teorias biológico-raciais.

Inspirada na perspectiva lombrosiana, a psiquiatria acrescentou que os criminosos seriam uma espécie de indivíduo inferior, que teria características como transtorno mental, alcoolismo, neuroses, estresses ou outras particularidades danosas. Pelo prisma da Psicologia, os trabalhos criminológicos realizados buscavam medir objetivamente o grau em que criminosos eram psicologicamente diferentes de não criminosos. Contudo, essas teorias foram descartadas, visto que os experimentos realizados demonstraram que não havia distinção alguma entre criminosos e não criminosos na ótica de traços psicológicos intrínsecos.

Recentemente, em razão dos avanços no campo da genética, da Biologia Social e da Neurobiologia, alguns criminologistas e outros estudiosos do crime têm procurado explicar as características biopsicológicas e o histórico de vida pessoal do indivíduo em conjunto. Para a Biologia social, o crime, em particular o homicídio, decorreria da necessidade consciente ou inconsciente dos indivíduos de preservar sua linha genética, e para a neurobiologia do crime, haveria uma relação positiva entre portadores de neuropatologias e homicidas.

Em suma: as teorias focadas nas patologias individuais seriam umas espécies de junção de problemas biológicos ou mentais com problemas relacionais.

1.2 TEORIA DA DESORGANIZAÇÃO SOCIAL

A teoria da desorganização social corresponde a uma abordagem sistêmica cujo foco de análise é centrado em torno das comunidades locais, as quais são entendidas como um complexo sistema de rede de associações formais e informais. Essas associações seriam condicionadas por diversas variáveis como o status socioeconômico (posição social e econômica ocupada pelo indivíduo na estrutura social); heterogeneidade étnica (dessemelhança biológica e cultural de grupos de indivíduos); mobilidade residencial (volubilidade, inconstância na fi xação de moradia); desagregação familiar (decomposição estrutural da família); urbanização; redes de amizades locais; participação institucional e desemprego.

A teoria proveniente da chamada Escola Sociológica de Chicago nasceu em razão do aumento da densidade populacional, ocasionada pela imigração e

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migração de pessoas para a cidade de Chicago em virtude de sua localização geográfi ca e do momento político por que passavam os Estados Unidos da América. A conseqüente falta de estrutura e a inefi ciência ou impossibilidade de sustentar efi cazmente o crescimento da cidade provocam uma onda de crimes avassaladora. Estudiosos, ao buscarem respostas para a problemática criminal enfrentada pela sociedade e pelas autoridades locais, constataram que as cidades eram organismos vivos divididos em áreas naturais habitadas por tipos humanos diferentes com distintos modos de vida. Verifi caram, também, que signifi cativa parcela do comportamento criminoso abundante nos grandes centros urbanos era fruto de males sociais, tais como a desorganização resultante da perda de valores, o desfazimento familiar, a ausência de vínculos de vizinhança e mobilidade constante.

1.3 TEORIA DA ASSOCIAÇÃO DIFERENCIAL

Dentro do escopo analítico proposto por essa escola, é por meio da experiência pregressa e de interações pessoais estabelecidas mediante o processo de comunicação que os indivíduos determinam seus comportamentos diante de situações de confl ito.

Sutherland (1945) afi rmou que na década de 30 do século passado à criminalidade não era originada da desorganização social, marginalização ou da existência de código de valores diferenciados, mas do aprendizado. Como em uma sociedade existem diferentes interesses, os homens se associam conforme esses interesses, aprendido o comportamento delitivo com esse convívio dos interpessoais, ou seja, do processo de comunicação.

Segundo essa teoria, a conduta criminal é aprendida assim como a conduta virtuosa. Da mesma forma, é na família que ocorre o processo decisivo de aprendizagem. Portanto, a associação diferencial caracteriza-se como conseqüência do princípio de aprendizagem e por meio de associações ou contatos em uma sociedade pluralista e confl itiva, ou seja, o crime não pode, nessa perspectiva, ser tratado como algo anormal ou como fruto de uma personalidade imatura, mas sim visto como se tratasse de um hábito adquirido; uma resposta a situações reais que o sujeito aprende.

Têm-se como variáveis consideradas importantes para a abordagem da teoria do aprendizado social, como também é conhecido esse paradigma explicativo, o grau de supervisão familiar, a intensidade de coesão nos grupos de amizade, a existência de amigos com problema com a polícia, assim como a percepção dos jovens sobre outros envolvidos com problemas de delinqüência, jovens morando com os pais e em contato com técnicas criminosas.

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1.4 TEORIA DO CONTROLE SOCIAL

Essa interpretação preconiza que a crença e a percepção do indivíduo em concordância com o contrato social (acordos e valores vigentes mantidos por convenção social) ou a ligação com a sociedade é o que leva o indivíduo a não seguir o caminho da criminalidade, Ou seja, ao contrário das demais teorias que buscam entender o que leva um indivíduo a cometer um crime, a incorrer em práticas delituosas, a teoria do controle social procura razões que expliquem o que leva a imensa maioria dos indivíduos a obedecer ao ordenamento jurídico e as normas sociais em vigor, apesar do fato de contarem esses sujeitos com um potencial necessário para violá-las e, destarte, a sociedade lhes oferecer numerosas oportunidade para fazê-lo.

Para os teóricos do controle social, não é o modelo do castigo o fator fundamental capaz de explicar o comportamento do infrator, tal como assim declaravam os teóricos da criminologia clássica. Para essa abordagem, devem ser levados em consideração os vínculos entre os indivíduos e a ordem social. Ao chamar a atenção para os mecanismos de controle impostos pelo ordenamento sociopolítico como fatores que servem de parâmetros para a tomada de decisão dos sujeitos, os autores dessa linha afi rmam que o indivíduo evitaria o delito por desejar manter seu comportamento de acordo com as expectativas da sociedade. Situação que se deve à lógica societária, na qual obedecer às leis traria mais vantagens que desvantagens.

A análise da conduta desviada pela teoria do controle social não circunda apenas as baixas classes sociais, segundo seus defensores, um diagnóstico do comportamento delitivo e válido para todos os estratos sociais.

Como variáveis da teoria, têm-se o envolvimento do cidadão no sistema social, a concordâncias com os valores e as normas vigentes, a ligação fi lial, amigos delinqüentes e crenças desviantes. Dessa forma, quanto maior for o envolvimento do indivíduo na sociedade e com os valores sociais e normas vigentes, menor será sua chance de tornar-se um criminoso.

1.5 TEORIA DO AUTOCONTROLE

Conforme o entendimento de Molina & Gomes (2002, passim) a teoria do autocontrole tem inequívocas conexões com a Psicanálise a delinqüência é resultado de uma relativa falta de normas e regras individualizadas, de um desmoronamento de controles sociais. A desviação social é vista como conseqüência funcional de controles pessoais e sociais débeis.

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Assim, esta tem como referência o não desenvolvimento de mecanismos psicológicos de autocontrole na fase dos dois anos a pré-adolescência, que, pela falta de imposição de limites, geram distorções no processo de socialização.

Um exemplo disso pode ser evidenciado quando a “anormalidade” decorrente de deformações no processo de socialização da criança advém da negligência na educação ministrada pelos pais caracterizada pela falta de imposição de limites. Na adolescência, o indivíduo passaria a exibir condutas tendenciosas baseadas exclusivamente em seus interesses individuais sem considerar possíveis conseqüências em longo prazo.

1.6 TEORIA DA ANOMIA

A teoria da anomia remonta aos estudos desenvolvidos por Durkheim, autor de três obras essenciais na moderna Sociologia: as regras do método sociológico (1895), a divisão social do trabalho (1893) e o suicídio (1897). O referido autor entendia o crime como um fenômeno social normal, por ser uma tração generalizada a todas as sociedades e por estar ligado às condições de vida coletiva.

Após constatar que a criminalidade existe em qualquer sociedade e em qualquer momento histórico, extraiu disso duas conseqüências: que a conduta irregular é inextirpável e as formas de conduta anômica são determinadas caso por caso pelo tipo social dominante e seu estado de desenvolvimento.

Para Durkheim, além de o crime ser normal (não patológico), ele pode ser cometido por qualquer pessoa de diferentes extratos sociais, e ele não é derivado de anomalias de uma ordem social intacta. O crime, então, passaria a cumprir uma função “integradora e inovadora” própria do funcionamento normal das sociedades.

Em a Divisão Social do Trabalho (1999 b) o teórico relaciona o indivíduo e a coletividade utilizando dois conceitos: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. Na primeira típica das sociedades ditas primitivas, a consciência coletiva sobrepõe a maior parte das consciências individuais. É nela que o indivíduo se encontra estreitamente integrado ao tecido social; já na segunda, em conseqüência da maior autonomia exercida por ele, a sociedade apresenta a consciência coletiva em menor dimensão.

A teoria anômica ganha expressão no estudo desenvolvido por Durkheim em O Suicídio (2000), que lhe permitiu demonstrar as estreitas relações existentes entre o indivíduo e a sociedade. Nessa obra, o autor estabelece sua conhecida tipologia do suicídio como fenômeno sociologicamente interpretável: o suicídio

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egoísta, o altruísta e o anômico.Com bases estatísticas ofi ciais, ele realizou inferências sobre a freqüente

ocorrência de suicídios em comunidades protestantes em detrimento das católicas, explicação resultante da idéia de integração religiosa. Durkheim explicou, baseando-se na noção de integração familiar, que o fenômeno pelo suicídio era menos freqüente entre os indivíduos casados que entre viúvos, divorciados ou celibatários. No mesmo trabalho, percebeu ainda que, em razão da coesão sociopolítica em torno da idéia de nacionalidade, a taxa de suicídios diminuía em momentos de grandes acontecimentos políticos. Como conclusão, verifi cou que o suicídio variava na razão contrária ao grau de integração da sociedade religiosa, familiar e política respectivamente.

Assim, a visão da sociedade como depositária de valores, projetada no modelo sociocriminal que o sociólogo francês defendia, fomentou uma visão de crime, em que ele passou a ser encarado não como resultado apenas de condutas anti-sociais, mas como resultantes de condutas socialmente contextualizadas.

1.7 TEORIA INTERACIONAL

Essa teoria percebe a perspectiva evolucionária e os efeitos recíprocos como dois elementos de extrema importância para a sustentação da abordagem da delinqüência, não somente como um conjunto de fatores e processos sociais, mas a relação de causa e conseqüência entre uma variedade de relações recíprocas que são desenvolvidas ao longo do tempo. Na perspectiva evolucionária, presume não ser o crime uma constante na vida do indivíduo, mas um processo que se inicia com as atividades criminosas, iniciada por volta da faixa etária correspondente aos 12-13 anos, tende seu desenvolvimento entre 16-17 anos, fi nalizando-se aos 30 anos. Na perspectiva interacionista, o delito e a reação social são independentes e inseparáveis uma vez que a conduta desviante é uma qualidade que é atribuída mediante processos complexos de interação social.

1.8 TEORIA DA ESCOLHA RACIONAL

O paradigma explicativo conhecido como teoria da escolha racional caracteriza-se pelo emprego do individualismo metodológico e pela ênfase na intencionalidade das ações realizadas pelo sujeito. Visto como um ator dotado de racionalidade e preferências, o indivíduo é mostrado por essa abordagem como se tratando de um agente que se comporta de modo estratégico com o

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propósito de maximizar seus ganhos e reduzir seus custos. No que concerne às explicações criminológicas, a teoria da escolha racional entende que o indivíduo decide a respeito de sua participação em atividades criminosas por meio da avaliação racional entre ganhos e perdas esperadas, advindos das atividades ilícitas vis-à-vis o ganho alternativo no mercado legal. Na escolha racional, a ação individual é determinada pelas conseqüências confrontadas com o custo-benefício. Nesse contexto, considera-se toda uma gama de condições que levam o indivíduo a cometer o delito: podendo ser as motivações por lucro material, satisfação sexual e emocional, aprovação dos pares, resolução e diferenças com amigos, etc.

O conceito de decisão tomado racionalmente é a linha de força desta teoria. A dimensão da escolha consciente, tomada com base nos desejos do autor e da margem de manobra que este de fato possui para caracterizá-lo (e minimizá-lo) é, por assim dizer, o fator-chave na compreensão não apenas do crime, mas de uma vasta gama de fenômenos sóciais cujo componente agencial se revela preponderante. No que diz respeito à criminologia de modo mais específi co, essa tradição analítica afi rma que a opção a ser tomada pelos sujeitos refl exivos, diante da participação em atos delituosos ou em respeito à ordem legal em vigor, depende da racionalidade do ator na busca de seus objetivos.

A referida teoria entende que o indivíduo considera o risco de ser preso, de ser punido pelo sistema de justiça criminal ou por sanções sociais e informais do grupo a que pertencem, a difi culdade de conseguir emprego, ou seja, vários fatores são colocados na balança, a depender do lado para o qual ela pender, determinará o cometimento ou não do crime. Assim, trata-se de uma relação custo-benefício que serve de parâmetro para o ator defi nir um curso de ação mais adequado (racional) a aquisição de seus interesses.

2 ESCOLHA RACIONAL: UM ENFOQUE TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA A EXPLICAÇÃO DE CRIME ORGANIZADO

Contemporaneamente, os estudos sobre o signifi cado das organizações criminosas e da sua ação diante das instituições do sistema de justiça permanecem limitados. Essas defi ciências são verifi cadas também no que diz respeito aos mecanismos que lhe dinamizam.

Com o objetivo de contrastar essa realidade, buscar-se-á neste tópico, explicar o crime organizado por meio de seus mecanismos de atuação. Para tanto, o presente esforço analítico emprega os pressupostos teóricos da escolha racional de Jonh Elster. Posição teórica essa que lista os princípios norteadores

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para a explicação nas Ciências Sociais, quais sejam: a intencional-causal; o individualismo metodológico atrelado ao reducionismo; e um enfoque baseado em mecanismos estabelecendo tais “unidades explicativas” como premissa para a elucidação do funcionamento da vida em sociedade.

2.1 TRAJETÓRIA DE JONH ELSTER

O Cientista Social norueguês Jonh Elster tem-se destacado nos ciclos acadêmicos desde o lançamento de Ulysses and the Sirens em 1979 (Ulisses e as Sereias), como um nome importante contra o reducionismo da Sociologia as Ciências Naturais. Para isso, o referido autor vem empregando conceitos extraídos da teoria da escolha racional, derivada da teoria dos jogos, inaugurada pelos matemáticos Jonh Von Neumann e Oskar Morgenstern e que também inclui as contribuições fundamentais de autores do porte de Jonh Harsanyi, John Nash, Howard Raiffa, Thomas C. Schelling e Herbert Simon, entre outros.

Em Elster, a Sociologia serve-se de elaborações teóricas da ciência econômica para melhor explicar o comportamento humano, cujas características biológicas teriam, per si, muito pouco a revelar. Notabilizam-se a esse respeito os conceitos de maximizador local e global por ele utilizado na obra acima citada. A diferença entre ações que visem no máximo locais ou no máximo globais só poderia ser adequadamente explicada após a adoção de uma teoria da escolha racional. Tal estratégia persiste ainda no livro Peças e Engrenagens das Ciências Sociais publicado em 1989.

A Filosofi a das Ciências Sociais, proposta por Jonh Elster, é marcada principalmente pela defesa do individualismo metodológico, como uma doutrina em que todos os fenômenos sociais são explicáveis pelos indivíduos em suas ações, objetivos e crenças.

A variante do individualismo seria a teoria da escolha racional para a explicação social. Esta serviria como um programa de pesquisa para as Ciências Sociais, em que o cientista social se inclinaria para os processos individuais das ações dos indivíduos agirem baseados em seus objetivos e crenças, não signifi cando dizer, no entanto, que os indivíduos sejam sempre racionais, mesmo porque em boa parte de sua obra ele analisa a irracionalidade e as falhas da racionalidade.

Depois de colocada a teoria da escolha racional como ponto de partida para o estudo dos fenômenos sociais, o autor passa a destacar o papel das normas e valores na motivação e restrição da escolha racional. Mais adiante, utilizam-se dos conceitos de cultura e emoções para explicar as normas sociais como elementos antes vistos apenas nos moldes da irracionalidade respectivamente.

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2.2 A EXPLICAÇÃO POR MEIO DO INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO, DO REDUCIONISMO E A INTECIONALIDADE-CAUSALIDADE

A explicação intencional-causal é, para Elster, espaço reservado às Ciências Sociais, admitindo-se, no entanto, as explicações subintencional e supraintencional. A primeira seria observada quando as operações mentais não direcionadas pela intenção ocorressem, tendo, contudo, localização por trás das intenções individuais; a segunda, quando ocorressem resultados não esperados pelas ações intencionais. Compatibilizando, portanto, essa explicação, o elemento causal estruturador de qualquer ciência como o elemento intencional: a liberdade e autonomia que se caracterizam como traços humanos.

Ao explicar a ação intencional como a parte fundamental da vida social do indivíduo, os fenômenos sociais seria resultado dessa ação em interação com os desejos e crenças individuais que seriam os elementos motivadores dessa ação. Devendo, portanto, a explicação em Ciências Sociais ser o reducionismo de fenômenos complexos aos seus elementos constitutivos: as ações individuais. Ficando claro, dessa forma, como Elster utiliza-se da explicação intencional-causal para articulá-la com o individualismo metodológico e o reducionismo.

Nesse sentido, ponderam Ratton Júnior & Morais (2003, passim), que tal posicionamento epistemológico, o individualismo metodológico, deve ser entendido como uma forma de reducionismo explicativo. Elster nos diz que para ir de instituições sociais e padrões agregados de comportamento para indivíduos, utiliza-se o mesmo tipo de operação quando se vai de células para moléculas. E explicar é fornecer um mecanismo, abrir uma caixa-preta e mostrar as peças e engrenagens, os desejos e crenças dos indivíduos que geram o resultado “social” agregado.

2.3 A EXPLICAÇÃO POR MEIO DE MECANISMOS

Os mecanismos sociais são uns enfoques teórico-metodológico assumidos por diversos autores que propõem diferentes, mas, de certa forma, aproximadas concepções do que venha a ser um mecanismo social. Segundo Merton (1973), mecanismos seriam processos sociais com conseqüências para as partes na estrutura social. Assim, prioritariamente a Sociologia teria o dever de localizar os mecanismos, estabelecendo as condições sob as quais eles ocorrem, falham etc.

A explicação por mecanismos é uma alternativa metodológica a quatro outras posições, a saber: o modelo dedutivista de inspiração popperiana; o relato

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compreensivo ou interpretativo próximo da etnografi a; grandes sínteses da teoria social contemporânea ao molde de Jeffrey Alexander, Anthony Giddens, Jurgen Habermas e Pierre Bourdieu e o enfoque centrado nas relações entre variáveis.

De acordo com Elster é preciso fazer cinco distinções fundamentais a respeito do que não sejam as explicações causais, ou seja, cinco questões que exemplifi cam o que não é uma explicação por mecanismos, quais sejam:

a) Explicações causais diferem de proposições causais verdadeiras. O mecanismo causal deve ser indicado e iden-tifi cado, não se pode apenas citar a causa. Assim, não é sufi -ciente dizer que a pobreza gera crime, é preciso demonstrar como e por que mecanismos a pobreza produzirá criminali-dade;b) Explicações causais diferem de afi rmações sobre correlação. Se, por exemplo, um evento for seguido invari-avelmente por outro evento de tipo diferente, isso não quer dizer necessariamente que eventos do primeiro tipo acar-retem eventos do segundo tipo, pois existirá outra possibi-lidade, a de os dois serem comuns de um terceiro evento;c) Explicações causais diferem de afi rmações sobre necessitação. Relata que um evento poderia ter ocorrido de diferentes maneiras da que ocorreu não explica o evento-problema que se pretende explicar. Para se explicar um evento é necessário relatar como e por que ele ocorreu;d) Explicações causais diferem/devem ser isoladas do ato de contar histórias. Nessa quarta distinção, Elster vai diferenciar um relato etnográfi co da ausência de ambição explanatória nas Ciências Sociais, afi rmando que contar uma história é dizer o que ocorreu e como poderia ter ocor-rido; já a explicação diria o que ocorreu e como ocorreu;e) Explicações causais diferem de predições. É pos-sível explicar sem predizer e predizer sem explicar; não existe uma relação obrigatória entre as duas (RATTON JÚNIOR E MORAIS, 2003, p 397-398).

Dessa forma, explicar para Elster é o mesmo que fornecer um mecanismo:

O termo mecanismo relaciona-se a cadeias intencionais de um objetivo para uma ação, como também cadeias causais de um evento para o seu feito. O papel dos mecanismos é duplo: eles nos tornam capazes de ir do maior para o menor, das sociedades para os indivíduos; eles reduzem o

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intervalo de tempo entre os explanans e explanandum (...) mecanismos são padrões causais facilmente reconhecíveis que ocorrem frequentemente e são desencadeados sob condições geralmente desconhecidas e com conseqüências indeterminadas (RATTON JÚNIOR E MORAIS, 2003, p. 398).

Um mecanismo não comporta uma aplicação universal que permite a predição e o controle de eventos sociais, mas promovem um encadeamento causal, sufi cientemente geral e preciso, passível de ser encontrado em contextos variados. Os mecanismos correspondem, dentro da teoria elsteriana, a cadeias intencionais: a um continuum de ligações que conectam um objetivo a uma ação ou um evento a um efeito. Tais cadeias causais lançam, segundo o teórico, pontes entre os diferentes níveis de análise propiciando a explicação dos fenômenos sociais. Esse instrumento heurístico diferencia-se das chamadas leis científi cas gerais por conta de sua ênfase no sentido da ação dos indivíduos circunscrita a determinadas circunstâncias. Assim, procura não estabelecer enunciados universalmente aplicáveis, mas sim explicações coerentes a respeito de certos eventos sociologicamente relevantes em contextos específi cos.

Reconhecer as ações dos indivíduos como racionais facilita a explicação por mecanismos, uma vez que em cada peça do mecanismo existe um indivíduo racional que toma decisões intencionalmente com o objetivo de maximizar seus benefícios e conquistar algum fi m. Disso decorre que, tendo seus objetivos inteligíveis, compreender-se-ão as possíveis interações das peças presentes nos mecanismos da criminalidade organizada.

3 AS PRINCIPAIS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO MUNDO

Algumas organizações criminosas são adventos do século passado. As diversas práticas de crimes levaram muitos países a enfrentar problemas causados por bandidos associados com organizações criminosas. A Itália foi o berço das máfi as do mundo, ainda no século XIX, na Sicília.

Em 1860, instigado pela unifi cação da Itália, o Vaticano se declarou independente e o Papa Pio IX convocou todos os católicos a reagir contra a autoridade do Estado italiano. Aceita a convocação, os bandos sicilianos iniciaram a reação contra a polícia e quando a situação parecia sob controle, os integrantes desse grupo formaram a organização mundialmente conhecida: Cosa Nostra (coisa nossa). Posteriormente, surgiu a Camorra em duas regiões do Sul (Calábria e Nápoles), e quando centenas de famílias italianas emigraram para os Estados Unidos da América, ampliaram o raio de ação desses grupos.

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3.1 A COSA NOSTRA ITALIANA

Considerada a máfi a mais infl uente da Itália, é sem dúvida, o grupo criminoso de maior destaque e de ramifi cação de atividades por ações diretas como homicídio de indivíduos de outras organizações, da sociedade e até mesmo de membros do seu próprio grupo, muita vezes em coligações com outras organizações presentes no país. Possuem um clã especializado em paraísos fi scais, aplicação em empreendimentos turísticos e prestações de serviços (LUPO, 2002).

A história da organização criminosa Cosa Nostra surgiu em meio à inserção do narcotráfi co, propiciando a internacionalização das relações, tornando possível a elaboração de novas táticas criminosas com o intuito de fornecer matéria-prima para outros países. A Camorra napolitana associou-se a Cosa Nostra garantindo seus negócios como o contrabando de cigarros e outros, segundo afi rmam Pellegrini & Costa Júnior(1999, p, 64):

Movidos pela necessidade de empregar do melhor modo as notáveis disponibilidades fi nanceiras obtidas, os membros das associações começaram a estreitar as relações estáveis com expoentes do circuito fi nanceiro e bancário e a pene-trar de modo maciço em atividades econômicas legais den-tro e fora da Sicília. Começa assim, a delinear-se a chamada “máfi a empreendedora”

Outro elemento importante nas fases mutativas da Cosa Nostra foi à ascensão da coalizão mafi osa dos Corleones, que durante os anos 1980 lideraram a organização com uma gestão tirânica, impondo enterros às famílias rivais, dando início a exteriorização das atividades em busca de maior infl uência e criando uma insatisfação nas outras famílias que passaram a fazer negócios com outras máfi as. Isso gerou um desequilíbrio entre os mafi osos “históricos”.

Apesar das operações desencadeadas pelo governo italiano contra o crime organizado no fi nal dos anos 90 (operações mãos limpas - mani pulite), esse grupo mafi oso dispõe, ainda, de signifi cativa capacidade de atuação. A Cosa Nostra expande seus negócios por diversos países e emprega, em suas atividades ilícitas, recursos tecnológicos de ponta. Tal como assegura Maireovitch (2007), um dos maiores experts em criminalidade organizada, a máfi a agora prefere o mouse à metralhadora, isto é, tecnologia à brutalidade.

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3.2 NDRANGHETA

A organização criminosa denominada Ndrangheta surgiu na Calábria, uma das regiões mais pobres da Itália, onde continua a operar de forma incisiva, tendo também bases criminais em outras regiões, fruto da estreita cooperação e contratos de ajuda mútua com a Cosa Nostra. Tem uma estrutura de criminalidade defi nida como “nuclear”, cada território tem seu grupo familiar que não se submete ao controle de autoridades regionais ou provinciais superior, excetuando a região de Reggio.

Ao contrário das outras tem um sistema piramidal de chefi a, os grupos de Ndrangheta são baseados em famílias com fortes laços de sangue. Além dessa estrutura, verifi ca-se a agregação de outras famílias mafi osas por meio do matrimônio (elemento essencial para o aumento do poderio e infl uência no grupo):

Trata-se de uma “política matrimonial”, ou melhor, de uma “estratégia matrimonial” que se pratica habitualmente. A expansão da ndrina, portanto são muitas vezes marcados por matrimônios entrecruzados e, por vezes, liames igualmente sólidos como os conparagg (PELLEGRINE E COSTA JÚNIOR, 1999, p. 30).

Mesmo sendo os membros do crime organizado italiano conhecidos como mafi osos, no clã da Ndrangheta, um membro é conhecido por “ndrinu” e o clã em si como “ndrina”. Estes além de manterem fi rmes suas vantagens parentais, confundem-se facilmente no ambiente onde se alocam, por aparentarem humildade, não ostentando a riqueza e fortuna que possuem. Por ser uma organização muito competitiva e orientada para atividades criminosa, tem investimentos de caráter local, nacional e internacional. Com uma nova ordem administrativa semelhante a uma estrutura federativa, a mesma aumentou sua capacidade de infi ltrações, ganhando maior peso econômico e difusão territorial. Graças a essas medidas, conta com uma média de 5.6000 fi liados. Suas células operam com um razoável grau de autonomia, mantendo, entretanto, contato com a máfi a siciliana em razão da proximidade geográfi ca entre a Calábria e a Sicília. Fora da Itália, a Ndrangheta opera em diferentes países como Espanha, França, Bélgica, Argentina e Austrália (PELLEGRINE E COSTA JÚNIOR, 1999, passim).

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3.3. A CAMORRA

Dentre as demais organizações criminosas a Camorra é a menos propensa a alianças estratégicas. Embora exerça atividades além das fronteiras regionais, seus adeptos estão distribuídos em mais de cem clãs. Devido à ausência de uma estrutura hierárquica rígida e aos ataques de grupos rivais, têm seu equilíbrio sujeito a constante ajustes.

A Camorra nasceu no meio urbano em Nápoles e mantém o controle dos territórios pelo uso da violência. Os chefes dos clãs, os agiotas e mafi osos, atuam de modo a conseguir infl uência entre as instituições ofi ciais do Estado e angariar o apoio político dos líderes locais. A crise social na cidade se convalida na combinação da Camorra, desemprego e drogas. Os lucros com o mercado de drogas em Nápoles são consideravelmente elevados.

Entre suas atividades, a principal são os entorpecentes, na qual se estima que tenha um canal de tráfi co de cocaína por meio dos cartéis colombianos, sendo, com isso, uma das maiores fornecedoras fi nais de cocaína no mundo.

Não restringindo seu campo de atuação ao narcotráfi co, o grupo também pratica estelionato, contrabando de cigarros e jogos de azar. Entretanto, mesmo mediante o progresso do grupo, em 1996, graças a Lei antimáfi a, a Campânia foi à região que apresentou o maior número de Conselhos Municipais dissolvidos, por conta de seu envolvimento com o crime organizado (PUTNAM, 2000).

3.4 AS TRÍADES CHINESAS

As máfi as chinesas são denominadas de tríades, palavra que exprime os três lados de um símbolo que indica as três forças primárias do universo: o céu, a terra e o homem. A tríade chinesa foi fundada como sociedade secreta no século XVI para sustentar a Dinastia Ming e afastar os invasores da Dinastia Quing.

Tais organizações têm uma estrutura rigorosamente vertical, com uma ordem de poder hierárquica diferenciada, em que os membros da elite dirigente não participam diretamente das atividades criminosas, mas atuam como mediadores e fi nanciadores das atividades do grupo, administrando-o internamente e participando da divisão dos proventos ilícitos. Os membros do médio escalão comandam suas atividades criminosas com plena autonomia, como também organizam a estratégia operacional sem necessariamente precisarem de autorização prévia da elite dominante. Essa estrutura de organização, de autonomia das articulações periféricas, torna a organização mais ágil e efi caz no desempenho de suas atividades.

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3.5 A YAKUSA

A máfi a japonesa tem a sua origem na Idade Média; vendedores ambulantes que freqüentavam casas de jogos, como também os gerentes das referidas casas. Surge daí a explicação para o nome que deriva da seqüência de três números: 8, 9 e 3, que se pronunciam ya-ku-as. Esses números são os mais baixos dos perdedores de um jogo de cartas chamado hanafuda.

A organização do grupo tem a forma de uma unidade independente com um boss no comando composto por inúmeros membros. A fi delidade e obediência absoluta é o que liga o chefe e seus afi liados, assemelhando-se a relação entre pai e fi lho. Um afi liado que cometer um erro pode remediá-lo com a autopunição, fazendo um talho na falange do dedo mínimo demonstrando assim o arrependimento e submissão, entregando ao chefe a extremidade cortada envolvida em um lenço.

A atuação do grupo opera principalmente no campo do tráfi co de anfetaminas e outros tipos de drogas, na exploração da prostituição, comércio de material pornográfi co, jogos de azar, usura, extorsão e no tráfi co de imigrantes.

A Yakusa tem o caráter estritamente étnico, sendo reservado apenas para os japoneses, compartilhando o modelo vértice familiar (semelhante à máfi a) e o modelo federativo (aliança entre grupos ou famílias).

3.6 A MÁFIA RUSSA

No fi nal dos anos 1980 e no início dos 1990, a então União Soviética foi extinta, separando-se em diversos países entre eles a Rússia. Por conta de acontecimentos políticos e sociais, a transição soviética para a economia de mercado facilitou a penetração do crime organizado. Nessa transição, houve um processo de abertura comercial e um programa de privatizações em que não havia sufi cientes mecanismos restritivos à aquisição de bens, outrora estatais, não tendo os interessados em adquirir esses bens do comprovar a origem de sua renda e a legalidade de seus empreendimentos. Tal estado levou as organizações criminosas a desenvolverem suas atividades ilegais na economia de mercado, provocando, assim, uma associação entre a máfi a russa e as organizações criminosas internacionais, como os cartéis colombianos e a máfi a siciliana que juntavam esforços na lavagem de dinheiro provenientes de transações elícitas.

Segundo Castells (1999, p. 218)., os governos russos, de transição e pós-socialistas têm culpa, pois:

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Em algumas cidades (por exemplo, Vladivostok), as de-cisões da administração local são altamente condicionadas por suas conexões de origem duvidosa. Além disso, mesmo nos casos em que uma determinada empresa não esteja rel-acionada ao crime organizado, ela atua em um ambiente em que a presença de grupos criminosos é uma constante, em especial nos setores bancários, de importação e exportação, compra e venda de petróleo e de metais raros e preciosos

3.7 OS CARTÉIS COLOMBIANOS

Os países da América do Sul são os maiores produtores de coca, sendo a Colômbia a representante de maior infl uência entre as organizações mafi osas dedicadas ao narcotráfi co. Um dos principais grupos criminosos é o Cartel de Medellín que, com o Cartel de Cáli, abastece a maioria do mercado de drogas americano. O governo dos Estados Unidos e as autoridades colombianas, em conjunto, têm sistematicamente promovido ações para desarticular os cartéis de drogas e os narcoguerrilheiros (Plano Colômbia). Os americanos fornecem auxílio militar, treinamento para as unidades policiais, além, de apoio fi nanceiro.

Esses cartéis sofreram fortes derrotas ultimamente, mesmo assim o tráfi co não cessou na Colômbia, saindo das mãos de tais organizações para as mãos de grupos paramilitares de esquerda como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs) e de direita como os grupos paramilitares, que lutam entre si e contra o Estado, mantendo ligações com diversas organizações criminosas em todo o mundo e sendo bem-sucedidos por representarem o tráfi co de drogas que é o maior negócio criminal do último século (LEAL, 2004, passim).

3.8 O PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL

O PCC é uma organização de criminosos existente no Brasil, criada para supostamente defender os direitos dos cidadãos que estejam encarcerados no país.

Surgiu na década de 1990 no Centro de Reabilitação Penitenciária da cidade de Taubaté, local que acolhe prisioneiros transferidos de outros presídios e considerados de alta periculosidade pelas autoridades estatais.

A organização é comandada por presos e foragidos principalmente do Estado de São Paulo. Vários ex-líderes estão presos, inclusive um dos seus principais líderes, que é o Marcos Williams Herbas Camacho, vulgo Marcola,

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atualmente cumprindo sentença judicial.O PCC que foi também chamado no início como “partido do crime”,

afi rma que pretende “combater a opressão dentro do sistema prisional” e vingar a morte dos “cento e onze presos” no episódio que fi cou conhecido como “massacre do Carandiru”, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo foi intervir numa rebelião de presidiários no Pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção de São Paulo e resultou na morte de cento e onze presos.

O grupo usa o símbolo chinês do equilíbrio yin-yang em preto e branco, considerando que era “uma maneira de equilibrar o bem e o mal com sabedoria”.

Com o objetivo de conseguir dinheiro para fi nanciar o grupo, os membros do PCC exigem que os “irmãos” (os sócios) paguem-lhes uma taxa mensal. O dinheiro é usado para comprar armas e drogas, além de fi nanciar ações de resgate de presos ligados ao grupo.

Para se tornar membro do PCC, o criminoso precisa ser apresentado por outro que já faça parte da organização e ser “batizado”, tendo como padrinho 3 “irmãos”. Um membro só pode batizar outro 120 dias depois de ter sido batizado, e o novo “irmão” tem de cumprir um estatuto de 16 itens redigidos pelos fundadores e atualizados por Marcos Camacho.

Diante do enfraquecimento do Comando Vermelho do Rio de Janeiro, que tem perdido vários pontos de drogas no Rio, o PCC aproveitou para ganhar campo comercial e chegar a atual posição de maior facção criminosa do Brasil, com ramifi cações em presídios de vários estados como Mato Grosso do Sul, Paraná, Bahia, Minas Gerais, entre outros. (PRIMEIRO, 2001, passim).

CONCLUSÃO

A efi ciência limitada do Estado no combate ao crime organizado está relacionada com a falta de políticas de segurança pública. Para se chegar a essas decisões, no entanto, é preciso também conhecer quais são as peças e os mecanismos de fenômeno crime organizado. Da mesma forma, identifi car suas origens, causas e efeitos na sociedade. Este artigo procurou investigar algumas dessas prerrogativas, para, a partir delas, trazer o conceito de crime organizado evitando qualquer tentativa de defi nição adjetiva.

Pelo exposto evidencia-se que a teoria da escolha racional tem grande poder explicativo a respeito das razões que levam o indivíduo criminoso a cometer delitos de forma organizada. Entendendo-se por escolha racional a opção pelo indivíduo da ação que ele prefere entre todas aquelas que têm

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possibilidade de executar, em outras palavras, uma escolha preferencial baseada na relação custo-benefício.

Após descrever as principais organizações criminosas no mundo tomando por base o método indutivo ou redução ôntica causal, constata-se, também, que o crime organizado tem mecanismos próprios de atuação, sendo seus principais: a simbiose com o Estado, em que os criminosos vão buscar na administração pública, por meio de corrupção e troca de favores, a proteção para continuar impune e expandir seus negócios; o poder econômico conseguido mediante atividades ilegais; e a lavagem de dinheiro usada pelos criminosos para legalizar grandes quantias advindas dos negócios ilícitos.

Por fi m, é em ELSTER que se encontra o caminho teórico-metodológico mais viável para a explicação do crime organizado. É mediante suas explicações por meio do individualismo metodológico, reducionismo e intencional-causalidade, como também, de sua explicação por mecanismos, integrando a teoria a práxis que se chega ao conceito mínimo do que venha a ser o crime organizado.

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Artigo recebido em: julho/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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NOTAS SOBRE O OBJETO CONTRATUAL EM FACE DA BIOTECNOLOGIA

A PARTIR DO “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”

Laura Garbini Both*Rosalice Fidalgo Pinheiro **

Sumário: Introdução; 1. “Vivant”: um novo objeto contratual; 2. do contrato ao “don”: notas de ressignifi cação do contrato; 3. O “ensaio sobre a dádiva”: um novo “mito fun-dante”; 4. A dádiva e a etnografi a do “vivant”: outra liberdade possível?; Conclusão; Referências.

Resumo: Na contemporaneidade, o jurista depara-se com situações para as quais o Direito não apresenta respostas. Doação de órgãos, “barriga de aluguel” e circulação dos dados genéticos, ensaiados pelo avanço das biotecnologias, compõem o “vivant” e tornam-se objeto de circulação no mer-cado, suscitando um paradoxo: a pessoa converte-se em objeto contratual (BEL-LIVIER e NOIVILLE). A propriedade e o contrato, forjados pelo Direito Moderno, mostram-se incapazes de dissipar esse par-adoxo, restando sua completa inadequação para tutelar a pessoa no tráfego negocial. Valendo-se dos ensinamentos de ROPPO, deposita-se no contrato a causa dessa inad-equação: nos ordenamentos capitalistas as

Abstract: In contemporary times, the lawyer is faced with situations for which the law does not provide answers. Or-gan donation, "surrogate" and movement of genetic data, tested by the advance of biotechnology, make up the "vivant" and become subject to the market, posing a paradox: a person becomes a contractual object (BELLIVIER and NOIVILLE). Property and contract forged by the Mod-ern Law, appear unable to resolve this paradox, leaving his complete unsuitabil-ity for protecting the person in the trade negotiations. Drawing on the teachings of ROPPO, is deposited in the contract be-cause of this inadequacy: in jurisdictions capitalist relations between men take on

* Doutoranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Pon-tifícia Universidade Católica do Paraná e Mestre em Antropologia Social junto ao Pro-grama de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná. Professora de Sociologia e Antropologia do curso de graduação em Direito das Facul-dades Integradas do Brasil – UniBrasil. ** Doutora e Mestra em Direito das Relações Sociais junto ao Programa de Pós-gradu-ação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora Adjunta de Direito Civil nas Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. Professora do Programa de Mestrado em Direito da UniBrasil. Professora titular de Direito Civil do Centro Universitário Curitiba.

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the aspect of market relations, prevailing, by necessity of the economic system, the logic of corespective. In modern societies the freedom that makes the "exchange of equivalents," which translates into lack of freedom outside the market. Therefore, in legal systems informed by the capital-ist order, exclude from the subject of con-tractual situations devoid patrimoniality. Behold, in situations such as organ dona-tion, "surrogate" and movement of genetic data, lack of market freedom. Turning his eyes to the "Essay on the Gift", the work of MAUSS, the objective is to achieve a dialogue between law and anthropol-ogy, capable of pointing responses for the framework described. The donation, in the sense discussed by this author, can be understood and expanded beyond the state and market, as circulated in favor of social ties, reciprocity relations, express-ing therefore, as noted by GODELIER, CAILLÉ, GODBOUT and LANNA, a di-verse freedom, another freedom possible. Thus, using the ethnographic perspective, from a few forms, by which it exploits the "gift", the paper collects as partial conclu-sion, the fi nding that the Modern Private Law deleted the gift of contractual object. And, closer to the legal system can sketch answers to the paradoxes experienced by contemporary jurist.

Keywords: Biotechnology; Contract; Gift; Freedom; Market.

relações entre os homens assumem o as-pecto das relações de mercado, prevalecen-do, por necessidade do sistema econômico, a lógica da correspectividade. Nas socie-dades modernas a liberdade se perfaz na “troca de equivalentes”, o que se traduz em ausência de liberdade fora do mercado. Por isso, nos sistemas jurídicos, informa-dos pela ordem capitalista, excluem-se do objeto contratual situações destituídas de patrimonialidade. Eis que em situações, como a doação de órgãos, “barriga de alu-guel” e circulação de dados genéticos, falta a liberdade de mercado. Voltando os olhos para o “Ensaio sobre a Dádiva”, obra de MAUSS, objetiva-se realizar um diálogo entre Direito e Antropologia, capaz de apontar respostas para o quadro descrito. A dádiva, no sentido discutido por este autor, pode ser entendida e expandida para além do Estado e do mercado, pois cir-cula em favor do laço social, das relações de reciprocidade, expressando portanto, como notado por GODELIER, CAILLÉ, GODBOUT e LANNA, uma liberdade diversa, uma outra liberdade possível. As-sim, utilizando-se da perspectiva etnográ-fi ca, a partir de alguns formulários, pelos quais se instrumentaliza o “don”, o trab-alho recolhe como conclusões parciais, a constatação de que o Direito Privado Mod-erno excluiu a dádiva do objeto contratual. E, aproximá-la do sistema jurídico pode esboçar respostas para os paradoxos vivi-dos pelo jurista contemporâneo.

Palavras-chave : Biotecnologia; Contra-to; Dádiva; Liberdade; Mercado.

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INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade, a biotecnologia oferece múltiplas possibilidades de exploração dos organismos vivos: da bacteria ao corpo humano, conjugam-se bens materiais e imateriais, sob a forma de células, tecidos e informações genéticas. BELLIVIER e NOIVILLE chamam a atenção para este fato, e trazem à cena uma nova categoria: “le vivant”. Ignorado pelo Direito Moderno, o “vivant” rompe as barreiras entre o natural e o artifi cial, restando como “recurso biológico explorável” (2006, 43). Sob esta locução, ensaia-se uma ruptura no plano antropológico, capaz de lançar suas consequências no direito dos contratos.

Sob o signo do “don”, um mesmo indivíduo pode dispor de seu corpo para fi ns de transplante ou para fi ns de ceder a um biobanco as informações contidas em seus genes. Cogita-se do despertar de uma inquietude, que toma conta do direito dos contratos: a pessoa ocupa o lugar do objeto contratual. A contratação do “vivant” coloca em causa a patrimonialidade do objeto do contrato, a ponto de subveter sua civilística clássica. Para compreender o signifi cado desta asserção, é necessário recorrer à relatividade e historicidade do contrato, afi rmando-se que ele “muda a sua disciplina e as suas funções, a sua própria estrutura segundo o contexto econômico-social no qual está inserido” (ROPPO, 1988, 24). Para tanto, recolhe-se do contratualismo moderno a chave de leitura que aponta para uma diversidade de signifi cados do contato.

Nas sociedades modernas, a liberdade se perfaz na “troca de equivalentes”, o que se traduz em ausência de liberdade fora do mercado. Por isso, nos sistemas jurídicos, informados pela ordem capitalista, excluem-se do objeto contratual situações destituídas de patrimonialidade. Na contemporaneidade, situações como doação de órgãos, “barriga de aluguel” e a circulação do dados genéticos evidenciam uma liberdade diversa, e apontam para uma ressignifi cação do contrato.

Voltando os olhos para a obra de Marcel Mauss - “Ensaio sobre a Dádiva” -, objetiva-se realizar um diálogo entre Direito e Antropologia, capaz de apontar respostas para uma indagação: há liberdade fora do mercado? A dádiva é tudo o que não está ligado ao Estado ou ao mercado, mas circula em favor do laço social. Expressa, portanto, uma liberdade diversa: aquela que se deposita no laço social, importando dizer, que há

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liberdade fora do mercado.Para tanto, submete-se a categoria do “don”, formulada para

recepcionar os atos de disposição do próprio corpo, ao método etnográfi co. Em alguns dos formulários recolhidos dos setores biotecnológicos francês e norte-americano, identifi cam-se contornos de reciprocidade, que apontam a presença da dádiva, lançada por Marcel Mauss.

1. “VIVANT”: UM NOVO OBJETO CONTRATUAL

No século XX, a biotecnologia e a informática unem-se para desvendar o corpo, delineando uma reviravolta no paradigma tecnocientífi co.1 O corpo passa a ser desvendado pela racionalidade “informático-molecular” e a vida passa a ser tecida pela linguagem da informação. As células contêm um código universal, idêntico para todos os seres vivos. Porém, o conjunto de informações genéticas inscritas neste código, varia segundo a espécie, delineando o genoma. À semelhança do software, o corpo humano passa a ser visto como um programa de computador, pronto a ser decifrado.

Os biobancos desempanham um papel indispensável nesse manejo biotecnológico. Reagrupam informações para o estudo de doenças e desenvolvimento de produtos. Eis, que pelas informações que veiculam, os genes são instrumentos de trasnformação dos organismos vivos. Sob o termo “recurso biológico” englobam todos os organismos vivos que a ciência possa criar. Em ruptura às barreiras entre o natural e o artifi cial, opera-se a passagem da vida como dado material para o vivo como fonte de “recursos biológicos exploráveis”, desvendando o “vivant” (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 43-50).

Em suas entrelinhas, o “vivant” ensaia uma ruptura antropológica. Sob a metáfora do “homem-informação”, o indivíduo despe-se de sua materialidade, e passa a ser valorado pela informação que contém. Coloca-

1 A vida passa a ser investigada em escala atômica, com a descoberta da molécula de DNA. Nela, estão contidas as informações genéticas dos indivíduos, em suporte bio-químico, transmtido por gerações. A técnica do DNA recombinante tornou possível a alteração e manipulação do programa genético dos seres vivos (SIBILIA, 2003, 75-76).

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se em questão o reconhecimento jurídico da pessoa (LABRUSSE-RIO apud SANTOS, 2000, 301), na medida em que se indaga se a informação nela contida pode ser objeto de apropriação e circulação no mercado. Cogita-se uma pós-humanidade, na qual se desfazerm os limites entre pessoa se coisas, sinalizando a superação da condição humana.

Invoca-se a atuação dos biobancos, nos quais, segundo BELLIVIER e NOIVILLE, para além de um objeto técnico-científi co, o “vivant” é um objeto econômico. Para tanto, contribui uma profi ssionalização do setor: são distribuidores de serviços que se comprometem com sua qualidade, rapidez e efi ciência. Esse movimento propaga-se para países em desenvolvimento que apresentam alto grau de biodiversidade (2006, 53-54).

A pedra de toque do avanço das empresas biotecnológicas é a informação (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 55). Há uma integração entre o “vivant” e o mercado em face da qual se desenvolve uma “economia do conhecimento”, diretamente retirada da lógica da mercadoria da produção capitalista. Para tanto, o Estado enuncia uma política pública de proteção jurídica das invenções biotecnológicas (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 63). O “vivant” não passaria de uma descoberta, contudo, é convertido em objeto de propriedade intelectual.2

No corpo humano, os dados genéticos são tão somente bens corpóreos; uma vez convertidos em informação, tornam-se bens imateriais e objeto de propriedade intelectual. Esboça-se uma manobra jurídica que consiste em alargar os limites dos termos dessa titularidade: simples descobertas de material genético, uma vez manipulados em laboratório, são considerados invenções:

Mas, a informação decorrente da identifi cação de dados específi cos, pela pesquisa, vem buscando um tratamento jurídico similar ao da invenção, de modo a permitir que essa informação possa ser apropriada e explorada economi-camente pelo pesquisador (inventor) ou seu empregador. A

2 Em seu estado natural, os genes de um indivíduo não se confi guram como coisas. Apartados da confi guração de objeto de relações jurídicas são tutelados pelos direitos da personalidade. Porém, o emprego de trabalho humano promove sua passagem para o estado artifi cial (GEDIEL, 2000, 163), considerando-se a alteração de um ser vivo em laboratório como sufi ciente para expressar uma invenção.

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rigor, a categoria invenção não se aplicaria a estas situa-ções, até mesmo porque não há qualquer modifi cação no dado genético, que é apenas identifi cado no sujeito, com apoio de conhecimentos que já são de domínio comum. (GEDIEL, 2000, 106)

Adaptam-se conceitos às novas exigências econômicas (BURGEL,

2000, 191), apontando-se para uma racionalidade jurídica que se entrelaça à racionalidade econômica.3 Uma vez patenteado, o “vivant” é tecido como bem jurídico, dotado de valor econômico e submetido à lógica de um “individualismo proprietário”.4 Isto confere ao seu titular dupla prerrogativa: proibir terceiros de intervir em seu objeto e explorar com exclusividade seus benefícios (CORIAT, 2007, 5). Contudo, uma indagação subsiste: como o “vivant” adentra na lógica do “individualismo proprietário”?

Segundo CORRÊA, uma vez descolados da “pessoa-fonte”, por meio do consentimento informado, os dados genéticos tornam-se objeto de circulação e passam a ser apropriados pela regulação do acesso de terceiros aos bancos de dados ou pela propriedade intelectual dos resultados obtidos a partir desses dados (2009, 133). Entra em cena o contrato para o qual se atribui nova função: a circulação do “vivant” (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 69).

A aliança entre contrato e biotecnologia não é nova (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 60). Já ensaiva seus primeiros passos na doação de

3 No caso Chakrabarty, em 1980, a Corte Suprema dos Estados Unidos autorizou a General Eletric a patentear um microorganismo geneticamente modifi cado para absor-ver o petróleo da água do mar. Inaugurou-se a patenteabilidade da matéria biológica, incluindo-se elementos destacados do corpo humano (CORIAT, 2007, 10). Nos passos desse princípio, a Diretiva 98/44 da Comunidade Européia designa em seu artigo 5.2, que elementos isolados do corpo humano ou aqueles que a partir dele se produzem, constituem-se em invenção patenteável (CORIAT, 2007, 11).4 “...entre el individualismo originario del derecho de propiedad privada y de la libre iniciativa y el individualismo (actual del consumidor) de masas del hombre narcisis-tamente orientado hacia una infi nita gratifi cación de sus propios deseos, existiría una relación de continuidad sustancial y se trataría más bien de analizar mejor los pasos que han determinado la progresiva transformación del individuo unitario, sujeto de derecho, en individuo-masa multiforme y fragmentado en la pluralidad de las necesidades y los deseos”. (BARCELLONA, 1996, 132)

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órgãos para fi ns de transplante e na “barriga de aluguel”. Tais atos são exemplares na exploração de aspectos materiais do “vivant”. Contudo, sob o símbolo da gratuidade, procura-se afastar essas situações do cenário contratual.

Poder-se-ia cogitar de uma contraposição entre a materialidade e a imaterialidade do “vivant”. Porém, toda contraposição se desfaz diante de um elemento comum: sob o signo do “don”, um mesmo indivíduo pode dispor de seu corpo para fi ns de transplante ou para fi ns de ceder a um biobanco as informações contidas em seus genes. Importa dizer: o “don” entrelaça a materialidade e a imaterialidade do “vivant”. Cogita-se do despertar de uma inquietude, que toma conta do direito dos contratos: a pessoa ocupa o lugar do objeto contratual. Há nisto uma ruptura antropológica, ensaiada pela concepção de pessoa em termos quantitativos. Sendo valorada pela informação que contém, a pessoa agrega consigo valor econômico, tornando-se objeto do contrato.

2. DO CONTRATO AO “DON”: NOTAS DE RESSIGNIFICAÇÃO DO CON-TRATO

Da “mitologia política da modernidade” (CAPELLA, 1997, 109) recolhe-se uma teia de signifi cações para o contrato: o político, o social e o econômico se entrelaçam, delineando o contrato social. Ao ensaiar que homens, em estado de guerra contra todos, renunciam aos seus direitos naturais em favor de um soberano, o contratualismo rende ao consenso a origem do Estado e da sociedade, como forma de legitimar o poder soberano. É o signifi cado político que se entrelaça ao social: o contrato representa “a passagem para uma forma superior de sociedade”. (ROPPO, 1988, 37).

Nessa fábula, seus personagens são desenhados sob o signo de uma ruptura antropológica: o homem deixa de ser social por natureza para ser social por convenção. Resta o sujeito de direito, delineado pelos sistemas jurídicos modernos, sob feição ideológica: abstraído de sua posição social, o homem é mero titular de direitos subjetivos; as vozes que fi guram por trás das mercadorias (CAPELLA, 1997, 135).

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Chega-se ao signifi cado econômico do contrato. O estado de natureza é um “mito fundante” (MARQUES NETO, 1994,3) que se defi ne por uma ausência: a do Estado. Imagina-se a vida do indivíduo, abstraída de qualquer poder superior, resultado do pacto social de declarações de vontade que prescidem da igualdade:

En la mitología política de la modernidad el estado de na-turaleza sirve para apresentar como naturales, por tanto, la propiedad privada, el trabajo asalariado (con la acumu-lación privada) y los pactos entre desiguales. Como conse-cuencia de ello también aparecerá naturalizado el mercado capitalista. Siendo naturales, el artifi cial poder político no estará legitimado para interferirse en ellos. (CAPELLA, 1997, 109).

Projetando-se do contrato social para a sociedade capitalista, os

direitos individuais aparecem como naturais e inatacáveis pelo Estado (CAPELLA, 1997, 109). A propriedade e a liberdade de contratar confi guram-se como imunes a tudo o que lhes seja artifi cial, isto é, o Estado. O primado da liberdade resta sufi cientemente garantido, ao identifi car-se com a liberdade econômica. E o contrato, elevado a “eixo fundamental da sociedade liberal” (ROPPO, 1988, 28), passa a desempenhar papel instrumental em relação à propriedade. Eis que não haveria liberdade de propriedade sem liberdade de transmiti-la (ROPPO, 1988, 42-43).

Da aliança entre contrato e biotecnologia, recolhe-se nova teia de ressignifi cações do contrato. Na medida em que o “vivant” torna-se objeto contratual, subverte-se seu cenário clássico. Segundo ROPPO, o contrato é a “veste jurídico-formal” da operação econômica, de tal modo, que “onde não há operação econômica não pode haver também contrato” (1988, 11). Passou a se exigir que o objeto da obrigação seja dotado de patrimonialidade. Por outras palavras, o objeto do contrato deve consistir em uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, suscetível de avaliação pecuniária, ainda, que o interesse do credor não seja patrimonial.

Contudo, nas entrelinhas desta exigência técnica, repousa um sentido ideológico. A correspondência entre contrato e operação econômica encontra lugar nos sistemas jurídicos informados pelo capitalismo. Eis que nestes sistemas, as relações entre os homens, assumem em larga

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medida o aspecto das relações de mercado, prevalecendo a lógica da “troca de equivalentes” (ROPPO, 1988, 15).

Procura-se excluir do objeto contratual, situações que escapam à patrimonialidade. Gestação por outrem, doação de órgãos, informação genética compõem o “vivant”, que ingressa no mercado pela via do “don”. Trata-se de uma relação entre doador e receptor que não dá lugar, a rigor, à conclusão de um “contrato específi co”, inscrevendo-se nos quadros de um clássico contrato médico (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 142-143). Tais convenções não são formalizadas por um contrato, consistem em formulários de autorização: é o consentimento informado.

Na esteira do “don”, os atos de disposição do próprio corpo, entre nós, submetem-se ao princípio constitucional da gratuidade.5 O artigo 199, §4º, da C.F., veda qualquer tipo de comercialização de material orgânico humano. Segundo GEDIEL, o direito brasileiro alinha-se na tradição jurídica ocidental que “admite a autonomia corporal do sujeito, mas veda as contrapartidas econômicas” (2000, 151). E “os atos de disposição corporal que não se revistam da gratuidade são nulos de pleno direito, por envolver objeto ilícito” (GEDIEL, 2000, 154).

A “contratação” de útero alheio, concebida mediante remuneração pelo direito norte-americano, contrapõe-se ao princípio da gratuidade, emoldurado pelo direito brasileiro. De tal modo, que a doutrina não hesita em afi rmar a ilicitude de seu objeto, o que lhe rende nulidade, e a impropriedade dos tipos contratuais disponíveis na ordem jurídica nacional para regular tal convenção:

Ao se qualifi car o acordo de gestação em útero alheio como uma locação de serviços, estar-se-ia reconhecendo à ges-tante o dever de executar uma atividade, que seria a presta-ção de seu ventre (ou, em sentido amplo, de todo o seu organismo, pois in toto se envolveria na gestação). Indubi-tavelmente, o negócio jurídico estaria eivado de nulidade, posto que teria por objeto a pessoa da gestante e, logica-

5 Cogita-se de uma “doação” de órgãos para reforçar a gratuidade, sem, contudo, ater-se ao caráter contratual que o termo encerra. Prefere-se a categoria de negócio jurídico, desconhecida do direito francês, e formulada pela pandectística alemã, para acomodar as relações existenciais, travadas sob a égide do “don”.

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mente, o serviço seria ilícito. No entanto, deixando à mar-gem a questão da ilicitude do ajuste, a caracterização ainda não estaria perfeita, porque a ‘mãe substituta’ não somente deve manter a gestação como, ao fi nal, entregar o fi lho aos interessados. Portanto, o objeto não é a atividade em si (gestação), mas o resultado, o que torna o acordo mais próximo de uma empreitada (...) Do mesmo modo, à parte a notória ilicitude do negócio (posto que teria por objeto ainda a pessoa humana – agora, o fi lho), outra difi culdade se apresenta à sua perfeita caracterização, evidenciando o quão forçada é a analogia, tanto com locação de serviços quanto com empreitada: o desenvolvimento do feto no ventre materno é função natural, processando-se pela força interna dos órgãos específi cos, e não pela vontade ou por aptidões artísticas ou técnicas da pessoa. Logo, a gestan-te não exerce um trabalho, uma empreitada, e tampouco é ‘contratada’ em função de uma reconhecida competên-cia e capacidade profi ssional, ou uma habilidade técnica.” (MEIRELLES, 1998, 80)

A gratuidade, por si só, não é capaz de conter a lógica de mercantilização do corpo humano. BELLIVIER e NOIVILLE demonstram que o “don” é tão somente um primeiro passo na cadeia de organização dos recursos biológicos. A circulação do “vivant” inicia-se com a coleta, segue-se com a estocagem, a transferência e o uso (2006, 133), tecendo um contexto complexo e multifacetado de contratos.

O contrato está presente em toda a “cadeia de circulação do vivant” (BELLEVIER e NOIVILLE, 2006, 71), atuando como instrumento da soft law, pois em face de sua maior fl exibilidade, é apto para acolher a autorregulação do setor biotecnológico (CORRÊA, 2009, 232). Diante da lacuna deixada pelo legislador, impõe-se a lei que interessa às partes, e inverte-se a regra “o contrato tem força de lei entre as partes” para “a lei tem força de contrato entre as partes” (LORENZETTI, 1998, 58).

Nesse cenário, o contrato potencializa seu papel: de mero instrumento de transmissão da propriedade converte-se em criador de uma nova riqueza, a informação genética. Assiste-se à ressignifi cação do contrato, apontando para o reforço de seu papel como instrumento de autonomia privada. A liberdade econômica é, então, confrontada por uma liberdade existencial, ensejando uma autonomia negocial. Daí preferir-se

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o termo negócio jurídico para designar o “don”. Contudo, esta categoria não se distancia do contrato, no desempenho de uma função ideológica: a abstração das desigualdades materiais entre os contratantes.6

Em atenção a essa ordem de idéias, uma indagação subsiste: há liberdade fora do mercado? Trata-se, a partir da antropologia de Marcel Mauss, de colocar em causa a “tendência de contratualização dos laços sociais” (SUPIOT apud CORRÊA, 2009, 231).

3. O “ENSAIO SOBRE A DÁDIVA”: UM NOVO “MITO FUNDANTE”

Em obra publicada em 19297 sobre a forma e a razão da troca nas sociedades arcaicas, Marcel Mauss pretendeu demonstrar a expressão da universalidade e da importância da troca como fundante das relações sociais. As trocas e os contratos, nesta perspectiva, fazem-se sob a forma de presentes, em princípio voluntários, mas obrigatoriamente dados e retribuídos. São relações muito complexas – fenômenos sociais totais - que exprimem, de forma simultânea, diversas dimensões e instituições da organização social: moral, religião, direito, família, política, estética e economia. Diante desta multiplicidade, o foco da análise de Mauss se deu na busca da compreensão do caráter voluntário, aparentemente livre e gratuito, mas imposto e interessado do sistema de prestações e contra-prestações. Mais especifi camente, o interesse do autor se deu em revelar a regra de direito e de motivação que faz com que um presente recebido seja obrigatoriamente retribuído, ou ainda, qual a força encarnada na coisa dada/doada que faz com que o recebedor (donatário) a retribua.

6 [...]abstraindo ao máximo – até mais do que o contrato – dos sujeitos reais e das op-erações econômicas reais [...] conseguia justamente operar o máximo de unifi cação e de igualização formal dos sujeitos jurídicos. Por intermédio dele, tornavam-se de facto irrelevantes, ou apagavam-se até, a concreta posição económico-social das partes e os termos reais da troca económica levada a cabo, que desapareceriam por detrás de um dado, por assim dizer, biológico [...] ao qual se atribuía relevância exclusiva: a vontade. (ROPPO, 1988, 51)7MAUSS, M. 1974 [1923-24]. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas socie-dades arcaicas. In : Sociologia e Antropologia.v. II. São Paulo : Edusp.

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Como horizonte mais amplo e ambicioso, Mauss pretende chegar a conclusões acerca da natureza das transações humanas nas sociedades arcaicas e, por extensão, da natureza das mesmas nas sociedades contemporâneas. Para tanto, descreve o fenômeno da troca e do contrato nas sociedades de mercado econômico – para ele condição de todas as sociedades humanas - mas cujo regime de troca é diverso umas das outras. Nas sociedades arcaicas, no seu entender, existe o mercado concretizado em outra organização que não a dos mercadores e da moeda, mas regido por uma outra espécie de economia e de moral.

O ponto de partida são as formas arcaicas de contrato. Para Mauss, nunca existiu na história da humanidade algo que se assemelhe a uma economia natural. Nem os polinésios, locus da sua etnografi a, assim como nenhuma outra cultura ou sociedade constituem ou constituíram em matéria de direito ou economia algo próximo de um estado de natureza, de simples trocas de bens ou de produtos entre indivíduos. Nota o autor que:

Em primeiro lugar, não são indivíduos e sim coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pes-soas presentes aos contratos são pessoas morais – clãs, tribos, famílias – que se enfrentam e se opõem, seja em grupos, face a face, seja por intermédio dos seus chefes, ou ainda das duas formas ao mesmo tempo. Ademais, o que trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se antes de tudo de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente. Enfi m, essas prestações e contra-prestações são feitas de uma forma sobretudo voluntária por presentes, regalos, embora sejam, no fundo rigorosa-mente obrigatórios, sob pena de guerra privada ou pública. Propusemo-nos chamar tudo isso de sistema de prestações totais. (MAUSS, 1974, 54)

Nesse tipo de direito e economia peculiar das sociedades arcaicas, mas que sobrevive de alguma forma nos interstícios das relações sociais estabelecidas nas sociedades contemporâneas parece ser de relevância

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destacar as motivações da retribuição para entender as motivações do cumprimento ou não dos contratos reais estabelecidos nas relações concretas. Alerta MAUSS que a prestação total não envolve apenas a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras obrigações também importantes: a obrigação de dá-los, por um lado, e a obrigação de recebê-los por outro. Estaria neste ponto o fundamento da troca: recusar-se a dar/doar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra, pois é o mesmo que recusar a aliança e a comunhão. Em conseqüência, os indivíduos são impelidos à troca, porque o donatário passa a ter uma espécie de direito de “propriedade” sobre tudo aquilo que pertence ao doador. A propriedade nestes termos é concebida como um vínculo espiritual, porque, explica o autor, há uma mistura de vínculos espirituais entre as coisas que são em certa medida alma, e os indivíduos e os grupos que se tratam em certa medida como coisas. Ressalta MAUSS que:

Todas essas instituições exprimem unicamente um fato, um regime social, uma mentalidade defi nida: é que tudo, alimento, mulheres, crianças bens, talismãs, terra, trabalho, serviços, ofícios sacerdotais e postos é matéria de trans-missão e retribuição. Tudo vai-e-vem como se houvesse uma troca constante de uma matéria espiritual compreen-dendo coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repar-tidos entre categorias, sexos e gerações.( MAUSS, 1974, 59).

Dar, receber e retribuir, por em circulação coisas e modos de

fazer as coisas, para além do caráter utilitário: este é o fundamento da dádiva, constituída inclusive de cálculos racionais, mas também e principalmente de espontaneidade, amizade e solidariedade. Ao refl etir sobre o “espírito” do dom, GODBOUT (1998) ressalta que nas relações sociais contemporâneas, paralelamente à circulação de bens e serviços no mercado, garantidos pela regulação e redistribuição do Estado, existe uma dimensão na qual esses bens e serviços são agenciados através de mecanismos de dons e contradons que expressam outras formas - mais pessoalizadas - de socialidade do que aquelas regidas pelo mercado, pelo próprio Estado e pela ciência. A obrigação de dar/doar conserva a autoridade e mantém o prestígio e o reconhecimento; a obrigação de

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receber imputa o compromisso da retribuição e de manutenção do estatuto de igualdade. Nas coisas trocadas, coisas que têm uma personalidade, há uma virtude que força a dádiva a circular, a ser dada e a ser retribuída. No limite, a circulação das coisas é identifi cada com a circulação de pessoas e de direitos.

Para CAILLÉ ( 2002, 8-9) o dom é simultaneamente livre e obrigatório, é sempre mais ou menos forçado, instituído como uma obrigação que se tem como herança ou compromisso. Contudo, é também uma obrigação de criação e inovação, é um conjunto de inter-relações e de interdependências. Desta forma, é uma relação que supera tanto a regra formal da obrigação, ou o despotismo da Lei, quanto a mecânica simétrica dos meros interesses individuais. O dom constitui-se, em síntese, na aliança e associação que fundamenta a construção da confi ança, fundamento da reciprocidade.

A duplicidade implícita no dom, como entendida por Mauss - o que obriga a dar é o fato de que dar obriga - é discutida por GODELIER nos seguintes termos: “ Dar é transferir voluntariamente algo que nos pertence a alguém de quem pensamos que não se pode deixar de aceitar. O doador pode ser um grupo ou indivíduo que age sozinho ou em nome do grupo. Assim como o donatário pode ser um indivíduo ou um grupo, uma pessoa recebe o dom em nome do grupo que representa. Logo, o dom é um ato voluntário, individual ou coletivo, que pode ou não ter sido solicitado por aquele, aquelas ou aqueles que o recebem.” (2001, 22- 23).

Neste sentido, parece confi rmar-se a hipótese já discutida de que o ato de dar/doar institui ao mesmo tempo uma relação dupla entre aquele que doa e aquele que recebe. Uma relação ambivalente, no entender de GODELIER (2001), de inequívoca solidariedade, pois quem doa partilha o que tem com aquele que recebe, e mais do que isso, partilha o que é o espírito das pessoas nas coisas, uma vez que o dom é impregnado de hau ou mana. Entretanto constitui-se também uma relação de inequívoca superioridade, pois quem recebe o dom e o aceita fi ca em dívida (obrigado) com aquele que doou. Essa desigualdade resultante pode sempre ser superada pela restituição do que foi doado. A reciprocidade, desta forma, está sempre colocada como possibilidade.

A extensão dessa compreensão ao direito contemporâneo é passível de acordo com Mauss. Para o autor, instituições como o sistema de prestações totais concretizado na permuta da dádiva fornece a transição para as formas de direito contemporâneas que, por sua vez, também distinguem entre a obrigação e a prestação não gratuita e a dádiva. Para o

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autor, o nexum, o vínculo de direito nas sociedades contemporâneas, assim como nas sociedades arcaicas, vem tanto das coisas como dos homens, num confundido vaivém de almas e de coisas para além das palavras e gestos do formalismo jurídico. Ao exemplifi car com o penhor, assevera MAUSS que essa relação “não somente obriga e vincula, mas empenha, ainda, a honra, a autoridade, o mana daquele que o entrega.” ( MAUSS, 1974, 159). Esclarece GODELIER ( 2001, 166) que se deve voltar para os objetos (coisas) para que, ao tentar distinguir as suas características, se tivesse acesso às representações imaginárias da vida, da riqueza e do poder projetado e investido neles.

4. A DÁDIVA E A ETNOGRAFIA DO “VIVANT”: OUTRA LIBERDADE POSSÍVEL?

Para os franceses, “don” refere-se à ação de abandonar gratuitamente uma coisa, sinalizando uma abstenção ou sacrifício; dar algo sem receber nada em troca, apontando uma doação ou presente (LE ROBERT, 1998, 407). Indaga-se, então, se nesta categoria, formulada para recepcionar os atos de disposição do próprio corpo, que se quer distinta do contrato, está presente a dádiva, lançada por Marcel Mauss. Para tanto, submete-se ao método etnográfi co, alguns dos formulários encontrados no setor biotecnológico francês, por BELLIVIER e NOIVILLE, como segue:

Eu, abaixo assinado(a) (...) declaro ter sido informado (...) da possibilidade de utilização para fi ns terapêuticos do teci-do necessariamente retirado para realizar a intervenção que me foi proposta (...),’ ou ainda ‘Eu, abaixo assinado(a) (...), consinto expressamente que as retiradas efetuadas quando da intervenção médica do (...) pelo Dr. (...) sejam conserva-dos por criopreservação e utilizados para fi ns de pesquisa científi ca, notadamente genética.8 (2006, 143).

8 Tradução livre de: «’Je, soussigné(e) [...], déclare avoir été informé(e) [...] de la possi-bilité d’utilisation à des fi ns thérapeutiques de tissu nécessairement enlevé pour réaliser l’intervention qui m’est proposée [...] ‘ ; ou encore ‘ Je, sossigné(e) [...], consens expres-sément que les prélèvements effectués lors de l’intervention médicale du [...] par le Dr [...] soient conservés par cryopréservation et utilisés à des fi ns de recherche scientifi que, notamment génétique.’ » (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 143)

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Segundo essas autoras, tais formulários apresentam uma “arquitetura comum”: (i) a gratuidade, a revogabilidade do consentimento, o anonimato e o segredo médico; (ii) a previsão que o material conservado sirva para múltiplas pesquisas, prevendo-se seus tipos e duração, e (iii) embora o doador não tenha qualquer direito aos resultados da pesquisa, o direito de ser informado a seu respeito (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 143-144).

Nos atos de disposição do próprio corpo, marcados pela remuneração, é estabelecido um jogo recíproco de obrigações entre as partes. No “contrato de locação de útero”, realizado no “caso bebê M.”, nos Estados Unidos, a mãe portadora obrigou-se, entre outras disposições, a não formar ou tentar formar qualquer vínculo de mãe com a criança que viesse a gerar, e dar sua custódia imediata ao pai biológico:

1. Mary Beth Whitehead, mãe de aluguel, declara que é capaz de conceber um fi lho. Mary Beth entende e concorda que, pelo melhor interesse da criança, ela não formará nem tentará formar vínculo de mãe e fi lho com a criança ou cri-anças que possa vir a conceber, gerar ou dar nascimento, conforme as cláusulas deste acordo, e deverá, por livre e espontânea vontade, dar a custódia a William Stern, pai nat-ural, imediatamente após o nascimento da criança, e dará por encerrado todos os direitos maternos sobre a referida criança. (...) Mary Beth Whitehead, mãe de aluguel, e seu marido Richard Whitehead, concordam em dar a custódia da criança a William Stern, pai biológico, imediatamente após o nascimento, declarando que a intenção deste contra-to visa a assegurar os melhores interesses da criança e a isto se propõem, cooperando nos procedimentos para extinguir os seus direitos de paternidade com a referida criança, e as-sinar todo e qualquer termo de compromisso, documentos ou outro do gênero para levar adiante o propósito e as inten-ções deste acordo. (MEIRELLES, 1998, 143-144)

Curiosamente, atos de disposição corporal, realizados sob a égide do “don” também estabelecem obrigações recíprocas entre doadores e receptores. Veja-se o formulário de doação de esperma da Federação Francesa de CECOS:

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Eu me comprometo a fornecer todos os esclarecimen-tos que me serão requeridos sobre meu estado de saúde e dos membros de minha família. Eu autorizo a CECOS a conservar este conjunto de informações no anonimato. Eu me comprometo a não investigar a identidade das pes-soas inseminadas com meu esperma, ou a identidade dos fi lhos assim concebidos, em saber que, reciprocamente, o anonimato mais absoluto me é assegurado. (BELLIVIER e NOIVILLE, 2006, 143)

Na sociedade moderna, a liberdade defi ne-se pela ausência de dívida, pois a liberdade se perfaz na troca de equivalentes. A dádiva, por sua vez, expressa uma liberdade diversa: a da dívida. É uma liberdade que se situa no laço social e não no mercado. Por meio da dádiva o indivíduo se realiza com ser social. Deste modo, tudo o que não está ligado ao mercado o ao Estado, mas que circula em favor do laço social é dádiva, como as doações de sangue, órgãos e doações humanitárias (GODBOUT, 1998, 7). No jogo de obrigações recíprocas, estabelecidas pelo “don”, está presente o sentido último da dádiva: é tão somente e, aparentemente, desinteressada, pois pressupõe retribuição.9 Não há dádiva sem expectativa de retribuição (LANNA, 2000, 176). É a “moral da dádiva-troca”, já presente nas sociedades primitivas como uma forma de relação que se diferencia da troca mercantil, por associar um valor moral ou ético à transação econômica (SABOURIN, 2008, 132).

Em seu estudo etnográfi co, Marcel Mauss identifi ca a dádiva em lugares e tempos diversos, concluindo que a dádiva expressa reciprocidade.10 Não obstante, ela possa ser isolada em seu aspecto econômico, ela não deixará de expressar aspectos diversos como o político e o religioso. Eis que a troca expressa o laço de socialidade entre os indivíduos, como aquela que leva à superação da guerra (LANNA, 2000, 81).

Nessa perspectiva, Mauss aproxima-se de Hobbes, ao enunciar: a dádiva substitui a guerra. Tal como o contrato social é o mito de superação do estado de natureza, a dádiva é a estrutura social, presente nas mais

9 “Nessas prestações existem ‘misturas entre almas e coisas’, entre riquezas materiais e espirituais, ao passo que nas sociedades modernas, direitos reais e direitos pessoais, material e espiritual, são muito bem separados.” (SABOURIN, 2008, 132)

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diversas sociedades, capaz de superar a guerra e estabelecer o laço social. Guardadas as devidas proporções, o “don” é a estrutura social utilizada para afastar o contrato e, em última instância, o mercado, um tipo de estado de natureza, no qual se trava a guerra pelo “vivant”.

Embora se julgue capaz de afastar-se do evolucionismo, Marcel Mauss cede à sua tentação, e alega que na sociedade capitalista, a dádiva se enfraquece. Sua moral é “envelhecida e acidental”, “demasiado dispendiosa e suntuária, assoberbada por considerações pessoais, incompatível com o desenvolvimento do mercado e da produção” (LANNA, 2000, 183).

Porém, indaga-se: a dádiva realmente teria desaparecido da sociedade capitalista? Mauss não identifi ca a presença da dádiva em si, mas de sua lógica. Se, por vezes, a relação entre dádiva e mercado é de contradição, por outras, é de complementariedade. Com efeito, para além da liberdade econômica, há outra liberdade possível nas sociedades informadas pelo capitalismo. Essa liberdade é revelada pelo “don”: aquela que ocorre em favor do laço social, que não se encerra na liberdade econômica. Contudo, semelhante conclusão poderia produzir respostas a favor do mercado: a contratação do “vivant” não pode ser negada, na medida em que pertence a uma liberdade fora do mercado. Aproveitando-se deste fato, a lógica capitalista trata de absorver o “vivant” por meio de categorias já disponíveis no sistema jurídico, com a fi nalidade de torná-lo passível de circulação econômica.

CONCLUSÃO

O texto aponta para uma ruptura antropológica, que coloca em causa a patrimonialidade do contrato. Pensado pelos sistemas jurídicos, informados pelo capitalismo, como a “veste jurídico-formal” de uma “operação econômica”, seu objeto foi encerrado na “troca de equivalentes”. Em face dos avanços da biotecnologia contemporânea, a pessoa passa a ocupar seu lugar, promovendo uma ressignifi cação do contrato: a circulação do “vivant”.

Do contrato social, projetou-se para a sociedade moderna, a liberdade pensada como liberdade econômica: os sujeitos são tão somente

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“vozes” que fi guram por trás das mercadorias. Tomando conta do cenário contratual, passou a se indagar se há outras liberdades possíveis. A resposta para esta indagação foi encontrada por um novo fundamento para a sociedade, lançado por Marcel Mauss, em lugar do contratualismo: da dádiva.

A liberdade moderna foi concebida como ausência de dívida, excluindo outras formas de liberdade. Contudo, nas comunidades antigas e presentes, observadas por Mauss, a dádiva expressa reciprocidade, que não se restringe à troca, delineando uma liberdade diversa: a da dívida. A etnografi a do “don”, delineada por alguns formulários encontrados no setor biotecnológico francês, revela essa reciprocidade de obrigações, mesmo quando escapam à remuneração do ato de disposição corporal.

Com efeito, a Antropologia é capaz, não apenas, de apresentar algumas respostas para o Direito, mas, ainda, de contribuir para desvendar as entrelinhas da liberdade expressa pelos atos de disposição do próprio corpo. Não se referem a uma liberdade econômica, porém, justifi cam a circulação do “vivant”. O sentido econômico que essa circulação, por vezes, representa, deve-se à lógica do sistema capitalista que a tudo absorve, inclusive, a dádiva.

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Artigo recebido em: maio/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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A LEI DE SEMENTES E OS SEUS IMPACTOS SOBRE A AGROBIODIVERSIDADE

Juliana Santilli*

Sumário: Introdução; 1. A agrobiodiversidade: um conceito em construção; 2. Agrobiodiversidade e segurança alimentar, nutrição, saúde e sustentabilidade ambiental; 3. As leis de sementes e a infl uência do modelo agrícola industrial; 4. As sementes e os sistemas agrícolas locais; 5. A lei de sementes brasileira; 6. As sementes locais, tradicionais ou crioulas; 7.As sementes “para uso próprio”; Conclusão; Referências Bibliográfi cas.

Resumo: O artigo faz uma análise crítica dos impactos da Lei de Sementes brasileira (10.711/2003) sobre a biodiversidade agrí-cola e sobre a agricultura tradicional, famil-iar e agroecológica. Inicialmente, o artigo discute o conceito de agrobiodiversidade e suas interfaces com a segurança alimentar, nutrição, saúde e sustentabilidade socio-ambiental. Depois, o artigo analisa como uma lei de sementes editada para atender aos interesses de um modelo agrícola in-dustrial tem impactado os sistemas agríco-las locais, tradicionais e agroecológicos, que são justamente aqueles que conservam e utilizam de forma sustentável os recursos da agrobiodiversidade.

Palavras-chave: Agrobiodiversidade, Biodiversidade agrícola, Lei de Sementes, Agricultura familiar, tradicional e agro-ecológica.

Abstract: This article analyses the im-pacts of the Brazilian Seed Law (Law 10.711/2003) on agricultural biodiversity and on traditional, family and agroecologi-cal agriculture. Initially, the article exam-ines the concept of agrobiodiversity and its interfaces with food security, nutrition, health and environmental sustainability. The article shows that Brazilian Seed Law, aimed at protecting the interests of indus-trial, large-scale agricultural models, is producing severe impacts on local, tradi-tional and agroecological systems, which are the ones that conserve and use sustain-ably the resources of agrobiodiversity.

Key-words: Agrobiodiversity, Agricultur-al biodiversity, Seed Law, Family, Tradi-tional and Agroecological Farming.

* Promotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, doutora em Direito Socioambiental pela PUC-PR e autora dos livros Agrobiodiversidade e direitos dos ag-ricultores (São Paulo: Peirópolis; IEB, 2009) e Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural (São Paulo: Peirópolis; IEB; ISA, 2009). Contato: [email protected].

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INTRODUÇÃO

A perda da diversidade agrícola (ou agrobiodiversidade), nos mais diferentes níveis, está associada a mudanças ocorridas na agricultura, especialmente a partir da revolução verde, e, evidentemente, não pode ser atribuída ao sistema jurídico. Entretanto, diversas leis (como a de sementes, de proteção de cultivares e de acesso aos recursos genéticos) impactam diretamente a agrobiodiversidade, e seus efeitos têm sido subestimados. Mais do que isso, desconsideram que a biodiversidade e a sociodiversidade associada são protegidas pela Constituição e que as leis e políticas públicas devem promover a sua conservação e utilização sustentável. A preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético é expressamente determinada pela Constituição (artigo 225, parágrafo 1º, II), assim como a salvaguarda do rico patrimônio sociocultural brasileiro (artigo 216), que inclui as variedades agrícolas, os saberes e as inovações desenvolvidas pelos agricultores.

Neste artigo, analisaremos os impactos da Lei de Sementes sobre a agrobiodiversidade (Lei 10.711/2003), procurando adotar uma abordagem interdisciplinar. O artigo discutirá inicialmente o conceito de agrobiodiversidade, mostrando que ele está diretamente relacionado a direitos fundamentais, como à segurança alimentar, à nutrição, à saúde e à sustentabilidade ambiental. Depois, analisará como a Lei de Sementes tem impactado a biodiversidade agrícola em seus diferentes níveis, mostrando que os instrumentos jurídicos devem contemplar tanto o suporte biológico da biodiversidade agrícola (as espécies, variedades agrícolas e agroecossistemas) como os conhecimentos e práticas socioculturais associadas a essa, detidos por agricultores e comunidades locais e tradicionais.

1. A AGROBIODIVERSIDADE: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO

O conceito de agrobiodiversidade refl ete as dinâmicas e complexas relações entre as sociedades humanas, as plantas cultivadas e os ambientes em que convivem, repercutindo sobre as políticas de conservação dos ecossistemas cultivados, de promoção da segurança alimentar e nutricional das populações humanas, de inclusão social e de desenvolvimento local sustentável.

A biodiversidade ou diversidade biológica – a diversidade de formas de vida – encobre três níveis de variabilidade: a diversidade de espécies, a diversidade genética (a variabilidade dentro do conjunto de indivíduos da mesma espécie) e a diversidade ecológica, que se refere aos diferentes ecossistemas e

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paisagens. Isso ocorre também em relação à agrobiodiversidade, que inclui a diversidade de espécies (por exemplo, espécies diferentes de plantas cultivadas, como o milho, o arroz, a abóbora, o tomate etc.), a diversidade genética (por exemplo, variedades diferentes de milho, feijão etc.) e a diversidade de ecosssistemas agrícolas ou cultivados (por exemplo, os sistemas agrícolas tradicionais de queima e pousio, também chamados de coivara ou itinerantes, os sistemas agrofl orestais, os cultivos em terraços e em terrenos inundados etc.). Os agroecossistemas são áreas de paisagem natural transformadas pelo homem com o fi m de produzir alimento, fi bras e outras matérias-primas (CONWAY, 1987).

A agrobiodiversidade, ou diversidade agrícola, constitui uma parte importante da biodiversidade e engloba todos os elementos que interagem na produção agrícola: os espaços cultivados ou utilizados para criação de animais domésticos, as espécies direta ou indiretamente manejadas, como as cultivadas e seus parentes silvestres, as ervas daninhas, os parasitas, as pestes, os polinizadores, os predadores, os simbiontes (organismos que fazem parte de uma simbiose, ou seja, que vivem com outros) etc., e a diversidade genética a eles associada (também chamada de diversidade intraespecífi ca, ou seja, dentro de uma mesma espécie). A diversidade de espécies é chamada de diversidade interespecífi ca (QUALSET, 1995).

A Convenção sobre Diversidade Biológica não contém uma defi nição de agrobiodiversidade, mas, segundo a Decisão V/5, a agrobiodiversidade é um termo amplo que inclui todos os componentes da biodiversidade que têm relevância para a agricultura e a alimentação, e todos os componentes da biodiversidade que constituem os agroecossistemas: a variedade e a variabilidade de animais, plantas e micro-organismos, nos níveis genético, de espécies e de ecossistemas, necessários para sustentar as funções-chaves dos agroecossistemas, suas estruturas e processos. Portanto, os componentes da biodiversidade agrícola incluem: a diversidade vegetal, domesticada e silvestre; a diversidade de animais domésticos (das cerca de 50.000 espécies de mamíferos e aves conhecidos, aproximadamente quarenta foram domesticadas, e dessas espécies os agricultores desenvolveram cerca de 5.000 raças adaptadas a condições ambientais locais e a necessidades específi cas); - a diversidade da fauna aquática (os peixes e outras espécies aquáticas são parte integrante de muitos sistemas agrícolas importantes); - a diversidade subterrânea (as raízes levam os nutrientes e a água até as plantas e estabilizam o solo); - a diversidade microbiana (os micro-organismos reciclam e disponibilizam muitos nutrientes necessários às plantas, entre outras funções); a diversidade de insetos (como abelhas e outros polinizadores), aranhas e outros artrópodes (gafanhotos,

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centopeias etc.), que agem muitas vezes como inimigos naturais de seres nocivos às plantas; a diversidade de ecossistemas (CROMWELL, 2003). Neste trabalho, nos concentraremos sobretudo na diversidade de plantas cultivadas e de agroecossistemas.

A agrobiodiversidade é essencialmente um produto da intervenção do homem sobre os ecossistemas: de sua inventividade e criatividade na interação com o ambiente natural. Os processos culturais, os conhecimentos, práticas e inovações agrícolas, desenvolvidos e compartilhados pelos agricultores, são um componente-chave da agrobiodiversidade. As práticas de manejo, cultivo e seleção de espécies, desenvolvidas pelos agricultores ao longo dos últimos 10.000 a 12.000 anos, foram responsáveis, em grande parte, pela enorme diversidade de plantas cultivadas e de agroecossistemas e, portanto, não se pode tratar a agrobiodiversidade dissociada dos contextos, processos e práticas culturais e socioeconômicas que a determinam e condicionam. Por isso, além da diversidade biológica, genética e ecológica, há autores que agregam um quarto nível de variabilidade: o dos sistemas socioeconômicos e culturais que geram e constroem a diversidade agrícola.

A diversidade resulta tanto de fatores naturais quanto culturais. Assim, há sociedades que adaptam variedades de arroz ao cultivo aquático, submerso em água, em regiões úmidas, e há outras que adaptam variedades de arroz ao cultivo em regiões secas. As diferentes variedades de milho podem ser usadas para se comer diretamente da espiga, para alimentar os animais, para fazer pipoca e farinha ou para a fermentação da cerveja. São usadas também para fi ns ornamentais (principalmente aquelas com pigmentos coloridos), medicinais ou religiosos. Uma mesma espécie pode ser usada para fi ns alimentícios ou como medicamento, e as diferentes partes de uma mesma planta podem também ter serventias diferentes. As plantas têm ainda usos em rituais e em cerimônias religiosas, e muitos nomes podem ser dados às variedades de uma mesma espécie. A diversidade agrícola pode também se expressar tanto em características perceptíveis pelo olhar humano, como variações de cor, forma, altura, tamanho e formato das folhas, quanto em variações genéticas, como resistência a secas, pestes e doenças, alto teor nutritivo etc., e a sua perda é difícil de ser avaliada e mensurada com exatidão. A extinção dos saberes, práticas e conhecimentos agrícolas é ainda mais difícil de ser avaliada e mensurada.

Mesmo que não se possa estimar exatamente a dimensão da perda, a diversidade agrícola está ameaçada, e ela constitui a base da sobrevivência das populações rurais, notadamente as de baixa renda. O Relatório sobre o Estado dos Recursos Genéticos de Plantas do Mundo, apresentado durante a 4ª Conferência Técnica Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos, realizada

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em Leipzig, na Alemanha, de 17 a 23 de junho de 1996, foi um alerta importante para a grave erosão genética e cultural provocada pelos sistemas agrícolas modernos. O relatório1 foi a primeira avaliação global e sistemática do estado de conservação e uso dos recursos fi togenéticos existentes no planeta. Segundo o relatório, nos últimos cem anos, os agricultores perderam entre 90% e 95% de suas variedades agrícolas. Consta ainda do relatório que:

1) Na Coreia do Sul, apenas um quarto das catorze variedades vegetais nativas cultivadas em jardins e hortas em 1985 continuavam a existir em 1993. Apenas 20% das variedades de milho que existiam no México nos anos 1930 ainda existem hoje.

2) Nos Estados Unidos, 95% das variedades de repolho e 94% das variedades de ervilha, 81% das variedades de tomate deixaram de existir no último século. Das 7.098 variedades de maçã existentes entre 1804 e 1904 86% já não existem.

3) Na China, das 10.000 variedades de trigo utilizadas em 1949 apenas mil ainda eram usadas nos anos 1970. Até os anos 1970, cerca de 5.000 variedades de arroz eram cultivadas na Índia, das quais apenas quinhentas continuam a existir, e entre dez e vinte variedades ocupam a maior parte do território indiano.

A perda da biodiversidade agrícola é causada sobretudo pela substituição das variedades locais e tradicionais, que se caracterizam por sua ampla variabilidade genética, pelas variedades “modernas”, de alto rendimento e estreita base genética. Segundo o referido relatório, essa é a principal causa de erosão genética (citado em 81% dos relatórios nacionais, apresentados pelos países). Desapareceram tanto espécies como as variedades cultivadas dessas espécies, e não só as espécies domesticadas pelo homem como também os seus parentes silvestres continuam a desaparecer, em virtude da rápida devastação dos ecossistemas naturais. Em alguns casos, o desaparecimento de uma variedade pode não levar necessariamente à perda da diversidade genética, já que os seus genes podem existir também em outras variedades, mas as variedades representam, em si, uma combinação única de genes, com valor e utilidade também únicas. Estima-se ainda que a perda de uma planta pode causar o desaparecimento de quarenta tipos de animal e inseto, que dela dependem para sobreviver, além de combinações genéticas e moléculas únicas na natureza (KLOPPENBURG & KLEINMAN, 1987).

1 A elaboração do relatório envolveu 151 países, cerca de 50 organizações não governa-mentais, representantes do setor privado e especialistas. O relatório subsidiou a adoção da Declaração de Leipzig e do Plano Global de Ação para a Conservação e Utilização Sustentável dos Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura.

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2. AGROBIODIVERSIDADE E SEGURANÇA ALIMENTAR, NUTRIÇÃO, SAÚDE E SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL

É a diversidade de plantas cultivadas e animais domésticos, e a sua capacidade de se adaptar a condições ambientais adversas (clima, solo, vegetação etc.) e a necessidades humanas específi cas, que assegura aos agricultores a possibilidade de sobrevivência em muitas áreas sujeitas a estresses ambientais. É o cultivo de espécies diversas que protege os agricultores, em muitas circunstâncias, de uma perda total da lavoura, em casos de peste, doença, seca prolongada etc. Com as monoculturas, de estreitíssima base genética, ocorre o contrário: as pestes, doenças etc. atingem a única espécie cultivada e destroem completamente a lavoura.

A uniformidade genética cria enormes riscos e incertezas para os cultivos agrícolas, que se tornam especialmente vulneráveis. A situação de vulnerabilidade genética se caracteriza quando uma planta cultivada em larga escala é uniformemente suscetível a pestes, doenças ou estresses ambientais, devido à sua constituição genética, criando, dessa forma, riscos de perdas totais nas lavouras. Ainda que uma variedade moderna tenha sido desenvolvida para ter resistência contra um determinado patógeno, qualquer mutação nesse patógeno, por menor que seja, poderá ser sufi ciente para quebrar tal resistência, tornando vulnerável toda a lavoura.

Um dos mais famosos exemplos dos perigos representados pela uniformidade genética foi a “Grande Fome” ocorrida na Irlanda, entre 1845 e 1851, provocada pela devastação generalizada das plantações de batatas por um fungo (Phytophthora infestans). Noventa por cento da população da Irlanda dependia da batata como alimento principal. O fungo acabou com as plantações de batata e a fome matou 2 milhões de irlandeses (25% da população). Nesse período, 1,5 milhão de irlandeses migraram para os Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Muitos morreram durante a viagem ou logo na chegada, fragilizados pela subnutrição.

Há, entretanto, exemplos mais recentes. Nos anos 1970, uma doença de planta causada por um fungo (Bipolaris maydis), conhecida como “praga da folha do milho sulino”, atacou as plantações de milho de Estados norte-americanos (inicialmente os do sul e depois chegou até o norte, atingindo Minnesota, Michigan e Maine). Alguns Estados chegaram a perder metade de suas lavouras. Isso ocorreu também em 1971, numa plantação soviética de uma mesma variedade de trigo, conhecida como Besostaja, em uma área de 40 milhões de hectares, que se estendia de Kuban à Ucrânia. Tal variedade apresentava altos rendimentos quando cultivada em Kuban, onde as temperaturas eram mais

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amenas. Naquele ano, a Ucrânia sofreu um inverno extremamente rigoroso, que devastou suas plantações e levou à perda de 20 milhões de toneladas de trigo, que correspondiam a 30% a 40% da lavoura. Conforme destacam Cary Fowler e Pat Mooney, em ambos os casos a culpa pelas perdas das lavouras de milho e trigo, nos Estados Unidos e na Ucrânia, não deve ser atribuída à praga que infestou as plantações de milho ou ao inverno rigoroso da Ucrânia, e sim à uniformidade genética dos cultivos. As lavouras não teriam sido tão drasticamente devastadas se tivessem sido plantadas variedades diversas (FOWLER & MOONEY, 1990).

A agrobiodiversidade é essencial à segurança alimentar e nutricional, que consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade sufi ciente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Esse é o conceito estabelecido pelo artigo 3º da Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a fi m de assegurar o direito humano à alimentação.

A agrobiodiversidade está não só associada à produção sustentável de alimentos, como tem também papel fundamental na promoção da qualidade dos alimentos. Uma alimentação diversifi cada – equilibrada em proteínas, vitaminas, minerais e outros nutrientes – é recomendada por nutricionistas e condição fundamental para uma boa saúde. Só os sistemas agrícolas agrobiodiversos favorecem dietas mais nutritivas e equilibradas. Estão diretamente relacionados a redução da diversidade agrícola e o empobrecimento das dietas alimentares. A erosão genética no campo afeta não só os agricultores como também os consumidores.

Os modelos de produção agrícola têm implicações diretas para a alimentação, a nutrição e a saúde humana. A agricultura “moderna” e o cultivo de poucas espécies agrícolas favoreceram a padronização dos hábitos alimentares e a desvalorização cultural das espécies nativas. A alimentação centrada no consumo de plantas (frutas, legumes e verduras) foi substituída por dietas excessivamente calóricas e ricas em gorduras, mas pobres em vitaminas, ferro e zinco. Os alimentos são feitos com um número cada vez menor de espécies e variedades de plantas, e os derivados de milho e soja, por exemplo, estão presentes na maioria dos produtos alimentícios industrializados. Para que se tenha uma ideia, estima-se que existam entre 250.000 e 420.000 espécies de plantas superiores, das quais apenas trinta corresponderiam a 95% da nutrição humana, e apenas sete delas (trigo, arroz, milho, batata, mandioca, batata-doce e cevada) responderiam por 75% desse total. Estimativas mais otimistas apontam,

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entretanto, que 103 espécies seriam responsáveis por 90% dos alimentos consumidos no planeta, e não somente as vinte ou trinta espécies mais comumente mencionadas (WALTER, 2005). De qualquer forma, a alimentação humana se baseia em um número reduzido de espécies vegetais, o que compromete a saúde.

A alimentação pouco nutritiva e balanceada responde, em parte, pela epidemia mundial de doenças crônicas como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e algumas formas de câncer. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 177 milhões de crianças de todo o mundo estão ameaçadas por doenças relacionadas com a obesidade, e a previsão é que 2,3 bilhões de pessoas de mais de 15 anos serão obesas até 2015. Atualmente, há 1,5 bilhão de pessoas obesas no mundo, enquanto 854 milhões são subnutridas. Nos países em desenvolvimento, o enfrentamento da fome e da miséria passa necessariamente pela adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis.

A agricultura interage com o ambiente de diversas formas que afetam a saúde humana. Os efeitos nocivos do uso indiscriminado de agrotóxicos são bem conhecidos. Em casos extremos, chegam a provocar anomalias genéticas, tumores e câncer. A Organização Mundial da Saúde estima que ocorrem no mundo cerca de 3 milhões de intoxicações agudas por agrotóxicos, com 220.000 mortes por ano, das quais cerca de 70% ocorrem em países em desenvolvimento.2 Além da intoxicação de trabalhadores rurais que têm contato direto ou indireto com esses produtos, a contaminação de alimentos atinge também os consumidores. Por causa da sua periculosidade para a saúde humana e para o meio ambiente, os agrotóxicos estão sujeitos a controles legais em muitos países do mundo, inclusive no Brasil. As alterações ambientais produzidas pela irrigação e pelo desmatamento favorecem também o desenvolvimento de doenças como malária, esquistossomose etc.

A agrobiodiversidade é um componente essencial dos sistemas agrícolas sustentáveis. Um de seus princípios é justamente a diversifi cação dos cultivos. Um maior número de espécies em determinado ecossistema, associado a outros fatores ecológicos, assegura maior estabilidade e menor necessidade de insumos externos, como os agrotóxicos e os fertilizantes nitrogenados. Os sistemas agrícolas diversifi cados também propiciam colheitas de diferentes cultivos em épocas do ano alternadas. A quebra de uma safra, ou a redução do

2 Em 2008, o Brasil assumiu a liderança no consumo mundial de agrotóxicos. As vendas de agrotóxicos totalizaram 733,9 milhões de toneladas e movimentaram cerca de 7,1 bilhões de dólares, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Agrícola (Sindag). Fonte: “No reino dos agrotóxicos: a Anvisa pode banir 13 pesticidas do Brasil, novo líder mundial de consumo”. CartaCapital, 20/05/2009, nº 546.

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preço de determinada cultura, não causa tantos prejuízos como nos sistemas monoculturais (EHLERS, 2008).

A diversifi cação de um agroecossistema pode ser realizada de várias formas, que vão desde o consórcio de culturas, passando pela rotação (os “cultivos alternados”), até os sistemas agrofl orestais, que são um sistema de manejo fl orestal que visa conciliar a produção agrícola e a manutenção das espécies arbóreas. Esses sistemas promovem o aumento da matéria orgânica nos solos, diminuem a erosão e conservam a diversidade de espécies. Quando as matas ciliares são recuperadas, verifi ca-se também a diminuição da turbidez da água e uma ampliação da disponibilidade de recursos hídricos (BEZERRA & VEIGA, 2000).

Cada agroecossistema, entretanto, apresenta características distintas, e exige soluções específi cas. A agricultura sustentável requer uma compreensão das complexas interações entre os diferentes componentes dos sistemas agrícolas. Cada agroecossistema deverá encontrar as soluções adequadas às suas condições ambientais, econômicas e sociais. A especialização dos sistemas produtivos e a homogeneidade genética que os caracteriza não só provocam a diminuição da diversidade de espécies e variedades como também reduzem espécies importantes ao equilíbrio dos agroecossistemas, como as bactérias fi xadoras de nitrogênio, os fungos que facilitam a absorção de nutrientes, os polinizadores, dispersores de sementes etc. Comprometem ainda a resistência e a resiliência dos agroecossistemas, tornando-os mais vulneráveis ao ataque de pragas, secas, mudanças climáticas e outros fatores de risco.

3. AS LEIS DE SEMENTES E A INFLUÊNCIA DO MODELO AGRÍCOLA INDUSTRIAL

As sementes – usaremos aqui esse termo em sentido amplo, para incluir todo material de propagação vegetal - encerram em si toda a vida de uma planta e são a base da agrobiodiversidade. Não se pode compreender o impacto do sistema jurídico sobre a diversidade agrícola sem uma análise das normas que regulam a produção, a comercialização e a utilização das sementes. As leis de sementes não apenas produzem seus efeitos sobre os sistemas agrícolas como também têm interfaces com as políticas de desenvolvimento rural sustentável, segurança alimentar e nutricional, inclusão social, agrobiodiversidade e sobrevivência cultural dos povos tradicionais. A elaboração e a implementação das leis de sementes devem, portanto, contemplar a diversidade de sistemas agrícolas e de atores sociais envolvidos na produção de alimentos.

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Atualmente, está em vigor no Brasil a Lei nº 10.711, de 05/08/2003 (mais conhecida como Lei de Sementes), que dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas e “objetiva garantir a identidade e a qualidade do material de multiplicação e de reprodução vegetal produzido, comercializado e utilizado em todo o território nacional”. Essa norma substituiu a lei de sementes anterior (nº 6.507 de 1977), que, por sua vez, revogou a primeira lei de sementes brasileira, a 4.727, editada em 13 de julho de 1965 para regular a fi scalização do comércio de sementes e mudas. São leis de sementes essencialmente destinadas a regular o sistema “formal” de sementes do país, cujos impactos sobre a agrobiodiversidade serão analisados a seguir.

A primeira lei de sementes brasileira foi editada em um período histórico em que muitos países adotaram legislações semelhantes, infl uenciados pelo paradigma do produtivismo e da “modernização” da agricultura, da padronização dos produtos agrícolas e da fragmentação das várias etapas da produção agrícola. Nesse novo paradigma industrial, as variedades de alto rendimento, homogêneas, estáveis e dependentes de insumos externos, introduzidas pela revolução verde nos anos 1960 e 1970, adquiriram papel central. As sementes de tais variedades passaram a ser vistas como um instrumento para a transferência de tecnologia, e a ampla disseminação das variedades melhoradas e de alto rendimento se tornou um dos principais objetivos de programas de desenvolvimento agrícola fi nanciados por organismos internacionais. Entre 1958 e 1987, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, United States Agency for International Development) apoiou o desenvolvimento de um setor “formal” de produção de sementes melhoradas em 57 países em desenvolvimento. O Programa de Melhoramento e Desenvolvimento de Sementes da FAO atuou em sessenta países entre 1972 e 1984, enquanto o Banco Mundial fi nanciou treze programas nacionais de sementes e pelo menos uma centena de projetos relacionados com a introdução de sementes melhoradas entre 1975 e 1985. O principal objetivo de tais programas era capacitar as instituições agrícolas locais para produzir sementes melhoradas e distribuí-las aos agricultores, bem como criar condições para que o setor privado assumisse a sua produção e comercialização. Foi nesse contexto que surgiram as leis de sementes, destinadas a orientar o desenvolvimento de um setor “moderno” e comercial de produção de sementes (LOUWAARS, 2008).

O biólogo e historiador da ciência Christophe Bonneuil chama a atenção para o papel desempenhado, nesse modelo agrícola industrial, do que chama de “paradigma fi xista (ou estático) da variedade”, por meio do qual a variedade agrícola (geneticamente) homogênea e estável é concebida como a “forma mais perfeita de variedade”. Bonneuil cita como exemplo de tal concepção

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“fi xista” um artigo publicado em 1944 pelo infl uente biólogo francês Jean Bustarret, em que esse considera que a homogeneidade genética é a garantia da previsibilidade e da estabilidade do valor agronômico e tecnológico de uma variedade agrícola (BONNEUIL ET AL, 2006). As variedades locais teriam dois inconvenientes, segundo Jean Bustarret: por serem geneticamente heterogêneas, seriam “muito mais difíceis de descrever e caracterizar” do que as linhagens puras e homogêneas, e seriam ainda “suscetíveis de variar no tempo e no espaço”. Bustarret desconsidera o papel dos agricultores no desenvolvimento das variedades locais, vendo-as apenas como resultado da “seleção natural”, e o seu conceito de variedade (homogênea e estável) serve também para delimitar o campo de especialização profi ssional do “fi togeneticista” e para operar uma divisão de trabalho entre o cientista “inovador” e o agricultor “usuário” da ciência. Bustarret introduziu os critérios de homogeneidade, estabilidade e “características distintivas”, que passaram a ser exigidos para a inscrição obrigatória das variedades agrícolas em um catálogo ofi cial, a fi m de que pudessem ser comercializadas, o que excluiu grande parte das variedades locais (BUSTARRET, 1944). O paradigma fi xista da variedade ignora a evolução das variedades agrícolas no tempo e no espaço e os contextos socioculturais e ambientais em que elas se desenvolvem. Atende principalmente a um padrão de produção agrícola intensivo e de escala (BONNEUIL ET AL, 2006). Além disso, os critérios de homogeneidade e estabilidade, exigidos para o registro ofi cial, reduzem a diversidade de variedades disponíveis para os agricultores.

Além dos critérios de homogeneidade e estabilidade, a introdução de testes para a avaliação do “valor agronômico e tecnológico” das variedades agrícolas produz outro efeito reducionista sobre a diversidade: os ensaios só avaliam algumas características, notadamente o rendimento e a produtividade, anulam a diversidade de ambientes em virtude de uma extrema artifi cialização causada pelo uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos e, a partir de certo momento, passaram a ser cada vez mais conduzidos em laboratórios e estações de pesquisa agronômica, e não nos campos dos agricultores, distanciando-os ainda mais dos processos decisórios. A avaliação do “valor agronômico e tecnológico” das variedades sem a participação dos agricultores e sem considerar os contextos socioambientais tende a excluir qualquer variedade não adaptada ao modelo agrícola industrial, reduzindo a agrobiodiversidade.

O modelo agrícola industrial promoveu a concepção de que tanto o melhoramento (genético) das variedades agrícolas como a produção das sementes deveriam ser atividades desenvolvidas apenas por setores profi ssionais específi cos (fi togeneticistas, agrônomos etc.). Os agricultores passaram a ser tratados como simples produtores agrícolas e consumidores de sementes e de

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outros insumos agrícolas industrialmente produzidos. Passaram a ser vistos, portanto, como meros usuários fi nais do trabalho desenvolvido pelos técnicos do melhoramento vegetal. Trata-se de uma concepção que negou o papel dos agricultores como inovadores e detentores de saberes e práticas fundamentais para os sistemas agrícolas e para a manutenção da agrobiodiversidade no campo. As sementes e variedades desenvolvidas e produzidas pelos agricultores, adaptadas às condições locais, começaram a ser substituídas por variedades estáticas e homogêneas, e os saberes agrícolas, a ser produzidos fora do campo, longe dos agricultores, pelas instituições de pesquisa. As políticas ofi ciais não conseguiram impedir, entretanto, que os agricultores continuassem a inovar, selecionando e produzindo suas próprias sementes, desenvolvendo novas variedades e realizando trocas e intercâmbios de sementes e saberes agrícolas.

As concepções vigentes – da variedade homogênea e estável como a mais “perfeita” e adequada a qualquer sistema agrícola e de que os cientistas são os únicos capazes de realizar inovações na agricultura – fundamentaram as leis de sementes aprovadas no período pós-revolução verde, que se inspiraram em leis de países industrializados e procuraram sustentar, juridicamente, um modelo industrial de produção de sementes. Tais leis tentaram, na verdade, promover a “modernização” da agricultura por meio de uma imposição legislativa artifi cial, que ignora a realidade sociocultural e econômica dos agricultores e dos sistemas agrícolas dos países em desenvolvimento. Atendem aos interesses e às necessidades de uma parcela muito pequena dos atores sociais do campo e não reconhecem a existência de complexos e diversifi cados sistemas locais de produção, distribuição, comercialização e intercâmbio de sementes, que abrangem extensas redes sociais, reguladas por normas locais.

Apesar de terem as suas peculiaridades em cada país, as leis de sementes se fundamentam em uma perspectiva linear: as leis e as políticas devem favorecer o desenvolvimento de um setor de sementes “moderno”, comercial, em que as empresas privadas têm um papel central na produção e comercialização de sementes e da qual o poder público vai aos poucos se afastando. As políticas devem estimular os investimentos privados (de empresas nacionais e estrangeiras) na área de sementes, adotando medidas legais (como a proteção de cultivares) e econômicas (como incentivos fi scais) de apoio ao setor privado, para incentivá-lo a assumir o melhoramento, a produção, a distribuição e a comercialização das sementes. Parte-se da perspectiva (linear) de que os sistemas de sementes devem “evoluir”, passando das variedades e práticas agrícolas tradicionais (atrasadas) para as variedades e sistemas agrícolas “modernos”, que empregam tecnologias “modernas” e apresentam alta produtividade. As leis de sementes devem, portanto, impulsionar o sistema “formal” de sementes e eliminar (ou reduzir ao

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máximo) os “informais”. Niels Louwaars critica tal perspectiva linear, que se fundamenta principalmente em um modelo proposto por Johnson Douglas para orientar o desenvolvimento do setor de sementes, com vários estágios sucessivos, que levariam à evolução do “tradicional” ao moderno. (LOUWAARS, 2008; DOUGLAS, 1980). É um modelo que subestima a capacidade dos agricultores de desenvolver e produzir suas sementes, assim como seus saberes e práticas agrícolas (em geral), e considera que o conhecimento científi co dará solução a todos os problemas agrícolas através das variedades melhoradas e das sementes “de alta qualidade”. Os agricultores são vistos como meros recipientes dessas tecnologias agrícolas, que só precisam ser convencidos a adotá-las. Além disso, o modelo pressupõe que os sistemas de sementes podem – ou deveriam – funcionar da mesma forma para todas as espécies agrícolas e para todos os tipos de agricultor, o que, evidentemente, não ocorre.

Assim, as leis de sementes têm em comum o fato de atender principalmente ao chamado sistema “formal” de sementes, e de desconsiderar o papel dos sistemas “locais” (chamados de “informais”), manejados e controlados pelos próprios agricultores, na produção, multiplicação, distribuição, intercâmbio, melhoramento e conservação de sementes. É mais comum a utilização do termo “sistema formal” (convencional ou institucional) de sementes para enfatizar a sua adequação a normas legais, e o fato de que combina atores e instituições públicas e privadas no desenvolvimento, produção e distribuição de sementes, tais como bancos de germoplasma, instituições de pesquisa agronômica, fi tomelhoristas, produtores, benefi ciadores, armazenadores, comerciantes e certifi cadores de sementes, cujas atividades são reguladas por normas técnicas e metodologias padronizadas. Trata-se de um sistema que se destina principalmente à comercialização de sementes em grande escala e em mercados/regiões que extrapolam o âmbito local. (Em muitos casos, um dos elos da cadeia – o melhoramento genético vegetal – é realizado por instituições públicas, mas a produção e o comércio das sementes produzidas pelo sistema “formal” tendem a se concentrar nas mãos de empresas privadas.) Os sistemas formais e locais operam sob lógicas e dinâmicas muito distintas, atendendo a necessidades de diferentes modelos agrícolas, o que tem sido subestimado pelas leis de sementes. As leis de sementes devem, portanto, se limitar a regular os sistemas formais, deixando fora de seu escopo os sistemas locais, que não podem ser obrigados a se enquadrar em normas tão distantes de sua realidade econômica e sociocultural. Só assim as leis de sementes estarão contribuindo para a diversifi cação dos sistemas de sementes, tão fundamental para uma agricultura heterogênea e para a conservação da biodiversidade agrícola.

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Analisando o desenvolvimento histórico dos sistemas formais de sementes, Niels Louwaars mostra que esses se desenvolveram nos países industrializados na segunda metade do século XIX e evoluíram rapidamente após a reinvenção das leis de hereditariedade de Mendel no início do século XX, tendo ganhado novo impulso com a descoberta do fenômeno da heterose e a subsequente introdução de milhos híbridos. Louwaars mostra que o sistema formal funciona, do ponto de vista da diversidade genética vegetal, como um “funil”, em que, a partir de uma ampla variedade de materiais disponíveis em coleções de germoplasma, são desenvolvidas – e chegam aos agricultores – pouquíssimas variedades, adaptadas ao modelo agrícola dominante, que, em geral, não atendem às necessidades de agricultores que vivem em ambientes marginais, sujeitos a estresses agroambientais e socioeconômicos mais complexos. Os sistemas formais estão voltados principalmente para as espécies agrícolas de grande valor comercial e de ampla utilização em ambientes homogêneos ou homogeneizados por fertilizantes químicos e pesticidas. Assim, não são capazes de oferecer grande variedade de sementes adaptadas a usos e condições locais específi cas e de atender às necessidades de agricultores que dispõem de poucos recursos e vivem em regiões heterogêneas, ambiental e culturalmente (LOUWAARS, 2007).

4. AS SEMENTES E OS SISTEMAS AGRÍCOLAS LOCAIS

Connie Almekinders prefere chamar os sistemas “locais” de “sistemas dos agricultores”, para enfatizar que são os próprios agricultores que manejam e controlam tais sistemas, promovendo a seleção, o melhoramento, a produção e a difusão das sementes em contextos locais específi cos (ALMEKINDERS, LOUWAARS, 1999). São sistemas em que os agricultores produzem suas próprias sementes, controlando os recursos genéticos de plantas de maneira integrada e com diferentes fi nalidades, explica Walter de Boef. Acrescenta ainda esse pesquisador que o manejo e a seleção dos agricultores, em combinação com processos naturais, como mutação genética e cruzamento com parentes silvestres, caracterizam um “sistema de evolução contínua dos cultivos” (BOEF, 2007). São sistemas que mantêm a diversidade genética no campo, em que são desenvolvidas variedades agrícolas adaptadas a condições locais específi cas, que os sistemas formais não têm condições e/ou interesse em produzir e comercializar. Além disso, são os sistemas locais que produzem sementes em áreas remotas e de difícil acesso, aonde os sistemas formais não chegam. A heterogeneidade das sementes e das variedades produzidas pelos sistemas locais

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é, por outro lado, que as torna mais fl exíveis e capazes de se adaptar às mudanças socioambientais. Além disso, para os agricultores de baixa renda a possibilidade de eliminar os custos com a aquisição de sementes comerciais também tem um peso signifi cativo na escolha das sementes locais.

Os sistemas locais são amplamente predominantes nos países em desenvolvimento, especialmente para algumas espécies agrícolas utilizadas na alimentação local. Estima-se que 1,4 bilhão de pessoas vivem em famílias de agricultores que usam suas próprias sementes (FOWLER, HAWTIN, HODGKIN, 1999). Cerca de 80% das sementes dos países em desenvolvimento são produzidas pelos próprios agricultores e na África esse total chega a 90% em alguns países (FAO, 1998). Na Índia, apesar de todos os investimentos internacionais na criação de sistemas formais de sementes, calcula-se que apenas 10% das sementes de variedades de arroz utilizadas pelos agricultores provenham de tais sistemas formais. Para outras espécies, como trigo, amendoim e grão-de-bico, o percentual atinge menos de 5 por cento (TURNER, 1994). No Nepal, os sistemas formais também contribuem com menos de 5% das sementes das principais espécies agrícolas, sendo o restante produzido pelos próprios agricultores (JOSHI, 2000). Nos países latino-americanos e caribenhos a FAO estima que cerca de 75% das sementes utilizadas pelos agricultores sejam provenientes de sistemas locais (que a FAO denomina sistemas informais), apesar de todos os apoios e fi nanciamentos destinados ao sistema formal por instituições governamentais e multilaterais ao longo das últimas três décadas. Já os sistemas locais receberam pouquíssimos investimentos e apoios de políticas públicas, mas prevalecem nos países latino-americanos.

A produção de sementes pelos próprios agricultores é também bastante signifi cativa em países industrializados. Os produtores de sementes europeus estimam que cerca de 50% das sementes utilizadas nos cultivos dos principais cereais sejam produzidas pelos próprios agricultores, e, em países do sul da Europa, como Itália e Grécia, apenas 10% das sementes (de cereais) sejam compradas pelos agricultores. Na França, 50% das sementes de espécies agrícolas de autopolinização, como trigo, são produzidas pelos agricultores, e na Alemanha avalia-se que esse número chegue a 46 por cento. Em Portugal, há estimativas de que esse número chegue a 75% e a 88% na Espanha (TOLEDO, 2002). Os agricultores europeus mantêm a prática tradicional de reservar parte de sua colheita para semeadura na safra seguinte. (KASTLER, 2005) Até mesmo nos Estados Unidos a média de uso de sementes produzidas pelo sistema formal, no período de 1986 a 1997, foi de 37% para trigo, 78% para algodão e 81% para soja, tendo sido de 100% para o milho em virtude da utilização de híbridos (CARRARO, 2005; FERNANDEZ-CONEJO, 2004). Destaque-se que tanto nos

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EUA e Europa como nos países em desenvolvimento é equivocado supor que todas as sementes produzidas pelos próprios agricultores sejam de variedades locais, pois eles reproduzem também sementes de variedades comerciais.

No Brasil, os sistemas locais são também fundamentais para a agricultura, sendo responsáveis pelo abastecimento de grande parte das sementes utilizadas pelos agricultores tradicionais, familiares e agroecológicos. Em uma estimativa feita ao longo do período de 1991 a 2003 no Brasil, a taxa média de uso de sementes produzidas pelo sistema formal foi de 19% para feijão, 48% para arroz, 72% para soja, 75% para milho, 77% para algodão e 89% para trigo (CARRARO, 2005). Todo o restante das sementes foi produzido pelos sistemas locais, que abasteceram, durante o referido período, 81% e 52% do total das sementes utilizadas pelos agricultores em culturas fundamentais à segurança alimentar e nutricional dos brasileiros, como arroz e feijão. Os sistemas locais abrangem tanto o desenvolvimento, produção, adaptação e distribuição de sementes locais como o uso próprio de sementes comerciais (guarda de sementes para uso na safra seguinte). Nesses sistemas, as extensas e complexas redes sociais que promovem o intercâmbio de sementes, variedades e conhecimentos agrícolas têm papel fundamental na conservação da diversidade genética.

Segundo a Associação Brasileira de Sementes e Mudas (ABRASEM, 2008), que reúne os maiores produtores de sementes, os agricultores brasileiros utilizaram, na safra 2006-2007, sementes produzidas pelo sistema formal nas seguintes proporções: 49% na cultura do algodão, 43% na do arroz, 15% na do feijão, 85% na do milho, 50% na da soja, 74% na do sorgo e 71% na do trigo. Isso signifi ca que as sementes produzidas pelos sistemas locais representaram 51% na cultura do algodão, 57% na do arroz, 85% na do feijão, 15% na do milho, 50% na da soja, 26% na cultura do sorgo e 29% na cultura do trigo. Na safra 2007-2008, o uso de sementes produzidas pelos sistemas formais diminuiu em relação a quase todas as culturas (com exceção da soja e do sorgo), como indicam os números divulgados pela Abrasem: 44% na cultura do algodão, 40% na do arroz, 13% na do feijão, 83% na do milho, 54% na da soja, 88% na do sorgo e 66 % na do trigo. Ou seja, os sistemas locais são responsáveis pelo abastecimento de sementes para a maior parte das culturas no Brasil, e o uso das sementes produzidas pelo sistema formal/comercial tem diminuído no país. Entre as razões apontadas pela Abrasem para a prática dos agricultores de guardar sementes para utilização na safra seguinte estão: - tradição familiar ou regional; - tentativa de redução de custos; - escassez de sementes ou cultivares; - preços acima do valor aceito pelo mercado; e - baixa qualidade da semente comercial.

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A FAO, ao analisar as principais razões que levam à predominância dos sistemas locais de sementes nos países latino-americanos e caribenhos, conclui que: - o sistema formal frequentemente não produz sementes de variedades locais, importantes para os agricultores, porque essas não são rentáveis, do ponto de vista comercial; - a maior parte das variedades melhoradas, produzida pelo sistema formal, se destina a agricultores comerciais estabelecidos em áreas favorecidas por chuvas frequentes, irrigação e fácil acesso a insumos externos, e não aos agricultores pobres que vivem em áreas marginais ou mais remotas. Por tais razões a FAO, embora recomende certo nível de privatização no setor de sementes, alerta os países latino-americanos da necessidade de proteção dos interesses dos pequenos agricultores, especialmente aqueles que vivem em regiões marginais, pois as suas culturas de subsistência difi cilmente despertarão o interesse de empresas privadas. A FAO destaca ainda que nos sistemas locais os agricultores compartilham, trocam ou vendem, a preços baixos, as sementes para outros agricultores, e as vantagens representadas pelo baixo preço, adaptabilidade e fácil acesso acabam compensando eventuais diferenças qualitativas em relação às sementes comerciais. A FAO considera que é por tais razões, principalmente, que os sistemas locais continuam a prevalecer em todos os países latino-americanos e caribenhos, apesar de todos os investimentos no setor formal realizados nas últimas décadas por inúmeras instituições multilaterais.(FAO, 2000).

As relações de confi ança e reciprocidade são muito importantes nos sistemas locais, e também ajudam a explicar a sua predominância em muitos países. Lone Badstue realizou um interessante estudo nos vales centrais de Oaxaca, no México – um centro de diversidade genética do milho –, enfocando a importância das relações sociais nos intercâmbios de sementes e o papel central que a confi ança mútua desempenha nos sistemas tradicionais de acesso às sementes. Muitos agricultores dos vales centrais de Oaxaca consideram que é muito mais arriscado comprar sementes em uma loja do que obtê-las em sua comunidade, onde as pessoas se conhecem e têm que arcar com as consequências se as sementes que doarem, trocarem ou venderem não forem de boa qualidade. O estudo mostra que os agricultores têm pouca confi ança nos vendedores de lojas agropecuárias, porque sabem que, caso haja algum problema com as sementes, os vendedores lhes dirão que eles não semearam adequadamente ou que suas terras não foram devidamente irrigadas. Confi am mais em outros agricultores. (BADSTUE, 2007)

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5. A LEI DE SEMENTES BRASILEIRA

Apesar da predominância dos sistemas locais nos países latino-americanos, a lei brasileira (10.711/2003) está essencialmente voltada para o sistema formal. Contempla os sistemas locais de sementes em alguns dispositivos específi cos e excepcionais, mas estabelece normas gerais que só podem ser cumpridas e respeitadas pelo setor industrial de sementes. A lei impõe excessivas restrições/limitações para que os agricultores possam produzir as suas próprias sementes, desconsiderando o fato de que essas sementes são, em geral, mais bem adaptadas às condições locais. Além disso, ao impor pesados ônus para a produção e a comercialização de sementes, ignora o fato de que as pequenas empresas de sementes teriam melhores condições de atender demandas específi cas de mercados locais, contribuindo assim para a conservação e o uso da agrobiodiversidade. As grandes empresas priorizam a produção de sementes que atendem ao maior número possível de produtores agrícolas e não têm interesse em produzir pequenas quantidades para atender a demandas localizadas.

Ao dar primazia ao desenvolvimento de um setor formal/comercial, e subestimar a importância dos sistemas locais, a lei de sementes brasileira exclui não só grande parte dos agricultores, que não têm condições de comprar as sementes ou preferem usar sementes adaptadas às condições socioambientais locais, como também marginaliza as espécies e variedades que os sistemas formais não têm interesse em produzir. Assim, a lei de sementes atende principalmente aos interesses privados (em assegurar mercados para as sementes comerciais), e não aos interesses dos agricultores familiares, tradicionais e agroecológicos. O objetivo de uma lei de sementes deve ser – acima de tudo – assegurar o acesso (dos diferentes tipos de agricultor) a sementes de boa qualidade, adequadas às suas necessidades, na época certa, e em quantidades sufi cientes. Para atender a tais objetivos, as leis de sementes devem favorecer a diversifi cação dos sistemas de sementes, reconhecendo as complementaridades entre os sistemas formais e os locais.

A lei de sementes brasileira dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas e estabelece que a produção, o benefi ciamento e a comercialização de sementes e mudas estão condicionadas à prévia inscrição do respectivo cultivar no Registro Nacional de Cultivares (RNC). Para ser inscrito no RNC o cultivar deve ser “claramente distinguível de outros cultivares conhecidos, por margem mínima de descritores e por sua denominação própria”, além de ser “homogêneo e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas”. Para ser homogêneo, o cultivar deve apresentar variabilidade mínima quanto aos descritores que o identifi quem (por exemplo, altura da planta, largura da folha,

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período de fl oração, pigmentação etc.; os descritores são defi nidos para cada cultivar, considerando as suas características). Para ser estável, o cultivar deve manter a sua homogeneidade através de gerações sucessivas. O estabelecimento de tais critérios – homogeneidade e estabilidade – exclui as variedades que não os preenchem, e, em muitos casos, as variedades mais bem adaptadas às condições locais podem não atender a tais critérios, justamente por serem heterogêneas. Jean Marc von der Weid e Ciro Correa dão o seguinte exemplo: um dos descritores de variedades de milho no Registro Nacional de Cultivares é o ângulo entre a primeira folha e o colmo. Em variedades convencionais, esse ângulo é constante nas diferentes plantas de uma lavoura e em plantas de diferentes gerações. Já nas variedades crioulas é possível encontrar grandes variações nesse descritor (CORREA, WEID, 2006).

A inscrição de um novo cultivar está também sujeita à comprovação de que ele possui valor de cultivo e uso (VCU), defi nido como o “valor intrínseco de combinação das características agronômicas do cultivar com as suas propriedades de uso em atividades agrícolas, industriais, comerciais ou consumo in natura.” Os ensaios destinados a demonstrar o valor de cultivo e uso das variedades (para fi ns de registro) devem ser realizados pelo requerente da inscrição e apresentados ao Ministério da Agricultura, a quem cabe fi scalizá-los e supervisioná-los. Em tais ensaios são muitas vezes utilizados critérios estatísticos que favorecem variedades que se adaptam em maior número de locais, em detrimento de variedades adaptadas a locais específi cos. Tendem também a desconsiderar características importantes para os agricultores, como o tempo que a variedade leva para cozinhar, por quanto tempo a variedade pode ser armazenada sem se deteriorar etc. Os ensaios tendem a avaliar principalmente o rendimento das variedades, ainda que possam ser indicadas outras características importantes que justifi quem sua inclusão no RNC.

A permanência da inscrição de um cultivar no Registro Nacional de Cultivares (RNC), por outro lado, depende da existência de pelo menos um mantenedor, que se responsabiliza por tornar disponível um estoque mínimo de material de propagação do cultivar e deve comprovar que possui condições técnicas para garantir a manutenção do cultivar. Se, por qualquer motivo, deixar de fornecer as sementes, deverá ter o nome excluído do registro. Além disso, a inscrição dos cultivares protegidos no RNC só pode ser feita pelo obtentor (quem obteve ou desenvolveu novo cultivar) ou por pessoa autorizada por ele. Já a inscrição de cultivar de domínio público no RNC pode ser requerida por qualquer pessoa que mantenha disponível estoque mínimo de material de propagação do cultivar. Quando os cultivares registrados caem em domínio público, as empresas de sementes já não têm interesse em mantê-los no mercado,

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pois não rendem royalties aos seus obtentores e os agricultores passam a não ter acesso a tais variedades (a não ser que uma instituição de pesquisa assuma a condição de mantenedor, o que tem-se tornado cada vez mais difícil para variedades cuja demanda é pequena).

O artigo 11, parágrafo 7º, da Lei de Sementes diz que “o regulamento dessa lei estabelecerá os critérios de permanência ou exclusão de inscrição no RNC dos cultivares de domínio público”, mas tais critérios ainda não foram estabelecidos. Quanto aos cultivares cuja manutenção não desperta interesse comercial, por já estarem em domínio público, mas que são importantes para os segmentos da agricultura familiar e agroecológica e/ou para a conservação da agrobiodiversidade, o poder público (através de suas instituições de pesquisa agropecuária) deveria assumir a condição de mantenedor deles, a fi m de assegurar que os agricultores continuem a ter acesso a eles, ou, conforme o caso e as circunstâncias, o poder público poderia dispensar a exigência de mantenedor para que os cultivares continuassem inscritos no RNC. Afi nal, não pode o acesso a um cultivar depender do interesse comercial de grandes empresas privadas, sob pena de prejuízo aos agricultores tradicionais, familiares e agroecológicos, e de redução da diversidade agrícola. Ao defi nir os cultivares de domínio público que permanecerão no RNC e aqueles que serão excluídos, os critérios socioambientais devem ser considerados.

O artigo 16 do Decreto 5.153/2004 (que regulamentou a Lei de Sementes) dispõe que o Ministério da Agricultura poderá autorizar, “observado o interesse público e desde que não cause prejuízo à agricultura nacional”, a inscrição no RNC de espécie ou de cultivar de domínio público que não apresentem origem genética comprovada, sem o cumprimento das exigências de mantenedor. Até o momento, entretanto, a dispensa de mantenedor pelo Ministério da Agricultura se deu em duas hipóteses: para o pinhão-manso, a fi m de atender às demandas do programa brasileiro de biodiesel, e para as espécies fl orestais, com base no artigo 47 da Lei de Sementes. Entretanto, tais possibilidades de inscrição no RNC sem o cumprimento das exigências de mantenedor devem se estender também àqueles casos em que o interesse na conservação de variedades, em virtude de sua importância para alguns segmentos de agricultores ou para a conservação da agrobiodiversidade, justifi que a dispensa de mantenedor.

A Lei de Sementes estabelece ainda o registro obrigatório de todas as pessoas (físicas e jurídicas) que produzam, benefi ciem, embalem, armazenem, analisem, comercializem, importem e exportem sementes e mudas no Ministério da Agricultura. A inscrição ou credenciamento no Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) depende do pagamento de valores que variam conforme a natureza da inscrição, assim como as condições exigidas para a

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inscrição variam segundo cada categoria (produtor, benefi ciador, armazenador, certifi cador, comerciante de sementes e mudas etc.). O produtor de sementes, por exemplo, deve atender às seguintes exigências: inscrever os campos de produção de sementes, comprovar a origem do material de reprodução, apresentar a autorização do obtentor (no caso de cultivar protegido) e o contrato com o certifi cador (quando for o caso), além dos mapas de produção e comercialização de sementes. Deve ainda manter à disposição do órgão de fi scalização o projeto técnico de produção, os laudos de vistoria de campo, o controle de benefi ciamento, o termo de conformidade e o certifi cado de sementes, o contrato de prestação de serviços (quando o benefi ciamento e o armazenamento forem realizados por terceiros) etc.

Os pequenos produtores de sementes têm enfrentado enormes difi culdades para cumprir tais requisitos, que são extremamente onerosos para uma produção de sementes de pequena escala, em quantidades reduzidas, e destinada a atender apenas os mercados locais. A lei de sementes e o seu regulamento não apenas benefi ciam os sistemas formais como também privilegiam as grandes empresas sementeiras, ao impor condições que apenas elas conseguem cumprir. O impacto sobre a agrobiodiversidade é perverso: deixam de ser produzidas (e, consequentemente, utilizadas) sementes de variedades adaptadas a condições socioambientais específi cas e passam a ser produzidas apenas as variedades comerciais, vendidas em larga escala, cujos custos para a manutenção da estrutura técnica exigida pela lei são compensados com as vendas em grandes quantidades.

O artigo 8º, parágrafo 3º, da Lei de Sementes prevê, entretanto, que “fi cam isentos da inscrição no Renasem (Registro Nacional de Sementes e Mudas) os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre si”. Ou seja, desde que a distribuição, troca e mesmo a venda de sementes e mudas sejam realizadas entre os próprios agricultores, não há necessidade de inscrição no Renasem. O Decreto 5.153/2004, entretanto, regulamentou a referida exceção legal em dois dispositivos:

- o artigo 4º, parágrafo 2º, dispõe que “fi cam dispensados de inscrição no Renasem os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre si.”

- o artigo 4º, parágrafo 3º, dispõe que “fi cam dispensadas de inscrição no Renasem as organizações constituídas exclusivamente por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas que multipliquem sementes ou mudas de cultivar local, tradicional ou crioulo para distribuição aos

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seus associados”. [negrito nosso]O Decreto 5.153/2004 faz, portanto, uma distinção que a Lei de Sementes

não faz: a lei afi rma que os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas podem distribuir, trocar e vender sementes e mudas sem a necessidade de registro, desde que o façam entre si. Os agricultores poderão se organizar em associações, cooperativas ou sindicatos para desempenhar tais atividades (distribuição, troca ou comercialização), e o decreto não pode estabelecer que a distribuição deve se limitar aos associados de tais organizações. O objetivo da lei é estabelecer que, para fi ns de isenção do registro no Renasem, a distribuição, a troca ou a comercialização de sementes ou mudas devem se dar entre os agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, mas não faz nenhuma referência à obrigatoriedade de que os referidos agricultores sejam associados quando tais atividades se desenvolverem através de suas organizações. O decreto extrapolou os limites da lei, impondo restrições às organizações constituídas por agricultores que a lei não dispõe. A lei permite a multiplicação de sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização, desde que sejam realizadas entre agricultores familiares, assentados da reforma agrária e comunidades indígenas, e não estabelece nenhuma restrição às organizações constituídas por agricultores, seja no tocante à distribuição, seja quanto à troca ou comercialização de sementes.

De acordo com o artigo 84, IV, da Constituição, o decreto deve garantir a “fi el execução da lei”, e não pode estabelecer restrições a direitos que a lei não estabelece. O decreto deve se limitar a facilitar a execução da lei, dando orientações práticas para a sua aplicação, e jamais estabelecer nova regulamentação da matéria. Afi nal, desde que a Constituição de 1988 entrou em vigor já não existe no direito brasileiro a fi gura do decreto “independente” ou “autônomo”, que disciplina matéria não regulada em lei. De qualquer forma, não é esse o caso, pois o Decreto 5.153/2004 foi editado justamente para regulamentar a Lei de Sementes. Além disso, o artigo 4º, parágrafo 3º, ao restringir o âmbito de atuação das organizações constituídas por agricultores, está afrontando o princípio constitucional da liberdade de associação, expressamente assegurado pela Constituição (artigo 5º, XVII: “é plena a liberdade de associação para fi ns lícitos...”; XVIII: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas, independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”). O artigo 4º, parágrafo 3º, do Decreto 5.153/2004 é, portanto, ilegal, por estabelecer restrições aos direitos dos agricultores que a lei não estabelece. Os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas podem criar as suas organizações – cooperativas, associações, sindicatos etc. – e realizar a distribuição, troca e comercialização de sementes

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entre si, pois o direito a se associar está previsto no artigo 5º, XVII, da Constituição, e o direito a distribuir, trocar e vender sementes (entre si), está previsto na Lei de Sementes (artigo 8º, parágrafo 3º). Essa lei, em momento algum, obriga ao exercício individual de tal direito. O direito de multiplicar sementes para distribuição, troca ou comercialização é, por sua própria natureza, um direito coletivo dos agricultores e, portanto, nada mais lógico que eles o exerçam de forma coletiva, através de suas organizações. Além disso, o fl uxo e o intercâmbio de sementes – por troca ou venda – e de saberes agrícolas são essenciais para a conservação da agrobiodiversidade.

A Lei de Sementes deixa, entretanto, algumas brechas para os sistemas locais de sementes. Reconhece os cultivares locais, tradicionais ou crioulos, e cria exceções às normas que obrigam o registro de cultivares para que as suas sementes e mudas possam ser produzidas, benefi ciadas e comercializadas, assim como estabelece exceções ao registro obrigatório de pessoas e empresas dedicadas a tais atividades. Além disso, contém um importante dispositivo (artigo 48) que veda o estabelecimento de restrições à inclusão de sementes e mudas de cultivares locais, tradicionais ou crioulos em programas de fi nanciamento ou em programas públicos de distribuição ou troca de sementes, desenvolvidos junto a agricultores familiares. A Lei de Sementes defi ne ainda as “sementes para uso próprio” e ressalva o direito dos agricultores de reservarem, a cada safra, parte de sua produção para semeadura na safra seguinte, uma prática tradicionalmente utilizada por agricultores e muito importante para os sistemas locais. Tais exceções representam conquistas importantes dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil e merecem ser destacadas, apesar de alguns impasses que impedem sua plena aplicação.

6. AS SEMENTES LOCAIS, TRADICIONAIS OU CRIOULAS

Segundo a Lei de Sementes, entende-se por cultivar local, tradicional ou crioulo a variedade desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, com características fenotípicas bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades e que, a critério do Ministério da Agricultura, considerados também os descritores socioculturais e ambientais, não se caracterizem como substancialmente semelhantes aos cultivares comerciais”. As sementes dessas variedades são conhecidas também como “sementes da paixão” e como “sementes da biodiversidade”.

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Apesar do avanço no reconhecimento das sementes locais, a lei deixa a critério do Ministério da Agricultura, “considerados os descritores socioculturais e ambientais”, defi nir se as variedades locais se caracterizam ou não como “substancialmente semelhantes aos cultivares comerciais”. Trata-se de uma incoerência, pois é a própria lei que defi ne a variedade local como aquela “desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas”, com características fenotípicas “reconhecidas pelas respectivas comunidades”. Deve competir às comunidades locais (ainda que com o apoio e a participação do Ministério da Agricultura ou do Ministério do Desenvolvimento Agrário e de técnicos da área agrícola) defi nir os critérios para a identifi cação e a caracterização das variedades que desenvolveram, produziram ou se adaptaram às condições socioambientais locais e específi cas, assim como os critérios para diferenciá-las dos cultivares comerciais.

Muitas defi nições de variedades (e sementes) locais, tradicionais ou crioulas têm sido propostas, e destacamos algumas delas. Para Jean Marc von der Weid e Ciro Correa, as sementes crioulas ou locais são aquelas melhoradas e adaptadas por agricultores, por seus próprios métodos e sistemas de manejo, desde que a agricultura se iniciou, há mais de dez mil anos. Eles destacam que existem centenas de variedades de cada uma das espécies cultivadas, e cada uma delas evoluiu sob condições ambientais, sistemas de cultivo e preferências culturais específi cas (WEID, CORREA, 2006). Segundo Paulo Petersen, da AS-PTA, as “sementes da biodiversidade” são mantidas pelas famílias agricultoras como um patrimônio essencial à reprodução de seus modos de vida. “São bens naturais e culturais ao mesmo tempo, possuindo características genéticas moldadas por processos de escolha consciente realizados pelos agricultores”, afi rma Paulo Petersen (2007). Dominique Louette propõe que as variedades locais de milho sejam consideradas “estruturas genéticas abertas (1999) e Walter de Boef e Jaap Hardon defi nem as variedades locais como “variedades ou populações que estão sob contínuo manejo pelos agricultores, a partir de ciclos dinâmicos de cultivo e seleção (não necessariamente) dentro de ambientes agroecológicos e socioeconômicos específi cos” (1993).

A Lei de Sementes exige a consideração dos descritores socioculturais e ambientais, e não só dos descritores agronômicos e botânicos, justamente para que sejam considerados, na defi nição e caracterização das variedades locais, os contextos socioculturais e ambientais em que essas variedades se desenvolveram ou se adaptaram, por seleção natural e pelo manejo dos agricultores. Laure Emperaire destaca que a noção de variedade local, ou cultivar local, varia de acordo com o contexto cultural no qual é usada. Laure Emperaire cita o exemplo da mandioca: para o geneticista, uma variedade de mandioca – planta de

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multiplicação vegetativa – é um clone, isto é, a variedade é constituída por um conjunto de indivíduos geneticamente idênticos. Para o agricultor, a variedade é constituída de um conjunto de indivíduos considerados sufi cientemente próximos e diferentes de outros conjuntos para constituir uma unidade de manejo e receber um nome próprio. Do ponto de vista biológico, a noção local de variedade encobre diversos clones aparentados, deixando espaço para uma certa variabilidade, diferente daquela aceita pelas normas legais (EMPERAIRE, 2008). Nivaldo Peroni também destaca que entre os caiçaras da região sul de São Paulo foram identifi cados 58 nomes locais para variedades de mandioca, que correspondem tanto a variedades com nomes iguais e genótipos diferentes como também genótipos iguais e nomes diferentes. Isso ocorre porque muitas vezes os agricultores desconsideram pequenas variações morfológicas nas variedades de mandiocas, e as identifi cam apenas por suas características mais marcantes, sendo relativamente comum encontrar variedades que são, na verdade, famílias de genótipos com algum grau de diferenciação genética, mas com alto grau de semelhança morfológica, explica Peroni (2007).

O Ministério da Agricultura deverá, portanto, consultar os agricultores e prever a participação deles na defi nição das variedades locais e dos critérios para distingui-las das comerciais. Até o momento, o referido ministério não editou nenhum ato normativo para defi nir as variedades locais. O Ministério do Desenvolvimento Agrário editou, entretanto, a Portaria 51, em 3 de outubro de 2007, que estabelece que, para fi ns de cadastramento na Secretaria de Agricultura Familiar, os cultivares locais, tradicionais ou crioulos são entendidos como variedades que, cumulativamente: - tenham sido desenvolvidos, adaptados ou produzidos por agricultores familiares, assentados da reforma agrária, povos e comunidades tradicionais ou indígenas; - tenham características fenotípicas bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades; - estejam em utilização pelos agricultores em uma dessas comunidades há mais de três anos; - não sejam oriundas de manipulação por engenharia genética nem outros processos de desenvolvimento industrial ou manipulação em laboratório, não contenham trangenes e não envolvam processos de hibridação que não estejam sob domínio das comunidades locais de agricultores familiares.

Já o artigo 48 da Lei de Sementes veda o estabelecimento de restrições à inclusão de sementes e mudas de cultivar local, tradicional ou crioula em programas de fi nanciamento ou em programas públicos de distribuição ou troca de sementes desenvolvidos junto a agricultores familiares. Tal previsão legal representou um avanço importante, porque a lei de sementes anterior (6.507/77) não reconhecia as sementes locais, que eram tratadas apenas como “grãos”, o que difi cultava o apoio de políticas públicas a iniciativas voltadas ao

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resgate, melhoramento e reintrodução de sementes crioulas, desenvolvidas por organizações da sociedade civil brasileira em parceria com os agricultores. O reconhecimento legal permitiu o apoio de políticas públicas a várias iniciativas dessa natureza.

O artigo 48 é claríssimo ao vedar expressamente qualquer restrição à inclusão das sementes locais em programas voltados para a agricultura familiar. Entretanto, os agricultores que usaram tais sementes nas safras 2004-2005 e 2005-2006, obtiveram o crédito rural do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e perderam suas lavouras em virtude da forte seca na região Centro-Sul tiveram o seguro agrícola negado, justamente por terem usado sementes locais. O seguro agrícola exige que as sementes utilizadas nas lavouras estejam no zoneamento agrícola de risco climático do Ministério da Agricultura, e só entram no zoneamento variedades registradas no Registro Nacional de Cultivares. Ocorre que o artigo 11, parágrafo 6º, da Lei de Sementes, estabelece que “não é obrigatória a inscrição no Registro Nacional de Cultivares de cultivar local, tradicional ou crioulo, utilizado por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas”, justamente em virtude da inadequação dos requisitos exigidos pelo Registro Nacional de Cultivares às sementes locais.

O registro corre ainda o risco de “engessar” as sementes locais, que se caracterizam justamente por sua evolução no tempo e no espaço. “Determinar defi nitivamente as características de cada variedade signifi caria congelar a sua evolução”, explica a engenheira agrônoma Flávia Londres. São variedades essencialmente dinâmicas, sujeitas a processos de evolução e transformação contínuos. Além disso, as diferentes variedades podem ter o mesmo nome em regiões distintas, assim como a mesma variedade pode ter nomes distintos em um mesmo lugar ou em lugares diferentes, pois são constantemente intercambiadas.

Na safra 2004-2005, a Medida Provisória 285/06 autorizou (retroativamente) a cobertura de perdas pelo seguro agrícola, exclusivamente para essa safra, aos produtores rurais que tenham plantado cultivares não previstos no zoneamento agrícola estabelecido pelo Ministério da Agricultura. Na safra 2005-2006, o Conselho Monetário Nacional autorizou o pagamento do seguro agrícola aos agricultores que utilizaram sementes locais, estendendo o benefício às lavouras de soja transgênica do Rio Grande do Sul. Em 18 de julho de 2006, foi editada a Portaria nº 58, do ministro do Desenvolvimento Agrário, instituindo, no âmbito da Secretaria da Agricultura Familiar, um cadastro nacional das entidades que “desenvolvem trabalho reconhecido com resgate, manejo e/ou conservação de cultivares locais, tradicionais ou crioulos”. A Portaria nº 51, de 3 de outubro de 2007, ampliou e tornou permanente o cadastro

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estabelecido pela Portaria nº 58/2006, estabelecendo que, para ser cadastrada, a entidade deverá ter dois anos de existência legal e descrever no formulário pelo menos duas atividades de resgate, manejo e/ou conservação de cultivares locais, tradicionais ou crioulos.

A entidade cadastrada deverá informar os cultivares locais com os quais vem desenvolvendo seu trabalho, suas características básicas e região de adaptação, assim como designar técnicos que se responsabilizem pelas informações.

Além das difi culdades inerentes a qualquer registro de variedades locais, outra crítica das organizações da sociedade civil ao referido cadastro é o fato de deixar “desamparados” os agricultores que desenvolvem, adaptam ou produzem variedades locais, mas não são assessorados por técnicos e entidades da sociedade civil e teriam, portanto, difi culdades para realizar o cadastramento e acessar o seguro agrícola. Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o cadastramento é necessário, entretanto, não só para atender às exigências do seguro agrícola como também para identifi car os trabalhos e experiências de agricultores familiares com cultivares locais, tradicionais ou crioulos para orientar políticas públicas nessa área.

A Portaria nº 51/2007 estabelece ainda que, pela sua própria natureza e tradição histórica, os cultivares locais, tradicionais ou crioulos constituem patrimônio sociocultural das comunidades, não sendo aplicável patente, propriedade e nenhuma forma de proteção particular para indivíduos, empresas ou entidades. Prevê ainda a referida portaria que o cadastro não confere à entidade direito de propriedade ou posse ao cultivar por ela cadastrada nem prerrogativa de detentora do cultivar, nem concede nenhum tipo de direito a nenhuma pessoa física ou jurídica.

7. AS SEMENTES “PARA USO PRÓPRIO”

Outro aspecto a ser destacado na Lei de Sementes e no Decreto 5.153/2004, que a regulamentou, é a forma como defi ne e regula as sementes “para uso próprio”. De acordo com o artigo 2º, XLIII, a “semente para uso próprio” é a “quantidade de material de reprodução vegetal guardada pelo agricultor, a cada safra, para semeadura ou plantio exclusivamente na safra seguinte e em sua propriedade ou outra cuja posse detenha, observados, para cálculo da quantidade, os parâmetros registrados para o cultivar no Registro Nacional de Cultivares – RNC”. Conforme já destacado, o uso próprio de sementes é uma prática amplamente difundida não só no Brasil e em outros países latino-

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americanos como também em países industrializados, como França, Alemanha e Estados Unidos, especialmente para espécies de autopolinização. A guarda de sementes para semeadura na safra seguinte é uma tradição e uma necessidade de grande parte dos agricultores familiares e abrange diferentes cultivos agrícolas. A salvaguarda legal dessa prática é essencial para os sistemas locais e para a conservação da diversidade de espécies, variedades e agroecossistemas.

A Lei de Sementes prevê o uso próprio de sementes, mas restringe essa prática à safra seguinte e limita a quantidade de sementes que pode ser guardada. Ela estabelece três condições para o exercício do direito ao uso próprio de sementes: - 1) que sejam utilizadas na propriedade do agricultor ou em outra cuja posse detenha; - 2) que a quantidade de sementes guardadas não seja superior aos parâmetros registrados para o cultivar no RNC; - 3) que as sementes guardadas sejam utilizadas exclusivamente na safra seguinte. Ora, a Lei de Sementes tem como fi nalidade “garantir a identidade e a qualidade” das sementes produzidas, comercializadas e utilizadas no país, e, portanto, não faz nenhum sentido que estabeleça qualquer restrição ao direito dos agricultores de guardar parte de suas sementes, a cada safra, para semeadura nas safras seguintes. Afi nal, se foi o próprio agricultor que selecionou algumas sementes (de sua colheita) para serem utilizadas nas safras seguintes, ninguém melhor do que ele conhece a “identidade e a qualidade” das sementes que ele próprio plantou, colheu e selecionou. Não faz sentido restringir o uso próprio das sementes para assegurar a “identidade e a qualidade” de materiais de propagação que ele já conhece. Portanto, não condiz com os objetivos da lei criar restrições ao direito de uso próprio das sementes.

O Decreto 5.153/2004, em seu artigo 115, parágrafo único, ressalva, entretanto, que as condições exigidas para o uso próprio de sementes (descritas acima e reproduzidas pelo decreto) não se aplicam aos agricultores familiares, assentados da reforma agrária e indígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre si. Portanto, ainda que se considere que a Lei de Sementes não deve estabelecer restrições ao uso próprio, pois essas não são compatíveis com os seus objetivos, o Decreto 5.153/2004 esclarece que as obrigações de só utilizar sementes guardadas na safra seguinte e na propriedade do agricultor, assim como de limitar a quantidade de sementes guardadas, só se aplicam aos agricultores que não sejam familiares, assentados da reforma agrária e indígenas.

Os sistemas locais (que a FAO chama de informais) deveriam, na verdade, fi car fora do escopo da Lei de Sementes, que deve se aplicar exclusivamente aos sistemas formais. Assim, o uso próprio de sementes não sofreria restrições indevidas, prejudiciais aos agricultores, e a distribuição, troca e comercialização

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entre os agricultores não correriam o risco de ser limitadas por decretos e regulamentos, como ocorreu com o Decreto 5.153/2004 (artigo 4º, parágrafo 3º, citado acima). O argumento mais frequente, para justifi car a necessidade de controles tão rígidos sobre o uso, a produção e o comércio de sementes, tem sido o risco de doenças – especialmente sua disseminação entre diferentes regiões, e a necessidade de assegurar a pureza genética e a capacidade de germinação e o vigor das sementes. Ainda que se compreenda tal argumento, é necessário considerar que os sistemas locais de sementes se baseiam principalmente em variedades localmente adaptadas, utilizadas, distribuídas e comercializadas no âmbito local, e que outras soluções precisam ser encontradas para resolver as questões fi tossanitárias. É importante avaliar quais os benefícios que tais controles de qualidade representam efetivamente para os agricultores, se comparados com as difi culdades e restrições a que submetem os sistemas locais de sementes.

Além disso, as leis de sementes foram desenvolvidas para cadeias de produção, distribuição e comercialização de sementes que envolvem vários intermediários entre os produtores e os consumidores, chamadas de “cadeias de circuito longo”, em que os consumidores das sementes (os agricultores) não têm nenhuma relação direta com os produtores (as grandes empresas de produção e comercialização de sementes), destaca Shabnam Anvar (2008). Há uma enorme distância entre o produtor e o consumidor das sementes, e nenhuma relação de confi ança, colaboração ou reciprocidade entre eles. A rigidez das normas estabelecidas para as cadeias de circuito longo não se justifi cam, entretanto, quando as sementes são produzidas e comercializadas no âmbito local e os agricultores têm acesso aos produtores de sementes. Tais normas são ainda menos justifi cáveis quando os agricultores produzem suas próprias sementes ou as adquirem de outros agricultores locais, através de suas redes sociais. Se, originariamente, o objetivo das leis de sementes era evitar a disseminação de sementes de má qualidade, elas acabaram extrapolando muito os seus propósitos iniciais e passaram a impor um único modelo agrícola, industrial e produtivista.

É também curioso que uma lei (na verdade, o decreto que a regulamenta) imponha tantas condições para o uso próprio de sementes e para distribuição, troca e comercialização de sementes entre os agricultores, sob a justifi cativa da necessidade de “garantir a identidade e a qualidade” das sementes, e, ao mesmo tempo, permita que o próprio produtor certifi que a sua produção (“autocertifi cação”), ainda que sob a fi scalização do Ministério da Agricultura - que tem, como os órgãos públicos em geral, defi ciências estruturais e de fi scalização. O sistema de controle de qualidade das sementes se baseia, em grande parte, em informações prestadas pelos produtores de sementes, ainda

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que essas sejam, a princípio, controladas pelo Ministério da Agricultura. Até mesmo a certifi cação das sementes fi ca a cargo do próprio produtor: a Lei de Sementes, em seu artigo 27, parágrafo único, faculta ao produtor de sementes e mudas certifi car sua própria produção, desde que credenciado pelo Mapa.

CONCLUSÃO

Ainda que as leis de sementes não possam ser inteiramente responsabilizadas pela perda da diversidade genética e sociocultural no campo, elas têm contribuído para agravar os seus efeitos. As exceções feitas às sementes locais pela Lei de Sementes brasileira – apesar de representarem uma conquista importante da agricultura familiar e agroecológica – buscam atenuar os efeitos negativos dessa lei sobre a agrobiodiversidade, mas não alteram os princípios e conceitos gerais em que ela se baseia: setorização industrial e padronização da agricultura, negação do papel dos agricultores como selecionadores e inovadores etc. São princípios e conceitos que vão essencialmente contra a lógica e os processos socioculturais e ambientais que geram e mantêm a agrobiodiversidade, em todos os seus níveis.

As leis de sementes e o pouco espaço legal que abrem para os sistemas locais difi cultam a adoção de um modelo de agricultura “sustentável”. A agrobiodiversidade é um componente essencial dos sistemas agrícolas sustentáveis, e cada agroecossistema apresenta características distintas, que exigem soluções específi cas, adequadas às suas condições socioambientais. As sementes representam escolhas que não são apenas agronômicas, mas também socioculturais, ambientais e econômicas. Para que os agricultores possam escolher livremente as suas sementes, as políticas públicas devem promover uma ampla diversifi cação das sementes e conferir maior espaço – legal e institucional – para os sistemas locais, em vez de tentar impor, artifi cialmente, um único sistema (o sistema formal). A Lei de Sementes deve, explicitamente, deixar fora de seu escopo os sistemas locais, cujas variedades localmente adaptadas são utilizadas, distribuídas e comercializadas no âmbito local.

As leis de sementes deveriam, pelo menos, não prejudicar os esforços para a conservação e o uso da biodiversidade agrícola. Mais do que isso, deveriam manter coerência com o princípio constitucional que determina ao poder público a obrigação de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético brasileiro, com medidas destinadas a salvaguardar a diversidade genética, de espécies agrícolas e agroecossistemas, através do fortalecimento dos sistemas locais e de medidas de apoio a experiências de resgate, produção, multiplicação

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e distribuição de sementes locais, como feiras, casas e bancos de sementes comunitários, além do apoio a programas de melhoramento participativo, realizados com a participação dos agricultores.

Outras medidas de apoio à agrobiodiversidade deveriam ser incluídas – por meio da edição de leis especifi camente voltadas para conservação e utilização sustentável da agrobiodiversidade. As leis de proteção à agrobiodiversidade devem resguardar especialmente os centros de origem e de diversidade dos cultivos agrícolas. Os sistemas agroecológicos também devem ser objeto de proteção legal especial contra eventuais contaminações por insumos externos (como pesticidas e fertilizantes químicos) usados em cultivos convencionais, assim como contra a contaminação pelo cultivo de organismos geneticamente modifi cados. Dessa forma, as leis (de sementes e de proteção à agrobiodiversidade) estariam contribuindo não só para a conservação e o uso da diversidade agrícola como também para a segurança alimentar das populações humanas, a inclusão social e o desenvolvimento rural sustentável.

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Artigo recebido em: 01/06/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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MEIO AMBIENTE, PROPRIEDADE E COBERTURA FLORESTAL*

Edilson Pereira Nobre Júnior **

Sumário: 1. Função social da propriedade e a tutela do meio ambiente; 2. Intervenção estatal na propriedade e meio ambiente; 3. Das fl orestas de preservação permanente; 4. A reserva legal; 5. Agrupamento das situações que ensejam indenização e modo de sua quantifi cação; Referências.

Resumo: Neste trabalho são analisados os refl exos jurídicos das ações da Admin-istração Pública voltadas para a preserva-ção fl orestal, dando-se enfoque aos meios adotados para esse fi m, como as limitações administrativas, decorrentes do poder de polícia, e a desapropriação, que se con-fi gura forma mais drástica de intervenção do Estado na propriedade. São tecidos co-mentários à Lei nº 4.771/65, que se mostra como importante instrumento de proteção ao meio ambiente, fi nalizando-se com o tema relativo à indenização pela limitação do uso da propriedade.

Palavras-Chave: Meio ambiente; cobe-rtura vegetal; propriedade; intervenção; Estado.

Abstract: In this work, the juridical re-fl exes of the public administration’s ac-tions towards forest preservation are ana-lyzed, focusing on the means adopted for such end, such as the administrative limita-tions incurring from the power of the po-lice force, and the disappropriation, which confi gures a more drastic way for the State to intervene in property. Comments are made in regard to law number 4.771/65, which shows as an important instrument in environmental protection, closing with the matter of indemnity for property use limitations.

Keywords: Environment; vegetation cov-ering; property; intervention; State

* Escrito que condensa palestra proferida no Curso Meio Ambiente e Justiça Feder-al: a visão multidisciplinar dos problemas e soluções, patrocinado pela ESMAFE – 5ª Região, atendendo a convite de sua Diretora, Des. Fed. Margarida Cantarelli, e do Co-ordenador Científi co do evento, Juiz Federal Ivan Lira de Carvalho.** Juiz Federal. Mestre e doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Professor da UFRN e da Universidade Potiguar.

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1 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A TUTELA DO MEIO AMBIENTE

Constatação inexorável é a de que a propriedade, como direito subjetivo, vem, com o passar do tempo, sendo objeto de forte transformação. Sem pretensão de recuar às eras mais remotas, é possível notar que a Revolução Francesa, com o propósito de liquidar o regime dominial predominante no feudalismo1, patrocinou o reviver de panorama similar ao vigorante no direito romano, através do qual aquela deveria ser reputada como um direito inviolável e sagrado (inviolable et sacré).

Poder-se-ia, inclusive, afi rmar que o movimento de 1789 foi além do prevalecente em Roma2, pois o art. 17º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto do referido ano, condicionando o modo pelo qual poderia o Estado, ao argumento de utilidade pública, suprimir a propriedade do cidadão, dispunha: “A propriedade consiste num direito inviolável e sagrado; ninguém dela pode ser privado, salvo se a necessidade pública, legalmente constatada, evidentemente o exigir, e sob a condição duma justa e prévia indenização”3.

O desenvolvimento dessa orientação adveio, em sede legislativa, com o Código Civil de 1804, o qual dispôs, no seu art. 544, o seguinte: “A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira a mais absoluta, contanto que não se realize um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”4.

Passadas algumas décadas, os efeitos das transformações econômicas provocadas pela consolidação da Revolução Industrial, acarretando, duma maneira abrupta, desumanas condições de vida ao universo cada vez mais

1 Esse intento, bem como as injustas obrigações que decorriam da divisão do domínio impostas pelo regime feudal, estão expostos por Laurent Pfi ster (2004, p. 54-57 e 89-91). 2 Assim se afi rma porque, muito embora em Roma as limitações ao direito de proprie-dade tivessem seu fundamento no direito de vizinhança e nas intervenções do Estado que invocassem utilidade pública, coincidindo, à primeira vista, com o regime do docu-mento de 1789, não se podia olvidar neste a necessidade da autoridade pública em sat-isfazer determinados pressupostos para a expropriação. 3 Tradução nossa a partir de texto em francês disponível em: www.conseil-constitution-nel.fr. Acesso em: 06-03-2009. 4 Tradução nossa de texto em francês disponível em: www.legifrance.gouv.fr. Acesso em: 06-03-2009.

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crescente da classe operária, fez com que as manifestações constituintes que se seguiram à Primeira Guerra Mundial passassem a trilhar direção diversa quanto à disciplina do direito de propriedade5.

Daí que, com vistas a sanar o grave problema da má distribuição da terra, dispôs o art. 27o, n. 3o, da Constituição mexicana, de 31 de janeiro de 1917, possuir a Nação o direito de impor à propriedade privada regras ditadas pelo interesse público, com vistas à sua distribuição equitativa e à conservação da riqueza da sociedade.

Aproximadamente dois anos mais tarde, a Constituição alemã, de 11 de agosto de 1919, enfatizou, no seu art. 153o, n. 3o, a seguinte proclamação: “A propriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social”6.

Deixava, assim, o domínio de constituir um direito, cuja garantia lhe atribuía a ordem jurídica independentemente da postura assumida pelo seu titular, passando, ao invés, a ostentar a natureza de um poder-dever, de modo que o seu respeito estaria vinculado ao correspondente exercício em prol da coletividade.

O ideal perpassou os textos constitucionais do segundo pós-guerra. Para tanto, citem-se como exemplos as Constituições da Itália de 1947 (art. 42, n. 1), da Alemanha de 1949 (art. 14, n. 2), o Preâmbulo da Constituição francesa de 1946, possuidor de valor constitucional por remissão do Preâmbulo da Lei Fundamental de 04 de outubro de 1958, e a Lei Maior da Espanha de 1978 (art. 33o, n. 1).

Consagrada, portanto, a função social como o elemento primordial do direito de propriedade, a qual, como bem expõe Ramón Vicente Casanova (1982, p. 154), “clarifi ca-se e se mostra como a determinante, em virtude da qual

5 Esse movimento, na realidade, não se limitava à regulação do direito de propriedade isoladamente, mas sim à pesquisa de novo fundamento para o direito objetivo e para o direito subjetivo. Prova disso, Duguit (2005, p. 23 e 25), no começo da centúria pre-térita, alertava para o ponto de que uma regra de conduta se impunha ao homem pela própria força das coisas, consubstanciada em nada fazer que atentasse contra a solidar-iedade social, salientando que esta seria tanto o fundamento de todo o direito objetivo, o que, direta e logicamente, estende-se ao direito subjetivo. Adiante rematou: “Nas re-lações dos governantes com os governados, e nas relações dos governados uns com os outros, só há e só pode haver uma regra de direito que é sempre a mesma: cooperar na solidariedade social. O direito público e o direito privado têm, portanto, igual funda-mento” (op. cit., p. 66). 6 Tradução nossa a partir de texto em espanhol disponível em http://constitucion.redires.es/principal/constituciones-weimar.htm. Acesso em 15.07.2003.

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a propriedade territorial atende interesses individuais e públicos a um mesmo tempo e com igual medida”7.

De idêntica forma, resulta acertado o dito por Caio Tácito (1997, p. 582): “Ingressa, por essa forma, no direito público, a noção de que à propriedade corresponde uma função social: ao poder do proprietário se acresce o dever perante a comunidade na qual ele se integra”.

Escrevendo à luz do art. 160, III, da Constituição pretérita, já ensinava Eros Roberto Grau (1983, p. 67) que o “princípio da função social da propriedade, desta sorte, passa a integrar o conceito jurídico–positivo de propriedade, de modo a determinar – repita-se – profundas alterações estruturais na sua interioridade”. Signifi ca, diz o autor, que a propriedade se transmuda em dever.

O vigente constitucionalismo pátrio não fugiu à regra. De logo, observa-se dos fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a reverência à função social da propriedade, ao se reportarem à dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) e à construção duma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, I).

E, como se não bastasse, a função social foi inserida no rol dos direitos e garantias individuais, no art. 5o, XXIII, ao depois da garantia do direito de propriedade, o que é repetido quando da indicação dos princípios retores da atividade econômica (art. 170, III). Está ainda o seu modo de concretização plasmado tanto para os bens imóveis urbanos (art. 182, §2o) quanto rurais (art. 186, I a IV).

De notar que, recentemente, as consequências da industrialização se fi zeram sentir não apenas em face dos direitos da classe operária. O desenvolvimento da atividade capitalista, na centúria passada, mostrou que, para fi ns de alcançar o progresso, bem assim da elevação do consumo de bens, o homem assumiu atitude mais agressiva com a natureza, propiciando, dessa maneira, gastos de recursos energéticos sem controle e de forma excessiva.

Portanto, a contar da década de 1970, veio se enfatizando convicção de que o crescimento econômico possuía, dentre os seus limites, a necessidade de respeitar o axioma de que os recursos naturais do planeta não são ilimitados e o seu desgaste desordenado poderia pôr em risco a vida humana.

Tomando-se como divisor de águas a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 05 a 16 de junho de 19728, os diversos sistemas

7 “se clarifi ca y se muestra como la determinante en virtud de la cual la propriedad territorial atiende interesses individuales y públicos a un mismo tiempo y com igual intensidad.”8 Íntegra do documento se acha disponível em www.dhnet.org.br, conforme acesso de 02-03-2009.

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jurídicos passaram a atentar para a exigência de que a função social da propriedade deveria ir além da imposição de seu uso num fi m de interesse coletivo pelo seu titular, devendo, antes de tudo, voltar-se para o seu emprego racional, mediante o alcance do equilíbrio entre o desenvolvimento e o respeito ao meio ambiente.

Por isso, o constitucionalismo das últimas quatro décadas erigiu a direito fundamental do ser humano, na condição de integrante duma coletividade, o inerente à proteção do ambiente. Tal implica, em contrapartida, que à função social imposta ao proprietário reste imperiosa a preservação dos recursos naturais. Assim, a função social vai além da justa distribuição da propriedade, exigindo o aproveitamento desta com respeito à preservação dos recursos naturais9.

Isso se evidencia seja com as constituições há pouco promulgadas, como é o caso daquelas de Portugal (art. 66º), Espanha (art. 45), Holanda (art. 21º), Colômbia (art. 58), Uruguai (art. 47), Bulgária (art. 15), Rússia (art. 42), Finlândia (art. 2º, nº 2º), seja pela reforma daquelas já existentes, tal como ocorreu com a Lei Fundamental de Bonn (art. 20a) e da Argentina (art. 41), ambos por força de revisões sucedidas no ano de 1994. Mais recentemente, o mesmo sucedeu com a Constituição Francesa, em cujo preâmbulo é proclamada adesão aos direitos e deveres constantes da Carta do Meio Ambiente de 2004, integrando-a, assim, no chamado bloc de constitucionalité.

Não foi diferente entre nós. A Constituição de 1988, demais de dedicar à garantia da preservação do meio ambiente o Capítulo VI (art. 225) do seu Título VIII (Da Ordem Social), apontou-a, na forma de dever ao proprietário, como integrante do conceito de função social da propriedade, seja por prever, no art. 186, I e II, quanto os imóveis rurais, a obrigatoriedade de aproveitamento racional e adequado, e de utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.

Em complemento, o vigente Código Civil prescreve, afastando-se da orientação individualista que marcava o art. 524 do diploma de 1916, no seu art. 1.228, §1º, que o direito de propriedade deverá ter seu exercício em consonância com as suas fi nalidades econômicas e sociais, preservando-se, nos moldes da lei, a fl ora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, de modo a evitar-se a poluição do ar e das águas.

9 Prova disso, Maria Elizabeth Moreira Fernandez (2001, p. 188, 204 e 300) alude a uma função social-ecológica da propriedade privada.

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Diante da consideração acima, segundo a qual o direito a um ambiente sadio constitui verdadeiro direito subjetivo fundamental, não se pode negar que, à sua efetivação, estão vinculados os poderes públicos10.

Tecidas essas considerações, é de ressaltar-se que, no angusto âmbito deste trabalho, interessa-nos analisar os refl exos jurídicos que resultam de parcela da ação da Administração Pública, orientada para fi ns de preservação fl orestal.

2 INTERVENÇÃO ESTATAL NA PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE

Dentre as múltiplas competências do Estado, com vistas à preservação do ecossistema, apresenta destaque a consistente na intervenção sobre a propriedade privada.

Observados os correspondentes instrumentos, de logo é de assentar-se que, grosso modo, tem-se a possibilidade do emprego de dois deles, quais sejam as limitações administrativas e a desapropriação11.

Na primeira hipótese, tem-se condicionamento do direito de propriedade por determinado interesse coletivo, preservando-se a substância do direito de propriedade.

Decorrentes do denominado poder de polícia, as limitações ostentam algumas características. A primeira delas é a de que a decorrem de ato geral e abstrato, que, sem distinção, impõe-se a todos os administrados que se encontram sob determinadas situações. Como afi rma Celso Antônio Bandeira de Mello (1969, p. 63), nas limitações “alcança-se toda uma categoria abstrata de bens, ou, pelos menos todos os que se encontrem em uma situação ou condição abstratamente determinada”.

10 Para Canotilho (2005, p. 56), o direito à proteção do ambiente impõe ao Estado “o de-ver: (1) de combater os perigos (concretos) incidentes sobre o ambiente, a fi m de garan-tir e proteger outros direitos fundamentais imbricados com o ambiente (direito à vida, à integridade física, à saúde); (2) de proteger os cidadãos (particulares) de agressões ao ambiente e qualidade de vida perpetrados por outros cidadãos (particulares)”. 11 Com o afi rmado acima, não desconheço que, por força do art. 216, V, da Constituição, os sítios de valor ecológico integram o patrimônio cultural brasileiro e, por isto, ense-jam proteção através de tombamento, instituto com características próprias. No entanto, deixo de referir-me ao tombamento, fi xando-se apenas nas limitações e na desapropria-ção apenas para o fi m de extremar o sacrifício de direitos dos seus condicionamentos, apontando as consequências que advêm dos respectivos regimes jurídicos. Desse modo, o tombamento, conforme o caso, poderá apresentar-se como limitação administrativa, embora com características específi cas, ou como expropriação.

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Assim, as limitações são impostas mediante lei formal e material, veículo que dá substrato à manifestação do poder de polícia. Caso, excepcionalmente, a restrição de direito advenha de lei que se pré-ordene a abranger destinatários determinados se está diante da expropriação. É que, in casu, estar-se-á diante de lei meramente formal, cujo conteúdo, na realidade, mais se aproxima daquele inerente ao ato administrativo.

Ao depois, tem-se que as limitações impelem ao particular um não fazer ou deixar de fazer. Porém, nada impede – e nisto há relevância para o direito ambiental – que, nalgumas vezes, venha-se a impor um fazer. A propósito, Zanella di Pietro (2006, p. 143) afi rma que, em muitos casos, a necessidade de se não pôr em risco determinado interesse da sociedade poderá resultar na imposição de obrigação positiva ao proprietário, como é exemplo a realização de medidas de segurança contra incêndio, medidas impostas por autoridades sanitárias, ou ainda a obrigatoriedade de demolir prédio em ruína.

Em representando apenas condicionamento, não atingindo o conteúdo essencial do direito de propriedade, a limitação administrativa não enseja indenização12.

Contrariamente, com a desapropriação o Estado suprime, em favor do interesse que visa tutelar, o direito de propriedade do particular. Confi gura forma mais drástica de intervenção sobre o domínio.

Verifi ca-se sua presença não apenas quando o ente expropriante passa a investir-se na qualidade de novo proprietário, mas também quando, mesmo não havendo transferência dominial, o Poder Público, com a medida administrativa, esvaziar, por inteiro, a capacidade de utilização do bem de acordo com as aptidões que àquele são inatas13.

Aldo Sandulli (2000, p. 1.104-1.105) deixa claro que a instituição reiterada de vínculos restritivos à propriedade, acarretando um verdadeiro revolvimento da essência de tal direito, como se dá quando se impõe a impossibilidade absoluta de edifi car, equipara-se à expropriação.

12 Nesse sentido, conferir: STJ (1ª T., REsp 760.498 – SC, v.u., rel. Min. José Delgado, julg. em 05-12-2006; 1ª T., REsp 750.050, v.u., rel. Min. Luiz Fux, julg. em 05-10-2006) TRF – 4ª Reg. (3ª T., AC 200172030018236 – SC, rel. Des. Fed. Vânia Hack de Almeida, DJU – II de 06-09-2006, p. 752). 13 13 A frequência do fenômeno na seara ambiental é realçada por Maria Elizabeth Moreira Fernandez (2001, p. 296): “Existem, consequentemente, no direito ambien-tal, leis que de normas passam a medidas, de meras disposições se transformam em execução, leis que, em suma, deixam de ser disciplina de acção para passar a ser, em si mesmas, acção”.

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Entre nós, Pontes de Miranda (1974, p. 405) já asseverava: “Desapropriação há, mesmo se não resulta aquisição por alguém, posto que a transdesapropriação seja a espécie mais freqüente. Tornar extracomércio o que está no patrimônio de outrem é desapropriar. O que veda a produção por alguma empresa, ou a restringe, desapropria. Também desapropria quem cerceia direito patrimonial, seja de origem privatística, seja de origem publicística”.

Na experiência dos tribunais, há precedente demasiado ilustrativo no RE 134.297–8/SP14, reconhecendo que a constituição de Estação Ecológica Juréia-Itatins, através da Lei paulista 5.649/87, abrangendo propriedades determinadas, com o impedimento total à sua exploração, por esgotar o conteúdo econômico do direito de propriedade, reclama o pagamento de indenização, pois foi além da mera limitação administrativa.

Daí se tem que emana de ato concreto e não abstrato, atingindo administrados determinados. A lei unicamente formal e não material, como ressaltado, poderá apresentar-se como veículo hábil para que se institua a desapropriação.

Noutro passo, por representar sacrifício e não condicionamento de direito, reclama, para sua válida implementação, prévia e justa indenização (art. 5º, XXIV, CF)15.

Isso porque, presente hipótese legal para a expropriação, verifi ca-se, no caso concreto, a partir de ponderação de interesses, a supremacia do interesse público, o que, de forma alguma, autoriza a destruição, pura e simples, do interesse particular. Antes obriga a substituição deste pelo equivalente pecuniário.

Com propriedade, Héctor Escola (1989, p. 251), muito embora reconheça a prioridade do interesse público, por sua índole e condição, sobre os interesses individuais, conclui que aquele somente pode deslocá-los ou substituí-los, mas nunca aniquilá-los. Sendo assim, inarredável o direito à indenização nas expropriações.

De outro lado, a desapropriação, diversamente da limitação administrativa, exige, para sua concretização, adoção do devido processo legal, o qual, em havendo discordância do atingido, deverá se desenvolver perante o Poder Judiciário. As limitações administrativas, por seu turno, têm sua instituição originada diretamente da lei ou de ato normativo com força de lei.

14 STF, 1ª T., v.u., rel. Min. Celso de Mello, DJU de 22-09-95.15 Essa singularidade é a que distingue a desapropriação de outra hipótese supressiva do jus proprietatis, consubstanciada no confi sco, fi gura somente admissível contanto que haja explícita previsão constitucional, como se dá, no direito brasileiro, com as situações do art. 5º, XLVI, b, e art. 243, e parágrafo único, todos da Lei Maior vigente.

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Um ponto se apresenta relevante é o inerente à aplicação no tempo das leis que impõem restrições à propriedade privada. Equacionou o problema José de Oliveira Ascensão (2005, p. 559), assentando que, quanto à verifi cação da aquisição do direito real, o critério a adotar é o da lei vigente à época do fato aquisitivo. Porém, em sendo de caráter continuativo a relação entre o sujeito e o bem, nada impede que lei nova altere o conteúdo do direito, estabelecendo novos limites, sem que se cogite de direito adquirido a regime anterior16.

3 DAS FLORESTAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE

Confi gurando importante instrumento de proteção ao meio-ambiente, o próprio legislador, no art. 1º, §2º, II, da Lei 4.771/65, ofertou-nos defi nição do que se deveria compreender por área de preservação permanente17, constituindo-se na “área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fl uxo gênico de fauna e fl ora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.

De logo, vê-se que há dois tipos de fl orestas de preservação permanente. O primeiro deles resulta, apenas e tão-só, da dicção legal, sendo impostas genérica e indistintamente para todos os imóveis, urbanos ou rurais. São aquelas que estão enunciadas no art. 2º, alíneas a a h, da Lei 4.771/65.

São também dessa modalidade as fl orestas e demais formas de vegetação natural, que se destinam à manutenção do ambiente de vida indispensável às populações silvícolas, a que se refere o art. 3º, alínea g, do mencionado diploma legal. Isto porque o §2º do referido artigo é explícito em afi rmar que, em tal caso, a condição de preservação permanente advém pelo só efeito da menção legal.

16 Nesse diapasão parece afi nar-se o Supremo Tribunal Federal, uma vez, no particular da propriedade urbana, não vislumbrar plausibilidade na invocação de direito adquirido diante de titular de licença, mas que ainda não iniciou a edifi cação, permitindo, assim, a incidência de lei nova que institui novas restrições ao direito de construir. Consultar: AI 121.798-7 - RJ (1ª T., v.u., rel. Min. Sydney Sanches, DJU de 04-03-1988), Agravo Regimental no AI 135.464-0 -RJ (1ª T., v.u., rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 22-05-92) e RE 178.836-4 -SP (2ª T., v.u., mv, rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 20-08-99). 17 Antes havia as chamadas fl orestas protetoras a que se referia o art. 4º do Decreto 23.793/34.

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Ao contrário do que afi rma Nicolao Dino de Castro e Costa Neto (2003, p. 205), não se trata o disposto no art. 2º do Código Florestal de lei de efeitos concretos. Isto porque não há destinatários determinados. O preceito legal, como ressaltado, aplica-se genericamente a todos que se encontrem na qualidade de proprietários.

A particularidade é importante, porquanto, não se cuidando de lei de efeito concreto – que é confi gurável quando se tem da lei unicamente a forma, mas, ao invés, a substância de ato administrativo -, mas sim de lei material (regra de direito), está-se, por via de regra, diante de condicionamento do direito de propriedade e não se sacrifício deste.

Diferentemente, a outra espécie de fl oresta de preservação permanente recai naquelas que, para tanto, são objeto de declaração por ato do Poder Público – a meu sentir, Federal, Estadual, Distrital e Municipal – com vistas à satisfação das fi nalidades previstas no art. 3º, a a f e h, da Lei 4.771/65.

Nessa situação, a Administração, mediante ato concreto e específi co, impõe a determinado proprietário, ou a um conjunto identifi cável de proprietários, a impossibilidade de aproveitamento do bem, em face de sua importância como fl oresta de preservação permanente.

Está-se, sem sombra de dúvida, diante de expropriação, tendo em vista que, para a satisfação do interesse coletivo, a Administração impôs prejuízo especial em desfavor de determinados administrados18.

O prazo para a dedução da pretensão em juízo é de cinco anos, em conformidade com parágrafo acrescentado pela MP 2.183–56/2001 ao art. 10 do Decreto-lei 3.365/41, ao ditar: “Extingue-se em cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público”19.

As fl orestas de preservação permanente, que abrangem terras do domínio público ou particular, encontram-se excluídas da possibilidade de exploração econômica, ressalvada apenas a hipótese daquelas que se encontrem situadas em terras indígenas, pois o art. 3º - A da Lei 4.771/65, introduzido pela MP 2.166-67/2001, assim o permite, desde que observadas algumas condições, tais como a ouvida das respectivas comunidades, para fi ns de atender à sua subsistência e,

18 Outros casos se encontram, de maneira abundante, na Lei 9.985, de 18-07-2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC. Ei-los, segundo se enquadrem como Unidades de Proteção Integral ou Unidades de Uso Sus-tentável: a) estação ecológica (art. 9º, §1º); b) reserva biológica (art. 10, §1º); c) parque nacional (art. 11, §1º); d) fl orestal nacional (art. 17, §1º); e) reserva extrativista (art. 18, §1º); f) reserva de fauna (art. 19, §1º); g) reserva de desenvolvimento sustentável (art. 20, §2º); h) reserva particular do patrimônio natural (art. 21, §2º). 19 A constitucionalidade do preceito foi assentada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI (Medida Cautelar) 2.260 (Pleno, mv, rel. Min. Moreira Alves, DJU de 02-08-2002).

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mesmo assim, com a adoção de regime de manejo sustentável.As fi nalidades para as quais visam atender tais fl orestas, disse o legislador,

centra-se na preservação dos recursos hídricos, da paisagem, da estabilidade geológica, da biodiversidade, do fl uxo gênico da fauna e da fl ora, da proteção do solo e, com isso, assegurar o bem-estar das populações humanas.

Inicialmente, o legislador, através do art. 3º, §1º, da Lei 4.771/65, enunciou permissão para a supressão, total ou parcial, de ditas fl orestas quando houver necessidade ditada pela execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública, sendo indispensável, para tanto, autorização do Poder Executivo Federal.

Posteriormente, numa disciplina mais ampla, e, por isto, derrogatória da anterior, na forma do art. 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, o art. 4º da Lei 4.771/65, introduzido pela MP 2.166-67/2001, admite a supressão de vegetação em área de preservação permanente em casos de utilidade pública ou interesse social, devidamente caracterizado e justifi cado através de procedimento administrativo, quando inexistir alternativa técnica e de lugar ao empreendimento proposto.

Para tanto, far-se-á indispensável autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal e municipal de meio ambiente.

Não vislumbro incompatibilidade material da previsão com o art. 225, §1º, III, da Lei Maior, porquanto a disciplina da supressão se dá por via legislativa. Apenas cabe à Administração, cujo papel é aplicar o direito de ofício, desenvolver o comando legal20.

20 Assim compreendeu o Supremo Tribunal Federal, salientando que a reserva legal, imposta con-stitucionalmente, refere-se apenas à disciplina do regime jurídico da tutela dos espaços territoriais em comento. Tal restou cristalino no julgamento de medida cautelar na ADI 3.540, conforme retrata passagem da respectiva ementa: “ (...) O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDI-DA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. - A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu signifi cativas alterações no art. 4o do Código Florestal, longe de com-prometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma nor-mativo em questão. - Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualifi cam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a ex-ecução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente es-tabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justifi caram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III)” (Pleno, rel. Min. Celso de Melo, DJ 03-02-2006, p. 14).

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Trata-se de hipótese na qual, uma vez ocorrente, transmudar-se-á a limitação administrativa em desapropriação, pois incide em propriedade individualizada e de modo a dar ao bem uso de interesse público para o qual o Poder Público somente poderia fazê-lo mediante tal instituto. Não vislumbro outra via pela qual o Estado, visando a realização de fi m de utilidade pública ou interesse social, possa assenhorear-se de imóvel que não lhe pertence.

4 A RESERVA LEGAL

Outro relevante instrumento de tutela das fl orestas é a reserva fl orestal legal que, a exemplo das fl orestas de preservação permanente, está defi nida pelo art. 1º, §2º, III, da Lei 4.771/65, por confi gurar “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e fl ora nativas”.

É característica da reserva fl orestal legal tratar-se de limitação imposta, de maneira geral e abstrata, a todos os imóveis rurais do país, sejam objeto de propriedade ou de mera posse de boa-fé.

Não há vedação integral sobre seu emprego pelo proprietário. O art. 16, §2º, da Lei 4.771/65, concebe sua utilização sob o regime de manejo fl orestal sustentável , nos termos de critérios estabelecidos em regulamento. É proibido o corte raso da vegetação.

Contrariamente às fl orestas de preservação permanente, a reserva fl orestal legal somente se faz presente em imóveis rurais.

A despeito do sustentado pela maioria dos doutrinadores , partilho da opinião de Raimundo Alves de Campos Júnior (2004, p. 175), no sentido de que o Código Florestal não contém passagem a permitir a conclusão de que a reserva fl orestal legal não abrange os imóveis rurais do domínio público.

Com efeito, a obrigação de respeitar a função social da propriedade, na qual está integrada a proteção do meio ambiente, é imposta não somente aos particulares, mas também ao Estado quanto aos seus bens, estejam ou não afetados a um uso público.

Conforme os incisos do art. 16 da Lei 4.771/65, a sua dimensão é representada pelo percentual de vinte por cento da área da propriedade rural, exceto em duas situações, relacionadas com a Amazônia Legal. Nos imóveis rústicos sitos nesta, o percentual da reserva fl orestal legal corresponderá a: a) oitenta por cento quando situados em área de fl oresta; b) trinta e cinco por

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cento quando localizados em área de cerrado, podendo ser vinte por cento na propriedade e quinze por cento mediante compensação em outra área, desde que situada na mesma micro-bacia.

Por isso, pode-se vislumbrar, estreme de dúvidas, que a reserva fl orestal legal, é de ser reputada como condicionamento e não instrumento supressivo da propriedade. Além de ser imposta genérica e indistintamente a todos os proprietários de imóveis rurais, não esvazia o conteúdo econômico da propriedade, seja por permitir, sob determinadas condições, o seu aproveitamento, seja por sua fi xação haver sido modulada dentre parâmetros razoáveis.

Mesmo quanto às propriedades localizadas na Amazônia Legal, a grande extensão das propriedades justifi ca elevação do percentual para trinta e cinco por cento nas áreas de cerrado e, quanto às áreas de fl oresta, a vital e indiscutível importância ecológica também respalda seu estabelecimento em oitenta por cento.

Portanto, o instrumento do art. 16 da Lei 4.771/65 não pode ser equiparado à desapropriação, não respaldando pagamento de indenização.

A área da reserva fl orestal legal deverá ser averbada à margem da matrícula do imóvel, mas tal não é imprescindível para a existência da limitação administrativa. Esta decorre da lei, sendo a averbação no ofício imobiliário, em face de seus efeitos de publicidade, mecanismo para impedir alteração de sua destinação nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento, ou de retifi cação de área.

Interessante se mostra entendimento defendido Ricardo Domingos Rinhel (op. cit., p. 169, 170-171, 177-180), a partir da consideração de que, não obstante a diversifi cação dos fi ns mencionados no art. 1º, §2º, II e III, do Código Florestal, tanto as fl orestas de preservação permanente quanto a reserva fl orestal legal possuem os mesmos objetivos, os quais, em suma, consistem na preservação da biodiversidade, dos recursos hídricos e do solo.

Em vista disso, representaria bis in idem considerar-se, para fi ns do estabelecimento da reserva fl orestal legal, a área integral da propriedade quando nesta existir fl oresta de preservação permanente. O correto, por força de critério de proporcionalidade, seria a aplicação da alíquota legal sobre a área do imóvel, excluída a parte coberta por vegetação de preservação permanente.

Por outro lado, não esquecer ainda imposição constante do art. 99 da Lei 8.171, de 17-01-91, ao prescrever: “A partir do ano seguinte ao de promulgação desta lei, obriga-se o proprietário rural, quando for o caso, a recompor em sua propriedade a Reserva Florestal Legal, prevista na Lei 4.771, de 1965, com a nova redação dada pela Lei 7.803, de 08-07-89, mediante o plantio, em cada ano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementar a referida

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Reserva Florestal Legal”.Trata-se, a nosso sentir, de limitação, concretizável, excepcionalmente,

como obrigação de fazer, possuindo seu fundamento na reconstrução da reserva fl orestal legal quando esta tiver sido, por qualquer motivo, suprimida, parcial ou integralmente.

A realização de tal atividade, que o legislador consentiu fosse levada a cabo em prazo razoável, apenas restaura, em prol da coletividade, a reserva fl orestal legal, não ensejando qualquer indenização e impondo-se a quem se tornou proprietário mesmo depois da destruição , total ou parcial daquela.

Ora, demais da impossibilidade do proprietário evitar aplicação de leis futuras, estabelecendo novas limitações à propriedade, não se pode negar que, desde a vigência da Lei 4.771/65, há previsão, dentre nós, da reserva fl orestal legal, embora em condições diversas da atualmente vigorante. Basta visualizar a redação original do art. 16 do referido diploma.

5 AGRUPAMENTO DAS SITUAÇÕES QUE ENSEJAM INDENIZAÇÃO E MODO DE SUA QUANTIFICAÇÃO

De conformidade com as considerações antes tecidas, pode-se afi rmar, com segurança, que a atividade administrativa tendente à proteção do patrimônio ambiental fl orestal é capaz de ensejar, a título de compensação do proprietário, o pagamento de indenização quando: a) cuidar-se da instituição, através de ato administrativo, de fl oresta de preservação permanente na forma do art. 3º da Lei 4.771/65, por afetar propriedade(s) determinada(s), impedindo-lhe sua utilização ; b) supressão de fl oresta de preservação permanente, na forma do art. 4º da Lei 4.771/65, pois, ao substituir o direito de propriedade, para afetá-lo a fi m de utilidade pública ou de interesse social, o Estado somente poderá fazê-lo mediante expropriação.

Porém, não se pode abstrair que, mesmo nessas situações, primordial será a análise do caso concreto.

Além dessas situações, não esquecer outra hipótese de realce, na qual é discutível a indenização da cobertura vegetal de forma autônoma, que reside nas desapropriações de imóvel por interesse social, notadamente para fi ns de reforma agrária.

Diversamente, a instituição de fl oresta de preservação permanente por injunção legal, na forma do art. 2º da Lei 4.771/65, desde que não atinja propriedades facilmente individualizáveis, por constituir limitação administrativa à propriedade, não respalda o pagamento de indenização.

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O mesmo acontece com o estabelecimento, por lei, de reserva fl orestal legal. Tratando-se de obrigação genérica e que não esvazia a substância do direito de propriedade, não haverá que se cogitar de indenização.

Feita essa sistematização, importante saber o modo como se procederá à quantifi cação da indenização, avaliando-se ou não o potencial madeireiro de forma autônoma, destacado da terra nua.

Inicialmente, não se há de negar que a jurisprudência reconhecia, de maneira pacífi ca, valor próprio à cobertura fl orestal. Assim o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se pode ver do RE 114.682 . Apenas se censurou que tal quantum fosse fi xado com base em percentual aplicado abstrata e arbitrariamente, devendo observar estudo contido em inventário fl orestal, pois a este caberia traduzir importância econômica inegável das espécies vegetais.

A orientação pretoriana, assim pacifi cada, teve seu engenho em época na qual a desapropriação representava, na prática, verdadeiro fl agelo para o proprietário, que decorria da elevadíssima infl ação que grassava no país e da ausência de mecanismos efi cazes, principalmente antes da Constituição de 1988, que preservassem o valor real dos montantes pagos através de precatórios.

Na atualidade, assiste-se o fenômeno de desapropriações semelhantes em cenário no qual à execução contra a fazenda pública vem se legando maior efetividade, seja quanto à certeza do pagamento, seja quanto à atualização do valor devido.

Sendo assim, urge chamar atenção à complexidade que envolve a avaliação da cobertura vegetal. Não se deve, pura e simplesmente, fi xar o seu valor em percentual sobre a terra nua, ou com base unicamente nos dados constantes do inventário fl orestal.

A adoção de cautelas, aqui examinadas com ligeireza, afi guram-se valiosas no panorama atual da proteção ambiental brasileira diante do elevado custo das desapropriações ambientais, onde, segundo aponta Eduardo de Carvalho Lages, somente no Estado de São Paulo alça a 25 bilhões de dólares, onerando sobremaneira os fi nitos recursos do erário, que ainda têm como destinação outros encargos de interesse da sociedade, como, por exemplo, investimentos na área de educação, segurança e saúde.

A primeira providência para tanto adveio do legislador, cabendo à MP 2.183-56, de 24-08-2001, ao alterar o art. 12, §2º, da Lei 8.629/93, dispor, expressamente, sobre a integração, no preço da terra, das fl orestas naturais, matas nativas e quaisquer outras formas de vegetação.

Diante disso, a jurisprudência vem estatuindo algumas condições para a fi xação do valor da indenização como valor autônomo.

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A primeira delas pode ser vista no RESP 301.111 – CE , no qual se faz preciso que, na localidade do imóvel, a cobertura vegetal, quando aproveitada economicamente, infl uencie na estimativa do bem.

A observação ganha o respaldo técnico sobre o assunto. Deslindando, com maestria, as difi culdades que gravitam em torno da avaliação de imóvel contendo fl oresta, Paulo de Mello Schwenck Júnior deixa claro que não se pode dissociar o potencial econômico da fl oresta de sua relação com o valor da propriedade.

Além disso, o Superior Tribunal de Justiça vem exigindo não só a verifi cação do potencial fl orestal, mas a demonstração, o quanto baste, da viabilidade econômica da exploração. Nalgumas situações, o custo para explorar a cobertura vegetal, só por só, mostra não ser aconselhável fazê-lo.

Nessa linha, cujo acerto é irrefutável, Paulo de Mello Schwenck Júnior afi rma que imperioso se faz realização de inventário fl orestal, bem como a verifi cação atenta das condições de exploração da fl oresta, considerando-se o número de dias de chuva durante o período de exploração, custo de construção de estradas e ramais de exploração, construção de pontes, entre outras. Não é só. Indispensável ainda estimar o período de rotação, consistente no espaço de tempo destinado à regeneração para cada espécie ou grupo de espécies, e o valor do produto, através da busca das cotações no mercado específi co do produto, levando-se em conta alguns fatores, tais como quantidade, freqüência e regularidade do fornecimento, averiguação do risco do comprador deixar de honrar seus compromissos.

Quanto à inclusão, no cômputo do valor da cobertura, da reserva fl orestal legal, a jurisprudência se tem posicionado afi rmativamente . No que tange à inclusão da área das fl orestas preservação permanente, constata-se dissensão . Sou, no entanto, da opinião contrária, porque persistirá a impossibilidade de aproveitamento econômico, salvo se tratar de expropriação que implique na supressão da restrição.

Um limite, todavia, não poderá ser olvidado. A indenização pela totalidade do bem não poderá superar o máximo do valor de mercado que, em condições econômicas normais, obteria o proprietário.

Isso porque indenização justa não poderá assegurar ao proprietário valor que supere aquele que poderia auferir com a propriedade do bem que lhe foi retirada por motivo de interesse público. A desapropriação não visa à obtenção de lucro pelo titular do domínio, mas proporcionar contrapartida equivalente à substituição do seu direito de propriedade pelo interesse público.

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Artigo recebido em: maio/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS

COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL

Gladstone Leonel da Silva Júnior*Roberto Martins de Souza**

Sumário: Introdução; 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta; 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate; 2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas específi cas; 2.2.1. Quilombolas; 2.2.2. Faxinalenses; 2.2.3. Indígenas; 2.2.4. Pescadores Artesanais; 2.2.5. Cipozeiras; 2.2.6. Ilhéus; 3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão; Referência Bibliográfi ca

Resumo: Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibili-dade social é algo histórico para os povos e comunidades tradicionais frente à socie-dade. O reconhecimento de direitos por estes grupos decorrentes da articulação e organização dos mesmos, além de inédito, mediante realização de diversas ações co-letivas, tem gerado novos paradigmas no campo jurídico. Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, tem, historicamente, resultado na implemen-tação de políticas públicas nas quais se encontram fundados os processos como o êxodo rural, a favelização nos centros ur-banos, o aumento da pobreza e a degrada-ção ambiental dos territórios tradicionais. Existem normas positivadas tanto no or-denamento jurídico nacional, quanto no internacional, as quais são utilizadas para

Abstract: In the south region, especially in Paraná and Santa Catarina, the social invis-ibility is something historical to the people and traditional communities in front the society. The recognition of laws by these groups appear for an articulation and orga-nization of the same, by means of realiza-tion of some collective actions, originating new paradigms in the juridical knowledge. This “invisibility” of people and traditional communities have, historically, produced the implementation of public politics like agrarian exodus, the poor neighbourhoods of urban center, the increase of poverty and the nature degradation of traditional terri-tories. There are write laws in the national laws and international, that can be utilized to guarantee fundamental rights of people and traditional communities. One of the way to utilize these laws is called “positiv-

* Advogado, Mestrando em Direito Agrário - UNESP. Endereço eletrônico: [email protected]** Sociólogo, Doutorando em Sociologia UFPR, Asssessor da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais. Endereço eletrônico: [email protected]

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garantir direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Uma das for-mas de utilização destas normas é conhe-cida como positivismo de combate, sendo travada uma luta para prevalência de direi-tos dos grupos subalternos. Questiona-se ainda a construção do Direito sob uma óti-ca individual e formalista, a qual difi culta o reconhecimento de direitos coletivos e plurais. Hoje, apesar do liberalismo ser o paradigma da ciência jurídica, o Direito está se inserido nas práticas sociais, produ-to proveniente da dialética de uma práxis cotidiana, conforme estimulado pelas co-munidades tradicionais.

Palavras-chave: comunidades tradiciona-is, direitos étnicos, direitos coletivos, posi-tivismo de combate e pluralismo jurídico.

ism of battle”, when is engaged a fi ght to prevail the rights of subaltern groups. It is wrangled the development of right with an individual and formalist optical, that dif-fi cult the recognize of collective and plural rights. Today, in spite of liberalism be the paradigm of juridical science, the right is insert in the social practice, product com-ing from dialectical of a praxis produced day by day, alike stimulated by the tradi-tional communities.

Key words: traditional communities, eth-nic laws, collectives laws, positivism of battle, juridical pluralism.

INTRODUÇÃO

Identidades coletivas diferenciadas emergem no Brasil, revelando nas últimas décadas a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhes foram negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão os motivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial e cultural, a persistência de confl itos oriundos de distintas visões de mundo e modos de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afi rmação das identidades coletivas, territorialidades especifi cas e reconhecimento dos direitos étnicos.

O processo de reconhecimento dessa imensa diversidade sociocultural do Brasil é acompanhado de uma extraordinária diversidade fundiária e ambiental ainda que pouco conhecida no país e, mais ainda, pouco reconhecida ofi cialmente pelo Estado brasileiro. As denominadas comunidades ou povos tradicionais encontram-se ainda, em sua grande maioria, na invisibilidade, silenciadas por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e excluídas da formulação e proposição das políticas públicas. Todavia, buscam compor, cada um deles, com suas formas próprias de inter-relacionamento,

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grupos e comunidades tradicionais autodefi nidas coletivamente, juridicamente reconhecidas e auto-reguladas internamente pela gestão tradicional dos recursos naturais.

Destarte atualmente serem estimadas em cerca de 4,5 milhões de pessoas pertencentes a distintos povos e comunidades tradicionais no Brasil, ocupando uma área equivalente a 25% do território nacional, tais grupos na condição de estigmatizados socialmente, são sistematicamente vítimas de diversas formas de violência oriundas face confl itos contra seus antagonistas, bem como das ações universalistas inscritas nas políticas de governo que diluem o fator étnico nas diferenças econômicas, tratando tais grupos como segmentos populacionais “carentes”, sujeitos à atenção das políticas assistenciais, desfocando das demandas prementes relacionadas ao reconhecimento jurídico-formal, o acesso ao território e aos recursos naturais essenciais à sua existência.

A mobilização social em torno dos direitos coletivos é observada, especialmente a partir de 1988, quando do início do processo de emergência e visibilidade na sociedade brasileira, de grupos até então ocultados social e juridicamente, os quais passam a se organizar mediante realização diversas ações coletivas visando seu reconhecimento. Grupos estes, que se desenvolvem sem a necessidade de reproduzirem a lógica de uma sociedade eminentemente consumista, mas, prezando, de fato, pela sustentabilidade em seus diferentes aspectos atrelada, principalmente ao fator étnico. A visibilidade social e reconhecimento de direitos destes grupos decorrentes da articulação dos mesmos, além de inédito, têm gerado novos paradigmas no campo jurídico. Paradigmas, até então, desconhecidos, normas pouco reconhecidas ou ignoradas por tratarem de “povos originários”.

Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é uma das principais características dos povos e comunidades tradicionais. Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos ofi ciais fez com que estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativa de afi rmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões que ameaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais.

Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido no fi nal do mês de Maio de 2008, em Guarapuava, interior do Paraná. Neste espaço de articulação, distintos grupos étnicos, a saber: xetá, guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas, pescadores artesanais, caiçaras, cipozeiras e ilhéus; tais segmentos se articulam na esfera regional fornecendo condições políticas capazes de mudar as posições

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socialmente construídas neste campo de poder. Ademais, a conjuntura política nacional corrobora com essas mobilizações étnicas, abrindo possibilidades de vazão para as lutas sociais contingenciadas há pelo menos 3 séculos, somente no Sul do País.

1. OS RECONHECIMENTOS JURÍDICOS HISTÓRICOS, A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO E DA LUTA

Na análise da formação e da luta destas comunidades tradicionais do Sul do Brasil, cabe compreender exemplos de julgados nacionais que repercutirão em todos estes grupos sociais espalhados pelo país. O julgamento do caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol é um dos marcos de efervescência e luta por direitos das diversas comunidades tradicionais espalhadas Brasil a fora. Embora, os índios sejam os povos que possuem o maior amparo jurídico no tocante a diversidade normativa, não tem seus direitos, inúmeras vezes, efetivados.

Este julgado, além de chamar a atenção das violações históricas praticadas contra os índios por pessoas que utilizavam daquelas terras como mero instrumento mercadológico, mobilizou a Suprema Corte do país a encontrar respostas jurídicas que tem a possibilidade de garantir a permanência e sobrevivência destes povos de maneira digna nas terras que habitam originalmente.

Cabe citar alguns trechos do Voto do Ministro Relator deste caso, Dr. Carlos Ayres Britto, apresentando um posicionamento paradigmático do STF (Supremo Tribunal Federal) quanto à relevância de direito dos índios e consequentemente de comunidades, que lutam pelo reconhecimento de seus espaços tradicionalmente ocupados.

Em determinada parte do voto, o eminente Ministro trata do histórico de discriminação sofrida, omissão do Estado Brasileiro e deturpação de visão da sociedade que analisa esta situação, de acordo com o apresentado superfi cialmente pelo senso comum. Vejamos.

Pelo que, entregues a si mesmo, Estados e Municípios, tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus extratos econômicos, tendem a discriminar bem mais do que pro-teger as populações indígenas. Populações cada vez mais empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do país, num processo de espremedura topográfi ca somente redis-

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cutido com a devida seriedade jurídica, a partir, justamente da Assembléia Constituinte de 1987/1988.

Quanto à forma de atuação do Estado, o voto possui algo primoroso na análise e papel devido quanto ao relacionamento com as comunidades tradicionais, expondo o seguinte;

Seja como for, é do meu pensar que a vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as entidades federadas em terras indígenas desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido .

Aqui, observa-se o lastro de autonomia e respeito garantido as comunidades tradicionais, que historicamente optaram por desenvolverem peculiar meio de vida que deve ser, sobretudo, assegurado pelas entidades que compõe o Estado. Por mais que, ao fi m do julgamento, o Estado tenha garantido o acesso a estas áreas.

Tanto os indígenas, exemplifi cadas pelo julgamento do caso Raposa Serra do Sol, quanto às outras comunidades tradicionais existentes em nosso país buscam, cada vez mais, garantirem seus direitos, visto que as ameaças aos seus espaços ocupados estão sendo concretizadas pelo avanço do modelo econômico de concentração fundiária aliado ao desrespeito ambiental em confl ito e oposição às modalidades de uso comum dos recursos naturais desenvolvidas secularmente pelas comunidades tradicionais como praticas inerentes à sua cultura.

À semelhança dos povos indígenas na Amazônia, os confl itos sociais em voga no Sul do Brasil pouco se diferenciam, a não ser pela sua ocultação das violentas formas de repressão aos movimentos sociais empreendidas por seus antagonistas em regiões de ocupação agrária antiga, como no caso da Guerra do Contestado. De outra maneira, o processo de produção da “invisibilidade social” dos povos e comunidades tradicionais no Sul, não teve um percurso muito distinto do restante do País.

A ocupação territorial ancorada nas atividades econômicas e centradas sequencialmente nos ciclos da mineração, do gado, erva-mate, madeira, iniciadas ainda no século XVII, conduziram ao domínio das terras, quem dispusesse de capital econômico e social, capaz de inclusão no circuito mercadológico vigente. Sistematicamente, os povos e comunidades tradicionais, foram expulsos, eliminados ou imobilizados em sua força de trabalho como componentes fundamentais do processo de expropriação e exploração econômica, sem a qual não haveria extração produtiva e geração de riqueza.

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Atualmente, o “silenciamento” destes grupos tem sido provocado por empreendimentos econômicos de grande impacto socioambiental gerando a expropriação ou usurpação de seus territórios, como os impactos causados por usinas hidrelétricas e mineradoras; grilagens de terras em áreas de apossamento; aquecimento do mercado de terras motivado pelo agronegócio ou mesmo pela invasão de empreendimentos de lazer (chácaras), assim como pela implantação de Unidades de Conservação de uso integral, provocando gradualmente a dispersão e esvaziamento desses grupos sociais a partir obstrução de suas condições de reprodução física e social.

Afi nal, um breve cenário possibilita antever que as pressões sobre os povos e comunidades tradicionais ainda são intensas, sobretudo, desde a década de 1960, a partir de 3 origens. A primeira é o avanço da “agricultura moderna”. Notadamente reconhecido como “Celeiro agrícola do País”, o Paraná, desde a década de 1970, sustenta sucessivamente a evolução nos recordes de produção e exportação de commodities agrícolas e fl orestais, tais como, soja, gado, pinus, eucaliptos e recentemente, cana-de-açúcar. Somente a soja em 15 anos (1990 a 2005) teve ampliada sua área plantada em 70,8%. Já o complexo madeira, perde neste período apenas para o complexo soja. Sendo considerado o maior produtor nacional de papel fi bra longa, o Paraná ocupa 2,8% do seu território ou 560 mil hectares, com a meta de ocupar até 5% da área do Estado até 2010.

A farta presença de recursos hídricos observadas na geografi a do Estado do Paraná, implicaram numa segunda tensão direta contra as comunidades tradicionais, qual seja, a implantação de projetos de usinas geradoras de energia, produzida por meio de hidrelétricas, sobretudo, a partir da construção de Itaipu, na década de 1980. Nos anos seqüentes, o Paraná ampliou sua produção energética, impulsionado pela construção de diversas barragens no Rio Iguaçu e, mais recentemente, com os investimentos da COPEL – Companhia Paranaense de Energia, dirigidos à construção de PCHs nos rios Piquiri e Ivaí, além do já avançado processo de pré-implantação (vencidas as barreiras jurídicas e ambientais) da Usina Hidrelétrica de Jataizinho no baixo rio Tibagi.

Soma-se a esses empreendimentos impulsionados pelas políticas publicas desenvolvimentistas, as políticas conservacionistas, de cunho ambientalista, referidas a implantação de unidades de conservação de uso integral, a partir de 1980, tal como o Parque Nacional de Superagui, criado em 1989, com 21.000 ha, e o Parque Nacional de Ilha Grande criado em 1997, com 78.875 ha, entre outros.

Este período, marcado por grandes investimentos do Estado, associado à capitais privados, produziu mais que o aclamado progresso econômico propalado pelas agências públicas. De um modo violento, gerou um desastre social e

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ambiental sem precedentes na história da região. Demarcando a instalação de um modelo de desenvolvimento extremamente impactante aos recursos naturais, e violador dos direitos humanos, resultando na expropriação de bens, terras e direitos de grupos sociais culturalmente diferenciados.

Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, reiteradas pela ideologia dos “vazios demográfi cos” e associada ao desenvolvimento baseado nas premissas do universalismo, tem, historicamente, resultado na implementação de políticas públicas nas quais encontram-se fundados os processos como o êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento da pobreza e a degradação ambiental dos territórios tradicionais. Isto também se traduz no atual baixo investimento de esforços na promoção do desenvolvimento sustentável dessas comunidades.

Tal afi rmação faz consonância com a tônica dos relatos e manifestações de mais de 120 representantes desses grupos étnicos participantes no 1º Encontro Regional de Povos e Comunidades Tradicionais. Invariavelmente, as exposições relatam confl itos relativos ao acesso à terra, ou, no caso, ao território. Visto que estas comunidades sabem que assegurar o acesso ao território signifi ca manter vivos na memória e nas práticas sociais os sistemas de classifi cação e de manejo dos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção. Isso além de sua dimensão simbólica: no território estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantêm viva a memória do grupo; nele também estão enterrados os ancestrais e encontram-se os sítios sagrados.

Em que pese favorável que Xetás, Guaranis, kaingangs, Quilombolas, Faxinalenses, Caiçaras, Pescadores Artesanais, Cipozeiros e Ilhéus, tenham conquistado de forma gradual reconhecimento jurídico-formal, por meio de suas mobilizações, ainda impõe-se na esfera do Estado, limites burocráticos, jurídicos e políticos para sua efetivação, além do que é notório que suas principais demandas – especialmente a territorial – encontra-se “engessada”. Em outros casos, nos deparamos com grupos sociais que ainda nem sequer possuem instrumentos disponíveis para o reconhecimento jurídico-formal pelo Estado, como é o caso dos ilhéus, cipozeiros, caiçaras, pescadores artesanais, portanto não dispõe de programas governamentais específi cos dirigidos a garantia de seus direitos diferenciados e fundamentais, registrando-se inúmeros confl itos territoriais com empreendimentos governamentais, sejam parques de conservação ambiental ou obras públicas.

O que signifi ca dizer, que no âmbito da região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a Constituição Federal de 1988, marco histórico do processo de redemocratização política do Brasil, sendo entendida como

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elemento primordial na solidifi cação dos direitos individuais e coletivos, ainda não opera abertamente com o reconhecimento de formas diferenciadas de organização social e cultural de distintos segmentos da sociedade brasileira. Esse é o caso, por exemplo, dos direitos diferenciados reconhecidos aos povos indígenas e comunidades quilombolas, mas não assimilados pela burocracia do Estado (Governos estaduais e municipais, em especial) ao permanecer operando com adaptações às políticas universalistas, evitando instituir uma “política de identidades”, assentada em novas instituições. No caso de identidades étnicas e coletivas emergentes, como dos caiçaras, pescadores artesanais, cipozeiros e ilheiros, se quer há menção da existência desses grupos, sua localização, situações de confl ito e demandas. O que denota desconhecimento público e uso de pré-noções classifi catórias que impelem estes grupos a categorias econômicas e situações sociais, tal como “pobres”, “assalariados temporários”, “bóias-frias”, “pequenos agricultores”, “agregados”, “pescadores” ou “agricultores familiares”.

Ao estabelecer prerrogativas diferenciadas para esses povos e comunidades, a Carta Magna opera de forma direta nos princípios fundamentais da constituição do próprio Estado Brasileiro, uma vez que se fl exibilizam os conceitos vigentes sobre o que é a sociedade brasileira, a forma como ela é composta e como ocorreu a sua formação. Em última instância, a consolidação de tais direitos revela não só o reconhecimento por parte do Estado da diversidade sociocultural existente no Brasil, mas também a necessidade de se repensar conceitos atinentes às noções de desenvolvimento, propriedade e uso dos recursos naturais, de forma que os mesmos passem a incluir princípios mais adequados às realidades diferenciadas desses povos e comunidades.

Buscando fomentar a produção da visibilidade social desses grupos, desde 2003, tem sido estimulada no Paraná iniciativas que visam a identifi cação desses grupos, tal como o Mapa da presença Indígena e o Mapeamento dos Quilombolas no Paraná. Em 2005, inicia-se, em articulação com os movimentos sociais, o Projeto Nova Cartografi a Social, vinculado ao PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas – UFAM com apoio do Centro Missionário de Apoio ao Campesinato - CEMPO e Instituto Equipe de Educadores Populares - IEEP, na produção da Auto cartografi a Social desses povos e comunidades tradicionais. Mais do que exercitar uma nova cartografi a, tal pesquisa tem estimulado processos organizativos associados ao auto-reconhecimento e reconhecimento publico da existência coletiva desses grupos sociais. Neste percurso de quase 3 anos, contabilizamos a identifi cação de diversos povos e comunidades tradicionais interessados em constituir formas organizativas capazes de reivindicar seu reconhecimento face ao Estado, bem como encaminhar suas demandas aos

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órgãos competentes, numa explicita tentativa de que cessem violações e ameaças contra seus direitos. Todavia, ainda são muitos os obstáculos burocráticos, políticos, jurídicos e econômicos para que os mesmos se realizem.

A formação da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais no Paraná, exemplifi ca bem toda esta movimentação, possibilitado entre outras ações a identifi cação de demandas comuns à estes grupos, como as descritas no direito aos territórios tradicionais. A despeito serem constatadas variadas formas de violações de direitos étnicos e coletivos, os referidos grupos apreendem a necessidade de ocuparem seu lugar de direito assegurado pela Constituição Federal, especialmente na percepção de que constituem identidade coletivas motivadas por expressões culturalmente diferenciadas. Visando operacionalizar tais demandas, sobressaem apoiadas por assessorias especifi cas inúmeros cursos e ofi cinas intituladas de Formação de Operadores de Direito, organizadas e realizadas nas comunidades e tem a função de promover a apropriação e domínio destes conhecimentos e instrumentos específi cos qualifi cando a ação dos sujeitos. Esta estratégia resulta em pressão perante os poderes públicos por parte destes grupos, além da consolidação de um ordenamento jurídico desconhecido e pouco estimulado pelo Estado. Essa ação fi ca nítida no estabelecimento de uma nova relação com o Ministério Publico Estadual e Federal, que gradualmente também se apropriam desses conhecimentos normativos posicionando-se na defesa dos grupos citados.

Cabe então, apresentar algumas iniciativas e instrumentos normativos utilizados frequentemente pelos povos e comunidades tradicionais no âmbito da Rede Puxirão e, que tem dado um suporte mínimo, tanto de forma genérica, como normas específi cas, as quais relacionamos num segundo momento por grupos específi cos.

2. APARATOS NORMATIVOS GARANTIDORES E A UTILIZAÇÃO DO POSITIVISMO DE COMBATE

Existem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional, quanto no internacional, as quais são utilizadas para garantir direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Estas normas, também, são fruto de lutas históricas travadas em vários cenários e épocas, as quais hoje representam um instrumento dentro do campo jurídico para a efetivação destes direitos que chamamos de étnicos e coletivos.

Uma das formas de utilização destas normas é conhecida como positivismo de combate. Isto signifi ca que, estas normas postas são utilizadas

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pelos grupos sociais de uma forma contra-hegemônica, combatendo as injustiças e desigualdades através da própria regra positivada, ou seja, gerando um confl ito legal com o propósito de derrubar o status quo.

É exatamente a luta, dentro do aparato ofi cial do Estado (juízos, tribunais, repartições administrativas etc.), pela efetivação das normas que expressam de modo autêntico os interesses populares. Ou seja, por meio do “positivismo de combate” trava-se uma luta pelo cumprimento das leis de interesse das classes subalternizadas, as quais, na maioria das vezes, permanecem apenas no plano retórico do orde-namento jurídico – são as chamadas leis que “não pegam”. Essas leis e normas, em boa medida, integram a estrutura jurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo de atingir um efeito “encantatório”, proporcionando a sen-sação, desmentida pela realidade, de que os interesses da maioria estão efetivamente assegurados pelo direito .

O professor Antônio Alberto Machado chega a sugerir a troca do termo “positivismo de combate”, para evitar que o termo se confunda com a ideologia positivista, para o de “positividade de combate”. Certo é que, as normas a serem analisadas servem para alimentar esta luta incessante por efetivação de direitos.

2.1. NORMAS GERAIS UTILIZADAS PELAS COMUNIDADES TRADICIO-NAIS

Começamos com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esta estabelece algumas normas internacionais que devem ser obedecidas em todos os países que assinaram a Convenção, inclusive o Brasil.

O conteúdo da Convenção trata das comunidades que estão estabelecidas historicamente no território, desenvolvendo suas culturas próprias, costumes e formas de vida. Reconhecendo então, as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições, formas de existência e seu desenvolvimento econômico, mantendo e fortalecendo suas identidades, culturas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde estão situadas.

Esta Convenção por ser reconhecida internacionalmente, através do acordo estabelecido entre os países, possui uma força e importância na defesa dos direitos humanos em todo o planeta. Isto porque, a Organização Internacional do Trabalho é uma agência ligada as Nações Unidas (ONU). Desta forma, podemos

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afi rmar que a luta e o direito das comunidades tradicionais tem reconhecimento internacional.

Outro instrumento normativo necessário de explicitar-se é nossa Carta Maior. A Constituição Federal é o conjunto de normas mais importantes de um país. Ali, estão contidos os pontos principais e mais importantes para o desenvolvimento e organização do Brasil.

A partir do momento que uma destas normas preveja o direito dos diversos grupos formadores da nossa sociedade, fi ca demonstrada uma importância maior para este assunto. A partir desta lei maior, outras poderão continuar surgindo, como ocorre nos dias de hoje. Vejamos o que dispõe o artigo 216 da Constituição Federal;

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da so-ciedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científi cas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edifi cações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, pais-agístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científi co.

Este artigo expõe que, os diferentes grupos e comunidades organizadas em nosso país possuem um direito legítimo de terem sua identidade e modo de vida preservado. Está claro, o objetivo de preservar o patrimônio cultural brasileiro, que é formado por diversas comunidades espalhadas pelo país.

Além do mais, o artigo 215, § 1º da Constituição Federal dispõe sobre a importância da manifestação cultural e, consequentemente dos hábitos e formas de vida das diversas comunidades formadoras do nosso país.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das mani-festações culturais.§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (grifo nosso)

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Outro instrumento que deve ser levado em consideração na garantia de direitos das comunidades tradicionais de forma geral se trata do Decreto nº 6040/2007 e o Decreto nº 10884/2006.

O Decreto nº 6040/2007 reconhece a Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais, como entidade representativa dos Povos Tradicionais Brasileiros. Contendo no Decreto, também, a importância dos Territórios Tradicionais e do Desenvolvimento Sustentável das Comunidades como elementos necessários para a ampliação de direitos.

Nele está instituído a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Hoje, fi nalmente existe uma norma que reconhece a organização e os direitos dos diversos povos formadores do nosso país, especifi cando o direito já concedido no artigo 216 da Constituição Federal.

Já o Decreto nº 10884/2006, trata de tema bem parecido com o decreto anterior. Ele altera alguns pontos da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. Esta Comissão poderá coordenar a elaboração e implementação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais.

Este Decreto apresenta ações que esta Comissão Nacional das Comunidades Tradicionais poderá tomar. Assim poderá ser fortalecido e garantido os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à identidade dos diferentes povos, suas formas de organização e instituições.

2.2. NORMAS ESPECÍFICAS

2.2.1. QUILOMBOLAS

As comunidades quilombolas, sinônimo histórico de resistência, estão reconhecidas, não só pelas legislações já apresentadas, como também em aspectos específi cos e normas pontuais que asseguram alguns direitos.

Tal caso está exemplifi cado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual garante as terras tradicionalmente ocupadas por estes povos.

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a proprie-dade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos re-spectivos.

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Observa-se que a Constituição Federal de 1998 explicitou bem o direito das comunidades às suas terras, cabendo ao governo tomar as medidas necessárias para emitir os títulos de propriedade.

Apesar do aparato normativo, pouco foi feito para efetivação do ato. O governo reconhecia a propriedade, mas nada fazia para que a comunidade pudesse permanecer, retomar ou seguir vivendo em suas terras.

No início do governo Lula, um grupo de trabalho foi formado com a missão de elaborar um plano para que o governo pudesse titular defi nitivamente as comunidades quilombolas.

Isto resultou na promulgação e entrada em vigor do Decreto 4.887/2003, que passou a valer em setembro de 2005. Este decreto criou um mecanismo para o reconhecimento e titulação das terras e os instrumentos jurídicos para a garantia do direito à terra das comunidades quilombolas.

Hoje, quem determina quem é quilombola, é a própria comunidade, através da “auto-atribuição”. Após a auto–atribuição, a Fundação Palmares deverá expedir uma certidão, que é o documento ofi cial sobre o auto-reconhecimento da comunidade.

Atualmente, os direitos territoriais quilombolas vêm sendo questionados e ameaçados com a edição de nova instrução normativa, em substituição a IN 20/2005 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A mudança afeta os procedimentos de identifi cação e titulação de tais territórios. A justifi cativa do governo federal para a alteração é evitar que iniciativas em curso, no Judiciário e no Congresso Nacional, suspendam ou anulem o Decreto nº4.887/2003 que regulamentou o processo administrativo de reconhecimento dos direitos territoriais previstos no Art. 68 do ADCT da Constituição Federal.

Apesar dos avanços conquistados, os resultados foram pequenos. Das 2.228 comunidades quilombolas conhecidas no Brasil, apenas em 27 o governo conseguiu fi nalizar os procedimentos de titulação. Há 278 procedimentos iniciados pelo Incra, em todo o país.

2.2.2. FAXINALENSES

Quanto aos Povos Faxinalenses existem algumas normas que abarcam e garantem na integralidade o direito destes povos.

A lei 15.673/2007 é o exemplo vigente disto, confi rmando num patamar estadual (no Paraná) algo já colocado em normas internacionais, nacionais e também estaduais, reconhecendo plenamente os povos faxinalenses como comunidades tradicionais, inclusive seus acordos comunitários.

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Este tipo de positivação dialética, decorrente da luta dos Povos Faxinalenses e seu Movimento Social, Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, dá ensejo a um processo transformativo que pode acontecer mesmo dentro das esferas institucionais.

Várias questões devem ser ressaltadas para o entendimento das peculiaridades destes povos e o quão relevante são estes direitos. O primeiro ponto é a descrição dos elementos peculiares das comunidades faxinalenses, salientando a forma de vida e as características próprias deste povo.

Importante salientar também, o auto-reconhecimento da identidade faxinalense, onde cabe ao próprio grupo social se reconhecer como tal, desde que seu modo de viver seja o característico desta comunidade tradicional, no caso a faxinalense.

Um próximo ponto é a vinculação do poder público, no reconhecimento dos faxinalenses através de certidão de auto-reconhecimento. Algo que deixa mais evidente a necessidade de se assegurar o direito destes povos.

Por fi m, o caráter de legitimidade existente nos acordos comunitários, feito entre os próprios faxinalenses, sendo reconhecidos pelo poder público esta prática da comunidade.

Outra norma que pode ser citada é o Decreto nº 3446/97 – ARESUR (Áreas Especiais de Uso Regulamentado). Este Decreto, por ser estadual, vale para as áreas que se encontram dentro do Estado do Paraná. Ele reconhece e caracteriza claramente, a existência do modo de produção denominado “Sistema Faxinal”, buscando criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades residentes, a manutenção do seu patrimônio cultural e preservação dos recursos ambientais. Não cabendo então, nenhum outro modo de produção ou forma de ações que diferenciem do jeito de ser dos faxinalenses dentro das áreas.

Alguns faxinais ainda não foram reconhecidos por este Decreto, pois o reconhecimento se dá caso a caso, por faxinal. Nas áreas devem conter sua denominação, superfície, os limites geográfi cos, diretrizes para conservação ambiental, que deverão ser analisados pelo Secretário de Estado do Meio Ambiente, que defi nirá a área através de um ato administrativo.

Assim, as áreas poderão ser registradas no Cadastro Estadual de Unidades de Conservação – CEUC – desde que caracterizado o uso coletivo da terra para produção animal, a produção agrícola de policultura alimentar e a conservação ambiental, característica dos povos faxinalenses.

Além disso, os Municípios em que estão reconhecidas áreas de faxinais através do Decreto ARESUR, podem receber o ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços) Ecológico, sendo uma fonte de renda a mais para o Município, que através de leis municipais podem reverter estas verbas para fomento do próprio Faxinal.

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2.2.3. INDÍGENAS

Em 1750 a Espanha queria trocar com Portugal as terras das missões dos jesuítas, conhecida como os Sete Povos das Missões, pela colônia de Sacramento. O problema é que os Sete Povos das Missões eram habitados por mil-hares de índios.

Este trecho da lenda de Sepé Tiaraju ilustra bem o tratamento que historicamente é dado aos índios no Brasil, sendo apresentados desrespeitosamente como uma questão problemática. Contudo, problemática quanto ao interesse de grupos que só viam a terra e os recursos naturais com um olhar exploratório, diferentemente da maneira sustentável e vital desenvolvida pelos índios.

Certamente os indígenas representam hoje no Brasil um dos povos organizados, mais ativos e radicalizados em defesa dos seus direitos frente ao Estado. Estão em evidência por ocupações de prédios de órgãos do Estado como Funasa e Funai, e lutando permanentemente pela retomada dos seus territórios invadidos, como no caso já citado de Raposa Serra do Sol.

Os indígenas reivindicam direitos ancestrais, de povos literalmente originários, do que hoje constitui o território brasileiro. Segundo a descrição do Ministro Carlos Ayres Britto, “o termo originários a traduzir uma situação jurídico-subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não índios. ” Como garantias, estes povos obtiveram o reconhecimento da Constituição Federal brasileira, a qual reserva um capítulo específi co só para tratar dos indígenas. Vejamos um dos artigos;

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização so-cial, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preserva-ção dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (...)

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Aqui estão dispostos elementos importantes, os quais reconhecem e garantem direitos essenciais ao desenvolvimento do modo de vida das diferentes tribos indígenas espalhadas por todo o país.

Na Constituição do Estado do Paraná, também podem ser encontradas normas específi cas garantidoras dos direitos indígenas. Assim está disposto no artigo 216 da referida norma.

Art. 226. As terras, as tradições, usos e costumes dos gru-pos indígenas do Estado integram o seu patrimônio cultural e ambiental, e como tais serão protegidos.Parágrafo Único. Esta proteção estende-se ao controle das atividades econômicas que danifi quem o ecossistema ou ameacem a sobrevivência física e cultural dos indígenas.

Existem ainda, outras normas que tratam de temas específi cos dos direitos indígenas, como Decreto 1.775/1996 sobre demarcação de Terras indígenas; Decreto 1.141/94 dispondo sobre ações de proteção ambiental saúde e apoio “as atividades produtivas para as comunidades indígenas; diversas normas relacionadas à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre outras.

2.2.4. PESCADORES ARTESANAIS

Os pescadores artesanais, ainda possuem um reconhecimento específi co, existindo pouca incidência normativa direcionada a este tipo de comunidade tradicional.

Áreas marítimas e de águas interiores tem sido, nas últimas décadas objetos de confl itos, muitas vezes violentos entre a pesca industrial, geralmente de fora da região, e a artesanal, feita pelos pescadores das comunidades litorâneas.

Recentemente, uma norma específi ca foi sancionada, a qual dispõe sobre as colônias e federações de pescadores, tratando de características mais organizativas. Observa-se o conteúdo limitado da lei 11.699/2008, embora demonstre um primeiro passo para o reconhecimento concreto e integral de toda e qualquer comunidade de pescadores artesanais, seja qual for suas respectivas formas de se organizarem.

Existem ainda, algumas leis municipais específi cas espalhadas pelo país, que buscam garantir e reconhecer alguns direitos aos pescadores artesanais, sendo importante fomentar este debate nos municípios em que estas comunidades estão inseridas.

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2.2.5. CIPOZEIRAS

Os povos caracterizados como “cipozeiras”, por viverem e se identifi carem quanto grupo, justamente pelo trabalho tradicionalmente desenvolvido de extração do cipó em Santa Catarina, constituem outro tipo de comunidade que busca sair da invisibilidade jurídica e social fazendo valer seus direitos históricos.

Estes grupos, atualmente, se concentram na região de Garuva, município de Santa Catarina. Além da extração do cipó imbé, atuam como pequenos produtores rurais. Assim, os grupos que trabalham com esta matéria-prima e desenvolvem uma forma de vida por conta da cultura desenvolvida no manejo do cipó, estão situados entre as pessoas mais desfavorecidas do município.

Hoje, eles são perseguidos e diversas vezes confundidos, equivocadamente com extratores de palmitos. Por isso, apesar de não existirem normas específi cas, estão se organizando e lutando pelo reconhecimento da forma de vida desenvolvida por estes grupos.

2.2.6. ILHÉUS

Ainda existem os povos ilhéus, comunidades tradicionais que habitam ou habitavam o arquipélago da Ilha Grande, localizadas no alto do Rio Paraná, próximo às divisas do Paraná e Mato Grosso do Sul.

Alguns deixaram as terras por conta da construção de Itaipu, depois da Usina da Ilha Grande e fi nalmente, do Parque Nacional da Ilha Grande na região. As alternativas que se apresentam para aqueles que permanecem nos municípios ribeirinhos são poucas: o trabalho assalariado em propriedades agrícolas; os volantes (bóia-fria); os pequenos comércios (biscateiros) e alguns serviços ligados ao turismo e à pesca.

Atualmente, os ilhéus enfrentam problemas frente a órgãos como IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e IAP (Instituto Ambiental do Paraná). Existe ainda, falta de compreensão frente ao Ministério Público, sendo inclusive, estes povos pressionados a deixarem as ilhas que ocupam.

Esta é uma luta, que apesar de antiga, começa a se articular com outras e busca possibilidades de garantir a retomada dos direitos coletivos deste tipo de comunidade.

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3. O CHOQUE ENTRE AS CONCEPÇÕES LIBERAIS DO DIREITO E OS RECONHECIMENTO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS

Começar uma movimentação na sociedade civil reivindicando direitos atribuídos a uma coletividade, e não meramente particulares e localizados, apresenta um panorama real de percepção e concretização de garantias constitucionais devidas, e consideração de fato das comunidades tradicionais em nosso país. Muitas destas comunidades brasileiras se formaram à margem do processo socioeconômico hegemônico e sobreviveram pelos tempos mantendo muitas tradições e práticas sociais antigas. Daí, a importância em valorizar a diversidade social, econômica e cultural produzida por eles. Ademais, aliado as próprias necessidades humanas fundamentais, novos tipos de confl itos de massa surgem e o direito deve ter uma resposta adequada e garantidora a estas novas questões.

Uma grande difi culdade na efetivação destes direitos passa pela visão jurídica formalista, dogmática e liberal-individualista dentro da história do direito, além da concepção monista que eleva a fi gura do Estado como a única grande fonte normativa, excetuando em algumas oportunidades em que concedem também aos costumes e outros, certamente em menor relevância, este status de fonte do direito.

Como primeiro exemplo, podemos destacar uma categoria operacional do direito, que é o conceito de relação jurídica apreendido em nossas Universidades.

Este geralmente ocorre de um sujeito a outro prevendo demandas que vinculam de forma individual, em sua essência, a busca por um bem da vida. O bem é suscetível de apropriação, quase sempre pautada na linguagem possessiva do meu, seu, posso, tenho, entre outras, tipicamente individualista. O sujeito que se reproduz no conceito de relação jurídica tem sido essencialmente privatístico.

É lançado o dilema de um conceito de relação jurídica próprio, que preveja e dê respostas adequadas às demandas coletivas. Algo que não ousaremos adentrar neste momento.

Logo, observa-se a derrocada de um modelo jurídico estatal, que através de seus Códigos e de seu próprio Poder Judiciário, limita-se a regulamentar confl itos de cunho individualistas e patrimoniais, afastando-se das demandas sociais coletivas. Estes problemas tornam-se visíveis, visto que nos encontramos “formados numa cultura jurídica incapaz de entender a sociedade e seus confl itos e há má vontade em discutir a democratização efetiva deste ramo do Estado, ”no caso específi co, o Judiciário.

Outra questão emergencial que difi culta a efetivação, em muitas oportunidades, destes direitos postos é a visão estreita utilizada para as

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fontes normativas, enfatizando a fi gura do Estado, infl uenciado por entes privados, tendo em vista a própria organização da sociedade dentro da lógica capitalista. O monismo estatal “se explica ideologicamente, eis que o Estado moderno é construção da classe dominante no mundo ocidental, organizado burocraticamente para servir seus próprios interesses de proprietários.” Dessa forma, os grupos subalternos absorvem aquilo como o único direito, submetendo-se a todo e qualquer tipo legal posto.

Por mais, que a luta das comunidades tradicionais consiga avançar pontualmente, com normas garantidoras advindas dentro da lógica formalista do Estado, cabe ainda lutar para que estas normas, além de emanar deste ente, brotem, de fato, destes povos e organizações populares.

Tendo presente a perspectiva de um pluralismo comuni-tário-participativo, há de se chamar a atenção para o fato de que a insufi ciência das fontes clássicas do monismo estatal determina o alargamento dos centros geradores de produção jurídica mediante outros meios normativos não-convencionais, sendo privilegiadas neste processo, as práti-cas coletivas engendradas pelos movimentos sociais.

O que se busca salientar com estas indagações é que, este princípio monista de alcance ontológico, o qual possui sua gênese na fi gura do Estado, é tão só uma das faces do Direito. A outra face deve ser considerada e “seu projeto político é o da conquista dos espaços normativos pela organização social dos oprimidos, primeiro passo no sentido da libertação. ”

O Direito autêntico e global não pode ser isolado em cam-pos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei um simples aci-dente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas.

O Direito deve estar inserido nas práticas sociais, produto proveniente da dialética de uma práxis do dia-a-dia e não encastelado nos gabinetes institucionalizados de funcionamento do burocratismo do Estado, tão gerador de injustiças. Infelizmente, após tantos anos de estudo os juristas conhecem melhor os corredores dos Fóruns e Tribunais, do que os caminhos e as trilhas das comunidades que contribuem para a construção do meio cultural, há séculos em nosso país.

Podemos estar vivendo momentos pré-paradigmáticos. Os paradigmas jurídicos e políticos estão em crise, sem ainda terem nascido novos. O liberalismo é paradigma da ciência jurídica. Os novos direitos exigem nova teoria.

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CONCLUSÃO

Tendo por base o estudo realizado, alguns direcionamentos podem ser visualizados diante da luta das comunidades tradicionais, sobretudo do Sul do Brasil, e os delineamentos jurídicos apresentados.

Nota-se uma inquietação e organização crescente entre os povos e comunidades tradicionais, na ânsia de serem reconhecidos, de fato, como sujeitos coletivos de direitos. Contudo, nem sempre o Direito dá as respostas esperadas por estas comunidades, mas tão só, reproduz seus feitos de maneira disforme a uma situação que nada se equipara a uma relação entre indivíduos e lógico-formalista.

Sendo assim, além da batalha por reconhecimento de direitos que germinam da própria luta histórica, advinda destas comunidades, desconstruindo a mística da teoria monista estatal, em diversas situações, o entrave ocorrerá entre as normas postas, vigentes no ordenamento. Roberto Lyra Filho oferece o fundamento para resolução desta questão e efetivação destes direitos humanos;

o padrão de legitimidade, na concorrência das normas, está no vetor histórico, donde se extrai a resultante mais avança-da duma correlação de forças em que se torna reconhecível a vanguarda, marca-se o posicionamento progressista e se atua para garantir suas reivindicações, tratando de espremer o sumo e o extrato do processo libertador a que se dá o nome de direitos humanos .

Nessa monta, os direitos humanos são postos, de fato, como garantias decorrentes e possibilitadas diante de uma luta histórica, em que novos sujeitos continuamente são forjados, enquanto perdurar a desigualdade social e de direitos no país.

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WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997.

Artigo recebido em: maio/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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ÍNDICE - PARTE II

ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADEOzorio J. M. Fonseca.....................................................................................157

PROTEÇÃO AMBIENTAL YANOMAMI: convergências cosmológicas, culturais e de sustentabilidade com suporte constitucional no Estado BrasileiroEdson Damas da Silveira..............................................................................175

Introdução; 1. Relação da Civilização Ocidental com a natureza; 2. Relação do povo Yanomami com a natureza; 3. “Constitucionalidades Yanomami”; Conclusão; Referências

A EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA GARANTIA DE PREVALÊNCIA DOS DIREITOS TRANSISNDIVIDUAIS EM FACE DOS DANOS AO MEIO AMBIENTEAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.................................................................195

Introdução1. A ação civil pública como instrumento protetivo do meio ambiente – conceitos e antecedentes históricos2. A ação civil pública e o dano ambiental3. Legitimidade ativa e passiva da ação civil pública ambiental4. A competência jurisdicional na ação civil pública ambientalConclusãoReferências.

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃO AMBIENTALRaymundo Juliano FeitosaAlexandre Henrique Salema Ferreira.........................................................209

Introdução1. Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico

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1.1 Estado e Meio Ambiente2 Tributação e Indução Ambiental2.1 A natureza indutora das normas tributárias2.2 A tributação com fi nalidade de indução ambiental3 Análise Econômica do Direito e Tributação Ambiental3.1 O tributo como custo de transação3.2 A tributação com fi nalidades ambientaisConclusõesReferências Bibliográfi cas

A PÓS-MODERNIDADE E AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃOWalmir de Albuquerque Barbosa................................................................231

Introdução; A pós-modernidade; As ciências da Comunicação no contexto da modernidade;

Referências.

A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIAAline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................247

Introdução1. Biopirataria na Amazônia Brasileira1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria1.2 A importância da identifi cação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria1.3 Refl exões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira Considerações FinaisReferências

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ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE

Ozorio J. M. Fonseca*

Resumo: É feita uma avaliação de prob-lemas e questões ligadas ao acesso e uso da biodiversidade amazônica, incluindo nessa análise a problemática relacionada ao conhecimento tradicional associado que impede e/ou difi culta a utilização dos organismos autóctones e alóctones. O tra-balho discute o aproveitamento de espé-cies biológicas nativas na alimentação, construção civil, fabricação de móveis, artesanatos, etc., e inclui uma relação dos principais organismos utilizados na culinária regional, indicando sua origem geográfi ca. Adicionalmente foram inseri-das, no texto, indicações bibliográfi cas de inventários científi cos sobre as potenciali-dades agronômicas, fl orestais, industriais e biotecnológicas de espécies da fl ora, da fauna e de microorganismos amazônicos, ressaltando as restrições legais que difi cul-tam seus usos.

Palavras-chave: Biodiversidade; acesso e uso; Convenção da Diversidade Biológica; espécies úteis para o homem.

Abstract: It is an assessment of prob-lems and issues related to access and use of Amazonian biodiversity, including in this analysis the problem related to tradi-tional knowledge associated with prevent-ing and/or hinders the use of autochthones and exotics. The paper discusses the use of native species in food, construction, furni-ture, handicrafts, etc.. And includes a list of the main organisms used in regional cuisine, indicating geographical origin. Additionally were inserted in the text, bib-liographies of scientifi c surveys on the po-tential agronomic, forestry, industrial and biotechnology species of fl ora, fauna and microorganisms Amazon, noting the legal restrictions that hinder their use.

Key-words: Biodiversity, access and use; Convention on Biological Diversity; spe-cies useful to man.

* Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Univer-sidade do Estado do Amazonas e, Membro da Ordem Nacional do Mérito Científi co.

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O acesso e uso da biodiversidade é um dos temas mais polêmicos ligados à relação homem-natureza, pois além da extrema complexidade no âmbito das ciências naturais ele ainda tem uma indissociável ligação com o conhecimento tradicional associado que tem implicações jurídicas, sociais, políticas, fi losófi cas, ideológicas, etc.

As controvérsias ligadas aos saberes baseados na tradição tiveram sua importância reconhecida pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) que admite a soberania dos governos sobre seus recursos genéticos (artigo 3º) e os obriga a “respeitar, preservar e manter o conhecimento, as inovações e as práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais, relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica [...]” (artigo 8, letra “j”).

Os manuais de metodologia de pesquisa separam “conhecimento científi co” do “conhecimento tradicional” (popular) por considerarem que este último, por ter origem na relação do homem com seu meio, sem método e sem sistematização, tem suas bases assentadas em critérios refl exivos e valorativos sendo, por isso falível e inexato. Essa tipifi cação, contudo, não subtrai valor dos saberes construídos nas experiências práticas decorrentes dos costumes, das tradições e do uso do espaço, cujo domínio é difuso (Dantas, 2003) e cujos direitos de propriedade têm natureza coletiva e intergeracional (Oliveira, 2004). Além disso, como a cultura dos povos da fl oresta é formatada a partir da observação e da articulação lógica de idéias, o conhecimento resultante tem o mesmo nível de importância do conhecimento científi co (Dantas, op. cit.).

Para Jacinto (2006) essa contextualização impõe a necessidade de “abordar cientifi camente a dicotomia natureza e cultura, enfocando a dimensão da sua construção social em sistemas de classifi cação e de conhecimento, em historicidades e especialidades particulares, bem como em campos políticos e ideológicos”.

Com isso e por isso, a questão do acesso e uso da biodiversidade focalizada sob o prisma do conhecimento tradicional associado ao patrimônio natural, ganha enorme complexidade que é agravada pelas muitas defi nições teóricas e legais decorrentes das diferenças de posicionamentos fi losófi co, políticos e ideológicos.

Uma defi nição bem contextualizada de conhecimento tradicional foi escrita por Derani, (2002), para quem:

O conhecimento tradicional associado é conhecimento da natureza, oriundo da contraposição sujeito-objeto sem a mediação de instrumentos de medida e substâncias iso-ladas em códigos e fórmulas. É oriundo da vivência e da

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experiência construída num tempo que não é aceito pela máquina da efi ciência e da propriedade privada, mas cujos resultados podem vir a ser traduzidos em mercadoria gera-dora de grandes lucros quando tomados como recursos de produção mercantil.

A Medida Provisória 2.186 de 27/07/2001 (em tramitação no Congresso Nacional), que regulamenta o inciso II do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal e vários artigos da Convenção sobre a Diversidade Biológica, estabelece, em seu artigo 2º, que o acesso depende de autorização da União, fi cando a comercialização, o aproveitamento e a repartição de benefícios, submetidos aos termos estabelecidos pela própria MP.

Derani (2003), ao analisar essa Medida Provisóra, considera que a autorização de acesso não estabelece qualquer direito de propriedade sobre o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, e a lógica dessa refl exão deveria ser adotada para dirimir as inevitáveis pendengas administrativas e judiciais que decorrem do confronto entre o setor público (inefi ciente e defi ciente) e as organizações benefi ciárias dessas autorizações, normalmente dotadas de excelente estrutura operacional.

Uma controvérsia com peso mundial é o posicionamento da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) que considera a possibilidade da expressão conhecimentos tradicionais ser usada de modo fl exível para alcançar obras literárias, artísticas, ou científi cas baseadas na tradição. Essa possibilidade sinalizada pelo organismo internacional faz crescer a magnitude do problema porque na linguagem da OMPI, a expressão baseada na tradição signifi ca uma sempre renovada relação com o sistema de conhecimentos, criações, inovações e expressões culturais “que geralmente se transmitem de uma geração à outra e que, em geral, são consideradas como pertencentes a um povo em particular ou ao seu território, e que evoluem, constantemente, em função das trocas que se produzem em seu entorno” (grifei).

O trecho grifado na defi nição da OMPI infere que a agregação de novas informações advindas de realidades emersas, ou a incorporação de saberes não tradicionais produz um novo conhecimento livre de autorizações ofi ciais e de direitos de propriedade. Essa ameaça, entretanto, é contestada por Oliveira (2004), para quem a defi nição da OMPI não tem qualquer caráter formal nem precisão científi ca, não anulando, portanto, a titularidade dos direitos incidentes sobre conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos.

Uma complicação adicional ligada ao acesso e uso da biodiversidade, é a contradição inserida na Convenção sobre Diversidade Biológica que reconhece os direitos de propriedade intelectual de pessoas físicas e jurídicas, mas não

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reconhece os direitos intelectuais das comunidades. Essa questão também aparece na Constituição do Brasil de 1988 que incluiu alguns direitos coletivos de titularidade difusa (direito à bio e à sociodiversidade, p.ex.), mas não garante a possibilidade de patrimoniar esses direitos. E como a noção de propriedade estabelecida nos diplomas legais do Brasil e na Convenção sobre Diversidade Biológica está direcionada para os direitos individuais e de pessoas jurídicas, fi ca difícil, por enquanto, sua expansão para a esfera dos direitos coletivos.

Para debater e equacionar esse tema de alcance e implicações mundiais, em 2002, foi criado o Grupo dos Países Megadiversos , um importante conjunto de 17 Nações que detém cerca de 70% da biodiversidade do planeta, a quem se atribui a tutela de aproximadamente 22% dos recursos biológicos do mundo. Entre as fi nalidades do grupo fi gurava a discussão sobre o regime de repartição de benefícios resultantes do uso dos recursos genéticos, com o objetivo de encontrar uma solução que tivesse, ao menos, a aprovação majoritária dos países biologicamente ricos e economicamente pobres.

O dado curioso e contraditório das conclusões desse grupo é que as soluções encontradas foram encaminhadas para debate em Fóruns Internacionais, onde a grande força decisória pertence aos países biologicamente pobres e economicamente ricos.

Muitas Nações, entre elas o Brasil, têm discutido a elaboração de políticas públicas que obriguem o respeito aos direitos das comunidades tradicionais sobre o acesso e uso de recursos genéticos em seus territórios, e um dos princípios em discussão é o conhecimento prévio informado (CPI) que exige consulta às comunidades locais e indígenas para que elas, através de consentimento voluntário prévio (CVP) permitam à pessoas, instituições ou empresas o acesso aos recursos genéticos em seus territórios (Firestone, 2003).

Essa abordagem não está livre de controvérsias, pois segundo Kish (2004), a doutrina jurídica distingue o termo conhecimento prévio informado (CPI) de consentimento prévio fundamentado (CPF), tendo a Convenção sobre Diversidade Biológica adotado o CPF sob a perspectiva de que o consentimento foi fundado na informação dos riscos e benefícios (consentimento prévio informado - CPI) que podem ser o fundamento para o consentimento prévio justifi cado (CPJ). Como informação adicional deve ser dito que a MP 2186/2001 introduziu mais uma complexidade, ao criar a expressão anuência prévia (AP).

Na Amazônia existe uma grande contradição entre o tamanho da biodiversidade autóctone e o pequeno número de espécies utilizadas, sendo o exemplo mais emblemático, a utilização da fauna íctica, composta por mais de 1.500 espécies conhecidas das quais, entre 1979 e 1983 apenas 18 respondiam por 90% das 300.000 toneladas comercializadas por ano, em toda a região

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(Batista et al., 2000). Os mesmos autores relataram também que, em toda a bacia, apenas 43 espécies ou grupos de espécies fazem parte da dieta regional, embora a preferência recaia apenas sobre 10 espécies , com nítida liderança do tambaqui (Colossoma macropomum).

Pereira et al. (1991) analisando as estatísticas de pesca da década de 1980, concluíram que das 18 espécies que historicamente respondem por 90% das capturas na Amazônia, apenas 4 representavam mais de 60% do total. Nessa mesma direção situam-se os dados coligidos por Val e Almeida-Val (1995) revelando que apenas 15 espécies têm importância realmente signifi cativa no comércio regional.

No Médio Amazonas, região de Santarém (PA), Ferreira, Zuanon e Santos (1998) identifi caram 131 diferentes espécies biológicas, registrando que a identifi cação pelo nome vulgar é bem menor porque a população local dá o mesmo nome popular à organismos taxonomicamente diferentes. Os dois exemplos mais signifi cativos revelados pelos autores são a “branquinha”, nome dado por pescadores e consumidores a oito espécies diferentes e o “aracu” que agrupa nove espécies distintas.

Santos, Ferreira e Zuanon (2006) em um estudo realizado entre 1998 e 1999 nos mercados e feiras livres de Manaus, registraram 53 tipos de denominação popular alguns dos quais têm várias espécies taxonômicas diferentes, sendo os melhores exemplos o “aracu” (dez espécies), o pacu (seis espécies), a piranha (cinco espécies) e o tucunaré (quatro espécies).

Apesar do número reduzido de espécies, da confusão taxonômica e da falta de informações estatísticas mais robustas sobre o comércio no hinterland, não há dúvida de que o peixe é a mais importante fonte de proteína animal para a população amazonense que, em 1978 consumia quase dez vezes mais peixe do que a média nacional (Giugliano et al, 1978). Atualmente o consumo médio estimado para os ribeirinhos da Amazônia é de 400 gramas por dia (Ferreira, Santos e Zuanon (op.cit.) enquanto para Itatocatiara e Manaus (AM) o consumo é de 500 e 360g/dia, respectivamente, de acordo com os dados de Cerdeira, Rufi no e Isaac (1997).

Embora a comercialização de pescado, na Amazônia, tenha atingido em alguns anos, 300.000 toneladas (Pereira et al.,1991), Bailey e Petrere Jr, (1989) estimaram que a produção máxima sustentável, para toda a bacia não ultrapassa 200.000 toneladas/ano sinalizando que exceder esse limite signifi ca produzir uma sobrepressão nos estoques naturais cuja diminuição vem sendo tentativamente recompensada pelo incremento da piscicultura, uma atividade que pode atender, de forma sustentável, o comércio interno e um possível aumento das exportações (Araújo Lima e Goulding, 1998).

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A criação de peixes confi nados para compensar a pressão sobre os estoques é a solução mais viável e inteligente. Historicamente, essa técnica foi introduzida no Brasil pelos holandeses no século 17, sofreu longos períodos de interrupção, mas hoje é praticada em todo o Brasil que ocupa o 19º lugar no ranking dos países aqüicultores e o 30º lugar na produção pesqueira.

Na Região Norte o cultivo de peixes teve início com os trabalhos do INPA, entre 1970 e 1980, havendo hoje inúmeros criadores espalhados por toda a região, cultivando principalmente tambaqui (Colossoma macropomum), tucunaré (Cichla ocellaris), matrinchã (Brycon cephalus e Brycon lundi), pirarucu (Arapaima gigas), pacu (Myellus spp.), pirapitinga (Piaractus brachypomus) e jaraqui (Samaprochilodus spp.), segundo Hilsdorg e Moreira (2004). Também estão incluídos na aqüicultura da região, outros animais aquáticos como quelônios e jacarés cuja comercialização, a partir de criadouros artifi ciais, tem autorização do órgão ambiental brasileiro.

Uma relevante vantagem da piscicultura foi indicada por Camargo e Surgik (2004) que ressaltam o fato de que, em sistemas confi nados, os estoques podem ser medidos com precisão o que facilita a implantação de medidas de manejo, ao contrário das populações móveis e livres cujo controle e gerenciamento é difi cultado pela mobilidade dos organismos.

Apesar da intrínseca associação entre a natureza e a cosmologia regional, são poucas as espécies de peixes que incorporam curiosidades especiais adicionadas às lendas e à cultura dos povos tradicionais. Entre essas singularidades, podem ser destacados os peixes reimosos, a agressividade das piranhas (Serrasalmus spp.), o choque do poraquê ou peixe elétrico (Electrophorus electricus), as dimensões do pirarucu (Arapaima gigas) e a beleza dos peixes ornamentais como acará (Pterophyllum scalare), cardinal (Paracheirodon axelrodi), rosacéu (Hyphessobrycon sp.) e lápis (Nannostomus sp.).

Uma crendice que associava o consumo de peixes de couro à tansmissão da hanseníase (lepra) chegou a ser difundida até por pessoas com elevado grau de responsabilidade cívica, como o deputado provincial Aprígio Martins de Menezes que disse “ter ouvido de pessoas desta província que atribuem a morféia à alimentação continuada dos peixes de pelle que nella abundam”, completando sua declaração imputando à “pirahyba, ao peixe-boi, à pirarara e ao surubim” a condição de vetores da lepra (Magalhães, 1882).

Referindo-se especifi camente à piraíba, o escritor Antonio Monteiro Baena (apud Magalhães, 1882), em seu livro “Ensaio Corographico”, publicado em 1839 escreveu:

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Comtudo nem este nem outros são escamosos como elle; ninguem que tenha regimen dietético se atreve a comel-os assiduamente, porque sabe que todos fazem espessos os humores, obstam a transpiração e causam a elephancia ou asquerosas e comedoras crostas na pelle.

Os outros grupos animais como aves, répteis e mamíferos nativos têm um aproveitamento muito reduzido, limitando-se à captura (proibida) de algumas poucas espécies. No grupo das aves, o principal aproveitamento é o comércio ilegal de espécies coloridas como arara azul (Ara hyacinthe ou Anodorhynchus hyacinthinus), arara vermelha (Ara chloroptera), além da garça branca (Casmerodius alba) e garça cinza (Ardea cocoi) cujas penas são usadas para confecção de adornos. Outras aves como periquitos (Brotogeris versicolurus ou Tirica chiriri), papagaios (Amazona aestiva) e tucanos (Ramphastos spp.) além de espécies canoras e ornamentais como bico de lacre (Estrilda astrild) e curió (Oryzoborus angolensis), são criadas como animais de estimação.

As principais espécies de aves nativas e exóticas, silvestres e domésticas incluídas na dieta do homem do hinterland, são: mutum (Crax fasciolata), jacamim (Psophila viridis), inhambu relógio (Crypturus strigulosus), galinha d’Angola (Numida meleagris) e, mais comumente, galinha (Gallus gallus domesticus), pato (Neophron percnopterus e Carina moschata), peru (Meleagris gallopavo e Alectura lathani), das quais apenas o mutum, o jacamim e a inhambu são nativas.

Alguns répteis como jabuti (Geochelone carbonaria), tartaruga (Podocnemis expansa), tracajás (P. unifi lis), cabeçudo (P. erithrocephala) e pitiú (P. enterocephala) têm uso na alimentação da Amazônia Ocidental, enquanto o muçuã (Kinostermon scorpioides) e os jacarés, especialmente as espécies (Melanosuchus niger e Caiman latirostris) estão incluídas na dieta dos habitantes do leste da Amazônia.

O uso mais intenso de mamíferos é para suprimento alimentar e venda de couros que têm alto valor comercial. Os alvos preferidos para uso culinário são a anta (Tapirus terrestris), capivara (Hydrochoerus hidrochoeris), tatu canastra (Priodontes tridactylus), tatu galinha (Dasypus novemcinctus), veado mateiro (Mazama americana), paca (Agouti paca). caititu (Tayassu tajacu), queixada (Tayassu pecari) e cutia (Dasyprocta sp.). A caça direcionada para o comércio das peles inclui, principalmente, a onça, (Panthera onca), o maracajá (Felis wiedii ou F. pardalis) e a jaguatirica (Leopardus pardalis) cujas suas peles são muito valorizadas no mercado.

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Apesar de constituir crime contra o meio ambiente (artigo 29º da Lei 9.605 de 12/02/1998) todas as casas e vilas do “beiradão” mantêm animais silvestres em cativeiro, tanto na condição de bichos domesticados (papagaios, araras, periquitos, pássaros canoros, macacos, jacamins, porcos do mato, cutias, pacas, jabutis, etc.), como em cativeiro para abate.

Entre os invertebrados, o único grupo historicamente usado na Amazônia é o das abelhas, cujo mel serve às populações nativas e do interior, mais com fi nalidades terapêuticas do que nutricionais. No passado, congregações religiosas de origem européia produziam mel de abelhas nativas com a fi nalidade de “fabricar” xaropes que eram fornecidos para a população de baixa renda, mas a partir de 1976 o biólogo angolano, - Virgílio Portugal de Araújo - trazido para o INPA pelo Diretor da época - Warwick Estevam Kerr - deu início ao processo de criação racional de abelhas nativas e exóticas com orientação científi ca.

Atualmente, a criação de abelhas para produção de mel e derivados recebe incentivos governamentais em todos os Estados da Região Norte, onde essa atividade deveria priorizar as espécies nativas sem ferrão como Jurupá (Melípona compressipes), Uruçú (M. rufi ventris), Uruçú boca de renda (M. seminigra), Jandaíra (M. rufi ventris) e Jandaira amarela (M. crinita).

Souza et al. (2004) estudaram as espécies amazônicas sem ferrão e relataram que o valor nutritivo do mel atinge 305,3 ± 2,4 kcal/100 gramas e o pólen 309,8 ± 0,8 kcal/100g, com 15,7 % de proteína, uma informação nutricional que deveria priorizar a pesquisa tanto em aumento da produção, como em tecnologia para garantir a qualidade sanitária dos produtos. Em mercados e feiras da Amazônia o mel é vendido em garrafas reaproveitadas de refrigerantes ou bebidas alcoólicas, sem qualquer garantia de pureza ou de qualidade sanitária.

Para aumentar a produção, a maioria dos criadores introduziu espécies exóticas como a italiana (Apis mellifera ligustica), a africana (Apis mellifera scutellata) e seus híbridos.

Além da importância na produção direta de alimentos, as abelhas ainda têm forte infl uência na economia, como agentes polinizadores. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 2006, foram produzidas 70 mil toneladas de mel e a ação polinizadora das abelhas foi responsável por 33% dos alimentos produzidos o que equivale à US$ 14,6 bilhões/ano (Ambiente, 2007).

O grupo dos vegetais, apesar dos obstáculos legais até para a retirada de amostras para estudos científi cos é o que detém a maior quantidade de informações sobre possibilidades de uso sendo importante ressaltar que quase todas as pesquisas de longo prazo têm sido fi nanciadas por recursos externos, já que as verbas do orçamento nacional, além dos contingenciamentos, não têm

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liberação fi nanceira assegurada.Vários autores têm indicado formas de usar os organismos amazônicos,

entre eles Siqueira (1996); Noda, Souza e Fonseca (1997); Fonseca e Ferreira (1998); Mma (1998); Ferreira e Oliveira (1999); Clay, Sampaio e Clement (1999 a); Revilla (2001 e 2002); Abrantes (2002), Clements (2008).

Clay, Sampaio e Clement (1999 op.cit.), por exemplo, com recursos do PPG-7 e apoio do SEBRAE-AM, publicaram um trabalho bastante exaustivo sobre várias espécies, demonstrando suas possibilidades de utilização descrevendo, de forma minuciosa, as partes das plantas que podem ser aproveitadas, os tipos de uso, o armazenamento, os mercados, etc.

Nesse trabalho, trinta e três espécies foram separadas pelo tipo de uso em: “Frutos amidosos ou oleosos”; “Frutos suculentos”; “Óleo-resinas e látex”; “Óleos industriais”; “Óleos essenciais” e “Materiais industriais e para artesanato”. Além da descrição botânica, fenológica e silvicultural, também são indicadas as possibilidades econômicas detalhadas em planilhas, onde fi guram as principais etapas de cultivo, cada uma delas com os custos econômicos correspondentes, com previsão de investimento desde a preparação do solo para plantio, até a disponibilização do produto no mercado, com lucro estimado.

Clements (2008) lembra que os povos indígenas domesticaram cerca de 50 espécies frutíferas na Amazônia embora tenham feito uso de um número desconhecido delas, mas ressalta que com exceção do açaí (Euterpe spp.), guaraná (Paulinia cupana), cacau (Theobroma cacao) e cupuaçu (Theobroma grandifolia), as demais estão a espera de mercado.

Esse acervo de informações sobre uso da biodiversidade amazônica encontra limitações de uso na esfera do conhecimento tradicional, na falta de assistência técnica competente, na ausência de transporte para escoamento da produção e na inexistência de preços mínimos, existindo ainda, para o pequeno produtor, a questão da titularidade da terra que é um documento importante para conseguir fi nanciamento bancário.

Outro promissor uso da biota vegetal é formado por centenas de fragrâncias produzidas por plantas aromáticas embora apenas três óleos essenciais sejam aproveitados pela indústria de perfumaria sendo o de maior representatividade o linalol extraído, do pau-rosa (Aniba roseadora) usado como fi xador do perfume Chanel nº 5. O Mercado Ver-o-Peso, em Belém, concentra o comércio mais intenso e diversifi cado dessas espécies que produzem essências aromáticas, usadas pela população na fabricação de perfumes caseiros, chás, xaropes, infusões, “poções mágicas”, banhos de cheiro, e em rituais afro-brasileiros (Santos, 2008).

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O uso das plantas amazônicas como medicamentos é bastante difundido tendo Revilla (2002) listado mais de 5.000 espécies que a cultura popular acredita ter algum tipo de ação curativa, embora seja evidente que essa enorme quantidade de indicações constitui um exagero. Se a terapêutica da fl ora fosse assim tão efi ciente, os povos da fl oresta teriam o mesmo padrão de saúde dos habitantes dos países desenvolvidos, podendo atingir esse patamar apenas com o mascar de folhas e a ingestão de chás e infusões.

Isso não signifi ca que as plantas não contenham propriedades curativas, havendo inúmeros trabalhos científi cos relatando a presença de substâncias bioativas com alguma atividade potencial na cura de patologias. Alguns exemplos de princípios ativos de espécies amazônicas comprovadamente efi cazes são: cocaína (analgésico local), extraído de Erythroxylum coca, usado pelas populações tradicionais como inibidor do apetite; emetina (amebicida e emético) extraído de ipecacuanha (Cephalus ipecacuanha); claucarubina (amebicida) extraído de marupá (Simaruba glauca); quinino (antimalárico e antipirético) extraído de quina (Chichona ledgeriana); rotenona (piscida) extraído do timbó (Lonchocarpus nicou); curare, bloqueador de receptores de acetilcolina e relaxante de músculo liso, extraído de várias espécies; andiroba (Carapa guianensis) de uso cosmético e medicinal; crotão (tipo de cróton) com princípios ativos contra diarréias e herpes genital; jaborandi (Tabebuia repetiginosa); ayahuasca (Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis) usados nos rituais do Santo Daime; unha de gato (Uncaria tormentosa) usada na dengue; bibiri (Ocotea rodiei) usado como anticoncepcional; veneno da jararaca (Bothrops jararaca) usado no controle da hipertensão; sapo tricolor (Epipedobates tricolor) produtor de uma toxina cerca de 200 vezes mais potente que a morfi na. Além desses mundialmente (re)conhecidos existem muitos outros organismos usados em infusões, chás, xaropes, etc., como fi toterápicos ou medicamentos pelas populações tradicionais embora não tenham efi cácia comprovada por estudos científi cos.

O uso das espécies amazônicas só não é maior por causa das restrições ao acesso o que, todavia, não impede a retirada ilegal desses organismos aos quais está inalienavelmente associado o conhecimento tradicional.

Esse uso modesto da biodiversidade da Amazônia se estende para a parte nutricional, com poucas espécies participando da alimentação e da economia regional, embora muitas delas sofram enorme pressão extrativista clandestina. Um exemplo emblemático desse cenário é a dieta regional constituída, basicamente, por espécies exóticas introduzidas no tempo da colonização ou biopirateadas nos tempos modernos. O cardápio básico diário de todos os extratos sociais na capital e no interior é formado por alimentos não amazônicos, a maioria sequer

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de origem brasileira (Quadro 1).Os microorganismos que são extremamente abundantes nos ecossistemas

amazônicos têm seu uso bastante reduzido pelas populações nativas e tradicionais. A utilização indígena mais conhecida é para fabricação de bebidas alcoólicas a partir da fermentação de massas de mandioca, milho e pupunha, cujo produto fi nal, o cauim, - e suas variações (caiçuma, pajuaru, caxiri, tarobá, etc.) - eram (são) utilizadas nas comemorações e rituais.

Entre os poucos trabalhos científi cos sobre o uso de fungos pelas populações indígenas fi gura o trabalho de Prance (1972) que relata a utilização de quatro espécies da família Polyporaceae na alimentação dos Ianomâmis e Waikás, na Serra do Surucucu e no rio Uraricoera, em Roraima, cujos nomes na língua indígena, seguidos da determinação taxonômica são indicados como:

Hadohodokuk (Neoclitocybe bissiseda);Shikimamok (Polyporus dermoporus = Favolus brasiliensis;Adamasik (Polyporus sp. cf. Favolus tesselaris ou Fexazona subcaperatta);Mafcomcuk (Polyporus stipitarius).

Ainda sobre fungos, Batista (2007) descreveu o encontro de vários exemplares de um grande cogumelo, de até 60 kg, durante a abertura da rodovia Manaus-Itacoatiara (AM 010), que a população local acreditava ser um “pão de índio”. Esse fungo foi identifi cado pelo micólogo Augusto Chaves Batista como Polyporus sapupema e a análise química realizada por Maravalhas (1965) determinou 49% de umidade, 0,18% de cinzas, 0,175% de substâncias nitrogenadas e 50,48 % de polissacarídeos.

Um importante exemplo de uso da biodiversidade microorgânica está associado à descoberta, em 1976, de uma substância produzida pela bactéria Chomobacterium violaceum, cuja alta freqüência, no Lago Cristalino (baixo rio Negro), foi destacada por Fonseca (1984) e cuja ocorrência e distribuição na Amazônia tinha sido registrada, anteriormente, por Guarim (1979). Essa substância – violaceina – tem atividade antibiótica, antivirótica, antitripanosômica e antitumoral, estando com o pedido de patente feito pela Agência de Inovação (Inova) da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (www.unicamp.br).

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Quadro 1. Principais alimentos usados na Amazônia e suas origens geográfi cas.

ALIMENTO ORIGEM ALIMENTO ORIGEM ALIMENTO ORIGEM

Legumes, verduras e temperos Grãos e óleos Frutas e bebidas

Alface

Sul da Europa e Oeste da Ásia

Algodão

Índia

Abacate

México e América Central

Alho Norte da Europa

Arroz (*) China, Índia e Japão

Abiu Peru cis andino

Azeitona

Desertos do Irã

Aveia

Norte de região temperada

Araticum

Antilhas

Baunilha

México e América Central

Centeio

Idem Ata (Pinha)

Antilhas

Beterraba Europa e Mediterrâneo

Cevada Idem Banana Sudeste da Ásia

Batata doce

América Central e Polinésia

Coco

Região Indo-Pacífica – Malásia

Biribá

Antilhas

Bertalha

Ásia Tropical – Índia - Indonésia

Dendê

África Central

Café

Montanhas da Etiópia

Canela Índia e Ceilão Ervilha

Oeste da Ásia

Cana de açúcar

China

Cará

Oeste da África, América Central e Ásia

Feijão (*)

Ásia, América, Peru, Região temperada, África Central

Carambola

Ásia Tropical (Índia à Indonésia)

Cebola Sul da Ásia e Mediterrâneo

Gergelim Ásia Fruta pão Ásia – Ilhas Moluscas

Cenoura Região temperada

Girassol América do Norte

Graviola Antilhas

Chá preto China Grão de bico Oriente Médio Jaca Índia Chicória Mediterrâneo Lentilha Sudeste da

Ásia Jambo Arquipélago

Malaio Cravo da Índia

Ilhas Moluscas Linhaça Ásia Laranja Sul da Ásia

Espinafre Região temperada

Mamona África Mamão México e Antilhas

Maxixe África tropical Milho México Manga Trópicos asiáticos

Nabo Região temperada

Oliveira Desertos do Irã

Mangarataia (Gengibre)

Índia e Indonésia

Pepino África subtropical

Soja China Melão África

Quiabo África Sorgo África Sapotilha México até Costa Rica

Taioba Ásia Trigo Abissínia Tamarindo África Tomate

Peru e Equador

Trigo

Oriente Médio, Ásia Central e Abissínia

Taperebá ou Cajá

Antilhas

A carne animal usada na Amazônia é, basicamente, de gado, búfalo, galinha, pato, porco, eventualmente caprinos e ovinos, todas elas espécies exóticas.

Fonte: Várias.(*) São usadas várias espécies, todas exóticas.

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Uma das principais causas inibidoras do acesso e uso da biodiversidade é a associação entre fl ora e saúde (leia-se indústria farmacêutica), uma contingência que insere questões extremamente complicadas ligadas às ideologias políticas, ao patriotismo inculto e ao nacionalismo ufanista, fatores que atrasam ou difi cultam o aproveitamento da biota. Entre os males dessa associação está o direcionamento para o uso único da biodiversidade, o que constitui uma minimização medíocre do potencial da biota. Várias outras utilidades, economicamente viáveis podem ser identifi cadas, como produção de corantes, pesticidas, fi bras, biopolímeros, cosméticos, gomas, látex, óleos comestíveis, óleos essenciais, graxas, gorduras, alimentos, óleos para produção de energia, ração para animais, fertilizantes, microorganismos solubilizadores de fosfato e fi xadores de nitrogênio, etc.

O apelo emocional relacionado aos enormes lucros da indústria farmacêutica inibe o acesso e uso da biodiversidade, um posicionamento que obstaculiza o avanço da ciência que, felizmente, foi a primeira atividade humana globalizada e que fi ca a mercê do patrulhamento ideológico.

Esse rigor de proteção, entretanto, não tem correspondência na priorização de fi nanciamento de pesquisas voltadas para o cultivo e melhoramento genético dos organismos amazônicos. Todo o esforço do poder público é direcionado para o aprimoramento de cultivares exóticas , vegetais (óleos, grãos, legumes, verduras, frutas, temperos e sobremesas) e animais (bovinos, bubalinos, caprinos, ovinos, suínos, galináceos, eqüinos, etc.). Com isso, e por isso, a agropecuária brasileira, que dá enormes lucros ao país, é toda alicerçada em espécies exóticas, trazidas para cá sem autorização dos povos que habitam as regiões onde elas tiveram origem. Essa atividade bucaneira sequer é comentada pelo ambientalismo ufanista e inculto que jamais sinalizou, sequer, a possibilidade de o Brasil remunerar o conhecimento tradicional dos povos dos biomas de origem dos organismos (plantas e animais) que aqui enchem os cofres do governo, dos Bancos, dos donos das terras. Vale lembrar ainda que a Convenção sobre Diversidade Biológica, recepcionada pela legislação brasileira (Decreto Legislativo nº 2 de 03/02/1994) em seu artigo 2º, reconhece a existência de País de origem dos recursos genéticos e de País provedor de recursos genéticos. (ver capítulo sobre Biopirataria).

A pesquisa de melhoramento e cultivo de espécies da fl ora e da fauna amazônicas nunca foi prioridade governamental, embora alguns pesquisadores tenham seguido esse caminho, abandonado aqui e ali, por falta de fi nanciamento. Na área empresarial, surge, aqui e ali algum investimento no plantio de guaraná, cupuaçu, pupunha e, mais recentemente, de cacau orgânico, no Município de Coari, no médio Solimões, com produção de 120 toneladas em 2007.

Resta ainda refl etir sobre o uso das madeiras de lei, cujo corte também é

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proibido ou restrito fazendo com que as populações nativas prefi ram cortá-las e vendê-las para serrarias clandestinas, do que usá-las na construção de suas moradias que são erguidas com madeiras de qualidade inferior. Entre as espécies utilizadas na construção de residências fi gura a paxiúba (Socratea exorrhiza) uma palmeira de alta durabilidade cujo tronco cilíndrico não permite qualquer regularidade, seja no assoalho, seja no fechamento das frestas, o que torna a casa do caboclo um abrigo com elevada durabilidade, mas sem conforto e proteção adequada contra insetos vetores de doenças e morcegos hematófagos.

É incontestável que o acesso e uso adequados da biodiversidade amazônica dependem de ciência, tecnologia e inovação os únicos mecanismos viabilizadores da fabricação e comercialização de bioprodutos com alto valor agregado, retirando da biodiversidade amazônica a inaceitável condição de ser, para o caboclo, uma autêntica bioadversidade.

Não é exagero afi rmar que os povos da fl oresta vivem hoje, neste inicio do século 21, em situação similar à dos árabes antes da revolução industrial. Aqueles povos tinham condições de vida muito precária embora morassem sobre imensas jazidas de um recurso natural mineral que tinha pouca ou nenhuma utilidade. Com a descoberta do craqueamento do petróleo pela ciência e o desenvolvimento do motor de explosão pela tecnologia, aquele recurso passou a ser o mais importante propulsor da economia mundial e os árabes alcançaram elevados níveis de riqueza. Na Amazônia de hoje a situação é similar porque seus habitantes vivem rodeados por um enorme acervo de recursos naturais de pouca ou nenhuma utilidade, simplesmente por faltar ciência, tecnologia e inovação que permitam o seu aproveitamento e sua transformação em riqueza e bem estar.

Essa comparação insere, obrigatoriamente, a problemática relacionada ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio natural e confi gura um enorme e sólido argumento a favor da formatação de um Projeto de Estado para a Amazônia, balizado e sinalizado pela interdisciplinaridade, com sua rede radicular enterrada no conhecimento científi co e sua copa espalhada pelo patrimônio cultural.

Um projeto com essas características, no entanto, como adverte (Leff, 2001) precisa decodifi car os saberes das culturas tradicionais não permitindo, entretanto, que isso signifi que uma apropriação capitalista da riqueza genética. A elaboração de um Projeto de Estado para a Amazônia também deve incluir mecanismos nacionais e internacionais que proíbam o patenteamento de bioprodutos que não tenham sua origem perfeitamente transparente, evitando assim que o setor industrial e mercantil se apodere tanto dos saberes sobre a vida como daqueles incorporados à vida.

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Artigo recebido em: maio/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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PROTEÇÃO AMBIENTAL YANOMAMI: convergências cosmológicas, culturais e de

sustentabilidade com suporte constitucional no Estado Brasileiro

Edson Damas da Silveira*

Sumário: Introdução; 1. Relação da Civilização Ocidental com a natureza; 2. Relação do povo Yanomami com a natureza; 3. “Constitucionalidades Yanomami”; Conclusão; Referências

Resumo: A proteção ambiental Yanomami possui uma relação direta entre as suas: cosmologia, cultura e sustentabilidade, a qual possui um suporte constitucional no Estado Brasileiro. Parte-se da idéia da desmistifi cação dos indígenas como “ecologistas natos”, quando há casos em que alguns dos povos indígenas cometem crimes ambientais. Neste sentido, há uma mudança de lógica sistêmica, quando os Yanomamis pensam e tem um modelo de vida diferencial da perspectiva ocidental, desse modo, que efetivam melhor o princípio fundamental do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Diante deste panorama, as terras indígenas são tão vulneráveis como qualquer outra área de proteção ambiental, sendo que, no texto constitucional, especialmente no título VIII, capítulo VI, somente se autoriza a exploração ambiental nos limites criteriosos da sustentabilidade, de conhecimento e prática dos Yanomamis.

Palavras-Chave: proteção ambiental Yanomami – cosmologia – Sustentabi-lidade.

Abstract: The Environmental Protection Yanomami has a direct relationship between their: cosmology, culture and sustainability, which has a constitutional support in the Brazilian state. It starts with the idea of demystifying the natives as "ecologistas natos," when there are cases where some indigenous people committing environmental crimes. In this sense, there is a change in systemic logic, where the Yanomami people think and has a model of living differential of Western perspective, so that better actualize the fundamental principle of ecologically balanced environment. Given this background, indigenous lands are as vulnerable as any other area of environmental protection, and, in the constitutional text, especially in Title VIII, Chapter VI, only if authorization to operate within the limits careful environmental sustainability, knowledge and practice of Yanomami.

Key-Words: environmental protection Yanomami - cosmology - sustainability.

* Procurador de Justiça em Roraima, Especialista em Desenvolvimento Regional Sustentável, Mestre e Doutor em Direito Econômico e Socioambiental. Professor do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.

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INTRODUÇÃO

Tradicionalmente difunde-se a idéia de que os povos indígenas vivem e sempre conviveram em perfeita harmonia com a natureza, protegendo-a contra processos de extração e devastação indiscriminados, sendo comumente lembrados como “ecologistas natos” e, também por isso, merecendo o nosso respeito e votos de merecidos agradecimentos.

Mas o tema encerra certo desconforto entre os especialistas da causa indígena quando, por exemplo, tem-se notícia de que os índios Tembé do Pará acabaram fl agrados comercializando madeira cortada indiscriminadamente do seu território1 ou, de outro giro, quando se sabe que em pleno Estado de Roraima grande parte dos focos de incêndio são promovidos pelas diversas etnias indígenas, justamente em razão da prática ancestral de queimadas na mata para preparação da terra ao cultivo agrícola2.

Diante dessa problemática, não se pode então perder de vista que a ação antrópica incidente sobre a natureza deixa raízes com o surgimento do próprio homem no ambiente terrestre, ora com maior, ora com menor sacrifício dos recursos naturais.

Ademais, é do próprio funcionamento da natureza – onde o homem se encontra inserido e dentro da sua mais atualizada concepção, qual seja, de uma lógica sistêmica – que os organismos vivos se relacionam entre si numa dinâmica autofágica e de constante mutação, onde se vislumbram processos predatórios que nem sempre se equilibram, uma vez que muitas espécies são extintas para que outras sobrevivam ou mesmo venham a surgir dentro do mesmo bioma.

Por terem se destacado dos outros animais pela sua inteligência e espetacular habilidade para se adaptarem aos vários ambientes terrestres, é

1 Divulgado no jornal “Folha de Boa Vista”, edição 5299, de 28 de dezembro de 2007, às fl s. 3b e com o título “Funcionários da FUNAI denunciam ameaças de índios que extraíam madeira ilegalmente”.2 Bruce Albert, falando dos seus pares, explica que “muitos antropólogos que trabalham na Amazônia mostraram, ao longo da última década, um desconforto perante o alastramento da ideologia que representa as sociedades indígenas da Amazônia como populações em perfeita continuidade com seu meio ambiente e cujos membros, ecologistas espontâneos, devem ser preservados por serem detentores de saberes naturais fora do comum”. “O ouro canibal e a queda do céu - uma crítica xamântica da economia política da natureza (Yanomami)”. Pacifi cando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. ALBERT, B.; RAMOS, R. (orgs.). São Paulo: UNESP: Imprensa Ofi cial do Estado, 2002, p. 256.

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que alguns seres humanos crêem na absoluta submissão do meio ambiente aos seus particulares e inconfessáveis interesses. E me parece que o diferencial do nosso comportamento com os dos povos indígenas, que também se servem das fl orestas (muitas vezes desordenadamente), reside exatamente no modo como encaramos a natureza e a destinação que demos a ela, como se fosse um “ser estranho”, “domesticável” e “irredutível”.

Portanto, a discussão antes de passar pelo foco da integração ou não com o meio ambiente, deve inicialmente ser pautada pela recapitulação das práticas sociais de ambas as sociedades (índias e não-índias), tendo sempre presente o lapidar ensino de Isabelle Vidal Giannini:

[...] não podemos dizer que as sociedades indígenas são naturalmente integradas à natureza, pois a prática social da natureza se articula sobre a idéia que uma dada sociedade se faz de si própria, sobre a idéia que ela se faz do ambiente que a circunda e sobre a idéia que ela se faz de sua interven-ção sobre o meio ambiente3.

Desse modo, e para não incorrermos no pecado da injusta generalização, lembramos que se registra no Brasil mais de 730 mil pessoas que se auto-identifi cam genericamente como “índios”4, divididos de norte a sul do país em aproximadamente 227 povos5 e que falam 177 línguas diferentes6.

3 Os índios e suas relações com a natureza. Índios no Brasil. GRUPIONI, L. D. B. (org.). São Paulo: Global, 2005, p. 145.4 Esses números foram colhidos no último censo promovido pelo IBGE (2000), lembrando que não há no país um censo específi co e adaptado à realidade dos povos indígenas. 5 Levanamento realizadoem julho de 2007 pelo Instituto Socioambiental e que consta do Almanaque Brasil Socioambiental: uma nova perspectiva para entender a situação do Brasil e a nossa contribuição para a crise planetária. São Paulo: ISA, 2007, p. 226. 6 Resultado do levantamento feito por Bruna Franchetto junto ao acervo do Setor de Lingüística do Museu Nacional, dos primeiros cadastramentos de pesquisadores (ANPOLL e UFGO) e de produções acadêmicas (UFRJ, UNICAMP, UFSC), devidamente perfi lhado no trabalho intitulado “O conhecimento científi co das línguas indígenas da Amazônia do Brasil”, publicado na obra organizada por F. Queixalós e O. Renault-Lescure, com o título de As línguas amazônicas hoje. São Paulo: IRD: ISA: MCT/CNPq, 2000, p. 171.

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Essa imensa diversidade social, temperada com costumes e maneiras específi cas de se relacionarem com a natureza, nos conduziu a eleger o povo yanomami7 como referencial de análise neste brevíssimo ensaio.

Considerado um dos povos mais primitivos do planeta, autênticos “sobreviventes” do processo excludente da modernidade, “os yanomami formam uma sociedade de caçadores-agricultores da fl oresta tropical do Norte da Amazônia cujo contato com a sociedade nacional é, na maior parte do seu território, relativamente recente. Seu território cobre, aproximadamente, 192.000 km2., situados em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela na região do interfl úvio Orinoco – Amazonas (afl uentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro). Constituem um conjunto cultural e lingüístico composto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas da mesma família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). A população total dos Yanomami, no Brasil e na Venezuela, é de hoje estimada em cerca de 26.000 pessoas”8.

Somente no Brasil, e segundo o senso da FUNASA datado de 2005, registrou-se uma população yanomami aproximada de 12.500 pessoas, divididas em 188 comunidades, distribuídas num território de 9.664.980 ha.9 e que compreende parte dos municípios roraimenses de Alto Alegre, Amajari, Caracaraí, Iracema e Mucajaí; bem como das edilidades amazonenses de Barcelos, Santa Izabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira10.

Em face dessas peculiaridades, reforçada pela destacada e mundialmente conhecida luta do povo yanomami em defesa da fl oresta – mormente contra a invasão de milhares de garimpeiros –, é que resolvemos empreender esforços para compreender a dinâmica de interação daqueles homens com o meio-ambiente sob uma perspectiva cosmológica e cultural.

Dito isso, recapitularemos a seguir os passos dados pela atual civilização ocidental rumo ao antropocentrismo falho para, mais adiante, nos fi xarmos num quadro comparativo e juridicamente relevante à nossa realidade ambiental.

7 O etnônimo “yanomami” foi produzido pelos antropólogos a partir da palavra “yanõ-mami” que, na língua yanomami ocidental, signifi ca “seres humanos”, opondo-se às categorias dos animais de caça, dos seres sobrenaturais e dos inimigos, estrangeiros ou “brancos”. Http://www.proyanomami.org,br., acessado em 10/12/2007.8 ALBERT, B. “Os Yanomami e sua terra”. Http://www.proyanomami.org.br, acessado em 10/12/2007. 9 Homologado pelo então Presidente Fernando Collor, em 25 de maio de 1992.10 RICARDO, B.; RICARDO, F. (ed. gerais). Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo: ISA, 2006, p. 335.

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1. RELAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL COM A NATUREZA

Não excede recordar que nos primórdios da civilização ocidental houve um tempo em que os homens se viam como mais um dos elementos integrantes da natureza, em posição de inferioridade e com o pensamento todo centrado na compreensão da physis.

Trata-se do naturalismo antigo, período em que os gregos originários alimentavam uma concepção cosmo-ontológica, somente considerando os aspectos da natureza física, ou seja, o mundo do “não eu”.

A seu turno, Tales de Mileto (séc. VI a.c.) – que previu um eclipse lunar no ano 585 a.c., bem como trouxe primeiro uma explicação racional para as marés do Nilo – defendia a tese de que a origem de tudo (arché) estava no elemento “água”. Percebia também uma espécie de “alma” em todas as coisas da natureza que, por ser imortal, justifi cava o “princípio do movimento”11.

Heráclito de Éfeso (535 a 475 a.c.)12 voltou a sustentar a teoria do “dinamismo físico”, mas com base num “devir”13 permanente, em constante mutação e cujo símbolo primário era o “fogo”, justamente o elemento de transformação dos corpos terrenos.

Parmênides de Eléia (530 a 460 a.c.) contribuiu para um melhor entendimento da complexidade do meio ambiente, revelando a existência do “ser”, uma espécie de essência intrínseca à todas as coisas da terra, erigindo o “ar” como elemento fundamental da natureza14.

Debalde os esforços dos pré-socráticos em manter o pensamento fi xado no ambiente que circundava os seres humanos, inicia-se com os sofi stas um deslocamento da fi losofi a da physis para o próprio homem (psiché), predominando entre eles temas como ética, política, retórica e educação.

Esse desvio de rumo encontra Sócrates (470 a 399 a.c.) como o seu grande sustentáculo que, à par de refl exões sobre a verdade, morte, moral, felicidade, amizade e outros assuntos exclusivos da humanidade, se notabilizou por sentenciar: - “conhece-te a ti mesmo”15.

11 MARTINS FILHO, I. G. Manual esquemático de história da fi losofi a. São Paulo: LTr, 1997, p. 20-21.12 MONDIN, B. Curso de fi losofi a. Vol. 1. Tradução de Bênoni Lemos. São Paulo: Pau-lus, 1981, p. 26-28.13 “Vir a ser”, movimento para frente, em direção do futuro.14 MONDINI, B. Op. cit., p. 29-32.15 MARTINS FILHO, I. G. Op. cit., p. 28-29.

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Em Platão (427 a 347 a.c.), a physis perde o status de “paraíso” e começa a ser encarada como um ciclo de passagem do homem para o além, em direção de um mundo metafísico mais importante do que o terrestre16.

Mesmo interessado em pesquisa de plantas e animais, Aristóteles (384 a 322 a.c.) busca a origem do movimento perceptível na natureza em “Deus”, que seria para ele o “motor imóvel” ou “primeiro motor”, aquele que move o mundo sem ser movido17.

Com o desmantelamento político e econômico da Pólis, o sentimento de coletividade do povo grego dá lugar ao homem singular e desesperançado, frustrado com a incompletude da fi losofi a. Foi assim, no alvorecer do período helenístico, que novos movimentos surgem com o escopo de aproximar religião e fi losofi a18.

Plotino (205 a 270 d.c.) desempenha relevante papel nesse sentido, superando em defi nitivo a ecológica mitologia grega com a revelação da verdadeira identidade de Deus, qual seja, o “Absoluto”, também designado por “Uno”, princípio supremo da unidade, destituído de forma e inatingível pelo conhecimento humano19.

Portanto, está inaugurado um campo fértil para a propagação da fi losofi a judaico-cristã que se assenta na teoria do criacionismo: - Deus criou a terra e tudo que nela existe somente para servir o homem, constituído esse à sua imagem e semelhança. Bastou para que o ser humano fosse alçado à condição de “Semi-Deus”, destinatário de todos os bens e da própria natureza.

Vingada aquela procissão de fé, Santo Agostinho (354 a 430 d.c.) seguiu entoando que o mal teve a sua origem vinculada à pessoa do próprio homem quando, tentado pela conjugação de dois elementos eminentemente naturais (maça e serpente), descumpriu uma determinação divina e caiu em pecado, nos termos do episódio entre Adão e Eva20.

As idéias cristãs tomam conta do ocidente, de parte do oriente e se fi xam na supremacia do homem sobre a natureza por legado da divindade, onde o

16 REALE, G.; ANTISERI, D. História da fi losofi a: antiguidade e idade média. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 1990, p. 157-161.17 STRENGER, I. História da fi losofi a. São Paulo: LTr, 1998, p. 87-91.18 Entre eles, sobressaíram os estóicos, epicuristas e céticos.19 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 340-343.20 Confi ssões. Livro VII: a caminho de Deus – I. O problema de Deus e o problema do mal. 4. ed. Tradução de J. Oliveira Santos, S. J., e A . Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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“ser” (agora atributo somente do homem), é expressão da máxima perfeição, pois todos os seres originam-se do “Ser Maior” (Deus) por criação21.

Rente à exposição, emoldura-se por ocasião do renascimento o apogeu da racionalidade humana que, embora desapegada da imagem divina, faz-se ainda mais forte em razão dos métodos científi cos que permitem observar o movimento das coisas terrenas e o universo infi nito.

Caracterizada pelo rigoroso antropocentrismo e desvinculada totalmente da religião, a fi losofi a ressurge como base intelectual de um novo humanismo, crente que a domesticação da natureza seria possível através da manipulação de um engenhoso instrumental técnico, ordenado por métodos científi cos.

Descartes (1596 a 1650)22 inteligentemente nos guiou por um modo de conhecer tão organizado e sistematizado que Francis Bacon (1561 a 1626)23, entusiasmado com o poder da pesquisa, chega a profetizar o domínio absoluto do homem sobre a natureza, transformada com a consolidação do capitalismo em depósito de recursos naturais e reconhecida como a grande fonte de energia da revolução industrial.

Contemporaneamente vozes se ergueram contra a sanha desenvolvimentista e devastadora do homem, surgindo críticas ácidas por parte de Friedrich Nietzsche (1844 a 1900) em desfavor da civilização ocidental, da massifi cação e vida burquesa, então impregnada pelo conservadorismo cristão (“moral de rebanho”)24.

Os séculos XIX e XX passaram dos limites e erraram feio nalgumas apostas, tais como: - infi nitude dos recursos naturais; “natureza morta”, dominada e sem condições de reação; infalibilidade da inteligência humana e dos métodos científi cos; antropocentrismo egoístico extremado; dentre tantos outros equívocos.

Ao lembrarmos que essa breve reconstituição de fatos se presta tão-somente à uma pontual equiparação, se faz mister avançarmos para aquilo que efetivamente nos interessa ao trabalho, ou seja, em direção da cultura yanomami.

21 Discurso do método: regra para a direção do espírito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.22 Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpetação da natureza. 23 Coleção “Os Pensadores”. 4. ed. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1988.24 Além do bem e do mal: prelúdio a uma fi losofi a do futuro. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: CIA das Letras, 2005.

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2. RELAÇÃO DO POVO YANOMAMI COM A NATUREZA

Toda a cosmologia25 yanomami, donde se extrai um complexo sistema universal de intercâmbios simbólicos entre os humanos e outros seres, deita raízes profundas sobre o xamanismo26, principal ponto de interseção entre aquela sociedade e a natureza.

Davi Kopenawa27, respeitado xamã28 , grande líder e interlocutor do povo yanomami, explica que os homens, os animais, a fl oresta e o céu foram criados

25 Ciência que tem como objeto de estudo o “cosmos”, entendido como o universo, sua dinâmica de funcionamento e princípios estruturantes. 26 Bruce Albert ensina que o xamanismo “é um ver-saber estratégico para a contenção dos poderes entrópicos, da alteridade cosmológica e social; para isso, socializa certas fi guras dessa alteridade sob a forma de entidades auxiliares, numa espécie de momeopatia simbólica generalizada. Sua derrocada levará inexoravelmente a sociedade e o universo e volta ao caos pré-humano”. “O ouro canibal e a queda do céu...”, p. 255.27 Davi Kopenawa, nascido em 1956, vive na aldeia yanomami de Watorik+, situada ao pé da serra do Demini (“serra do vento”), no estado do Amazonas. Seu grupo de origem foi quase inteiramente aniquilado no alto rio Toototobi (perto da fronteira venezuelana) por duas epidemias sucessivas após contatos estabelecidos com o Serviço de Proteção do Índio (SPI) e com a missão evangélica Novas Tribos do Brasil (NTB) (1959, gripe; 1967, sarampo). Criança, Davi Kopenawa perdeu, assim, a maior parte dos membros de sua família. Em seguida sofreu, e depois rejeitou, o proselitismo dos missionários da NTB, abandonando na adolescência sua região natal para trabalhar na Fundação Nacional do Índio (Funai) como intérprete. No começo dos anos 80, fi xou-se em Waltorik+, ali se casando com a fi lhado líder da comunidade, pajé renomado que o iniciou e, tradicionalista convicto, permanece seu mentor. Ele é hoje a um só tempo chefe do posto indígena Demini e um dos mais infl uentes pajés da sua aldeia. A invasão de suas terras por cerca de 30 a 40 mil garimpeiros custou a vida, entre 1987 e 1990, de mais de mil e duzentos yanomami no Brasi. Chocado com essa tragédia que reavivou nele a lembrança das epidemias que dizimaram sua família nos anos 50 e 60, Davi Kopenawa engajou-se em um luta incansável contra a destruição de seu povo e da fl oresta de sua terra. Graças a sua experiência com os brancos e à fi rmeza intelecutal que lhe confere o saber xamanístico, tornou-se o principal porta-voz da causa yanomami, no Brasil e no mundo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90, vários países da Europa e os Estados Unidos. Recebeu, depois de Chico Mendes, o prêmio Global 500 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e, recentemente, a Ordem de Rio Branco ao grau de cavaleiro. Http://www.proyanomami.org.br, acessado em 10/12/2007. 28 “Os xamãs podem por exemplo, `fazer descer´ como espíritos auxiliares (xapiripê) as `imagens´ (utupê) dos ancestrais animais (yaroripê) na cura de doenças epidêmicas”. ALBERT, Bruce. “O ouro canibal e a queda do céu - ...”, p. 255.

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pelo demiurgo Omama, entidade que veio da terra e para ela retornou.Antes da existência humana os ancestrais animais se metamorfoseavam

sem parar, tanto que “Omama pesca a fi lha do monstro aquático Teperesiki (às vezes associado à sucuri) e casa com ela. Teperesiki decide ensinar-lhe o uso das plantas cultivadas para que possa alimentar sua fi lha. Assustado com o barulho que o sogro faz ao se aproximar da casa, Omama esconde-se, tomando a forma de uma barra de ferro, metal (pooxiki) encontrado no chão da mata sob a forma de `fragmento do céu caído nos primeiros tempos´. É com uma tal barra de ferro que mais tarde ele vai furar a terra para fazer jorrar água, criando, assim, a rede hidrográfi ca que banha as terras yanomami”29.

A partir daquela copulação nascem os yanomami, fi lhos do relacionamento de uma divindade terrestre com um ser aquático. E se não bastasse a origem intimamente ligada com a “mãe” água, o mesmo povo é premiado com uma pleura de rios que escoam por todo o território yanomami, originados que foram pelo emprego de um “fragmento celeste”, mais tarde enterrado por Omama “nas profundezas da terra, com exceção de algumas ferramentas que fez com ele e deixou para os ancestrais yanomami. O metal que Omama enterrou é o `pai do minério´, `a ossatura da terra´, `os pés/raízes do céu´, um tipo de axis mundi metálico. O ouro e a cassiterita são formas fracas desse `minério forte´. O verdadeiro ̀ metal de Omama´, que os brancos procuram além dos minérios de superfície, só é acessível aos napê wakaripê, os ̀ brancos espíritos tatu-canastra´, ou seja, as companhias mineradoras”30.

Percebe-se então, no limiar histórico do povo yanomami, que a sua relação com a natureza é visceral, interdependente ainda hoje com os elementos da terra, da água e do céu, conjugada com a clara consciência dos malefícios advindos da exploração garimpeira para o meio ambiente.

No entendimento dos yanomami, o ouro é inofensivo “enquanto for conservado no frio das profundezas da terra”. Mas, ao extraí-lo, “os garimpeiros ainda o queimam e o expõem ao sol em latas de metal. Esse aquecimento ̀ mata´ o ouro e o faz ̀ exalar´ uma fumaça pestilenta que se propaga em todas as direções. Esse calor patogênico afeta não só os seres humanos, mas também a fl oresta, que vê seu `sopro´ esvair-se e seu `princípio de fertilidade´ fugir, tornando-se inabitável para seus donos, os espíritos xamânicos (que `possuem´ a fl oresta)”31.

Numa tradução xamânica do “efeito estufa” e que restou profetizada por Davi Kopenawa, a “fumaça-epidemia atinge `o mundo inteiro´... O vento

29 ALBERT, B. “O ouro canibal e a queda do céu -...”, p. 250.30 Ibidem, p. 250.31 Ibidem, p. 251.

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leva-a até o céu. Quando chega lá, seu calor queima-o pouco a pouco e ele fura. O `mundo inteiro´ é então ferido como se estivesse queimado, como um saco plástico derretendo no calor”32.

Seria aquilo que os yanomami chamam de “doença do minério”, propagada pelo “espírito da epidemia” (Xawari) e que, nas palavras de Davi Kopenawa, “mata e come nossos fi lhos ... Ele tem fome de carne humana ... Mata as pessoas e as come ... Moqueia-as como se fossem macacos. Só pára de matar depois que juntou bastante vítimas. Então, mal acaba de comer toda essa gente, todas essas crianças, começa a atacar outras. É faminto de carne humana, não quer nem caça nem peixe, só gosta mesmo é da banha do yanomami”33.

Considerando as deletérias conseqüências da queima do mercúrio pelos garimpeiros na desenfreada busca do ouro e as doenças por eles disseminadas no seio das comunidades yanomami, não podemos deixar de concordar com os diagnósticos xamânicos.

Essa violência predatória, no discernimento de Davi Kopenawa, deve-se “em primeiro lugar, à ignorância dos brancos, à `escuridão confusa´ de seu pensamento `plantado nas mercadorias´”. E arremata:

Nós, yanomami, que somos xamã, sabemos. Vemos a fl o-resta. Depois de tomar o poder alucinógeno de suas árvores, nós vemos. Fazemos os espíritos da fl oresta, os espíritos xamânicos, dançarem suas danças de apresentação. Vemos com nossos olhos. Depois de `morrer´ sob o poder do alu-cinógeno, vemos a `imagem essencial´ da fl oresta. Vemos o céu sobrenatural. Nossos ancestrais o viam antes e nós con-tinuamos a vê-lo. Nós não estudamos e nem vamos à esco-la. Vocês, brancos, vocês mentem. Não conhecem as coisa. Vocês acham que as conhecem, mas só vêem os desenhos de sua escrita ... Somos nós que sabemos das coisa e que protegemos a fl oresta. Somos amigos da fl oresta porque nossos espíritos xamânicos são os seus guardiães ... São eles que nos fazem pensar direito e fi car lúcidos. Quando estão perto de nós, fazem cresce nossa mente, fazem-na ir longe. Nosso pensamento não é fi xado em outras palavras. É fi xado na fl oresta, nos espíritos xamânicos ... Os brancos não conhecem esses espíritos, nem a imagem do princípio de fertilidade da fl oresta. Eles acham que ela só existe à toa, por isso a destroem34.

32 Ibidem, p. 252.33 Ibidem, p. 253.34 Ibidem, p. 248-249.

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Com espíritos alimentados pelo “suco” da fl oresta, os Xamãs também invocam o princípio da “fertilidade” na atividade agrícola. Davi Kopenawa35

admite o desfl orestamento, mas somente depois de cuidadosa pesquisa sobre a qualidade do solo e as reais necessidades alimentares da comunidade. Planta-se banana, macaxeira, batata, cana, pupunha, mamão e outros gêneros na exata medida do consumo estimado por determinado tempo, fi cando rigorosamente proibida a comercialização de qualquer produto para fora daquela sociedade.

Atendidos esses requisitos, abre-se uma clareira de aproximadamente 100 m2. que, após controlada queimada, destina-se ao roçado. Com a limpeza do terreno, aproveitam-se também as árvores abatidas como lenha para o fogo da comida, sob a responsabilidade das mulheres. Sendo boa a colheita naquela área, repetem-se os plantios no decorrer de um período não superior a dois anos.

Com o esgotamento do solo, abandona-se o local para a natural recomposição, partindo-se em busca de outro nas mesmas condições e fora das suas imediações, tudo no mais profundo respeito ao necessário período de “descanso”, que perdura entre dois e três anos. O aldeamento acompanha essa mudança, o que faz dos yanomami literalmente um povo nômade “por natureza”.

Esses deslocamentos também propiciam certo equilíbrio alimentar em razão do consumo intercalado de carne de anta, queixada, macaco, catitu, mutum, cotia, paca, nhambu, jabuti e peixes; colhendo-se ainda da fl oresta castanha, ingá, cupuaçu, cacau, buriti, açaí e outras frutas típicas que abundam na região.

Os yanomami conhecem o habitat dos diversos animais, que para eles também formam “aldeias”. Assim, respeitam os limites territoriais de cada espécie, bem como os períodos de procriação, sendo defeso o abate dos fi lhotes.

Dentro de uma lógica de reprodução, observam que um determinado número mínimo de espécies deve permanecer naquele espaço para, respeitado esse limite, concluir que chegou o momento de empreender caçadas ou mesmo se fi xar em outros territórios, numa distância que não prejudique o repovoamento dos anteriores criadouros. Os cuidados se renovam na atividade extrativista, numa dinâmica de autêntico manejo e respeito ao natural ciclo da vida.

Interessante observar que Davi Kopenawa desconhece e se recusa a operar com a palavra “meio ambiente”, preferindo utilizar “fl oresta-natureza”

35 Os procedimentos que doravante serão narrados credita-se a Davi Kopenawa que gen-tilmente atendeu este autor na sede da Hutukara (Associação Yanomami), em Boa Vista/RR., para conceder em 20 de novembro p.p. uma longa entrevista que se encontra gra-vada em meio magnético.

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como seu sinônimo. De fato, e como bem observado por Bruce Albert, “`meio ambiente´ denota uma exterioridade e pressupõe, portanto, o ponto de vista de um sujeito-centro defi nidor: a sociedade-mercado industrial global”; modo de pensar não concebido pelos yanomami que, como visto anteriormente, se consideram fi lhos descendentes da terra e da criatura das águas.

O nosso etnocentrismo conseguiu reduzir a natureza a um mero depósito de recursos que imaginávamos inesgotável, sem qualquer possibilidade de reação, inerte e muda às demasiadas violações, “situada fora da sociedade e da cultura, uma `natureza morta´, submetida a vontade e a exploração humanas”.

Mas para os yanomami, ao contrário, trata-se de “uma entidade viva, dotada de uma imagem espírito (urihinari), de um sopro vital (wixia) e de uma fertilidade própria (nê rope). Mais ainda, é animada por uma incessante e complexa dinâmica de trocas, confl itos e transformações entre todos os entes que a povoam, sujeitos humanos e não humanos, visíveis e invisíveis”36.

Na visão yanomami, não há como apartar fi sicamente o homem da natureza. São dois organismos vivos que dialogam permanentemente, unidos por metamorfose desde os primórdios, cuja relação extrapolou o nível da alteridade para se fi xar na reverência à divindade “terra-fl oresta”.

O povo yanomami não ousa se prostrar à “imagem e semelhança” da sua “mãe-natureza”. A terra, o céu e tudo que neles permeiam não lhes foi legado para usufruto próprio, e nem os yanomami se consideram os protagonistas do universo. Enxergam-se numa instância inferior e com o fi rme propósito de proteger a sua matriz geracional, numa tarefa messiânica de subserviência ao meio ambiente.

3. “CONSTITUCIONALIDADES YANOMAMI”

Como alhures relatado, toda a vida social yanomami acabou sendo ordenada por símbolos organizados dentro de um sistema (natureza), cujas referências encontram-se em perfeita relação de interdependência, e ainda hoje presentes no comportamento coletivo daquela sociedade.

36 ALBERT, Bruce. Os yanomami e a terra-fl oresta. Terra indígenas & unidades de con-servação da natureza: o desafi o das sobreposições. RICARDO, Fany (org.). São Paulo: ISA, 2004, p. 385.

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Conseqüência disso é o reconhecimento de um “padrão cultural yanomami”37, implicante num complexo e estranho conjunto de elementos aparentemente incompreensíveis à civilização ocidental, mas que têm o mérito de tornar aquele agrupamento de pessoas diferente do nosso.

Por estar com o olhar fi xo nas diferenças sociais latentes no âmbito nacional é que o constituinte originário de 1988 resolveu dar um novo rumo ao Estado Brasileiro, prometendo - desde o preâmbulo da atual Constituição Federal – a construção de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” em relação aos diversos grupos formadores da sociedade pátria, porquanto agora constituem patrimônio cultural brasileiro os bens materiais e imateriais defendidos pela etnia yanomami38.

Na trilha desse direito cultural serodiamente outorgado, compete ao poder público - com a colaboração da comunidade - garantir proteção por todos os meios de acautelamento e preservação das formas de expressão, bem como dos modos de criar, fazer e viver do povo yanomami39, uma vez que a Constituição lhes reconheceu organização social própria, costumes, línguas, crenças e tradições diferenciadas40.

E como visto anteriormente, falar da cultura yanomami sem contextualizá-la com os elementos da natureza, seria descaracterizar toda a identifi cação originária da respectiva sociedade. Destarte, meio ambiente e cultura inevitavelmente se imbricam não somente no caso yanomami, mas representam uma realidade de grande parte dos indígenas brasileiros e especialmente defendida pelos Programas de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, mormente na linha de pesquisa em Direito Socioambiental.

Com efeito, e no sendeiro da indissociabilidade entre meios de subsistência e natureza, certamente o povo yanomami tem sido um dos melhores operadores do que muito recentemente destacamos como “manejo ecológico”41, sendo que

37 Eunice Ribeiro Durham explica que “os padrões culturais são construções do investigador que explicitam uma lógica própria da conduta. Essa lógica não é, em si, consciente, mas sua produção (reprodução) depende de uma instrumental simbólico que é cristalizado nos mitos, nas regras explícitas, nas teorias que os homens constroem para explicar a natureza, a sociedade e seu próprio destino, e que podem ser concebidos como `objetos culturais´, produzidos socialmente”. A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 261.38 Essa é a mensagem do art. 216, caput, naquilo que interessa ao presente trabalho e considerando uma interpretação sistêmica da nossa Constituição.39 Art. 216, incisos I e II; c/c. § 1º do mesmo dispositivo, todos da CF/88.40 Art. 231, caput, CF/88.41 Expressão cunhada pelo art. 225, inciso I, CF/88, para autorizar a exploração das espécies e dos ecossistemas, desde que dentro de uma lógica racional de sustentabilidade.

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mesmo trabalhando com o fogo - e também cientes do perigo que representa para a mata – conseguem entabular uma produção agrícola dentro dos naturais limites de suportabilidade da fl oresta.

Os yanomami secularmente desenvolvem e cultivam técnicas de mínima agressão ao meio ambiente para fi ns de suplemento alimentar, assim como costumeiramente consomem recursos naturais (tanto vegetal quanto animal) na exata medida das suas necessidades, sem qualquer preocupação com o acúmulo de bens ou estoques desmedidos de providência. Não existe entre eles a prática da mercancia alimentar por imperativo inclusive de norma social proibitiva, tal o respeito imaculado que gruardam a propósito dos recursos fornecidos pela “mãe-natureza”.

O agir conforme com a dádiva nos remete à lembrança de que os yanomami tutelam a fauna e a fl ora não apenas visando a subsistência, mas porque desempenham uma missão originária de bem proteger a “terra-fl oresta”, realizando assim com sucesso inquestionável os desígnios ambientais estampados pelo constituinte brasileiro no art. 225, inciso III, CF/88.

A “lei yanomami” reguladora das práticas que eventualmente coloquem em risco a função ecológica da fl oresta restou efi cazmente passada de geração para geração, numa saga de conscientização preservacionista de causar inveja aos parâmetros ocidentais de conduta e consumo, cuja cultura exige que ainda se faça constar expressamente no corpo da Magna Carta a obrigatoriedade de se promover uma educação ambiental reabilitadora do nosso comportamento predatório42.

Passando em revista aos cuidados com a alteração e/ou supressão da vegetação nativa, aliada ao efetivo respeito ao ciclo de reprodução e de vida das outras espécies animais, é de se admitir que a Terra Indígena Yanomami se transformou de fato em autêntica unidade de conservação da natureza, nos exatos termos apregoados pelo art. 225, inciso III, CF/88.

Inobstante excluídas da versão fi nal da lei que aprovou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação43, “as terras indígenas possuem um enorme potencial para a conservação dos recursos naturais e suas populações têm importante papel na manutenção da biodiversidade brasileira”44. Em vista dessa realidade, conclui Nurit Bensusan que “qualquer estratégia efi ciente de conservar e usar de forma sustentável a biodiversidade do país deve considerá-las”45.

42 Art. 225, incio VI, CF/88.43 Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000.44 BENSUSAN, Nurit. Terras indígenas: as primeiras unidades de conservação. Terra indígena & unidade de conservação da natureza: o desafi o das sobreposições. RICARDO, Fany (org.). São Paulo: ISA, 2004, p. 67.45 Op. cit., p. 67.

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Neste aspecto a legislação nacional tem muito a evoluir, pois não se pode negar que nas terras indígenas – aí incluídos os esforços do povo yanomami – têm-se mantido os níveis mais baixos de desmatamento dentre aqueles constatados na Amazônia Brasileira46.

Entretanto, nem todos os costumes e crenças dos yanomami se subsumem ao engate constitucional. E o mais relevante desses pontos de atrito talvez seja a possibilidade de lavra das riquezas minerais em terras indígenas, a teor da hipótese lobrigada no art. 231, § 3º, CF/88. Em que pese a falta de lei regulamentadora, a questão já vem sendo debatida por ativistas, acadêmicos e legisladores ordinários, uma vez que tramita nas comissões da Câmara Federal projeto que intenta implementar aquele dispositivo constitucional47.

Se num primeiro momento pode-se entender que o cânone do art. 231, § 3º – desde que fi nalmente regulamentado – seja de imposição obrigatória também ao território yanomami48, há quem o afaste justamente sob a pecha da inconstitucionalidade em razão de uma interpretação conforme, decorrente da necessária ponderação de direitos fundamentais em tensão.

O tema realmente encerra divergências quando ora sabemos que a atividade garimpeira é culturalmente rechaçada pelos yanomami, muito menos pela sua capacidade altamente poluidora do que pela ordem cosmológica norteadora daquela comunidade.

O embate futuro será inevitável, reforçado ainda pelo autorizativo do art. 225, § 2º, CF/88, que admite a exploração dos recursos minerais, desde que se

46 André Villas-Boas registra um índice de 1,4%, após o cruzamento de dados do INPE com o levantamento do ISA, cuja porcentagem restou calculada sobre a área de fl o-resta efetivamente avaliada, desconsiderando as áreas de “não-fl oresta”, as com nuvem e os corpos de água. “Gestão e manejo em terras indígenas”. Terra indígena & unidade de conservação da natureza: o desafi o das sobreposições. RICARDO, Fany (org.). São Paulo: ISA, 2004, p. 119.47 Trata-se de projeto de lei proposto inicialmente pelo Senador Romero Jucá (PMDB-RR) na Casa Alta do Parlamento que, após os trâmites de aprovação no Senado, se-guiu este ano para revisão na Câmara Federal, sendo escolhido como relator da matéria naquela casa o Deputado Édio Lopes (PMDB-RR). 48 Essa corrente defende a tese de que o art. 231, § 3º, CF/88, determina que as comuni-dades afetadas sejam apenas “ouvidas”, na condição de meros fornecedores de elemen-tos para uma decisão soberana do Congresso Nacional. Não haveria naquela locução qualquer requisito de procedibilidade ou poder de veto por parte dos indígenas, conside-rando ainda qua tanto a terra tradicionalmente ocupada por eles e os recursos minerais existentes no respectivo subsolo são bens da União (art. 20, inciso IX e XI, CF/88), e não das comunidades diretamente atingidas pelo dano ambiental.

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recupere o meio ambiente degradado; se produzindo por outro lado notícias de protesto do povo yanomami contra qualquer tentativa de exploração mineral em suas terras49.

A solução para a iminente controvérsia é ainda incerta, mas seria de bom alvitre as nossas autoridades prestarem mais atenção aos encaminhamentos dados por aquela sábia sociedade quando o tema for meio ambiente, pois de tudo que até agora nos foi revelado é seguro fi nalizar com a seguinte conclusão:

Comparativamente aos nossos hábitos, o povo yanomami é quem melhor realiza o princípio fundamental do meio ambiente ecologicamente equilibrado50, conferindo também à Floresta Amazônica um respeito muito maior do que aquele por nós dispensado, justamente o dito “povo civilizado” e que achou por bem categorizá-la como “patrimônio nacional”51.

Ou seja, quem cumpre com mais efi ciência e tenacidade os comandos constitucionais informadores do meio ambiente não são os autores formais da Constituição, mas um povo que fi cou esquecido nos confi ns da Amazônia e que ressurge com a missão de nos fazer repensar a nossa desgastada relação com a “mãe-natureza” que, aliás, não está “morta”; ao inverso, acha-se muito viva e dando sinais de profundo descontentamento com as irresponsabilidades humanas.

CONCLUSÃO

Em arremate, retomamos a idéia inicial de que os índios não são “ecologistas naturais”, estando as suas terra tão vulneráveis quanto as demais áreas protegidas, essas “quase todas ocupadas ou invadidas por populações com menos tradição de manejo brando dos recursos naturais e conhecimentos acumulados sobre seus ecossistemas”52.

Contudo, e no caso dos yanomami, a cultura da conservação decorre antes de uma cosmologia de equilíbrio com a natureza do que ligada ao desejo

49 Conforme nota expedida pela Comissão Pró-Yanomami (CCPY) em fevereiro de 2001, e publicada às fl s. 360 do catálogo Povos indígenas no Brasil: 2001-2005, editado pelo ISA em 2006. 50 Art. 225, caput, CF/88.51 Art. 225, § 4º, CF/88.52 RICARDO, B. Povos indígenas e desenvolvimento sustentável. Terra indígena & unidade de conservação: o desafi o das sobreposições. RICARO, Fany. São Paulo: ISA, 2004, p. 125.

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de manter um estoque de produtos naturais, tudo articulado com práticas ancestrais tendentes à proteção da “terra-fl oresta” que, em última instância, se destaca como a matriz genealógica daquele povo na medida em que forneceu os elementos necessários a um complexo processo de metamorfose.

Em que pese todos os esforços para se manter o equilíbrio da fl oresta, tivemos a oportunidade de ver que a interação dos yanomami com o meio ambiente não é tão natural assim, destruindo-se completamente o “mito da natureza intocada”. Como pontualmente observou Nurit Bensusan, “a natureza selvagem e intocada não existiria à parte da humanidade, mas, ao contrário, essa `natureza´ seria uma criação humana”53 .

A partir desse ponto de vista, e com o comportamento yanomami posto para análise, é possível se sustentar uma ruptura no paradigma ecológico quando se fi zer “uma revisão pormenorizada das evidências de que as sociedades amazônicas enriquecem os recursos naturais, sejam eles rios, solos, animais ou diversidade botânica”54.

Grupos indígenas, como o eleito para o nosso estudo, “e mesmo alguns grupos migrantes como os seringueiros de fato protegem e talvez tenham até enriquecido a biodiversidade nas fl orestas neotropicais. As fl orestas amazônica são dominadas por espécies que controlam o acesso à luz solar. Grupos humanos, ao abrirem pequenas clareiras na fl oresta, criam oportunidades para que espécies oprimidas tenham uma janela de acesso à luz solar – como quando cai uma grande árvore”55.

Não se pode olvidar que “a biodiversidade de uma área seria, pois, o produto da história da interação entre o uso humano e o ambiente”. É por isso que “as possibilidades de integração das populações humanas no manejo das áreas protegidas começaram a ser consideradas e sua importância reconhecida”56.

Voltando ao texto constitucional para pelo menos justifi car formalmente o discurso, se dessume que a intenção incrustada em todo o título VIII, capítulo VI, não foi alijar o homem da natureza e nem mesmo torná-la intacta, mas sim autorizar a sua exploração dentro de limites criteriosos de sustentabilidade. E nisso, os yanomami são mestres. Estamos dispostos com eles aprender ?

53 Op. cit., p. 67.54 Afi rmação de Manuela Carneiro da Cunha e de Mauro W. B. Almeida após contato com os estudos de W. Balée. “Populações tradicionais e conservação ambiental”. Bio-diversidade na Amazônia Brasileira. VERÍSSIMO, A.; at alii. São Paulo: ISA; Estação Liberdade, 2001, p. 188.55 CUNHA, M. C. O; ALMEIDA, M. W. B.. Op. cit., p. 188.56 BENSUSAN, N. Op. cit., p. 67.

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Artigo recebido em: maio/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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A EFETIVIDADE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA GARANTIA DE PREVALÊNCIA DOS DIREITOS TRANSISNDIVIDUAIS EM FACE DOS

DANOS AO MEIO AMBIENTE

Antônio Ferreira do Norte Filho*Serguei Aily Franco de Camargo **

Sumário: introdução; 1. A ação civil pública como instrumento protetivo do meio ambiente – conceitos e antecedentes históricos; 2. A ação civil pública e o dano ambiental; 3. Legitimidade ativa e passiva da ação civil pública ambiental; 4. A competência jurisdicional na ação civil pública ambiental; Conclusão; Referências.

Resumo: A ação civil pública no contexto do meio ambiente, pode ser considerada como exemplo de evolução do sistema jurídico brasileiro, representando signifi cativo mecanismo jurídico específi co na tutela coletiva do bem ambiental. O objeto ensejador do presente trabalho se constitui de relevância no âmbito social, sobretudo, por ser a sociedade a principal destinatária do direito constitucional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, de modo a lhe propiciar melhoria na qualidade de vida e, conseqüentemente, condições dignas na sua existência. Dentre os diversos meios de proteção, visando a preservação e a conservação do meio ambiente, está a ação civil pública, enquanto adequado

Abstract: Class actions in the context of the environment can be considered as an example of evolution of the Brazilian legal system, representing a signifi cant mechanism in the specifi c legal protection of collective environmental good. The object occasion of the present work is of relevance in the social sphere, but rather as the company's main recipient of the constitutional right to an ecologically balanced environment in order to give it better quality of life and, consequently, the decent existence. Among the various means of protection in the preservation and conservation of the environment, is the class actions, as appropriate procedural tool in the prevention or prosecution of environmental damage. It is hoped that this

* Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. ** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins.

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instrumento processual na prevenção ou repressão de danos ambientais. Espera-se com esta pesquisa contribuir para o maior conhecimento da aplicação da ação civil pública no campo do Direito Ambiental, proporcionando o aprimoramento jurídico-cultural, sob todos os aspectos cognitivos, da sociedade, dos organismos públicos e privados, das autoridades governamentais e dos operadores do direito. Portanto, objetiva-se a análise do respectivo instituto e da sua aplicação na esfera ambiental, a partir de uma visão prática e efetiva que permita despertar a consciência ambiental perante a responsabilidade pela degradação ao meio ambiente, bem como as conseqüências legais positivas e negativas decorrentes de sua utilização, garantindo-se assim, a prevalência dos direitos transindividuais relativos ao meio ambiente.

Palavras-chave: Ação Civil Pública; Meio Ambiente; Dano Ambiental.

INTRODUÇÃO

A defesa do meio ambiente e a proteção dos recursos naturais encontram garantias tutelares na legislação brasileira, a qual prevê diversos instrumentos capazes de auxiliar e aparelhar a atuação de legitimados nessa nobre tarefa, sobretudo no que concerne à defesa dos interesses difusos , assim denominados em razão da titularidade conferida a um número indeterminado de pessoas ligadas por circunstâncias fáticas. A ação civil pública, objeto deste estudo, constitui um desses instrumentos de grande importância no resguardo do bem ambiental.

É patente o entendimento legal de que a ação civil pública se destina à defesa de diversos interesses metaindividuais, entre os quais se insere com

research contribute to better understanding of the implementation of class actions in the fi eld of environmental law, providing legal and cultural improvement, in all the cognitive aspects of society, the public and private organizations, government agencies and law enforcement offi cers. Therefore, the objective is the analysis of their institute and its application in the environmental sphere, from a practical and effective enabling raise awareness towards environmental responsibility for the degradation of the environment and the legal consequences arising from positive and negative of its use, thereby ensuring that the prevalence of trans-individual rights relating to the environment.

Keywords: Class Actions; Environment; Environmental Damage.

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relevância a tutela ao meio ambiente e ao bem ambiental.O objetivo do presente trabalho é realizar um estudo da ação civil pública

enquanto instrumento efi caz no âmbito de proteção do meio ambiente, visando à prevenção e reparação de riscos e danos ambientais.

Primeiramente será apresentado o conceito e precedentes históricos da ação civil pública e neste diapasão será realizada breve explanação acerca dos conceitos de meio ambiente, bem ambiental, risco e dano ambiental, para a compreensão de como a ação civil pública se insere nesse contexto e se reveste em instrumento de defesa de tão importante direito difuso.

Na seqüência, será realizada uma análise dos aspectos técnico-processuais da ação civil pública especifi camente aplicada à proteção do meio ambiente, abrangendo a legitimidade ativa e passiva, bem como a competência jurisdicional.

O trabalho será baseado em pesquisa bibliográfi ca e ao longo de todo o estudo serão apresentados os entendimentos dos diversos doutrinadores especializados na matéria, seguindo-se a necessária refl exão acerca do tema.

Pretende-se analisar a aplicação efetiva da ação civil pública como instrumento protetivo dos direitos metaindividuais no campo do Direito Ambiental.

1. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO PROTETIVO DO MEIO AMBIENTE – CONCEITOS E ANTECEDENTES HISTÓRICOS

A ação civil pública consiste numa ação judicial sujeita ao preenchimento dos pressupostos e requisitos estabelecidos no ordenamento processual vigente. As suas fi nalidades se consolidam na obrigação de fazer, na obrigação de não fazer e/ou na condenação em dinheiro. O seu objeto é a proteção dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, sendo que o meio ambiente encontra-se no âmbito dos interesses difusos.

Segundo Paulo Affonso Leme Machado:

A ação civil pública foi elaborada pela Lei 7.347, de 24.7.1985. A ação judicial é denominada “civil” porque tramita perante um juízo civil e não criminal. Acentue-se que no Brasil não existem tribunais administrativos. A ação também é chamada “pública” porque defende bens que compõem o patrimônio social e público, assim como os in-teresses difusos e coletivos, como se vê no art. 129, III, da CF/88.

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Para a compreensão preliminar da ação civil pública enquanto relevante instituto protetivo do meio ambiente torna-se necessário o retorno às sendas da história jurídica brasileira. Verifi ca-se que, em termos de defesa dos interesses metaindividuais, o Brasil, já na década de 60, dispunha da ação popular como referencial. Entretanto, mesmo que revolucionária no âmbito do ordenamento jurídico, sendo considerada um avanço para a época, e até para a atualidade, este instituto, no campo instrumental, se mostrou insufi ciente para a tutela dos direitos difusos, visto legitimar o cidadão no campo ativo de sua propositura, bem como comportar o seu cabimento somente contra anulação de atos lesivos praticados pelo Poder Público.

Logo, em obediência ao Art. 6º do Código de Processo Civil , no que concerne à regra de legitimidade extraordinária, inútil seria a busca de ação condenatória de ressarcimento ou de prevenção de dano aos bens e direitos de uso comum do povo acometidos de violação, posto não ser o cidadão parte legítima na busca de um direito que transcende a sua pessoa.

Na década de 70, mais especifi camente, inspirados em movimentos de clamor internacional, os doutrinadores brasileiros se mobilizaram nos debates voltados à tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos o que inicialmente redundou na edição da Lei de Política Nacional do meio Ambiente, a qual vislumbrava no seu Art. 14, § 1º, a possibilidade de o Ministério Público ajuizar ação civil de reparação de danos causados ao meio ambiente, porém, parando por aí, ressentindo-se o Ministério Público da falta de regras específi cas para tramitação processual pertinente à responsabilidade civil por danos ambientais.

Sob o ponto de vista da defesa do meio ambiente enquanto direito material a ser tutelado, a lei representou um marco defi nitivo na ciência ambiental, que até então se encontrava fragmentada e sem um tratamento digno da importância que o tema merecia. Contudo, faltava a edição de lei que dispusesse especifi camente da ação civil pública.

Na busca de solução para essa lacuna, por ocasião do 1º Congresso Nacional de Direito Processual, foi elaborado um anteprojeto de lei para a tutela jurisdicional dos interesses difusos no Brasil por iniciativa de Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior. O projeto foi apresentado no Congresso Nacional pelo Deputado Flávio Bierrembach, porém não chegou a ser votado nas Casas Legislativas.

Na mesma época os Promotores de Justiça de São Paulo Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery Júnior, durante o XI Seminário Jurídico de Grupos de Estudos, discutiram o primeiro projeto (Bierrembach) e apresentaram um novo anteprojeto que foi apresentado diretamente ao Ministério da Justiça e encampado pela Presidência da República,

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convertendo-se no Projeto de Lei que deu origem à Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985.

A referida Lei, como menciona Édis Milaré, incorporou defi nitivamente a terminologia no ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo a ação civil pública como instrumento de defesa de alguns interesses transindividuais, entre os quais o meio ambiente. E o instituto foi consagrado na ordem constitucional por ocasião da Carta Magna de 1988.

No ordenamento jurídico pátrio, a ação civil pública pode ser conceituada como o exercício do direito à jurisdição com titularidade legalmente determinada ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à entidade ou pessoa jurídica prevista em lei, com a fi nalidade de preservar o patrimônio público ou social, o meio ambiente, os direitos do consumidor e o patrimônio cultural, a ordem econômica e a economia popular, ou de defi nir a responsabilização por danos que lhes tenham sido causados, isto é, consiste no instrumento processual adequado para reprimir ou impedir tais danos.

Luiz Álvaro Valery Mirra, ao tratar do assunto, pontua:

No direito brasileiro, após a verifi cação de insufi ciência dos institutos tradicionais da ação e do processo civil clássicos para a tutela dos denominados interesses ou direitos difu-sos – entre os quais se inclui o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado –, optou-se pela criação, por via legislativa, de um instrumento processual específi co – a denominada ação civil pública da Lei nº 7.347/85 – que trouxe uma série de inovações às concepções tradicionais até então prevalecentes. Essa nova regulamentação da ga-rantia constitucional da ação inscreve-se no movimento mundial de acesso à justiça, por meio do qual se busca tor-nar mais efetivos os mais diversos direitos – individuais e coletivos – formalmente reconhecidos.

Na atualidade, a busca da função jurisdicional, no que concerne à proteção do interesse coletivo, no campo do Direito Ambiental, se traduz no instrumento da ação civil pública, uma vez que o meio ambiente constitui um bem pertencente ao grupo dos interesses transindividuais, sendo de uso comum de todos, conforme os ditames constitucionais do artigo 225.

Consoante Paulo Alvarenga:

Hoje, no Brasil, como grande mecanismo de defesa judicial do meio ambiente, dentre outros interesses difusos ou co-letivos, aparece sublimada a ação civil pública que é o di-

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reito de se invocar a função jurisdicional na esfera civil, em nome do interesse público. É denominada pública porque tem sempre por objeto a tutela do interesse público, difuso, impessoal, meta, supra ou transindividual, e dentro dessa categoria de interesses difusos é que é incluído o meio am-biente, o que é dado claramente extrair do disposto no art. 225 da Constituição Federal, no que se lê que todos têm direito ao meio ambiente, bem de uso comum do povo.

Entretanto, para se compreender a importância da ação civil pública na defesa do meio ambiente é importante antes de tudo, compreender qual, no ordenamento jurídico pátrio, o conceito de meio ambiente enquanto bem ambiental.

De acordo com o que preceitua a Constituição Federal de 1988, o meio ambiente se traduz em bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa no âmbito da legalidade constitucional, sendo, portanto, essencial à qualidade de vida.

José Afonso da Silva em sua concepção ressalta:

A qualidade do meio ambiente transforma-se, assim, num bem ou patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revi-talização se tornaram um imperativo do poder público, para assegurar uma boa qualidade de vida, que implica em boas condições de trabalho, lazer, educação, saúde, segurança – enfi m, boas condições de bem-estar do Homem e de seu desenvolvimento.

O conceito de bem ambiental comporta uma amplitude que vai além de seus elementos formadores, tais como ar, água e terra, devendo ser defi nido como o conjunto das condições de existência humana de modo a integrar e infl uenciar os homens, sua saúde e seu desenvolvimento. Logo, os seres humanos integram o ambiente, bem como o conceito e a proteção do meio ambiente só podem ser viabilizados a partir do desenvolvimento da relação ser humano-natureza.

O bem ambiental então, não pode ser considerado bem público ou privado, posto que, no campo constitucional, a todos cabe a titularidade do seu direito, não se concebendo individualmente, mas sob o aspecto da coletividade de pessoas indefi nidas, indeterminadas no exercício desse direito transindividual. Consistindo assim, no meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo compreendido pelo patrimônio, conjunto de objetos materiais e imateriais, indispensáveis à construção orgânica do ambiente juridicamente protegido.

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Nesse contexto, surge o instituto da ação civil pública na condição de instrumento processual à disposição da coletividade para proposição de defesa do bem ambiental.

2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O DANO AMBIENTAL

Com a compreensão do conceito jurídico de meio ambiente e bem ambiental, passa-se, por inferência, a verifi car o que vem a ser dano ambiental e como sua ocorrência enseja a possibilidade de tutela por meio da ação civil pública.

Na opinião de MILARÉ dano ambiental é a lesão aos recursos ambientais, com conseqüente degradação – alteração adversa ou in pejus - do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida.

Tendo em vista que a Política Nacional do Meio Ambiente não defi ne expressamente dano ambiental, José Rubens Morato Leite afi rma que:

O dano ambiental, por sua vez, constitui uma expressão ambivalente, que designa, certas vezes, alterações nocivas ao meio ambiente e outras, ainda, os efeitos que tal alteração provoca na saúde das pessoas e em seus interesses. Dano ambiental signifi ca, em uma primeira acepção, uma alteração indesejável ao conjunto de elementos chamados meio ambiente, como por exemplo, a poluição atmosférica; seria, assim, a lesão ao direito fundamental que todos têm de gozar e aproveitar do meio ambiente apropriado. Contudo, em sua segunda acepção, dano ambiental engloba os efeitos que esta modifi cação gera na saúde das pessoas e em seus interesses.

Para Michel Prieur, o dano ambiental consiste no prejuízo sofrido pelo meio natural nos seus elementos não apropriados e inapropriáveis e que afeta o equilíbrio ecológico enquanto patrimônio coletivo.

Por outro lado, a Política Nacional do Meio Ambiente apesar de não defi nir expressamente dano ambiental, estabelece a responsabilidade objetiva, isto é, a responsabilização independente da comprovação de culpa do agente, sendo necessária a existência efetiva do prejuízo ao meio ambiente e o nexo causal, fundada na simples atividade implicadora de risco.

O processo produtivo e as atividades dele decorrentes sempre irá produzir externalidades negativas, representadas pelas conseqüências indesejáveis da

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atividade que são suportadas pela coletividade, ao contrário do lucro que é auferido unicamente pelo produtor.

Assim, faz-se necessária a internalização dessas conseqüências e nesse contexto, para que haja a responsabilidade do causador, bastando existir o dano e o nexo causal, isto é, a relação de causa e efeito entre a atividade e o resultado danoso.

Portanto, aquele que obtém o lucro e causa dano ambiental por sua atividade, responderá pelos riscos ou pela desvantagem dela resultante, por via da ação civil pública ambiental.

3. LEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL

A Lei nº 7.347/85 abrange signifi cativo rol de legitimados ativos que, além do Ministério Público, inclui ainda as Associações Civis regularmente constituídas há mais de um ano e inclua entre as suas fi nalidades dentre outras, a proteção do Meio Ambiente; Entes da Administração Pública direta e indireta nas três esferas e mais recentemente, a Defensoria Pública.

Na opinião de Alvarenga:

Trata-se de legitimidade concorrente e disjuntiva, uma vez que cada uma das referidas entidades poderá, isoladamente ajuizar a ação civil pública, prescindindo-se da anuência dos demais co-legitimados, entre os quais é admitido o li-tisconsórcio ativo.

É de se ressaltar que a propositura da ação civil pública não pode ocorrer por via de particular, devendo este, ao ser atingido no seu direito, buscar, no âmbito do sistema processual brasileiro, outro instituto de previsão constitucional denominado ação popular, que tem por objetivo a coibição dos atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Não obstante as suas atribuições previstas constitucionalmente, o Ministério Público representa um marco importante, dada a sua atuação signifi cativa na titularidade na propositura da ação civil pública.

Machado entende que:

A ação civil pública consagrou uma instituição – o Minis-tério Público – valorizando seu papel de autor em prol dos

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interesses difusos e coletivos. O Ministério Público saiu do exclusivismo das funções de autor e da tarefa de fi scal da lei no terreno cível, para nesta esfera passar a exercer mis-ter de magnitude social.

De acordo com o Art. 129, §1°, CF, o Ministério Público, a União, Estados, Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista, associações e Defensoria Pública, têm legitimidade par propor a ação civil pública. Portanto, pode-se dizer que esta legitimidade é concorrente, tendo em vista que todos os relacionados pela legislação podem interpor a ação, em separado ou de forma conjunta.

A lei vislumbra a possibilidade de litisconsórcio no pólo ativo, entre os Ministérios Públicos Federal, do Distrito Federal e dos Estados. Apesar da previsão legal, em sentido divergente quanto à constitucionalidade do litisconsórcio entre o parquet das esferas federal e estadual para a propositura de ação civil pública, conforme assevera Paulo de Bessa Antunes:

A possibilidade de litisconsórcio ativo entre os Ministério Público Federal e dos Estados-membros, em nossa opinião é, evidentemente, inconstitucional, perante o Art. 127, § 1º, da Lei Fundamental. Assim é porque, se o MP é uno e in-divisível não pode dividir-se em duas entidades autônomas e que se unem em determinados momentos para a proposi-tura de uma demanda judicial. A cooperação e integração entre os diversos segmentos do MP são absolutamente de-sejáveis. Entretanto, a sua realização deve ser administra-tiva e não judicial.

O Art. 5º, § 2º da Lei de ação civil pública preceitua que o Ministério Público deverá atuar obrigatoriamente como custos legis, caso não intervenha como parte no processo.

Por força da Lei nº 11.448/2007, a Defensoria Pública foi incluída na lista de legitimados ativos para o ajuizamento da ação civil pública. Essa alteração se reveste de extrema importância em virtude do relevante papel exercido pela Defensoria Pública na defesa da sociedade, especialmente, das classes hipossufi cientes, sendo certa que a atuação deste novel legitimado trará benefícios signifi cativos na defesa do meio ambiente.

Também são legitimadas a administração pública direta na esfera federal, estadual e municipal e ainda a administração indireta, representada pelas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e as fundações, contudo, a prática demonstra que a atuação desses legitimados é inexpressiva no

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contexto jurisdicional, principalmente pelo fato do Poder Público fi gurar com certa freqüência no pólo passivo das ações civis públicas.

As associações também são elencadas no rol de legitimados ativos desde que preencham os requisitos, quais sejam, a constituição há pelo menos um ano e inclusão dentre suas fi nalidades institucionais da proteção do interesse que pretenda tutelar, isto é, no caso em estudo, o meio ambiente.

O sujeito passivo da ação civil pública – aquele passível de ser civilmente processado – pode ser qualquer pessoa física ou jurídica, inclusive o Poder Público, sem a exigência legal de determinada condição, a não ser a responsabilidade pelo dano causado ao bem ambiental.

4. A COMPETÊNCIA JURISDICIONAL NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL

Em razão de força normativa constitucional e infraconstitucional, o poder do Estado de dizer o direito, no que concerne ao seu exercício, contempla distribuição dentre os órgãos jurisdicionais, os quais exercem essa jurisdição no âmbito de limites legalmente determinados, afetos a uma escala de litígios. Tal distribuição desse exercício jurisdicional é denominada competência.

A competência, então, consiste na divisão dessa jurisdição dentre vários juízes, sendo competente aquele que legalmente pode julgar a causa.

A Lei de Ação Civil Pública estabelece que as ações deverão ser propostas no foro do local onde ocorreu o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa.

Entretanto, o referido dispositivo se refere à competência de foro e não à competência de jurisdição, sendo que esta vai ser defi nida segundo critérios estabelecidos na Constituição Federal. Nesse sentindo, o artigo 109 da CF/88 prevê as causas de competência da justiça federal, tendo especial relevância, no que se refere à ação civil pública ambiental, o inciso I do referido Artigo ao fi xar a competência dos juízes federais para julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal tiverem interesse, sendo todas as demais causas da competência residual da justiça estadual.

No entanto, o interesse da União deve ser claro e qualifi cado, não podendo ser vago ou indeterminado, como é o caso de danos ambientais ocorridos nos limites territoriais de bens de dominialidade da União, o que não caracteriza necessariamente o interesse da União.

Assim, Mirra preceitua:

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A orientação que vem prevalecendo sobre o assunto é a de que não é qualquer interesse que autoriza ou impõe o in-gresso desses entes no processo, mas em um “efetivo inter-esse jurídico”. Não basta, dessa maneira, simples interesse da União e das autarquias ou empresas públicas federais em acompanhar a demanda, com intervenção meramente formal, impondo-se, ao contrário, que assumam posição processual defi nida, como autoras, rés, assistentes ou opo-entes.

Ademais, a Constituição Federal de 1988, determina que sejam processadas e julgadas na justiça estadual, no foro de domicílio dos segurados ou benefi ciários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verifi cada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

Estabelecida a divisão de competência jurisdicional, torna-se necessário compreender como se dá a divisão em relação à competência de foro.

Assim, de acordo com o Art. 2º da Lei nº 7.347/85 em conjunto com o Art. 93, I do Código de Defesa do Consumidor, se o dano ocorrer nos limites de uma única comarca ou seção judiciária, será competente o juiz do foro do local da respectiva ocorrência. Se ultrapassar os limites territoriais de mais de uma comarca ou seção judiciária ou afetar diretamente no todo ou em parte o território de dois ou mais Estados da Federação, conforme o Art. 2º, parágrafo único da Lei nº 7.347/85 combinada com o Art. 1º, IV da Resolução nº 237/97 do CONAMA, será competente qualquer um dos foros afetados, observado o critério da prevenção, devendo considerar-se prevento o juiz que primeiro determinou a citação válida, posto não tratar-se de competência de juízo e sim de foro. Por último, para os danos que afetem todo o território nacional, será competente o foro do Distrito Federal, pelos preceitos do Art. 93, II do CDC.

Portanto, apesar de complexo, é possível se verifi car que o sistema, com base no principio do interesse coletivo, tende a buscar o juízo do local onde se deu o dano, tanto pela sua proximidade quanto pela facilidade de obtenção das provas, o que ocasionará signifi cativa qualidade nas demandas judiciais de modalidade ambiental e conseqüentemente, na prestação jurisdicional.

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CONCLUSÃO

À luz da análise do presente trabalho, levando-se em consideração os aspectos históricos e legais, no que tange à ação civil pública em matéria ambiental, chega-se à conclusão que este instrumento processual de resguardo do meio ambiente, previsto no Art. 129, III da Carta Política e no Art. 1º, I, da Lei nº 7.437/85, nos últimos anos, proporcionou signifi cativas transformações no ordenamento jurídico brasileiro.

A Constituição Federal de 1988 consagrou no seu Art. 225, a tutela do meio ambiente enquanto garantia constitucional, classifi cando-o como bem de uso comum do povo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa no âmbito da legalidade constitucional, sendo, portanto, essencial à sadia qualidade de vida. E para tanto, objetivando assegurar tal garantia, a Carta Magna recepcionou o instituto da Ação Civil Pública, regulamentado pela da Lei nº 7.347/85, consistindo em importante mecanismo jurídico específi co na tutela coletiva do bem ambiental com fi nalidade do cumprimento de obrigação de fazer, não-fazer e/ou condenação pecuniária.

A ação civil pública ambiental consiste no mais pertinente mecanismo processual voltado à prevenção ou a repressão dos danos que possam vir a ser causados ou tenham sido causados ao meio ambiente. O grande desafi o, afeto à questão posta, consiste em garantir a sua efetiva utilização, buscando-se o aperfeiçoamento pela constância de sua propositura nas sendas do cumprimento dos objetivos a que se propõe, ou seja, a proteção o meio ambiente de modo a garantir a existência digna das gerações presentes e vindouras.

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_____. Resolução nº 237/1997. Regulamenta o licenciamento ambiental e

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estabelece critérios para o exercício da sua competência, conforme estabelecido na Política Nacional de Meio Ambiente. Brasília: MMA/CONAMA. [s. ed.], 1997.

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Artigo recebido em: abril /2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃO AMBIENTAL

Raymundo Juliano Feitosa*Alexandre Henrique Salema Ferreira**

Sumário: Introdução; 1. Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico; 1.1 Estado e Meio Ambiente; 2 Tributação e Indução Ambiental; 2.1 A natureza indutora das normas tributárias; 2.2 A tributação com fi nalidade de indução ambiental; 3 Análise Econômica do Direito e Tributação Ambiental; 3.1 O tributo como custo de transação; 3.2 A tributa-ção com fi nalidades ambientais; Conclusões; Referências Bibliográfi cas.

Resumo: A busca pelo desenvolvimento econômico, como um fi m em si mesmo, tem se mostrado trágico. De um lado, tem resultado em severa degradação ambien-tal; por outro, a concentração de riquezas impede o desenvolvimento social. Esta realidade pode ser constada a partir dos resultados ecossocioeconômicos advin-dos do modelo desenvolvimentista do pós-guerra. Mas, como compatibilizar atividade produtiva e interesses coletivos? A resposta não passa pelo desprezo ao crescimento econômico, mas pela função interventora do Estado, a fi m de inibir ou remediar questões como a degradação am-biental e a pobreza. O tema é bastante am-plo, por isso o necessário recorte de forma a delimitar o objeto do presente trabalho à tributação como instrumento intervenção estatal destinada à indução de condutas ambientais.

Palavras-chave: Intervenção estatal. Trib-utação. Indução ambiental.

Abstract: Searching for the economic development without considering other purposes has become tragic. On the one hand, it has resulted in severe environ-mental degradation; on the other hand, wealth concentration just impairs the so-cial development. Such a reality may be noticed through ecosocio-economic re-sults from the post-war´s developmental pattern. However, how can we match up productive activity with general interests? The answer does not necessarily concern the lack of interest for economic growth, but the mediating function of the State to prevent or solve issues like environmental degradation and poverty. As this is a really broad theme, it needs to be narrowed down so that we can delimit the objective of the present concerning taxation as the State´s intervention tool designed to induce envi-ronmental practices.

Key-words: State´s intervention; Taxa-tion; Environmental inducing.

* Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Pós-doutor em Direito.** Professor da Universidade Estadual da Paraíba, doutorando em Direito.

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INTRODUÇÃO

O tema do desenvolvimento econômico tem se mostrado bastante controvertido, principalmente depois das experiências desenvolvimentistas do pós-guerra até meados dos anos 1990, que deixaram explícitas as relações entre atividade econômica e meio ambiente e, em especial, os resultados concretos dessas relações. Hoje, por exemplo, já se sabe que a degradação ambiental em uma determinada região não tem garantido, sequer, o desenvolvimento sócio-econômico local.

A degradação ambiental – “[...] caracterizada pela diminuição da quantidade existente ou deterioração da qualidade dos bens e serviços providos pelo meio ambiente” (ORTIZ; FERREIRA, 2004, p. 34) –, na verdade, deixa transparecer muito do modelo de sociedade atual, na medida em que expõe a intensidade das interações econômicas, as escolhas individuais, as conveniências e facilidades que o desenvolvimento econômico pode proporcionar. Contudo, pelas dimensões e resultados sócio-econômicos alcançados, esta é uma questão que passou a ter forte presença nas agendas ofi ciais com a fi nalidade, por exemplo, de apontar quais atividades econômicas, produtos, tecnologias e processos produtivos devem ser estimulados, desestimulados ou vedados.

Esta discussão torna-se importante a partir do reconhecimento de que as questões ambientais migraram da esfera econômico-privada para compor os interesses coletivos, exigindo cada vez mais a presença do Estado, a fi m de inibir ou remediar a degradação ambiental. Como ator central na condução da sociedade – com relevante papel na proteção do meio ambiente, no fomento ao desenvolvimento sustentável e na redução das desigualdades regionais, dentre inúmeras outras atribuições –, do Estado exige-se uma forte presença, sem que isso represente qualquer traço de dirigismo ou planifi cação da economia ou da vida social.

Na verdade, em inúmeras situações a intervenção estatal faz-se necessária, por exemplo, para corrigir ou evitar as falhas de mercado, tais como a elevação dos custos de transação ou o efeito carona. Para Andrade (2004, p. 26) a existência de externalidades, positivas ou negativas, justifi ca:

[...] a intervenção governamental de forma a corrigir a in-efi ciência gerada pela externalidade [...]É possível que ao intervir, o governo seja capaz de infl uen-ciar os incentivos privados dos indivíduos ou empresas de forma que passem a levar em consideração o impacto das suas ações, negativos ou positivos, sobre os outros agentes

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econômicos. [...] o governo visa a encontrar um mecanismo que faça os agentes econômicos internalizarem a externali-dades.

A intervenção estatal pode ser concretizada através da regulação, também chamada de políticas de comando-e-controle; e dos instrumentos econômicos, com soluções baseadas no mercado (ANDRADE, 2004, p. 26; ORTIZ, FERREIRA, 2004, p. 36).

Segundo Ortiz e Ferreira (2004, p. 37-38):

As políticas de comando-e-controle regulam diretamente o comportamento dos agentes econômicos e se traduzem em normas que precisam ser obedecidas, tais como padrões, zoneamento, cotas e licenças. Em outras palavras, o gov-erno proscreve alguns comportamentos e impõe punições àqueles que os praticam. Para isso, o Estado requer uma ampla e efi ciente estrutura de adimplemento da lei.

A regulação estatal é materializada através de disciplinamento jurídico que estabelece, por exemplo, as especifi cações técnicas para produtos, processos operacionais e tecnologias de produção (padrões e controles); delimita os espaços onde a atividade econômica pode ser desenvolvida (zoneamento); impõe limitações quantitativas e qualitativas para a exploração de recursos naturais ou para a emissão de poluentes (cotas) e sujeita a atividade econômica às licenças.

No caso dos instrumentos econômicos, a intervenção estatal é materializada através de estímulos e desestímulos fi nanceiros com a fi nalidade de reduzir ou elevar os custos de transação dos agentes econômicos. Segundo Ortiz e Ferreira (2004, p. 39):

Os instrumentos econômicos são mecanismos de mercado que incentivam os agentes econômicos a levar em consid-eração os custos externos de suas decisões individuais. Há vários instrumentos econômicos, como impostos, taxas, tarifas, subsídios, mecanismos de devolução de depósito e criação de mercado.

Evidentemente que o tema é bastante amplo e aqui é necessário proceder a um recorte, de forma a delimitar o objeto do presente trabalho à tributação como instrumento intervenção estatal destinada à indução de condutas ambientais. Este recorte, logicamente, exclui aquelas condutas vedadas em lei, porque a incidência tributária recai, apenas, sobre condutas lícitas. Neste contexto, será

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inconstitucional qualquer tentativa legal de descaracterizar a natureza jurídica do tributo a fi m de assemelhar sua aplicação às penas pecuniárias. Fora dos limites da licitude, o Estado deverá fazer uso outros mecanismos de intervenção.

1. MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

A busca pelo desenvolvimento econômico, como um fi m em si mesmo, tem se mostrado trágico na esfera sócio-ambiental. De um lado, o desenvolvimento econômico tem resultado em severa degradação ambiental, resultante, por exemplo, da emissão de poluentes e do uso intensivo de recursos naturais; e, por outro, o modelo de concentração de riquezas impede que o desenvolvimento econômico resulte em desenvolvimento social.

Segundo Sachs (2007, p. 77) “Não é propriamente o crescimento que se deve questionar, mas o seu caráter selvagem”. Por isso, o reconhecimento da importância do crescimento econômico para as nações e sociedades modernas é fundamental para justifi car o papel do mercado e a função interventora do Estado, tendo em vista a consecução de objetivos mais amplos, tais como o desenvolvimento social, a preservação do meio ambiente ou o uso efi ciente dos recursos naturais.

1.1 ESTADO E MEIO AMBIENTE

O protagonismo do Estado na condução das questões ambientais tem sido reconhecido na proporção inversa da incapacidade de resolução dos problemas ambientais através das regras de mercado. Dentro deste contexto, Sachs (2007, P. 83-84) coloca um questionamento interessante: “Será possível fazer com que a empresa internalize essas externalidades que ela mesma provocou, por meio de uma modifi cação do sistema de preços?”. A resposta é um categórico não. Por isso a imperiosa necessidade de intervenção estatal.

A intervenção estatal, como visto anteriormente, é materializada através da regulação, que impõe um disciplinamento jurídico às atividades econômicas, com a fi nalidade, por exemplo, de limitar ou impedir a inefi ciência ambiental dos agentes econômicos; e de instrumentos econômicos, que criam sistemas de estímulos e desestímulos fi nanceiros, a fi m de induzir determinadas condutas ambientais.

O disciplinamento jurídico surge a partir do exato reconhecimento das inúmeras limitações que rodam as regras de mercado, incapazes de apontar, por

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exemplo, soluções para situações que extrapolam o mero ambiente econômico, como a degradação ambiental e a pobreza, dentre outros. Evidentemente que a fi nalidade primeira do disciplinamento jurídico não deve ser o de impedir a atividade econômica, mas colocá-la dentro de um espectro mais amplo, tendo em vista aquilo que Sachs (2007) denomina de desenvolvimento ecossocioeconômico. Dentro deste contexto, para Marques (2007, p. 90-91) “[...] a relação estabelecida entre o direito ao meio ambiente e a livre iniciativa [...] não constitui uma colisão, e sim um caso de limitação constitucional imanente”.

Sobre o disciplinamento jurídico, contudo, recaem severas ressalvas, como, a dispendiosa manutenção de estruturas estatais, tal como as agências reguladoras; ou a possibilidade da judicialização da vida cotidiana, problema que no Brasil tem alcançado uma dimensão tão aguda que tem provocado a degradação e o esgotamento do próprio ser humano. Além disso, a evidência empírica, revelada pela crise fi nanceira de 2008, demonstrou que o modelo de agências regulatórias é inapto à prevenção das falhas de mercado, dentre outras causas, ou porque é impossível normatizar todas as situações fáticas (ausência de disciplinamento) ou porque a fi scalização apresenta-se inefi caz (captura econômica e/ou captura ideológica). Por isso, a intervenção regulatória deixa transparecer ser uma medida que não trará, em tempo hábil, resultados ambientais concretos.

Mas, a intervenção estatal também pode ser materializada através de instrumentos econômicos que, apesar de externos, incorporam a lógica de mercado ao estabelecer sistemas de recompensas e restrições fi nanceiras a fi m, por exemplo, de induzir condutas. A tendência atual indica, na verdade, que os instrumentos de indução de condutas são mais contemporâneos às questões ambientais e, particularmente, a tributação tem o condão de afetar as condutas ambientais dos agentes econômicos.

2 TRIBUTAÇÃO E INDUÇÃO AMBIENTAL

A extrafi scalidade tributária tem-se mostrado apta a fi nalidades ambientais. Segundo Sister (2008, p. 68) “[...] os instrumentos tributários – em decorrência de sua relação umbilical com a atividade econômica – podem e devem servir como forma de defesa de um meio ambiente sustentável”. Neste sentido, a expressão tributação ambiental tem sido utilizada para designar a utilização de mecanismos tributários destinados a estimular condutas que afetem positivamente o meio ambiente e/ou a desestimular condutas que impliquem em degradação ambiental. Evidentemente, que esta aptidão decorre da natureza indutora das normas tributárias.

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2.1 A NATUREZA INDUTORA DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS

A tributação, ao interferir na riqueza privada, tem o condão de afetar condutas individuais, seja de forma imediata ou mediata. Neste sentido, é possível apontar a natureza indutora implícita à norma tributária. Schoueri (2005) descreve os elementos objetivos e subjetivos que adjetivam as normas tributárias indutoras, com a ressalva de que tais elementos não são sufi cientes para abarcar os resultados concretos da indução tributária.

É natural que a norma tributária de natureza fi scal ou extrafi scal tenha a potencialidade de alterar condutas individuais, tendo em vista a interferência estatal na riqueza privada . Por exemplo, a edição de norma tributária de natureza fi scal, cujo objeto seja a elevação da alíquota do ICMS incidente sobre o consumo de gás natural de uso industrial, além de incrementar a arrecadação do referido imposto estadual, de forma secundária, poderá ter o efeito perverso de induzir o consumo industrial de outras fontes energéticas mais baratas, tal como o carvão vegetal, resultando em um indesejado desmatamento.

Em sentido inverso, a edição de norma tributária de natureza extrafi scal, cujo objeto de incidência seja o estímulo à aquisição de veículos de baixa cilindrada, direcionada às camadas mais carentes da população, resultará, sem dúvidas, em ganhos consideráveis para este segmento social. Contudo, de forma secundária, poderá induzirá o consumo de combustíveis fósseis e o conseqüente aumento na emissão de poluentes.

Assim, ao lado dos elementos objetivos e subjetivos é necessário apreender os resultados concretos da aplicação da norma tributária. O quadro 1 sintetiza os elementos necessários à identifi cação do fi m primário da norma tributária.

Quadro 1 – Norma tributária indutora e indução ecossocioeconômica

Por isso, a partir da confl uência dos três elementos, objetivo, subjetivo e concreto, é possível, então, apontar a natureza positiva ou negativa da indução tributária.

Quadro 1 – Norma tributária indutora e indução ecossocioeconômica

Por isso, a partir da confl uência dos três elementos, objetivo, subjetivo e concreto, é possível, então, apontar a natureza positiva ou negativa da indução tributária.

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2.2 A TRIBUTAÇÃO COM FINALIDADE DE INDUÇÃO AMBIENTAL

A tributação com fi nalidade de indução ambiental deve ser concretizada exatamente onde e quando as regras de mercado são incapazes de afetar positivamente as condutas dos agentes econômicos.

A tributação possui inúmeras bases econômicas de incidência, como a propriedade, o capital, a renda e o consumo. Esta abrengência torna a tributação apta a alcançar a totalidade das condutas com alguma relevância econômica, com estímulos e desestímulos fi nanceiros direcionados tanto a pessoas físicas como a empresas. No caso das pessoas físicas, a tributação com fi nalidade ambiental destina-se, por exemplo, a inibir o consumo de determinados produtos ou a induzir condutas. No primeiro caso, encontra-se a elevação da tributação sobre os combustíveis. Se o Estado não pode vedar o consumo desses produtos, aquele que os consome deve arcar com os custos sócio-ambientais decorrente da degradação do meio ambiente. Já no segundo caso, a redução da tributação pode estimular práticas que afetem positivamente a qualidade ambiental. É o caso da concessão de descontos no IPTU de imóveis urbanos em função do nível de arborização dos bairros ou da coleta seletiva do lixo.

No caso das empresas, é possível estabelecer diferenciações fi nanceiras a partir do nível de degradação ambiental, com fundamento na tecnologia e no processo empregados na produção; no armazenamento e na distribuição de produtos. Por exemplo, atividades econômicas com alto consumo de recursos naturais associada à baixa tecnologia, como as indústrias madeireiras e a atividade pecuária, podem sofrer maior incidência de tributos sobre o consumo (IPI e ICMS) ou até mesmo sobre o lucro (IRPJ), com a fi nalidade tanto de desestimular a atividade econômica quanto a de obter recursos destinados a minorar os danos sócio-ambientais. Além do evidente dano ambiental, tais atividades econômicas mostram-se inapropriadas ao desenvolvimento sócio-econômico local e regional. No entanto, um maior ônus tributário não pode ser interpretado como uma permissão para poluir o meio ambiente ou esgotar os recursos naturais. Pelo contrário, tem a intenção de induzir nos agentes econômicos uma maior efi ciência sócio-ambiental.

Em situação contrária, encontram-se aquelas atividades econômicas com alto consumo de recursos naturais associada à alta tecnologia, tal como as indústrias de benefi ciamento de petróleo, siderúrgicas e de geração de energia elétrica, dentre outras. Apesar de danosas ao meio ambiente, tais atividades econômicas são capazes de fomentar elevados ganhos à sociedade, desde geração de emprego e renda até facilidades ao homem moderno. Verifi ca-se, então, certa

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permissividade social, tendo em vista a relevância sócio-econômica dessas atividades. A tributação, aqui, deve premiar o esforço dos agentes econômicos na redução da degradação ambiental, com maciça desoneração sobre investimentos e equipamentos destinados a melhorias tecnológicas e de processos produtivos que possibilitam, por exemplo, menor emissão de poluentes ou menor consumo de recursos naturais.

A tributação também pode alcançar aquelas atividades econômicas com baixo consumo de recursos naturais, porém com alta potencialidade de degradação ambiental devido, por exemplo, a geração e descarte do lixo. Nesta situação estão incluídos os bancos, hospitais e demais prestadores de serviço. Aqui não se trata de consumo direto de recursos naturais, mas da enorme potencialidade de danos ambientais pelo excesso de material descartado. Neste caso, é possível introduzir uma redução na alíquota do IPTU destinada, por exemplo, a estimular a coleta de lixo seletiva.

3 ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL

Em condições perfeitas os agentes econômicos buscarão satisfazer suas necessidades individuais com o menor consumo de recursos. Nesta situação, a interação entre agentes econômicos, segundo as regras de mercado, será sufi ciente para a maximização dos resultados. Mas, a realidade indica que o mercado não se apresenta perfeito, as regras de mercado não são sufi cientes para reger as interações econômicas e os agentes não conseguem satisfazer suas necessidades com o menor consumo de recursos.

A análise microeconômica tradicional, por outro lado, não consegue alcançar todos os custos inerentes às interações no mercado, resultando em uma impossibilidade teórica e empírica de apresentar soluções que preservem à efi ciência econômica em condições distintas da perfeita. Em sentido contrário à análise tradicional, Coase (2009, p. 13) empenhou-se em “mostrar la importancia que tiene para el funcionamiento del sistema económico lo que puede llamarse la estructura institucional de la producción“. Sua pretensão era estudar o sistema econômico não como idealizado na mente dos economistas, mas como ele é no mundo real (COASE, 2009, p.15).

Coase mostrou que os mecanismos de determinação de preços trazem subjacentes outros custos associados às interações econômicas, como, por exemplo, a busca de um contratante, a formalização e execução de um contrato, o exercício de um direito de propriedade ou a preservação ambiental. A interação dos agentes econômicos no mercado é infl uenciada não apenas pelo sistema

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de preços da microeconomia tradicional, mas principalmente pelos custos de transação envolvidos nas interações. Neste sentido, as instituições e o ambiente institucional são elementos necessários à minimização dos custos de transação.

O ambiente institucional tem a função primordial de possibilitar a redução de custos de transação através da criação de aparatos formais e materiais para a realização de trocas que maximizem os lucros dos agentes econômicos. Isto é conseguido através, por exemplo, do estabelecimento da estrutura necessária ao exercício dos direitos de propriedade, à execução dos contratos e à simetria da informação, dentre outros.

Em outras situações o ambiente institucional tem exatamente a função inversa de elevar os custos de transação associados ao exercício dos direitos de propriedade ou à execução de um contrato, tais como, por exemplo, quando o Município estabelece alíquotas diferenciadas do IPTU conforme o uso do imóvel (CF, art. 156, § 1°, inc. I) ou obriga seu “adequado aproveitamento, sob pena [...] de parcelamento ou edifi cação compulsórios” (CF, art. 182, § 4°, inc. I). O ambiente institucional também possui outras funções, tais como regular a atividade econômica; possibilitar a manutenção fi nanceira do ente estatal ou proteger a parte hipossufi ciente na relação de consumo, dentre inúmeras outras. Nestes casos, o ambiente institucional será um minimizador dos lucros. É onde a busca pela efi ciência econômica encontra os limites sociais.

Mais recentemente a função social e as questões ambientais ganharam relevância e passaram a compor sérias restrições aos agentes econômicos no exercício dos direitos de propriedade e no direito à liberdade de iniciativa. Neste sentido, Marques (2007, p. 24) afi rma que “[...] assim como a função social opera como limite imanente à propriedade privada, o direito ao meio ambiente também provoca uma limitação de caráter imanente [...] ao direito à liberdade de iniciativa”.

A aproximação das abordagens econômica e jurídica propiciou a “aplicação de conceitos e métodos não jurídicos no sentido de entender a função do Direito e das instituições jurídicas” (CALIENDO, 2009, p. 8). Contudo, a Análise Econômica do Direito não chega a ser uma unanimidade. Há muitas vozes dissonantes. Por exemplo, Da Rosa (2009, p. 7) é enfático ao afi rmar:

[...] preponderância de um discurso silencioso condicio-nador do jurídico, implementado a partir da construção da imagem neutra da economia universal e inevitável.

Na seara ambiental, Sachs (2007, P. 83) também aponta as limitações das análises econômicas:

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As ferramentas tradicionais do economista, sobretudo aquelas fornecidas pela microeconomia, mostram-se clara-mente insufi cientes numa abordagem de harmonização do desenvolvimento socioeconômico com a gestão racional dos recursos e do ambiente. É o que se verifi ca sobretudo no que diz respeito ao sistema de preços.

Por outro lado, não é prudente deixar de indicar a coincidência histórica entre o surgimento daquilo que se denomina de Análise Econômica do Direito com o ressurgimento do liberalismo econômico, agora denominado de neoliberalismo. Este último nada mais fez que propor, mais uma vez, o modelo de organização social com fundamento na prevalência das interações econômicas sobre as relações políticas e sociais. Não deixa de ser uma forma ideológica de enxergar o mundo.

3.1 O TRIBUTO COMO CUSTO DE TRANSAÇÃO

Independentemente das correntes sobre o fundamento político e social do tributo, de sua natureza jurídica e fi nalidades, é relevante entender a tributação como um custo associado ao exercício e manutenção de direitos de propriedade e à execução de contratos. No primeiro caso, temos os tributos incidentes sobre a propriedade (IPVA, IPTU) ou sobre a transmissão dessa propriedade (ITBI, ITCD). No segundo caso, temos os tributos incidentes sobre a circulação jurídica de produtos, mercadorias e serviços transferidos através de contrato de compra e venda mercantil (ICMS, ISS, IPI). Caliendo (2009, p. 22) esclarece:

A tributação pode ser entendida como um custo de transa-ção em sentido restrito, na medida em que se constitui em um custo para a formalização de um negócio jurídico [...]De outra parte, a tributação pode ser entendida também como sendo um custo de transação em sentido amplo, ou seja, conforme o teorema de Coase. Nesse caso, a tribu-tação pode ser considerada um custo a ser verifi cado na utilização dos mecanismos de mercado. As inseguranças decorrentes de um sistema tributário imperfeito e inefi cien-te implicam em maior incerteza na contratação e, portanto, em um custo de transação maior.

Para melhor explicar como a tributação afeta os custos de transação é possível tomar como parâmetro as empresas industriais, tendo em vista a

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relevância dos estímulos e desestímulos tributários destinados ao setor, bem como a maior potencialidade de resposta desses agentes econômicos à tributação com fi nalidade de indução de condutas ambientais. Deve ser ressaltado que a proposição de qualquer modelo representativo da realidade requer a abstração de outras questões extremamente relevantes. Neste trabalho, por exemplo, não adentraremos nas questões relacionadas à legalidade, oportunidade e proporcionalidade.

O modelo linear da relação custo, volume de produção e lucro é bastante representativo e consegue explicar relações entre receitas totais e custos e despesas totais, bem como o lucro obtido pelo agente econômico, conforme mostrado no gráfi co 1.

Gráfi co 1 – Representação gráfi ca do ponto de equilíbrio de mercado

Os custos e despesas totais são divididos em custos e despesas fi xos e custos e despesas variáveis. A reta 1 é a representação linear das receitas totais, que varia em função do volume de produção u. A reta 2 é a representação dos custos e despesas totais, que também varia em função do volume de produção u. Na verdade, a reta 2 é a somatória dos custos e despesas variáveis com os custos e despesas fi xos, estes últimos representados pela reta horizontal 3.

Haverá equalização dos custos e despesas totais com as receitas totais exatamente no ponto de equilíbrio Pe. A faixa de área entre as receitas totais (reta 1) e os custos e despesas totais (reta 2), após o ponto de equilíbrio Pe, representa grafi camente o lucro obtido. Já a faixa de área inferior entre as duas retas citadas, representa grafi camente prejuízo obtido.

Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe Custo

u

c

1

2

3

Variáveis

Fixos

Custos e despesas

totais

Receitas totais

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3.2 A TRIBUTAÇÃO COM FINALIDADES AMBIENTAIS

Apesar das evidentes limitações decorrentes da mera análise econômica, as questões ambientais podem ser entendidas como externalidades. Segundo Andrade (2004, p. 32):

[...] externalidade [...] ocorre quando os preços que os agentes recebem do mercado não são corretos. No caso da externalidade negativa, os indivíduos não sentem os custos totais das ações e, por conseguinte, realizam mais dessas do que a sociedade desejaria. No caso da externalidade posi-tiva, agentes econômicos não sentem os benefícios totais de suas ações e acabam não se engajando tanto nelas quanto seria desejado do ponto de vista social.

Dentre as externalidades ambientais negativas poderiam ser incluídas a emissão de poluentes e o esgotamento dos recursos naturais; já dentre as externalidades ambientais positivas, o desenvolvimento sustentável, a redução do consumo de energia ou da emissão de poluentes.

As questões ambientais carregam implicitamente um custo. Por exemplo, o esgotamento de determinados recursos naturais irá elevar os custos e despesas variáveis. Já os investimentos em tecnologias ou em equipamentos, por sua vez, provocarão um incremento nos custos e despesas fi xos. Evidentemente que em muitas situações as regras de mercado (preços) não conseguem absorver os impactos desses custos e despesas. Isto pode ocorrer ou porque os agentes econômicos não dispõem de capacidade econômica ou porque não pretendem alterar seus custos e despesas variáveis e/ou fi xos de forma a atender as exigências ambientais. Circunstâncias como oferta/demanda, tecnologia, retração nos investimentos de ativos fi xos e tanto outros, afetam a tomada de decisão dos agentes econômicos. É exatamente onde o mercado não consegue, por si só, atender às novas exigências ambientais que a tributação representa importante mecanismo de intervenção.

A tributação pode ser entendida como uma forma de internalizar as externalidades negativas ou externalizar as externalidades positivas. De forma mais simples e menos econômica: a tributação possibilita uma oneração fi nanceira dos agentes econômicos pelos danos ambientais provocados ou, no sentido inverso, um ressarcimento fi nanceiro pelos benefícios ambientais. Por exemplo, em determinadas situações o Estado pode impor maior ônus tributário sobre determinados produtos e serviços na intenção de desestimular seu consumo; ou, em sentido contrário, abrir mão de parcela de suas receitas tributárias na

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intenção de propiciar um ambiente favorável à expansão da atividade econômica com tecnologias e processos que representem menor emissão de poluentes ou menor consumo de recursos naturais.

Diante desta realidade, o agente econômico será impelido a buscar arranjos que reduzam seus custos de transação. Os gráfi cos a seguir mostram alguns desses arranjos. Uma primeira situação é mostrada na indução de comportamento de consumo, que pode ser concretizada através da desoneração dos impostos incidentes sobre o consumo (IPI ou ICMS) de produtos que apresentem menor consumo energético (geladeiras, freezers, lâmpadas, etc.) ou emissão de poluentes (carros, motos, caminhões, etc.). Esta situação é mostrada no gráfi co 2.

Gráfi co 2 – Representação gráfi ca da redução nos custos e despesas variáveis

A redução nos custos e despesas variáveis possibilita ao agente econômico reduzir o preço fi nal dos produtos alcançados pela desoneração, sem, contudo, reduzir o lucro, para um mesmo volume de produção u. Esta situação é mostrada no gráfi co 3 abaixo:

Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe

Novo ponto de equilíbrio Pe’

Custo

u

c

c)

u’

1

2

4

3

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Gráfi co 3 – Representação gráfi ca da redução nos custos e despesas variáveis e nas receitas totais

Com a redução nos custos e despesas variáveis o agente econômico poderá reduzir o preço fi nal de produtos (reta 5), induzindo o consumo de determinados produtos em detrimentos de outros não alcançados pela desoneração. Não se veda o consumo, mas apresenta-se um estímulo fi nanceiro de forma a induzir determinado comportamento de consumo.

Há outras situações onde a intenção é exatamente a oposta, por exemplo, inibir o consumo industrial de determinada matéria-prima (por exemplo, a madeira) ou outros insumos (por exemplo, a água ou a energia elétrica). Um incremento nos tributos incidentes sobre a matéria-prima ou os insumos elevará os custos e despesas variáveis, conforme mostrado no gráfi co 4.

Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe

Novo ponto de equilíbrio Pe’

Custo

u

c

c’

5

4

1

2

3

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Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe

Novo ponto de equilíbrio Pe’

Custo

u

c

c’

u’

1

2

3

4

Gráfi co 4 – Representação gráfi ca da elevação nos custos e despesas variáveis

Com a elevação dos custos e despesas variáveis (reta 4), o lucro só será obtido a partir do volume de produção u’. Nesta situação, o agente econômico será induzido a substituir ou reduzir o consumo da matéria-prima e dos insumos. A fi nalidade, nesta situação é permitir que “[...] tanto o consumidor quanto o produtor se defrontam com um novo preço de mercado. Por conseguinte, a nova sinalização que recebem do mercado, através dos preços, é para consumir e vender menos” (ANDRADE, 2004, p. 27).

Também é possível, através da tributação, estimular a substituição de fontes energéticas industriais, a fi m de reduzir o consumo, por exemplo, do carvão vegetal e da lenha, ainda muito comum em pequenas siderúrgicas e em indústrias de panifi cação. Esta substituição requerer investimentos em tecnologia, em equipamentos e outros custos e despesas fi xos. Esta situação é mostrada no gráfi co 5.

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Gráfi co 5 – Representação gráfi ca da elevação nos custos e despesas fi xos

A elevação nos custos e despesas fi xos, representados pela reta 5, altera o ponto de equilíbrio para Pe’. Nesta situação, a redução nos tributos diretos, tal como IRPJ, permitirá a redução dos custos e despesas fi xas de forma que o agente econômico nem reduza seu lucro nem repasse ao preço fi nal das mercadorias a elevação dos custos. Esta situação é mostrada no gráfi co 6.

Gráfi co 6 – Representação gráfi ca da elevação nos custos e despesas fi xos

Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe Custo

u

c

4

1

2

3

Novo ponto de equilíbrio Pe’

u'

c'

5

Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe Custo

u

c

1

2

3

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Também é possível apontar que a tributação pode ser utilizada como instrumento de zoneamento urbano. Por exemplo, o desenvolvimento de determinadas atividades econômicas em áreas urbanas mostra-se inconveniente, como ocorre com indústrias químicas, pequenas siderúrgicas e metalúrgicas.

Com o crescimento das cidades, a localização dos distritos industriais passou a compor a própria área urbana. Este é um problema que afeta a coletividade, tendo em vista a degradação ambiental urbana e a proximidade de agentes químicos e mecanismos, com evidentes riscos à saúde pública e à integridade física das pessoas. Neste sentido, é possível a criação de desestímulos à permanência destes agentes econômicos em áreas urbanas através do aumento do IPTU dos imóveis urbanos com fi ns industriais. Esta situação é mostrada no gráfi co 7.

Gráfi co 7 – Representação gráfi ca da elevação nos custos e despesas fi xos

O maior ônus no IPTU elevará os custos e despesas fi xos (reta 5). Nesta situação, o novo ponto de equilíbrio Pe’ só será atingido a um volume de produção u’, superior ao volume original u, o que afetará o lucro do agente econômico.

Volume de produção

Ponto de equilíbrio Pe Custo

u

c

4

1

2

3

Novo ponto de equilíbrio Pe’

u'

c'

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CONCLUSÕES

Com o forte fenômeno do ressurgimento do liberalismo econômico, o modelo de organização social passou a ter fundamento na prevalência das interações econômicas. A ideologia neoliberal traz implícita a defesa intransigente das diferenças formais – e do sistema legal como vetor indutor dessas diferenças – através da criação de tutelas (reservas de mercado), da manutenção de privilégios (desregulamentação dos direitos alheios, tais como os trabalhistas e previdenciário) e maciça transferência de recursos públicos (fi nanciamento estatal subsidiado e benefícios fi scais à atividade econômica) destinados a fomentar o desenvolvimento econômico.

Depois de quase cinco décadas, porém, esta realidade passa a ser sentida com maior intensidade nas questões que envolvem as intricadas relações entre meio ambiente e desenvolvimento econômico. O discurso econômico corrente revela que a degradação do meio ambiente é justifi cada a partir de premissas que privilegiam apenas o desenvolvimento econômico e a efi ciência econômica. O problema é que esta premissa encontra seu melhor arranjo quando há a privatização dos recursos naturais e a socialização dos custos ambientais. Evidentemente que os resultados práticos deste modelo de desenvolvimento econômico já começam a despertar a atenção de parcela considerável dos governos nacionais, regionais e locais.

Por tudo isso, o discurso desenvolvimentista deve ser encarado com a devida reserva, especialmente diante dos resultados sócio-ambientais atuais. Na verdade, a visão meramente econômica tem o condão de esconder muito da inefi ciência de parte considerável dos agentes econômicos. Esta situação, inclusive, passa a ser o fundamento de validade da intervenção do Estado no mercado para impedir ou restringir determinadas atividades econômicas degradantes ao meio ambiente. Os mecanismos de intervenção estatal são a regulação e os instrumentos econômicos. Dentre estes últimos se inclui a tributação.

A tributação apresenta-se como mecanismo apto a internalizar ou externalizar os custos ambientais. No primeiro caso, a fi nalidade é desestimular, através da imputação dos custos coletivos àqueles agentes econômicos que deram causa aos danos ambientais. Esta situação implica em uma elevação dos custos de transação. No segundo caso, a intenção é exatamente a inversa, ou seja, estimular, através da socialização dos custos ambientais individuais, atividades econômicas que produzam benefícios ambientais à coletividade. Esta situação corresponde a uma redução nos custos de transação.

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Evidentemente que toda e qualquer intervenção estatal deve ser acompanhada de severas precauções, porque ao interferir nos custos de transação de alguns agentes econômicos, o Estado pode criar privilégios, muitas vezes, não extensíveis aos demais agentes econômicos inseridos no mercado, resultando, também, em inefi ciência econômica.

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Artigo recebido em: maio/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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A PÓS-MODERNIDADE E AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO*

Walmir de Albuquerque Barbosa**

Sumário: Introdução; A pós-modernidade; As ciências da Comunicação no contexto da modernidade e Referências.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo, fazer uma refl exão sobre o con-ceito de Pós-Modernidade e, perscrutando alguns autores clássicos que abordaram o tema, identifi car as variações que o en-volvem para, em seguida, aplicá-lo à com-preensão da Ciência da Comunicação. De modo mais específi co, como ponto de chegada, busca-se, também, o enten-dimento que contribua para um contorno histórico e teórico epistemológico às pes-quisas nas Ciências da Comunicação e, por extensão, às Ciências Sociais Aplicadas, no que couber em seus fazeres científi cos.

Palavras-Chave: Pós-Modernidade; Ciências da Comunicação; Epistemo-logia da Comunicação.

Abstract: This work aims to make a refl ec-tion on the concept of postmodernity and, peering into some classic authors that ad-dressed the issue, identify changes that in-volve to then apply it to the understanding of science communication. Specifi cally, as a point of arrival, an attempt was also an understanding that will help to outline the historical and theoretical epistemological research in Communication Sciences and, by extension, the Applied Social Sciences, as appropriate in its doings scientifi c .

Keywords: Post-Modernity; Commu-nication Sciences; Epistemology of Communication.

* Trabalho inicialmente apresentado na forma de Aula Inaugural do Ano Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, 22.03.2010.** Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambienta (UEA) e do Pro-grama de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (UFAM); Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.

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INTRODUÇÃO

Pode parecer simples o termo “pós-modernidade”, afi nal de contas ele está em todas as bocas, nas mais lídimas representações de nossos intelectuais e, também, no cotidiano, rotulando tudo que nos parece novo, espetacular, majestoso. Parece mesmo que já nascemos pós-modernos e que tudo que aconteceu há bem pouco tempo faz parte de um passado que não vivemos ou que pensamos não mais existir.

O que pensamos ser pós-moderno tateia em nossos dedos, marca nosso tempo como os sinos das aldeias, infl uencia nossas emoções, deslumbra-nos, e nos desnuda em olhares tri e quadridimensionais. Essas sensações empíricas nem sempre são acompanhadas de questionamentos mais profundos para identifi carmos de onde vêm, em qual mundo foram geradas, de qual contexto se desprenderam, de quais práticas se consolidaram e com quais intenções nos perseguem e nos envolvem.

Tal postura não é um sacrilégio para os que não têm por ofício o martírio da refl exão. Para nós, artesãos acadêmicos, pesquisadores de ofício e intelectuais por obrigação, nos vemos impelidos a questionar, a inquirir, a instigar, a desmontar e reconstruir os conceitos para entender as teorias pelos seus princípios elementares e mergulhar em sua episteme. Assim, conhecer cientifi camente é “um ir além” das sensações empíricas e buscar nas teorias gerais, respostas sobre as inquietações. E, continuamente inquietos, produzir novas refl exões, novas interpretações.

Para dar uma explicação ao sentido dessa dissertação sobre o tema Pós-modernidade e as Ciências da Comunicação, explicito logo: ele é de fundamental importância porque, dizem todos os pensadores, ser a Sociedade da Informação e da Comunicação uma das marcas, se não a maior delas, da contemporaneidade. Nós, da Comunicação, estamos, portanto, “envolvidos até os cabelos” com a Pós-Modernidade.

A PÓS-MODERNIDADE

Para Lyotard (1989), na obra A condição Pós-Moderna (primeira edição portuguesa), são pós-modernas as sociedades mais desenvolvidas.

O termo “pós-modernidade” teve sua origem na Espanha e, quando dado a conhecer, queria caracterizar somente um movimento artístico.

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A palavra está em uso no continente americano, na escrita de sociólogos e de críticos. Ela designa o estado da cultura após as transformações que afectaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do fi m do século XIX (LYOTAR, 1989, p.11).

A datação das causas da pós-modernidade, como se fossem sintomas do organismo social, tem suas raízes fi ncadas no início do século XX. A confl uência e a radicalização vão ocorrer na década de 50 do mesmo século, com o início da “crise das narrativas”, sobretudo, as que se referem ao Racionalismo, ao Iluminismo, ao Liberalismo e ao Socialismo, como correntes fi losófi cas que marcaram o século XIX e serviram de matriz para as Ciências Sociais “modernas” que, segundo o autor, legitimavam cientifi camente tais narrativas, que tinham como meta a promessa de emancipação da humanidade, cada uma a seu modo.

“Signifi cando ao extremo, considera-se que o ‘pós-modernismo’ é a incredulidade às metanarrativas” que, para Lyotard (1989, p.12), perdem força e se diluem em várias linguagens, estas, em alguns casos, carentes de legitimação. Mas, no conjunto, trazem consigo “valências pragmáticas sui generis”

Essas linguagens, ou melhor, “jogos de linguagem”, por vezes contraditórios entre si, paradoxais, alternam performances do sistema social, quando este busca efi cácia e se depara com o desencanto. Sem as metanarrativas, no vazio das utopias, “o critério de operatividade é tecnológico, não sendo pertinente para ajuizar do verdadeiro e do justo” (LYOTAR, 1989, p.13). Isto signifi ca dizer: com a descrença nas metanarrativas que se constituíram as grandes utopias que marcaram o século XIX e a primeira metade do século XX, o pragmatismo e o tecnicismo tornam-se forças mobilizadoras do novo tempo que, no plano econômico, é marcado pela era pós-industrial e no campo da cultura, pela era pós-moderna. Para o autor em questão (Lyotard) essa divisão está na raiz do saber nas “sociedades informatizadas” e é nestas sociedades que as infl uências das ciências e das tecnologias de ponta incidem sobre a linguagem. Para o autor, o “saber científi co é uma espécie de discurso” (p.15), “jogo de linguagem”, ao modo de Wittgenstein, e como tal, na pós-modernidade, não necessariamente deve estar vinculado a uma “ciência moderna”. Enquanto não legitimado como ciência, pode existir perfeitamente como um “discurso específi co”, e exemplifi ca:

a fonoaudiologia e as teorias linguísticas, os problemas da comunicação e a cibernética, as álgebras modernas e a informática, os computadores e as suas linguagens, os

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problemas de tradução das linguagens e a investigação das compatibilidades entre linguagens-máquinas, os problemas de armazenamento em memória e os bancos de dados, a telemática do aperfeiçoamento de terminais ‘inteligentes’, a paradoxologia (LYOTAR, 1989, p.16).

E continua: “a incidência destas transformações tecnológicas sobre o saber parece ser considerável. Ele encontra-se ou encontrar-se-á afectado nas suas duas principais funções: a investigação e a transmissão de conhecimentos” (p.16). Para Lyotard, a natureza do saber será alterada nessa transformação e terá, necessariamente, que se operacionalizar como conhecimento ao ser traduzida em “quantidades de informação”, através das máquinas que serão produzidas com esta competência. E elas não são outras, senão as tecnologias de comunicação.

O autor (LYOTAR, 1989), que está escrevendo esse texto no fi nal dos anos 80 do século passado, já está se referindo aos sistemas de redes virtuais para circulação do saber e apontando para o problema crucial, hoje, para nós, constatável, se objeto de investigação de campo, nas pesquisa em ciências da comunicação:

Pode-se, desde logo, esperar uma forte separação do sa-ber relativamente ao ‘sabedor’, qualquer que seja o ponto que este ocupe no processo de conhecimento. O antigo princípio de que a aquisição do saber é indissociável da for-mação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso. A relação dos fornecedores e dos utilizadores do conhecimento com este tende e tenderá a revestir-se da forma que os produtores e consumidores de mercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma de valor. O saber é e será produzido para ser vendido e é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: ambos os casos para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo, a sua própria fi nalidade, perdendo o seu ‘valor de uso’ (LYOTAR, 1989, p.18).

Se o discurso da pós-modernidade, com Lyotard, começa por dizer que ele se aplica às “sociedades mais desenvolvidas”, entenda-se: as nações Européias e os Estados Unidos da América, não deixam de ser também, como afi rmam Agnes Heller e Ferenc Fehér em A Condição Política Pós-Moderna (editado pela Editora Civilização Brasileira, no Brasil, em 1998, mas escrito no contexto dos acontecimentos do fi nal da década e 80), uma denúncia ao eurocentrismo:

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Em algum ponto tinha de chegar o momento em que fa-talmente os europeus seriam obrigados a questionar o pro-jeto ‘Europa’ como um todo, quando teriam que denunciar a falsa pretensão à universalidade inerente no ‘particular europeu’. A campanha cultural e política contra o etnocen-trismo foi na verdade uma grande campanha em favor da pós-modernidade ( p.13).

Divergindo de Lyotard, o conceito de pós-modernidade de Heller e Fehér estende-se ao mundo globalizado, num ajuste que envolve as tendências mais cristalizadas da contemporaneidade no fi nal de século:

Percebe-se aí que esse segundo conceito de pós-modernidade, ao agregar a idéia de pluralidade, de tempos e espaços civilizatórios diferentes, abarca tanto o centro como a periferia da humanidade, vivendo na era das pós-metanarrativas, onde

qualquer tipo de política redentora é incompatível com a condição política pós-moderna [...]. Ao mesmo tempo, a condição política pós-moderna fi ca constrangida até mes-mo com o utopismo não messiânico, que a torna vulnerável a concessões fáceis ao presente e suscetível aos mitos de ‘Juízo Final’ e aos medos coletivos decorrentes da perda do futuro (HELLER E FEHER, p.14 e 15).

Podemos tomar como exemplo as questões relativas ao aquecimento global e as questões ambientais como um todo, trabalhadas exaustivamente pela mídia.

Esse espaço do pluralismo, para os autores da obra A Condição Política Pós-Moderna, não exclui a possibilidade de convivência de todas as idéias, ideologias e teorias que alimentaram a produção, a refl exão e atividade intelectual e que possam ser recicladas e retomadas dentro dos espaços múltiplos da pós-modernidade, mas repassados pelos seus fi ltros, o que outros autores, tais como Jean Baudrillard (2003), a quem voltaremos mais adiante, vão chamar de processos de fragmentação em oposição às grandes narrativas.

Aos nossos propósitos interessa bastante levar em consideração as posições de outro autor clássico, Fredric Jameson. Nos seus vários escritos e, notadamente, em Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio e em As sementes do tempo, trabalha com propriedade as relações entre o Capitalismo, a Cultura e História, tendo como fi o condutor a Pós-modernidade.

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Enquanto Lyotard situa a Pós-modernidade no espaço das nações desenvolvidas, Heller e Fehér ampliam esse espaço, ressaltam a relação temporal e procuram analisar a contemporaneidade levando em conta a idéia de pluralidade, Jameson, inicialmente descrente da necessidade de rotular a contemporaneidade como pós-moderna, termina por aceitar o rótulo, abarcar os fatos na sua acontecência e os analisar a partir de uma ótica que nos aproxima muito mais da ponte que desejamos fazer com a Sociedade da Informação e da Comunicação e da Comunicação como Ciência e, mais precisamente, como Tecnociência.

Logo na Introdução de sua obra Pós-modernidade: a lógica cultural do capitalismo tardio (edição original de 1991, e posteriormente editado no Brasil pela Editora Ática - em uso neste trabalho a segunda edição, de 2004), faz uma advertência:

É mais seguro entender o conceito do pós-moderno como uma tentativa de pensar historicamente o presente em uma época que já esqueceu como pensar dessa maneira [...]. Pode ser que o pós-modernismo, a consciência pós-moder-na, acabe sendo não muito mais do que a teorização de sua própria condição de possibilidade, o que consiste, primor-dialmente, em uma mera enumeração de mudanças e modi-fi cações [...]. O pós-moderno busca rupturas, busca eventos em vez de novos mundos, busca o instante revelador depois do qual nada mais foi o mesmo, busca um ‘quando-tudo-mudou’ (evocando William Gibson, criador do cyberpunk – parêntese nosso sobre a nota do autor), ou melhor, busca os deslocamentos e mudanças irrevogáveis na representação dos objetos e do modo como eles mudam. Os modernos es-tavam interessados no que poderia acontecer depois de tais mudanças e nas suas tendências gerais: pensavam no ob-jeto em si mesmo, substantivamente, de modo essencialista ou utópico. Neste sentido o pós-moderno é mais formal, e mais ‘distraído’ (evocando Walter Benjamin); apenas cronometra as variações e sabe, bem demais, que os con-teúdos são somente outras imagens... O pós-modernismo é o que se tem quando o processo de modernização está completo e a natureza se foi para sempre. É o mundo mais completamente humano do que o anterior, mas é um mundo no qual a ‘cultura’ se tornou uma verdadeira ‘segunda na-tureza’. De fato, o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser uma das pistas mais importantes para se detectar o

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pós-moderno: uma dilatação imensa de sua esfera (a esfera da mercadoria) (JAMESON, 2004, p.13-14).

Ao se opor a Lyotard, que parece crer mesmo no fi m das grandes narrativas para impor o seu conceito de pós-moderno, Jameson retoma a história, a dialética, e nesse aspecto a teoria sobre o capital de Marx, para avançar e situar o quadro da contemporaneidade, de modo temporal, nos quadros da evolução do capitalismo, na sua fase mais adiantada, ou seja, o Capitalismo Tardio, fase em que, além de dominar a natureza, construindo outra natureza, dominar os processos produtivos e ultrapassá-los naquilo que eles têm de mais dinâmico, dominar todos os mercados pelo processo globalizante, provocar dinâmicas diferenciadas através do capital fi nanceiro e dos deslocamentos produtivos e de bens, ele, o capital, domina os espaços produtivos dos saberes - tradicionais ou avançados, os espaços das tecnologias e das ciências e todos, sem exceção, se assim se pode dizer, na condição de consumidores embalados pelo fetiche da mercadoria, o ajudam a circular velozmente no mercado, que é a forma de sua realização e reprodução ampliada.

Completando a sua visão sobre o conceito de pós-modernidade, afi rma Fredric Jameson ( 2004, p.18):

A tarefa ideológica fundamental do novo conceito, en-tretanto, deve continuar a ser a de coordenar as novas for-mas de práticas e de hábitos sociais e mentais [...] e as no-vas formas de organização e de produção econômica que vêm com a modifi cação do capitalismo – a nova divisão global do trabalho – nos últimos anos.

Em 1992, Guy Debord, que morreria em 1994, reedita o seu livro-manifesto de 221 teses que, desde novembro de 1967, infl uenciava as mentes revolucionárias do mundo inteiro, intitulado A sociedade do Espetáculo. No Prefácio dessa edição, faz uma advertência sobre a confi rmação de suas teses e a revisão de bem poucas, face aos acontecimentos do mundo. O momento da reedição do livro de Debord é um momento importante, nele não se estava a discutir a utopia das emancipações, mais já se contabilizavam dados de um mundo transformado pelo capital, unifi cado por ele e já ultrapassando os limites do que se convencionou chamar na economia de Neoliberalismo. O novo momento do capital era, na visão crítica, o “Capitalismo Tardio”, expressão formulada por Ernest Mendel (Economista judeu-alemão, 1923-1995) e, de certo modo, bem aceita entre os neomarxistas como JAMESON, que o toma como conceito e título de uma das suas mais importantes obras. Nesse momento, também, se

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fi rmam os termos a “Condição Pós-moderna” ou “Pós-Modernidade”.Ao mesmo tempo em que defi nimos o contexto em que se forma a

Sociedade da Informação e da Comunicação, o Contexto da Pós-modernidade, não podemos deixar de lado as características apontadas por Guy Debord, de forma muito radical, sobre o espetáculo como marca desse novo tempo:

Tese 1 – Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.Tese 2 – As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fl uxo comum, no qual a unidade des-sa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria uni-dade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo das imagens autonomizadas, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida é o movimento autônomo do não-vivo.Tese 3 – O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unifi cação...Tese 4 – O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.Tese 5 – O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão maciças das imagens. Ele é uma Weltanschauung que se tornou efetiva, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou (p.13-14)...............................................................................................Tese 34 – O espetáculo é o capital em tal grau de acumula-ção que se torna imagem (p.25).

Corroborando com essa visão de Guy Debord, sobre o mundo da pós-modernidade, apesar de ser um dos que faz rejeição ao conceito, Jean Baudrillard, em entrevista dada a François L’Yvonet e publicada no Brasil pela Editora Zouk (SP), 2003, com o título De um Fragmento ao Outro, diz que na sociedade dos fractais “tudo virou tela” (p.90), tudo é “simulacro” e, como na Tese 1 de Debord, esta é a forma de representação apartada do real, ou como diz ele, textualmente, no fi nal da Tese 3: é “a linguagem ofi cial da separação generalizada”(DEBORD, 1994, p.14).

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Em ensaio intitulado “O Príncipe Eletrônico”, publicado pela Editora Civilização Brasileira, 2000, no livro Figuras da modernidade-mundo e republicado em 2009, pela Editora Paulinas, coletânea organizada por Maria Aparecida Bacega e Maria Cristina Castilho Costa, intitulada Gestão da Comunicação: epistemologia e pesquisa teórica, Octavio Ianni faz uma descrição do Príncipe de Maquiavel que, em sucessivas mudanças, torna-se O Moderno Príncipe e se transforma, em seguida, no Príncipe Eletrônico.Segundo ele essas fi guras se “sucedem-se e convivem nas mais diversas situações, épocas e regiões” (IANNI, 2009 p.53). No príncipe de Maquiavel, no qual se espelha o pensamento moderno da política e dos seus notáveis a partir do século XVI, as práticas político-econômicas e socioculturais aparecem e se transformam como num jogo entre a “fortuna” e a “virtude” ( fortuna e virtù).

A segunda versão comentada do príncipe toma corpo com Gramsci que

formula a teoria do O moderno príncipe, isto é, o partido político como intérprete e condutor de indivíduos e cole-tividades, grupos e classes sociais. O moderno príncipe é, simultaneamente, ‘intelectual coletivo’, capaz de interpre-tar tanto os seguidores do partido como os outros setores da sociedade, indiferentes e adversários. Nesse sentido o moderno príncipe se revela capaz de construir, realizar e desenvolver a hegemonia de um projeto de Estado-Nação, envolvendo a organização, o desenvolvimento ou a trans-formação da sociedade (IANNI, 2009, p.54).

Ao cabo da análise sobre os dois primeiros príncipes, Ianni se questiona: “nesse sentido, cabe perguntar se a crise que parece atingir duramente um e outro príncipe não acaba por colocar em causa o que se poderia entender por hegemonia e soberania, tanto quanto virtù e fortuna, bem como outras categorias ‘clássicas’ da política” (p.54).

Para Ianni, no fi nal do século XX, os dois príncipes estavam envelhecidos ou “simplesmente se tornaram anacrônicos”:

Na época da globalização, alteram-se quantitativamente e qualitativamente as formas de sociabilidade e os jogos das forças sociais, no âmbito de uma confi guração histórico-social de vida, trabalho e cultura, na qual as sociedades civis nacionais revelam-se províncias da sociedade civil mundial em formação. Nessa época, as tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas impregnam crescente e generalizadamente todas as esferas da sociedade

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nacional e mundial; e de modo particularmente acentuado as estruturas de poder, as tecnoestruturas, os think tanks, os lobbyings, as organizações multilaterais e as corporações transnacionais, sem esquecer as corporações da mídia. Esse pode ser o clima em que se forma, impõe e sobrepõe O príncipe eletrônico, sem o qual seria difícil compreender a teoria e a prática da globalização (p.56).

O príncipe eletrônico é onipresente, está em todo lugar, mas os que ele representa, através de suas tecnologias eletrônica, informática e cibernética, formam uma “multidão solitária”, expressão que dá título ao famoso livro de David Riesman, A multidão solitária, onde ele trata a subjetividade do sujeito autodirigido e agora lembrado no ensaio de Ianni:

O príncipe eletrônico é o arquiteto do ágora eletrônico, no qual todos estão representados, refl etidos, defl etidos ou fi g-urados, sem risco da convivência nem da experiência. Aí as identidades, alteridades e diversidades não precisam des-dobrar-se em desigualdades, tensões, contradições, trans-formações. Aí tudo se espetaculariza e estetiza, de modo a recriar, dissolver, acentuar, transfi gurar tudo o que pode ser inquietante, problemático, afl itivo. Se quisermos com-preender a crescente importância das tecnologias eletrôni-cas, informáticas e cibernéticas, o que é fundamental para entender a crescente infl uência da mídia em todas as esferas da sociedade nacional e mundial, é essencial começar pelo reconhecimento de que o século XX esteve profundamente impregnado, organizado e dinamizado por técnicas sociais. São inúmeras as inovações tecnológicas que adquiriram o signifi cado de poderosas e infl uentes técnicas sociais ( IANNI, 2009, p.67-68).

Por tecnologias sociais vamos entender o conjunto de invenções e descobertas que ajudam a criar novos artefatos, transformá-los em produtos e lançá-los no mercado e institucionalizá-los como artefatos sociais em uso.

Seguindo o modo de produção de mercadorias, tais produtos, no caso da comunicação, no século XX, se estendem desde o telefone, que se junta à fotografi a, ao telegrafo, à linotipo e as rotativas de impressão, já em uso corrente no mercado, e também ao cinema, ao rádio, à televisão, às vitrolas, ao disco, ao gravador de som e gravador de imagens e som, ao transistor, ao computador, aos sofi sticados parelhos de escuta e espionagem de guerra, às câmeras de fi lmar, aos satélites de comunicação, ao computador pessoal e a todos os seus

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derivados e periféricos no setor de informática, às fi bras óticas, aos softs de todas as naturezas, à internet e à internet nas nuvens.

Para entrarem no circuito do mercado, a sua produção mobiliza cientistas, tecnólogos, empresários e seus capitais, especialistas em design, publicitários e, em muitas situações, os Estados.

A presença do Estado, num primeiro caso, pode ser a de agente regulador, num segundo caso como investidor estatal ou parceiro da iniciativa privada. Dependendo da tecnologia em questão, pode mobilizar forças internacionais que regulam o mercado, que vendem tecnologias de produtos e de processos, ou as que controlam tais mercados de forma monopolista.

Para cada produto ou para um conjunto de produtos, compatíveis ou convergentes, formam-se cadeias produtivas que aglutinam capitais fi nanceiros, insumos, tecnologias, locais apropriados, e recursos humanos para produzi-los e comercializá-los. Em função dessa produção, aparecem outros componentes nessa cadeia, que se ligam marginalmente à produção, formando opinião, formando gosto e preferência, espionando concorrentes.

Os que se ligam diretamente aos aparatos tecnológicos para completar-lhes as funções, são produtores de conteúdos para neles circular na forma de entretenimento, de informação e protocolos e documentos que geram novas indústrias, um típico processo de semiose. Da mesma forma interferem, quando em funcionamento, nos aspectos formativos das carreiras profi ssionais, nos comportamentos de consumo das pessoas, nos marcos regulatórios gerais da sociedade e atingem, com isso, os aparelhos de estado, tanto no que diz respeito às garantias de direitos do Estado e de consumidores quanto do próprio Estado na sua obrigação de tutela.

Na expressão de Ianni (2009):

Lado a lado com o desenvolvimento das tecnologias ele-trônicas, informáticas e cibernéticas, desenvolvem-se as redes, o fax, o e-mail, a internet (e com ela as redes sociais de relacionamento, os blogs, o twitter – parêntese nosso) a multimídia, o hipertexto, a realidade virtual, o cibere-spaço, a sociedade informática, o mundo sistêmico. A par com o mundo geo-histórico, desenhado pela modernidade, emerge o mundo virtual, tecido sistematicamente, desen-hado pela Pós-modernidade. Um e outro parecem distintos, separados, autônomos, uma vez justapostos outras disso-nantes, estridentes. É como se a experiência e a consciência se dissociassem, da mesma maneira que as palavras e as coisas, a linguagem e a imagem, o real e o virtual, o ser e o devir, o dito e a desdita... Esse mundo da Pós-modernidade,

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no entanto, está amplamente articulado em moldes sistêmi-cos. Ele se sustenta no ar, desenraizado, volante, virtual e sideral, em toda uma vasta, complexa e efi caz rede sistêmi-ca, por meio da qual se articulam mercados e mercadorias, capitais e tecnologias, força de trabalho e mais-valia (p.72-73).

Assim, o Príncipe Eletrônico descrito por Octavio Ianni, torna-se senhor da virtù e da fortuna. Capaz de transformar, sujeitos, coisas e instituições em notáveis, da noite para o dia, e de fazer o coletivo a acreditar que as qualidades desses avatares se traduzirão em obras boas e imorredouras.

Neste ponto vale fazer uma intervenção metodológica para lembrar o caráter sistêmico desse mundo da Sociedade da Informação e da Comunicação, construído e trabalhado pela Pós-modernidade. Não é sistêmico porque assim o queiramos ver, por escolha teórica específi ca, mas porque é forma pela qual se organiza; o sistêmico está na sua ontogênese. Parece ser um imperativo categórico, e chega-se a esta conclusão por meios e caminhos teóricos os mais diversos, para visualizá-lo criticamente. Vale lembrar, também, que um procedimento metodológico é o de buscar dimensionar, conhecer o sistema e apreendê-lo no seu processo de funcionamento ou de performance. Outro, é conhecê-lo e produzir o estudo crítico de sua performance. Isto tem uma relação direta com o referencial teórico que deve orientar os trabalhos de pesquisa, merecendo, portanto uma discussão mais demorada e em outros momentos e espaços, quando se discute as Ciências da Comunicação.

AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NO CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE

Não é possível ver a pós-modernidade sem a presença exaustiva da comunicação como processo, como ponto crucial das relações sistêmicas. Como não vamos aqui analisar essas relações sistêmicas e sim buscar explicar como elas passaram a ser hegemônicas no contexto da modernidade e como, para explicá-las as Teorias da Informação e da Comunicação, como jogos discursivos, particulares no interior de cada ciência, vão se constituindo num tecido explicativo mais amplo, ao ponto de se agruparem na formação do que se convencionou e busca referendar como sendo a Ciência da Comunicação ou Ciências da Informação e da Comunicação.

As ciências, de um modo geral, têm a função de explicar as relações que se dão em áreas específi cas de conhecimento. Essa colocação fi ca mais fácil

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para caracterizar as ciências chamadas ciências da natureza. Com a Ciência da Informação e da Comunicação a situação torna-se mais complexa por ser tratada em quase todos os discursos das ciências: da lógica e da matemática, passando pelas ciências factuais, pela arte, pela retórica. Está incrustada, também, nas outras formas de saber: o fi losófi co, o religioso e o popular. Isto quando se considera, ainda, a clássica divisão dos saberes, hoje sob interpretações diversas, com base no paradigma da interseção dos saberes.

Em A Invenção da Comunicação, Armand Mattelart (1996), fala dessa invenção de ciência para explicar os fenômenos que decorrerem das intervenções humanas na natureza e nos relacionamentos quando se alteram as relações de comunicação, desde os primórdios da humanidade. Sem querer simplifi car, podemos afi rmar: o discurso da comunicação como Ciência é contemporâneo, mas nos chega enriquecido pela retórica clássica, pela escolástica, pela exegese dos textos sagrados, pela retórica dos púlpitos, pelo grito dos tribunos, pela voz da imprensa e suas representações na formatação de notícias, de entretenimento e do trabalho básico com as unidades de informação; chega enriquecido pela sociologia, pela psicologia, pela antropologia, pelas ciências da linguagem (mais próximas e mais integradas à comunicação); chega-nos, sobretudo, revolucionada pela biologia moderna e pela física.

Assim como aparece no discurso das ciências em geral, esse aparecer visivelmente comprometido está no cerne das grandes narrativas, das grandes metanarrativas, encharcadas de ideologia.

Falar, portanto, da Comunicação e da Informação como ciências, implica aceitar o novo paradigma da relatividade do saber científi co e a inscrição das Ciências da Comunicação no vasto campo de saberes das Ciências da Complexidade.

Se, por um lado, a ciência da comunicação e da informação avança por estar sendo pensada e trabalhada como elemento importante de todas as ciências, por outro, na modernidade, ela, também, adquire a lógica que tem presidido a trajetória de todas as ciências: a busca da especifi cidade do seu objeto. Quando trabalhamos a Ciência da Comunicação a partir do ponto de vista do objeto “informação” amplia-se o campo da comunicação e o estendemos a todas as situações onde a interação pode chegar, envolvendo humanos, demais seres vivos e as máquinas (os instrumentos tecnológicos), numa relação orgânica ou mecânica. A Ciência da Comunicação vista a partir do objeto “comunicação” nos coloca diante da mensagem, seja qual for a sua modalidade, em processo interativo. Daí porque, a comunicação humana, nessa perspectiva, é vista como um processo social básico, dentro de uma compreensão até sistêmica. É certo que essa visão pode nos levar à radicalização de Niklas Luhmann, que reduz

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a sociedade à comunicação onde o homem torna-se um elemento exterior ao sistema, o que seria uma forma de “desantropoformização” da comunicação, vista por alguns, como Lyotard, como uma visão autoritária, posto que o sistema autopoiético, por ele transposto das teorias biológicas de Maturana e Varela para as Ciências Sociais, tem por objetivos em suas performances a consecução das suas metas e todos a elas devem ajustar-se, na forma de suas comunicações, visto que os sujeitos não existem como parte do sistema.

Não resta dúvida que, concordando ou não com Luhmann, os sistemas societários ou sistemas comunicacionais, na forma que vêm se constituindo, vão alijando os sujeitos de seu âmbito quando tudo se reduz a imagem, a virtualidade, a mensagens de variadas natureza e os sujeitos no papel de emissores-receptores e vice-versa escondem-se como personas, desaparecem do plano do real, mas permanecem no novo real suas mensagens.

A ontogênese da Ciência da Informação e da Comunicação, se buscada em Norbert Wiener vamos encontrar a comunicação ligada aos mecanismos de controle. Em seu livro Cibernética e sociedade, escrito em 1950 e revisto pelo autor em 1954, explicita a sua tese da seguinte maneira:

A tese deste livro é a de que a sociedade só pode ser com-preendida através de um estudo das mensagens e das facili-dades de comunicação de que disponha; e de que, no futuro do desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de co-municação, as mensagens entre os homens e as máquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máqui-na, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante [...] Quando dou uma ordem a uma máquina, a situação não difere essencialmente da que surge quando dou uma ordem a uma pessoa (WEINER, 1993, p.16).

Os elementos essenciais para compor a teoria dos sistemas fechados, recorrendo à física mecânica e ao “biologismo”, já estão dados na teoria cibernética nessa fi nalização categórica de Wiener (1993):

Falei de máquinas, mas não somente de máquinas com cérebros de bronze e músculos de ferro. Quando átomos humanos são arregimentados numa organização que os usa, não em sua plenitude de seres humanos responsáveis, mas como dentes de engrenagem, alavancas e bielas, pou-co importa que eles sejam feitos de carne e sangue. O que seja usado como peça de uma máquina, é, de fato, uma peça dessa máquina. Quer confi emos as nossas decisões a

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máquinas de metal ou a essas máquinas de sangue e carne, que são as repartições ofi ciais, os vastos laboratórios, os exércitos e as companhias comerciais e industriais, jamais receberemos respostas certas às nossas perguntas se não fi zermos perguntas certas. A Garra do Macaco de carne e osso é tão mortífera quanto qualquer coisa feita de ferro ou aço. O djim, que é a fi gura de linguagem unifi cadora de toda uma corporação, é tão terrível quando (sic.)(quanto?) se fosse uma celebrada invocação (WIENER, 1993, p.183).

Ao levar em conta as palavras de Wiener, o Capitalismo Tardio, no seu entrelaçamento com a cultura pós-moderna, parece não nos deixar outra assertiva: deu músculos de aço ao O Príncipe Eletrônico, que aprisionou o tempo e a memória para que o mundo pós-moderno seja, unicamente, o presente.

REFERÊNCIAS

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HELLER, A. e FEHÉR, F. A condição Pós-moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

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JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2004.

LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004.

LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Lisboa (PT): Gradiva, 1989.

MATTELART, A. A invenção da comunicação. Lisboa (PT): Instituto Piaget, 1994.

MATTELART, A. Comunicação-mundo: história das idéias e das estratégias. Petrópolis: Vozes, 1996.

MENZES, Manuel. “Comunicação a partir da complexidade contingente da modernidade segundo a perspectiva de Niklas Luhmann”. In: INTERCOM: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v.31, n.2, julho/dezembro 2008, p.15-33.

MEUNIER, J-P. e PERAYA. Introdução às teorias da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2008.

WEINER, N. Cibernética e sociedade. São Paulo: Cultrix, 1993.

Artigo recebido em: abril /2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010

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A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA

Aline Ferreira de Alencar*Fernando Antônio de Carvalho Dantas **

Maria Auxiliadora Minahim***

Sumário: Introdução; 1. Biopirataria na Amazônia Brasileira; 1.1 A necessidade de Tu-tela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria; 1.2 A importância da identifi cação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria; 1.3 Refl exões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira; Considerações Finais; Referências.

Resumo: Embora não possua defi nição jurídica ou legal, a Biopirataria pode ser considerada apropriação não autorizada do patrimônio genético de uma região, incluindo espécies da fauna, fl ora e dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa atividade ocorre nos países biodiversos, incluindo o Brasil, mais especifi camente a Amazônia Brasileira, que possui uma riquíssima biodiversidade, e atrai a cobiça dos

Abstract: Even so does not have no legal defi nition, the biopiracy can be considered a non authorized appropriation of certain region genetic patrimony, including fauna, fl ora and traditional knowledge associated to biodiversity. This kind of activity happens in developing countries, including Brasil, especially in the Brazilian Amazon, region rich in biodiversity, that attracts the lust for natural sources, by countries with technology, however poor in biodiversity,

* Advogada e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA.** Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professor convidado do Programa de Doutorado Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide em Sevilha, Espanha. Professor convidado do Programa de Doutorado em Pensamento Latinoamericano da Universidade Nacional da Costa Rica. Professor colaborador do Centro de Estudos Sociais CES, da Universidade de Coimbra Portugal. Ex-procurador Geral da Fundação Nacional do Índio.*** Doutora e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professora Associada da Universidade Federal da Bahia, presidente nacional da Associação Brasileira de Professores de Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos da Bahia.

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who intends to manufacturate new products, obtaining great fi nancial returns. Therefore the nature is seen like raw material, source of capital gains. In this context, the appropriation of the traditional knowledge associated to biodiversity, from the Indians people and traditional populations, depicts a powerful short cut to create new products, because using the bioprospection is possible to reach the good results with economic rationality. The biopiracy attempts against the national interest and human rights, for that reason there is a suggestion to punish this activity by the criminal law, considering the relevance of the object, the environment. Also, to curb on biopiracy, there is also a necessity to improve the surveillance in the Brazilian Amazon, investment in research, and the application of the information, education and environmental participation principles, as a way of combining the State and collectivity, to prevent this harmful activity to Brazil and the traditional knowledge keepers.

Key-words: Biopiracy; Traditional Knowledge; Biodivesirty; Brazilian Amazon; Genetic Patrimony

INTRODUÇÃO

A presente investigação científi ca tem por escopo analisar a necessidade de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia. A relevância desta temática ocorre em razão do reducionismo responsável por considerar a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético como

países ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que desejam fabricar novos produtos, com o objetivo exclusivo de gerar lucro. Portanto a natureza passa a ser vista como matéria prima, fonte de capital. É neste contexto que a apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais, representam um poderoso atalho para a criação de novos produtos, pois através da bioprospecção é possível alcançar os resultados desejados com racionalidade econômica. A biopirataria atenta contra os interesses nacionais e contra os direitos humanos, por essa razão sugere-se a que a atividade seja criminalizada pelo Direito Penal, em virtude da relevância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente. Além disso, para se coibir a biopirataria na Amazônia, é necessário o aumento de fi scalização na região, investimento em ciência e tecnologia, bem como a aplicação dos princípios da informação, educação e participação ambiental como forma de aliar os esforços do Poder Público e da coletividade para que ocorra a prevenção dessa atividade nociva ao Brasil e aos detentores do conhecimento tradicional.

Palavras-chave: Biopirataria; Conhecimento Tradicional Associado; Biodiversidade; Amazônia Brasileira; Patrimônio Genético; Tutela Penal.

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mercadorias, bem como pela ausência de tipifi cação legal e penal para a atividade da biopirataria, a qual traz inúmeros prejuízos para o Brasil, bem como para os povos indígenas e populações tradicionais.

Vandana Shiva entende que a biopirataria pressupõe uma nova forma de colonialismo, “é a ‘descoberta’ de Colombo 500 anos depois de Colombo. As patentes ainda são o meio de proteger essa pirataria da riqueza dos povos não ocidentais como um direito das potências ocidentais”. Para a autora, “resistir à biopirataria é resistir à colonização fi nal da própria vida. [...] É a luta pela conservação da diversidade, tanto cultural quanto biológica”.

A biopirataria é um problema que assola os países biodiversos, inclusive o Brasil, que possui a maior parte do ecossistema da Amazônia em seu território nacional. A região, segundo Ozório Fonseca, é também denominada Amazônia Continental, Grande Amazônia ou Panamazônia e contém as seguintes características importantes:

1/5 da água doce do Planeta (sic); 1/3 das fl orestas latifo-liadas; 1/3 das árvores do mundo; 80.000 espécies vegetais; Mais de 200 espécies de árvores por hectare; 30 milhões de espécies animais; Aproximadamente 1.500 espécies de peixes conhecidas; Cerca de 1.300 espécies de pássaros; Mais de 300 espécies de mamíferos; 10% da biota univer-sal; 1/20 da superfície da Terra; 750 milhões de hectares (500 milhões no Brasil); 4/10 da América do Sul; Mais de 30% da biodiversidade do Planeta; 350 milhões de hectares de fl orestas; 17 milhões de hectares de Reservas e Parques Nacionais; Maior rio do mundo em extensão (Amazonas, com 6.577 km); Maior rio do mundo em volume de água (vazão média de 200.000 m3/s); Aproximadamente 80.000 km de rios; Cerca de 25.000 km de vias navegáveis;. A maior província mineral do globo; Mais ou menos 30% do estoque genético da Terra.

O Brasil também é rico em seu contexto humano, assim, estima-se que, na época da chegada dos europeus, existiam cerca de 1.000 povos indígenas no país, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente, há no território brasileiro 227 povos, que falam, aproximadamente, 180 línguas diferentes. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 593 terras indígenas, de norte a sul do território nacional.

O território nacional também abarca as populações tradicionais, representadas por sujeitos sociais com existência coletiva, que incorporam pelo critério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentes

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aos denominados seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores, os quais se têm estruturado igualmente em movimentos sociais.

As populações tradicionais assim como os povos indígenas são detentores dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e representam os saberes pertencentes a esses povos, que possuem formas diversas de se relacionarem com a natureza.

Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade atraem o interesse das nações desenvolvidas, principalmente representadas pelos países do Norte, pobres em biodiversidade, mas ricos em tecnologia e, por essa razão, buscam apropriar-se desses saberes para fabricar produtos, com o objetivo de gerar lucro.

Por fi m, buscou-se com esse estudo analisar a necessidade de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia, bem como refl etir sobre formas de coibir essa atividade na região, sem pretensões de esgotar tão vasto assunto, mas contribuir de maneira refl exiva com a essa discussão.

1. BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Embora a apropriação do patrimônio genético e o acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade de forma não autorizada, por meio da biopirataria ocorra em vários países biodiversos, bem como em diversas regiões do Brasil, este trabalho analisa a biopirataria na Amazônia Brasileira, a qual representa uma região emblemática por possuir a maior sociobiodiversidade do Planeta e atrai a atenção fi nanceira dos biopiratas.

Nesse contexto, Bertha Becker enumera algumas características únicas da Amazônia:

É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazô-nia. Correspondendo a 1/20 da superfície da Terra e a 2/5 da América do Sul, a Amazônia Sul-Americana contém 1/5 da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas mundiais de fl orestas latifoliadas e somente 3,5 milésimos da população mundial. E 63,4% da Amazônia Sul-Amer-icana estão sob a soberania brasileira, correspondendo a mais da metade do território nacional .

A valorização ecológica da Amazônia, de acordo com Bertha Becker, apresenta duas faces: “a da sobrevivência humana e a do capital natural,

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sobretudo, neste caso, a megadiversidade e a água” . A autora considera, ainda, a existência de três grandes eldorados: os fundos oceânicos, que ainda não estão regulamentados; a Antártida, que foi partilhada entre as potências; e a Amazônia, a única que pertence a majoritariamente um só Estado Nacional, qual seja o Brasil.

Ao observar as riquezas existentes na Amazônia, percebe-se o motivo de a região ser tão atrativa para os países desenvolvidos, os quais almejam se utilizar da biodiversidade para criar ou aprimorar novas tecnologias e depois vendê-las, amparados pelo sistema mundial de patentes, o qual acaba por legitimar a apropriação privada da biodiversidade.

Danilo Lovisaro do Nascimento possui também o mesmo entendimento, ao afi rmar que a exploração dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidade realizada pelos países desenvolvidos, sem a autorização dos Estados ou dos povos indígenas e populações tradicionais dos países menos desenvolvidos, possui como maior estimulador o acordo de TRIPs:

O principal mecanismo jurídico para garantir aos países desenvolvidos a exploração desse patrimônio alheio e col-hido sem autorização tem sido o monopólio decorrente de patentes, que vêm sendo conferidas a esses países por meio do Acordo Geral sobre Propriedade Intelectual (TRIPS) no âmbito da Organização Mundial do Comércio .

Por outro lado, em razão das dimensões continentais, bem como das complexidades geopolíticas da Amazônia, especifi camente a Brasileira, a biopirataria na região ocorre das mais diversas formas: pesquisadores disfarçados de turistas ou estudantes, os quais adentram na Amazônia para coletar elementos da biodiversidade, organizações não governamentais (ONGs) de fachada, falsos missionários de várias seitas e religiões, contrabandistas, dentre outros, cujo único propósito é espoliar os recursos naturais, principalmente pela utilização dos conhecimentos tradicionais.

Quando esses “pesquisadores” se utilizam dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade para a fabricação de novos produtos, reduzem consideravelmente o tempo de pesquisa e dinheiro no patamar de até 400% de economia, motivo pelo qual esse conhecimento representa grande “valor” aos biopiratas.

Além disso, observa-se que as dimensões continentais da Amazônia Brasileira representam um fator incentivador para a prática da biopirataria e, por essa razão, a imensidão da região confi gura um obstáculo a ser enfrentado para se evitar a biopirataria, em virtude da necessidade de fi scalização e controle,

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uma vez que essa atividade ilícita pode ser realizada em qualquer ponto dos cinco milhões de quilômetros quadrados da região.

Da mesma forma, Ozório José de Menezes Fonseca explica que a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais da Amazônia Brasileira, por meio da biopirataria, é facilitada por inúmeros artifícios utilizados pelos biopiratas que possuem conhecimento, dentre outras limitações, sobre a precariedade de fi scalização na região:

[...] Na realidade, a experiência mostra que, para retirar material biológico da Amazônia, não há necessidade de es-truturas formais. Na era da biotecnologia e da engenharia genética, tudo de que se precisa, para reproduzir uma espé-cie, são algumas células facilmente levadas e difi cilmente detectadas, por mecanismos de vigilância e segurança.O bolso, a caneta, o frasco de perfume, os estojos de ma-quiagem, os cigarros, os adornos artesanais, as dobras e costuras das roupas, enfi m, há milhares de maneiras de es-conder fragmentos de tecidos, culturas de micro-organis-mos, minúsculas gêmulas ou diminutas sementes, sem que seja necessário o uso de muita criatividade .

Sobre a questão em análise, Patrícia Arruda Del Nero menciona alguns dos elementos presentes na maioria dos casos de biopirataria. 1) A existência de uma organização não governamental, cuja preocupação normalmente é a suposta “defesa do meio ambiente”; 2) os passeios “ecológicos” dos turistas ambientais, os quais, com olhar de rapina e tentáculos vorazes, saqueiam a biodiversidade nacional para garantir interesses transnacionais; 3) a formalização de “acordos” com comunidades indígenas, mediante os quais os corsários tentam aproximação com os povos indígenas e ganham sua confi ança, com um discurso amigo, enquanto prestam atenção em seus conhecimentos tradicionais para transformá-los em conhecimento científi co a serviço do capitalismo transnacional. Por fi m, trancam a tecnologia obtida nos cofres dos escritórios que concedem patentes.

Embora a discussão acerca da biopirataria tenha tido notoriedade apenas a partir de 1990, o problema confi gura uma prática antiga, visto que “fatos históricos revelam a sua ocorrência ao longo dos séculos, desde o descobrimento, como na extração do pau-brasil, no contrabando da semente da seringueira, do quinina e do curare”, não obstante essa prática não fosse denominada biopirataria, pois o conceito é atual.

Nesse sentido, Clarissa Wandscheer ensina que expressão biopirataria surgiu em 1993 e foi lançada pela ONG RAFI , com o escopo de alertar sobre o fato de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais indígenas estarem

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sendo apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituições científi cas, sem a autorização do governo brasileiro. Para a autora, pretendia-se ainda denunciar os abusos sofridos pelas comunidades tradicionais, visto que elas não estavam recebendo a devida repartição de benefícios, além de isso impedir a possibilidade do desenvolvimento sustentável das comunidades, impulsionar a degradação do meio ambiente e vulgarizar o conhecimento tradicional.

Contudo, é necessário esclarecer que um dos casos mais notórios de espoliação da biodiversidade amazônica foi o da Borracha, extraída a partir do látex da seringueira, Hevea brasiliensis, cujas sementes foram levadas pelo “naturalista” inglês Henry Wickman e plantadas no Kew Botanical Gardens, na Inglaterra, onde se multiplicaram e, posteriormente, foram transplantadas na Malásia. Apesar de desbancarem a produção brasileira e trazerem inúmeros prejuízos para o Brasil, não confi gura um caso de biopirataria, pois, conforme explica o economista Roberto Araújo de Oliveira Santos , o inglês obteve autorização legal do governo brasileiro para exportar as sementes. Além disso, as empresas britânicas e americanas desejavam transferir a produção da borracha para outro lugar em razão de o sistema brasileiro ser inefi ciente e haver provocado a ira de entidades antiescravagistas.

Embora legalmente não tenha confi gurado biopirataria, o plantio de seringueira fora do Brasil trouxe grandes prejuízos e serviu para alertar que não se pode dispor dos recursos naturais da Amazônia Brasileira, uma vez que, não tendo mais exclusividade, a região perde poder em detrimento de outras nações.

Em contrapartida, não se pode negar a ocorrência da biopirataria confi gurada pela apropriação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais em diversos casos, apontados pelo Instituto de Tecnologia do Paraná, por meio da Agência Paranaense de Propriedade Industrial – APPI:

1) a andiroba, usada pelos índios como repelente para insetos, contra febre e como cicatrizante, foi patenteada pela empresa Rocher Yves Vegetable, que possui direitos sobre a produção de cosméticos ou remédios que possuem seu extrato; 2) o cupuaçu, fruto amazônico que foi patenteado pela empresa Asahi Foods, para a produção do cupulate, uma espécie de chocolate. Essa patente, contudo, foi revertida por não possuir o requisito de patentiabilidade, novidade; 3) o sapo tricolor, produtor de uma toxina analgésica duzentas vezes mais potente que a morfi na, a qual foi patenteada pelo laboratório americano Abbott; 4) o pau-rosa, utilizado como fi xador de aroma em diversos países, atualmente é a matéria-prima do perfume Chanel 5, dentre muitos outros casos.

Por seu turno, Argemiro Procópio também destaca inúmeros casos de apropriação dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos por meio da biopirataria, a qual denomina “bionegócio” e, segundo ele, representa o novo campo para exportações bilionárias:

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Remédios vendidos nas prateleiras das farmácias do mundo inteiro trazem riquezas para transnacionais, graças ao con-hecimento tradicional e causam impiedosa descrição em seu processo de cata ou colheita. Vale citar, a título de ex-emplo, o jaborandi, Pilocarpus jaborandi,, usado no trata-mento de glaucoma; a espinheira santa, Maytenus ilicifol,a contra distúrbios estomacais; o látex antiviral da corticeira, Erythrina crista-galli; o veneno da Bothops jararaca, trans-formado em anti-hipertensivos; poderoso analgésico pre-sente na pele do sapo Epipadobates tricolor. Esses e cente-nas de outros frutos da biopirataria enriquecem mais ainda multinacionais e grandes laboratórios como o Abbot, Bris-tol-Meyers Squibb, Eli Lilly, Nippon Mektron, Shapman Pharmaceuticals, Monsanto, Merco etc .

Juliana Santilli considera que os casos de biopirataria possuem como fator de identifi cação, a ocorrência das espécies vegetais ou animais serem coletadas com ou sem o uso de conhecimento tradicional associado e sem consentimento prévio e informado do país de origem e levadas ao exterior com o objetivo de serem identifi cados os princípios ativos úteis, com base nos quais os produtos e processos foram patenteados, tanto sem a repartição de benefícios com o país de origem, quanto sem a população fonte do conhecimento obter qualquer benefício.

Não obstante, neste estudo, considera-se que a biopirataria não está dissociada da apropriação dos conhecimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais. Nesse sentido, além da não dissociação que fazem os povos indígenas entre o objeto conhecido e o sujeito do conhecimento, com a ajuda da bioprospecção, é possível alcançar resultados mais rápidos e evitar, assim, o desperdício na racionalidade econômica.

Por outro lado, é importante ressaltar que, para os povos indígenas, a biopirataria só ocorre quando existe a utilização do conhecimento tradicional, haja vista que esses povos não consideram os elementos da biodiversidade de forma isolada, conforme foi demonstrado no III Foro Indígena Internacional sobre a Biodiversidade, realizado na Eslováquia, em maio de 1998, quando esses povos afi rmaram:

Que nossas culturas se fundamentam nos princípios de har-monia, paz, desenvolvimento sustentável e equilíbrio com a natureza, por esta razão a conservação e utilização dos re-cursos formam parte da cosmovisão e vida diária dos Povos Indígenas e comunidades locais.

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Nota-se que a biopirataria está diretamente relacionada com a apropriação dos conhecimentos tradicionais, portanto entende-se necessária a tutela do direito penal para coibir essa atividade nociva, em razão da importância do fato, o que demanda suporte desse ramo do direito voltado para a proteção de bens essenciais, com o objetivo de defi nir essa atividade como crime, a fi m de tutelar a sociobiodiversidade brasileira.

1.1 A NECESSIDADE DE TUTELA DO DIREITO PENAL SOBRE O CRIME DE BIOPIRATARIA

Em face dos diversos aspectos discutidos neste estudo, entende-se que a biopirataria confi gura um crime, embora, no ordenamento jurídico brasileiro, essa atividade não seja tipifi cada ou incriminada, haja vista que nem o Código Penal Brasileiro, nem a legislação penal que trata sobre os crimes contra o meio ambiente abordam essa questão.

No ordenamento jurídico brasileiro, a legislação responsável pela criminalização das ofensas ambientais é a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 , conhecida por Leis dos Crimes Ambientais, que não tipifi ca a biopirataria como um crime. Contudo, é interessante ressaltar que, no projeto inicial dessa lei, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, havia a inclusão da biopirataria como crime, no artigo 47, que foi vetado pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

A título meramente informativo, o vetado art. 47 possuía a seguinte redação:

Art. 47. Exportar espécie vegetal, germoplasma ou qual-quer produto ou subproduto de origem vegetal, sem licença da autoridade competente: “Pena - detenção, de um a cinco anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”.

As razões explanadas pelo ex- Presidente da República, para justifi car o veto do artigo supracitado, foram:

O artigo, na forma como está redigido, permite a inter-pretação de que entidades administrativas indeterminadas terão que fornecer licença para a exportação de quaisquer produtos ou subprodutos de origem vegetal, mesmo os de espécies não incluídas dentre aquelas protegidas por leis

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ambientais. A biodiversidade e as normas de proteção às es-pécies vegetais nativas, pela sua amplitude e importância, devem ser objeto de normas específi cas uniformes. Ade-mais, existem projetos de lei nesse sentido em tramitação no Congresso Nacional .

Em razão de não existir punição específi ca para o crime de biopirataria, alguns casos concretos se tornam difíceis de serem solucionados. Nesse contexto, um dos casos de notoriedade internacional – e que deu causa a uma decisão considerada a primeira condenação por biopirataria no Brasil –, foi o ocorrido em junho de 2007, cujo autor foi o holandês naturalizado brasileiro, Marc Van Roosmalem, renomado e premiado pesquisador internacional.

O pesquisador acima mencionado foi condenado pela Justiça Federal da Seção Judiciária do Amazonas pelo cometimento de diversas práticas criminosas, como manter animais em cativeiro sem autorização do órgão ambiental competente, transportar ilegalmente macacos e orquídeas, estas últimas, sob a acusação de vender pela Internet, por preços que variavam de US$ 500 mil a US$ 1 milhão, o direito de escolha do nome das espécies de macaco por ele descobertas, dentre outras imputações penais.

Pelos crimes supracitados, o pesquisador foi condenado a uma pena de quinze anos e nove meses de prisão, sendo que quatorze anos e três meses são referentes apenas à acusação de peculato. Não obstante, Van Roosmalem fi cou preso por menos de um mês, em razão de ter sido liberado por ordem de habeas corpus concedida pelo Tribunal Regional Federal-TRF, da 1.ª Região, para responder a seu processo em liberdade.

A condenação do cientista foi amplamente criticada por organismos internacionais, os quais alegaram entraves às pesquisas científi cas, no entanto, para este trabalho, é importante observar a fragilidade das normas incriminadoras que tutelam a biodiversidade, haja vista que são incapazes de evitar a espoliação do patrimônio genético dos conhecimentos tradicionais pela biopirataria.

Vislumbra-se a necessidade da tutela penal sobre o crime de biopirataria, em virtude da existência de uma preocupação legítima com relação à proteção à biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais associados. Em razão dessa situação, é necessário saber a real intenção dos pesquisadores que adentram na região, para constatar se a pesquisa é bem intencionada ou visa apenas à espoliação da biodiversidade. Sobre a questão, Nascimento considera que:

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[...] O problema está em saber como reconhecer a ajuda estrangeira bem intencionada, que possa cooperar com o desenvolvimento regional e aquela que busca apenas o lucro e somente servirá para alimentar o processo de dominação dos países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento .

Observa-se, portanto, a necessidade de tutela jurídica sobre o crime de biopirataria, e por essa razão, sugere-se a criação de norma jurídica com esse objetivo. Nesse panorama, Juan Ramón Capella ensina que, para serem criadas novas normas jurídicas, não basta haver vontade do poder jurídico político, mas deve haver uma etapa de negociação da norma futura:

Nas experiências que respondem a este tipo de jogo, as normas jurídicas não nascem, em nosso tempo, somente da vontade do poder jurídico-político, ainda que esta vontade seja uma condição necessária de sua existência. Para for-mar a vontade normativa do poder jurídico-político, dá-se previamente uma etapa de negociação da norma futura .

Capella prossegue e afi rma que os distintos agentes sociais interessados em obter uma norma jurídico-política que determine direitos ou legitime interesses deve negociar com as autoridades para estabelecer o conteúdo das normas em questão. Desse modo, para, o autor:

Esta negociação tem um caráter essencialmente político. Sua essência pode ser macroscópica [...] ou microscópica [...], esse caráter político não se vê afetado, sem embargo, pelas dimensões do objeto da negociação. O que se nego-cia, ao fi nal de contas, é uma decisão que há de tomar um poder instituído e explícito da sociedade, legitimado para ditar normas jurídicas .

Em razão de tudo que foi estudado, sugere-se que ocorra a tutela penal sobre o crime de biopirataria, quando for comprovada a intenção do sujeito ativo para cometer essa atividade ilícita e, desse modo, será vislumbrada a possibilidade de proteção do direito penal ao crime de biopirataria, bem como será identifi cado o bem jurídico a ser tutelado por esse ramo do Direito.

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1.2 A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO A SER TUTELADO PELO DIREITO PENAL NO CRIME DE BIOPIRATARIA

Para que algo seja tutelado pelo Direito e pelo Direito Penal em especial, inicialmente é necessária a identifi cação do bem jurídico a ser protegido, o qual deve possuir alguma importância ou valor para o direito. Nesse panorama, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado ensina que a importância da identifi cação do bem jurídico para o Direito Penal ocorre em razão da obrigatoriedade de o legislador partir do princípio de que todo crime é uma ofensa a um bem jurídico individual, coletivo ou difuso preexistente à norma, deduzido de uma fonte metajurídica (segundo teorias sociológicas), ou de uma fonte jurídica superior, que é a Constituição Federal (consoante concepção dos constitucionalistas).

Segundo a mesma autora , “bem, em sentido amplo, é tudo aquilo que é valioso, que é necessário para o homem”. Desse modo, apenas alguns bens são considerados bens jurídicos, haja vista que o Direito determina os que são dotados de valor e, por esse motivo, receberão proteção jurídica.

Por seu turno, Luiz Régis Prado considera que o “pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção dos bens jurídicos” . Portanto, para o autor, em um Estado democrático e social de Direito, é imprescindível a noção de bem jurídico para que ocorra tutela penal:

Em um Estado democrático e social de Direito, a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem ju-rídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucio-nal, quando socialmente necessária. Isso vale dizer: quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o de-senvolvimento e a paz social [...] A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano .

Contudo, Álvaro Sanchez Bravo esclarece que o Direito Penal deve ser a última fronteira a ser recorrida para reparar danos experimentados pelos estados democráticos:

De todos é conhecido como nos estados democráticos o Di-reito Penal se considera a última fronteira, la ultima ratio, a cujo auxílio se recorre ante sucessos (ações e/ou omissões) de especial gravidade que requerem a máxima censura por

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causar dano aos valores e direitos fundamentais, individ-uais e coletivos, que nos defi nem como pessoas e cidadãos .

Ainda em se tratando de bem jurídico, Maria Auxiliadora Minahim considera que, embora exista controvérsia sobre a defi nição desses bens, eles são imprescindíveis para a existência comum e devem ser tutelados pelo Direito Penal:

Considere-se que, apesar de reinar grande controvérsia so-bre o conceito de bem jurídico, não se nega que se trata de bens ou valores considerados imprescindíveis para a ex-istência comum e, por isso, merecedores da mais intensa tutela jurídica, ou seja, da proteção penal .

Desse modo, Minahim, ao tratar sobre a aprovação do Direito Penal para tutelar as questões referentes à biotecnologia, considera que esse ramo do Direito é naturalmente convocado para emprestar sua adesão e coercitividade na tutela de bens e interesses que se deseja preservar de lesões e ameaças produzidas pela biotecnologia, em razão não somente de sua importância, mas também pela gravidade dos ataques.

A autora prossegue e afi rma que o ineditismo das situações referentes à biotecnologia, assim como a velocidade em que elas ocorrem têm surpreendido o Direito Penal e provocado, assim, não só uma desestabilização nesse ramo do Direito, mas também ocasionado a necessidade de alinhamento daquele com a realidade. Nesse contexto, segundo Minahim, o Direito Penal não é confrontado somente por questões postas pela Bioética, mas também “com o problema relativo ao oferecimento ou não de tutela a outros questionamentos trazidos pela sociedade pós-moderna”.

Portanto, Minahim considera que os bens jurídicos, para os quais se busca proteção do Direito Penal, possuem natureza diferenciada daqueles que eram protegidos desde o Iluminismo, motivo pelo qual existe a polêmica sobre a intervenção desse Direito na denominada sociedade de risco. Nesse sentido, a autora reputa que a natureza pode ser objeto de tutela pelo Direito Penal:

Pode-se mesmo afi rmar que é a própria natureza (bem difu-so, supraindividual) e a forma de proporcionar-lhe proteção efi caz que constituem o cerne de toda a polêmica em torno do papel da intervenção do direito penal na chamada socie-dade de risco .

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É importante ressaltar que a sociedade de risco é representada pela comunidade contemporânea, caracterizada pela intensa divisão social do trabalho, pelo consequente crescimento da complexidade e, ainda, pela adoção de tecnologias, cujas consequências são impossíveis de se medir, os denominados riscos. Por conseguinte, a sociedade de risco é o local onde ocorrem os riscos e os fenômenos como o da irresponsabilidade organizada ou irresponsabilidade geral, que segundo Ulrich Beck pressupõe:

[...] À divisão do trabalho muito diferenciada corresponde a uma cumplicidade geral e, a esta, uma irresponsabilidade geral. Cada qual é causa e efeito e, portanto, não é causa. As causas se diluem em uma mutabilidade geral de atores e condições, reações e contrarreações.

Na sociedade de risco, um dos problemas a serem enfrentados diz respeito à proteção do meio ambiente e, nesse contexto, em se tratando da discussão acerca da viabilidade da proteção do Direito Penal ao meio ambiente, Luiz Regis Prado entende que o meio ambiente é digno e capacitado de receber a tutela penal. Além disso, considera que a lei penal não deve punir somente as agressões ao meio ambiente, mas ainda os comportamentos nocivos que impeçam sua utilização de forma livre e solidária. Portanto, o autor observa que:

Em remate, quadra aqui a reafi rmação do ambiente, como bem jurídico de natureza difusa, – digno e capacitado e merecedor de tutela penal – adequado ao livre desenvolvi-mento da pessoa humana, com vistas à proteção e melhora de sua qualidade de vida (exercício, gozo de todas as suas potencialidades), de conformidade com a diretriz (formal e material) perfi lhada no texto maior. É de se reter ainda que, no Estado democrático e social de direito, a lei penal não deve se contentar em punir as agressões ao meio ambiente, mas também alcançar comportamentos que difi cultem ou impeçam seu desfrute de forma livre e solidária .

A importância de se punir a biopirataria na esfera penal dá-se em razão do bem jurídico a ser tutelado, qual seja o meio ambiente. Com efeito, Álvaro Sanchez Bravo considera que esse ramo do Direito só deve socorrer os atentados mais graves aos bens e interesses individuais e coletivos, suscetíveis de se submeterem à censura mais contundente à restrição de direitos mais palpáveis na liberdade e no patrimônio dos cidadãos culpados por determinados atos lesivos . Assim Sanchez Bravo entende que:

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A apelação ao Direito Penal para a proteção do meio am-biente supõe considerá-lo como um desses valores e inter-esses, como uma realidade, sem a qual não se entende a sociedade, nem os Estados, nem o próprio ser humano. Se o Direito Penal deve recorrer em defesa do medo ambiente é porque é tão importante, tão imprescindível, que um ataque contra o mesmo rachará os cimentos de nossa própria ex-istência .

Logo, ao se criminalizar a biopirataria, o bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal seria a biodiversidade, representada pelos seus elementos naturais e pelos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Portanto, a conduta que se pretende coibir é a apropriação não autorizada das riquezas naturais que pertencem ao Brasil e a seus povos, bem como os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, os quais pertencem a seus detentores.

Sobre a tutela do Direito Penal à biodiversidade, Nascimento pensa criticamente que, na atualidade, não criminalizar a biopirataria confi guraria um erro, haja vista que os demais mecanismos para coibir essa atividade tão prejudicial ao País são inefi cientes. Assim, nas palavras do autor:

[...] No momento presente, não criminalizar a biopirataria seria um erro, pois os demais mecanismos estabelecidos para realizar o referido controle se mostram inefi cientes e pouco importa se a inefi ciência é por inoperância do próprio aparelho estatal. O que é relevante, neste caso, é que o Di-reito Penal, mais do que os outros meios de controle, exerce também uma função intimidadora ou de prevenção geral que necessariamente contribui para a preservação de um bem juridicamente protegido .

Ainda em se tratando da necessidade de criminalização para essa conduta, Nascimento afi rma que “a biopirataria atenta contra os interesses nacionais e também se constitui em uma prática violadora de direitos humanos, nunca sendo demais lembrar que tutelar o meio ambiente é proteger a própria vida”.

Nesse contexto, após verifi car-se que o bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal seria o meio ambiente, sugere-se que o direito estabeleça uma tipifi cação penal para enquadrar esse crime em razão dos tipos penais existentes não serem efi cazes para punir essa atividade ilícita. Para tanto, é necessária a aplicação de alguns princípios desse ramo do direito como o da subsidiariedade, necessidade e fragmentariedade, os quais são importantes quando se trata da intervenção do Direito Penal no que concerne aos recursos naturais. Da mesma

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forma, entendem Prado e Minahim:

É importante frisar que não se defende, aqui, a expansão arbitrária da tutela penal, mas apenas aquela que se paute nos princípios da fragmentariedade, da necessidade e da subsidiariedade do direito penal. Dessa forma, a interven-ção penal no tocante à proteção dos recursos naturais deve ser parcimoniosa, e deve incidir apenas quando a lesão for grave a ponto de justifi car a privação de outros bens tão relevantes para o ser humano, como a liberdade .

Para se ter uma breve noção acerca dos princípios supracitados, o princípio da fragmentariedade dispõe que “nem todo tipo de ofensa deve ser considerado pelo direito penal, mas aquelas socialmente intoleráveis em relação ao bem jurídico” . Nesse contexto, Gustavo O. Diniz Junqueira explica que:

Nem toda lesão a bem jurídico com dignidade penal carece de intervenção penal, pois determinadas condutas lesam de forma tão pequena, tão ínfi ma, que a intervenção penal, extremamente grave seria desproporcional, desnecessária. Apenas a grave lesão a bem jurídico com dignidade penal merece tutela penal .

Do mesmo modo, Damásio de Jesus entende que o princípio da fragmentariedade é consequência dos princípios da reserva legal e da intervenção mínima. Para o autor, o Direito Penal não protege todos os bens jurídicos, somente os mais importantes e, dentre estes últimos, não os tutela de todas as lesões, mas somente das de maior gravidade. Por esse motivo, é fragmentário.

Gustavo Junqueira entende, ainda, que o princípio da fragmentariedade decorre do princípio da subsidiariedade , o qual determina que o Direito Penal é um remédio subsidiário e, desse modo, deve ser reservado apenas para as situações em que outras medidas estatais ou sociais não foram sufi cientes para provocar a diminuição da violência gerada por determinado fato. Segundo o autor, se for possível evitar a violência da conduta com ações menos gravosas que a sanção penal, a criminalização da conduta se torna ilegítima ou desproporcional.

Por último, o princípio da necessidade, segundo Alessandra Prado, deve ser utilizado quando determinados bens jurídicos são expostos à ofensa e não é sufi ciente para sua tutela a intervenção civil ou administrativa, de modo que passa a ser exigida a interferência do Direito Penal para sua proteção.

Entende-se, portanto, que é urgente a necessidade de se criar um tipo penal novo para enquadrar o crime de biopirataria, não obstante essa questão

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deva ser estudada e aprofundada pelos operadores do Direito, alicerçados no Direito Penal e em outros ramos do Direito e até mesmo em disciplinas de outras áreas do conhecimento, visto que, por se tratar de uma questão complexa, deve ser avaliada com cautela, a fi m de se evitar prejuízos às pesquisas científi cas, à sociedade, aos detentores do conhecimento tradicional e à soberania do Brasil.

Embora se defenda a criminalização para a conduta da biopirataria, essa não confi gura a única sugestão para tratar do problema. Conforme se verifi cou, a tutela pelo Direito Penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser tutelado, embora seja importante ressaltar que somente a tipifi cação penal não será capaz de elucidar o problema, uma vez que ainda há muito a ser feito com relação a essa questão e, portanto, são necessárias outras refl exões sobre o tema.

1.3 REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE EVITAR E COMBATER A BIOPIRA-TARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Evitar a biopirataria na Amazônia não é uma questão simples, em razão de muito precisar ser feito para coibir essa atividade nociva para a região. Por esse motivo, serão analisadas algumas hipóteses possíveis de ajudar no combate à biopirataria, a fi m de buscar formas de proteção à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais.

Conforme já demonstrado nesta pesquisa, entende-se necessária a tutela do Direito Penal a fi m de criminalizar a conduta da biopirataria e imputar punição aos agentes que cometerem a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. Essa tutela penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente, essencial para a manutenção da vida no Planeta.

Por outro lado, levando-se em consideração os estudos realizados por Álvaro Sanchez Bravo, somente a aplicação do Direito Penal não é sufi ciente para proteger o meio ambiente, uma vez que esse ramo do Direito tem por escopo reprimir e castigar a conduta ilícita, apesar de ser importante a prevenção do dano. Assim, Bravo ensina que:

[...] Convêm assinalar que somente a apelação ao Direito Penal não bastará por si só para erradicar os atentados ao meio ambiente. Em primeiro lugar, porque o Direito Penal tenderá fundamentalmente a reprimir, a castigar uma vez o dano se haja inferido. A margem dos clássicos fi ns atribuí-dos ao Direito Penal (prevenção geral e especial), a função preventiva requer outros mecanismos e outras implicações .

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Bravo prossegue e afi rma que, além da aplicação do Direito Penal, é imprescindível que haja a educação e o compromisso para prevenir os danos ao meio ambiente:

É evidente que o Direito Penal pode jogar um papel muito importante para articular um sistema sancionador frente a condutas que anteriormente acabavam na impunidade, ou em uma leve sanção (geralmente econômica). Porém, junto a ele, para assegurar que se previnam os atentados, devem aparecer outras variações a considerar: educação e compro-misso .

Além disso, Bravo considera que, junto à educação e informação sobre o meio ambiente, outra variação vem determinada pelo compromisso, apesar de esse compromisso não ser somente dos cidadãos, mas também dos Estados. Nesse sentido, os Estados também devem sentir o problema como global, não circunscrito aos direitos existentes dentro dos limites de suas fronteiras territoriais.

Nessa perspectiva, é importante ressaltar que, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da participação, dentre outras conceituações, diz respeito à coletividade e ao Estado agirem em conjunto na preservação do meio ambiente. Desse modo, Fiorillo considera que:

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput, consagrou na defesa do meio ambiente a atuação presente do Estado e da sociedade civil na proteção e preservação do meio ambiente, ao impor à coletividade e ao Poder Público tais deveres. Disso se retira uma atuação conjunta entre or-ganizações ambientalistas [...] e tantos outros organismos sociais na defesa e preservação .

Com efeito, Fiorillo considera que, para ocorrer essa atuação em conjunto, é imprescindível a união dos princípios da informação e educação ambiental, numa relação de complementaridade. Nesse contexto, o princípio da informação ambiental está disposto no art.225 §1.°, IV, da Constituição Federal:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

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§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:[...]VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

Por seu turno, o princípio da educação ambiental, segundo Fiorillo, decorre do princípio da participação da tutela do meio ambiente e está disposto na Constituição Federal no art.225 §1.°, VI, acima mencionado. Logo, para o autor, “buscou-se trazer a consciência ecológica ao povo, titular do meio ambiente, permitindo a efetivação do princípio da participação na salvaguarda desse direito”.

Logo, além da tutela penal contra a atividade nociva da biopirataria, é necessário que haja a aplicação dos princípios retromencionados, quais sejam: educação, informação e participação, para que ocorra a conscientização da coletividade sobre a gravidade da biopirataria e, junto com o Poder Público, buscar formas de prevenção contra esse crime.

Além do já que foi exposto, para se prevenir a biopirataria, segundo Fonseca, é necessário que exista uma política de investimentos em ciência e tecnologia na região, uma vez que a Amazônia Brasileira é pouco conhecida e estudada, em razão da carência de pesquisadores, investimentos políticos, incentivos às pesquisas, dentre outros, os quais acabam por prejudicar o conhecimento sobre a região, bem como seu desenvolvimento.

Nesse contexto, ressalta-se a importância de serem fi rmados convênios nacionais ou internacionais, alicerçados na transparência, clareza e legalidade para possibilitar a realização de pesquisas na região, a qual possui pouca base física e humana para promover estudos, por meio da busca de cooperação com outros centros de pesquisa.

Sobre a situação, Ozório José de Menezes Fonseca entende que proibir acordos que viabilizem convênios com outros centros de pesquisa signifi ca perpetuar a miséria na região:

Evitar ou proibir esses acordos signifi ca perpetuar a miséria nessa região que tem urgência em se desvendar, através da aquisição de novos conhecimentos que levem à descobe-rta de novas tecnologias ou benefícios. É também impedir avanços científi cos importantes, sem conseguir evitar que outros países recebam e estudem nossa biota, pois os me-canismos para retirada de organismos, extratos químicos ou

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substâncias, seja através da exportação ou da denominada biopirataria, são quase impossíveis de serem combatidos.

Em se tratando do investimento em convênios internacionais, é importante mencionar o exemplo da Costa Rica, que estabelece, por meio do INBio, diversos contratos que possibilitam desde investigação básica até a busca e identifi cação de recursos da biodiversidade para aplicação comercial e podem ser utilizados por indústrias de diversos segmentos: farmacêuticas, biotecnológicas e agroquímicas, além de instituições de pesquisa e acadêmicas.

Segundo Rodrigo Zeledón, o INBio é uma organização da sociedade civil, de caráter não governamental sem fi ns lucrativos, criada em 1989 e trabalha em regime de colaboração com diversos órgãos do governo, universidades, setor empresarial e outras entidades públicas e privadas, dentro e fora do país. A organização tem personalidade jurídica e trabalha com vistas ao conhecimento da diversidade biológica do país e promove sua conservação e uso sustentável. A sua relação com o governo é regulamentada por um contrato denominado “convênio cooperativo”.

Os três objetivos principais do INBio, defi nidos por Zeledón, são a execução de um inventário nacional, a consolidação de uma base de dados e a divulgação das informações geradas à sociedade. De acordo com essa ordem, somente depois, viria a bioprospecção, que começou a ser concretizada pelo Instituto em 1991, quando foi criada uma unidade de prospecção.

Nesse contexto, Muñoz considera as ações realizadas na Costa Rica uma “boa política de acordos com grandes empresas para identifi cação e exploração de recursos biológicos com potencialidade” . Da mesma forma, entendem Dourojeanni e Pádua: “[...] Países como a Costa Rica alcançaram progressos notáveis na maior parte dos aspectos que compõem o complexo tema da pesquisa, do aproveitamento e da comercialização de recursos da biodiversidade”.

Com efeito, Vandana Shiva é contrária a esse tipo de acordo internacional, uma vez que a autora considera que o acordo realizado entre a Merck Pharmaceuticals e o INBio da Costa Rica não respeita os direitos das comunidades locais, nem o governo daquele país. Shiva prossegue e critica que:

[...] Os que venderam a bioprospecção nunca tiveram di-reito à biodiversidade, e aqueles cujos direitos não estão sendo vendidos ou alienados por meio da transação, nunca foram consultados nem tiveram a chance de participar.Além do mais, embora as taxas de bioprospecção pudes-sem ser usadas para aumentar a capacidade científi ca no Terceiro Mundo, o que realmente se cria é uma instalação para a empresa .

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É necessário ainda, o aumento de fi scalização na Amazônia, visto que, em razão de suas dimensões continentais, os ataques de biopiratas tornam-se muitas vezes impossíveis de serem percebidos e isso acaba por incentivar o aumento da espoliação da biodiversidade na região. Desse modo, a fi scalização na Floresta Amazônica é inefi caz, em razão da ausência de policiamento ambiental e organismos que atuem na proteção à sociobiodiversidade brasileira.

Por outro lado, para proteger a biodiversidade, também se deveria, nos aeroportos, monitorar a entrada e saída de estrangeiros, como pesquisadores, missionários, estudantes, dentre outros. Além disso, deve-se fi scalizar a regularização de ONGs que trabalham com populações tradicionais e povos indígenas para verifi car sua real intenção nesses trabalhos, bem como alguns missionários que atuam diretamente com esses povos e possuem total acesso a seus costumes e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

É importante ressaltar que, quando se sugere maior fi scalização, não se busca ocasionar entraves às pesquisas científi cas, nem desabilitar instituições sérias que trabalham com povos indígenas e populações tradicionais, no entanto é necessário que elas estejam em conformidade com a legislação nacional, a fi m de se evitar prejuízos futuros ao Brasil e aos povos, cujo conhecimento é utilizado de forma não autorizada.

É essencial, ainda, a preservação dos territórios utilizados pelos povos indígenas e populações tradicionais para a produção de seus saberes, em razão da relação que esses povos possuem com suas terras não representar uma simples ocupação, mas, sim, confi gurar o local onde são desenvolvidas suas experiências com a natureza e que, segundo Fernando Dantas, são indispensáveis à manutenção da própria vida.

Ainda sobre a questão da biopirataria, Eliana Calmon considera que as instituições internacionais e empresas privadas possuem três visões acerca dos planos para a utilização do conhecimento tradicional associado à biodiversidade: 1- partilhar os lucros sobre as novas patentes baseadas no conhecimento dos povos indígenas e populações tradicionais; 2- outras instituições não aceitam a partilha e defendem a cobrança de royalties; 3- algumas instituições e empresas consideram que o domínio genético está fora do mercado e não pode ser vendido a qualquer preço.

A mesma autora explica que alguns setores consideram a proteção dos conhecimentos tradicionais por meio de patentes uma forma de reprimir a livre troca de informações, fundamental para o aprimoramento da condição humana. Para Calmon, os países desenvolvidos ainda não chegaram a uma conclusão defi nitiva sobre a questão e, assim, critica que “parece até que os países ricos não têm interesse na solução para o impasse, que seguramente não lhes trará

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nenhum benefício”.Também como sugestão para coibir a biopirataria, alguns autores

consideram a necessidade da existência da cooperação internacional para o desenvolvimento. Segundo Bruno Pino, cooperação internacional para o desenvolvimento pressupõe:

Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, enten-dida como o conjunto de ações que realizam os governos e seus organismos administrativos, assim como entidades da sociedade civil de um determinado país ou conjunto de países, orientadas a melhorar as condições de vida e impul-sionar o processo de desenvolvimento em países em situa-ção de vulnerabilidade social, econômica ou política e que, além disso, não tem capacidade sufi ciente para melhorar sua situação por si sós .

Logo, a cooperação internacional diz respeito a aspectos de negociações em que as partes envolvidas buscam o estabelecimento de um acordo benéfi co para ambas. Um dos fatores mais importantes da cooperação dá-se em razão de sua utilização como mecanismo alternativo de integração e promoção do desenvolvimento.

A cooperação internacional foi incluída em 1945 na Carta da ONU, em seus artigos 1, 55 e 56. Além disso, essa negociação está disposta no preâmbulo da Convenção sobre a Diversidade Biológica:

Enfatizando a importância e a necessidade de promover a cooperação internacional, regional e mundial entre os Es-tados e as organizações intergovernamentais e o setor não governamental para a conservação da diversidade biológica e a utilização sustentável de seus componentes .

Desse modo, um dos objetivos da cooperação internacional é a utilização da biodiversidade de forma sustentável, com vistas ao desenvolvimento econômico da região amazônica. Da mesma forma entende Ozório Fonseca, ao sugerir a criação de um “Tratado proibindo o patenteamento de qualquer produto de origem biológica que não tenha procedência absolutamente transparente”.

Nesse contexto de cooperação internacional, pode-se citar a possibilidade de implantar o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), para buscar o desenvolvimento da região, com o objetivo de impedir a espoliação dos conhecimentos tradicionais, no entanto, não será aprofundada essa questão, por não ser objeto desta pesquisa,

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A título informativo, o Tratado de Cooperação Amazônia (TCA) foi celebrado em 3 de julho de 1978 e teve como partes contratantes a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela. Esse documento foi aprovado pelo Congresso Nacional e ratifi cado pelo Estado brasileiro, mediante a promulgação do Decreto n. 85.050, de 18 de agosto de 1980.

Por fi m, além da cooperação internacional com vistas a buscar o desenvolvimento da região, e das demais sugestões analisadas neste artigo, é importante ressaltar que evitar a biopirataria envolve não apenas a criação de leis, como também a proteção pelo Direito Penal, de forma que é imprescindível maior participação do povo brasileiro com seu sentimento de nacionalidade, fortalecimento dos órgãos públicos na região, incentivo à informação, participação e educação ambiental da população, como forma de tutelar a sociobiodiversidade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a fi nalização deste estudo, verifi cou-se que a biopirataria confi gura um grave problema na atualidade e está diretamente relacionada à apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esses conhecimentos pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais são utilizados para a fabricação ou aperfeiçoamento de produtos, motivo pelo qual, por meio da bioprospecção, ocorre a racionalidade econômica, aumento da aferição de lucro.

A natureza passa a ser vista unicamente como fonte de capital e utilizada com o objetivo de impulsionar grandes retornos fi nanceiros. Por essa razão, ocasiona a cobiça de países desenvolvidos, ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que buscam acessar a biodiversidade por meio da apropriação dos conhecimentos tradicionais, de forma a trazer prejuízos para o Brasil e para os povos detentores do conhecimento tradicional, cujos saberes são comparados a mercadorias.

A mercantilização da natureza subjuga os detentores do conhecimento tradicional, os quais possuem o entendimento contrário à lógica capitalista. Nessa ótica, verifi cou-se que, para os povos indígenas, a biopirataria ocorre sempre que existe a utilização da natureza, uma vez que esses povos enxergam a biodiversidade como um todo e não separam o conhecimento tradicional dos elementos da biodiversidade.

Nesse contexto, as tradições e os costumes dos povos indígenas e populações tradicionais passam a ser considerados inferiores em comparação

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ao pensamento dominante, razão pela qual se percebe a supremacia do conhecimento científi co em comparação ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade.

Portanto, nota-se que se está diante de um novo processo exploratório de colonização, exercido pelos países desenvolvidos, que será extremamente prejudicial ao Brasil e aos detentores dos conhecimentos tradicionais, se não for repensada toda essa situação e vislumbradas novas formas de proteger a sociobiodiversidade brasileira.

Nessa perspectiva, a Amazônia Brasileira encontra-se no centro dessas discussões, em razão de possuir uma riquíssima biodiversidade e também abarcar diversos povos indígenas e populações tradicionais, detentores do conhecimento tradicional, cuja utilização é muito importante para a fabricação de novos produtos e acaba por impulsionar a atividade nociva da biopirataria.

Além disso, em se tratando da biopirataria realizada por meio da apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade da Amazônia Brasileira, verifi ca-se a fragilidade da atuação estatal, incapaz de coibir essa atividade nociva, em razão da carência de fi scalização na região, da falta de conhecimento sobre a biodiversidade da região, da pouca quantidade de pesquisadores, da ausência de investimentos em ciência e tecnologia, dentre outros.

Em contrapartida, observa-se que os países desenvolvidos não possuem interesse em resolver a situação, posto que necessitam da biodiversidade dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento para impulsionar o aumento de capital, motivo pelo qual a solução do problema não lhes trará nenhum benefício.

Apontou-se, nesta pesquisa, a necessidade de criminalizar a conduta da biopirataria, a fi m de coibir essa atividade atentatória aos interesses nacionais, sendo relevante a tutela pelo Direito Penal, por força do bem jurídico protegido, qual seja, o meio ambiente, indispensável à manutenção da própria vida.

Verifi cou-se que, além da criminalização da conduta, deve haver aplicação dos princípios da educação, participação e informação ambiental, para que a coletividade, os detentores do conhecimento tradicional, juntamente com o Poder Público possam buscar a conscientização e a prevenção dessa atividade no Brasil.

Finalmente, observou-se a necessidade de maiores investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, aumento de fi scalização na Amazônia Brasileira, preservação dos territórios indígenas, bem como a verifi cação da possibilidade de utilizar a cooperação internacional para o desenvolvimento da região, no que diz respeito à utilização do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA).

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No entanto, essa questão precisa ser aprofundada e repensada para que seja assegurada a soberania do Brasil e a proteção aos detentores do conhecimento tradicional, associado à biodiversidade.

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ÍNDICE - PARTE III

POR UMA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS: uma análise sobre a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu – AMDenison Melo de Aguiar ..............................................................................277

Introdução; 1 Por uma alteridade Jurídica; 2 Confl itos Socioambientais na Amazônia Brasileira; 3 Confl itos Sociaoambientais pesqueiros na Amazônia Brasileira; 4. Comunidade Santo Antônio do rio urubu – Amazonas; 5. Da Alteridade jurídica no acordo de pesca 11/2003; Empoderamento da alteridade jurídica nos Confl itos Pesqueiros; Referências.

A EFETIVIDADE DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA COMO TRATADO-QUADRO DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DA FAUNA E DA FLORA DO BRASILDiogo de Oliveira Lins.......................................................................303

Introdução1. O Tratado de Cooperação Amazônica: Histórico e Antecedentes2. Tratado de Cooperação Internacional e a Jurisdifi cação da Proteção Internacional ao Meio Ambiente3. Breves digressões a respeito da defi nição de fauna e fl ora4. Legislação Brasileira e Proteção Penal do Meio Ambiente5. As difi culdades entre a realidade cotidiana e as tentativas de implementação do TCAConclusõesReferências

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POR UMA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS: uma análise sobre a Comunidade Santo Antônio do

Rio Urubu – AM*

Denison Melo de Aguiar **

Sumário: Introdução; 1 Por uma alteridade Jurídica; 2 Confl itos Socioambientais na Amazônia Brasileira; 3 Confl itos Sociaoambientais pesqueiros na Amazônia Brasileira; 4. Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu – Amazonas; 5. Da Alteridade jurídica no acordo de pesca nº 11/2003; Empoderamento da Alteridade Jurídica nos Confl itos Pesqueiros; Referências.

Resumo: A alteridade jurídica resulta da relação entre o Direito e a Antropologia. De um lado o sentido de alteridade possi-bilita o diálogo entre os usuários de cultura e pensamentos diferenciados, e de outro lado o Direito possibilita que esse diálogo tenha uma legitimidade e representativi-dade efetiva desses usuários (interessa-dos envolvidos), desta maneira, ocorre um diálogo unido pela diversidade desses usuários nos acordos de pesca. E é nos confl itos pesqueiros que a alteridade ju-rídica pode ser uma abordagem que facilita

Abstract: The Legal altery results of the relationship between law and anthropol-ogy. On the one hand the sense of altery enables the dialogue between users of dif-ferent culture and thoughts, and then the Law allows this dialogue has a legitimate and effective representation by the users (stakeholders involved) in this way there is a dialogue united by the diversity of users in fi sheries agreements. And it is in fi sher-ies confl ict that legal altery can be a ap-proach that facilitates the solution of these confl icts. An example of this is the case of

* Para fi ns de contextualização, este artigo é resultado parcial da pesquisa e levanta-mento de dados da dissertação intitulada: “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Conhecimento Tradicional associado ao Manejo Pesqueiro: um estudo de caso na Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu, no município de Boa Vista do Ramos/AM” desenvolvida pelo autor, qualifi cada e orientada pelo Professor Doutor Serguei Aily Franco de Camargo, no Programa de Pós Graduação em Direito Ambiental da Univer-sidade do Estado do Amazonas – UEA, bem como que este ser integrante dos seguintes Projetos de Pesquisas: 1. Gestão Participativa da Pesca na Região do Rio Urubu, em Boa Vista do Ramos (AM), fi nanciado pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM e 2. Direito Pesqueiro na Bacia Amazônica, fi nanciado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico – CNPQ. **Mestrando e Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Direto Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas; Advogado; Bolsista da CAPES. Contato: [email protected].

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INTRODUÇÃO

Nas complexidades sócio-culturais da Amazônia Brasileira, tem-se destacado o movimento popular das comunidades pesqueiras ribeirinhas para sua emancipação. Neste sentido, as comunidades pesqueiras desenvolveram os acordos de pesca como forma de resolução de suas controvérsias. Um exemplo de acordo de pesca é o da Portaria nº 11/2003 (IBAMA), que legalizou a determinações consuetudinárias da Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu e das comunidades que estão nas suas adjacências.

Neste contexto a alteridade jurídica é uma abordagem que considera a pluralidade como um fator determinante na efetivação dos direitos das comunidades pesqueiras. Esta Alteridade perpassa o sentido de facultas agendi, para se concretizar na norma agendi, ou seja, é uma maneira de se efetivar o direito destas comunidades de se manterem como tais, sem desrespeitá-las e mesmo considerando que estão inseridas também nas proximidades dos grandes centros urbanos como o de Manaus. Portanto, a alteridade jurídica nos acordos de pesca é uma resposta concreta como possível resolução dos confl itos socioambientais na Amazônia Brasileira.

1 POR UMA ALTERIDADE JURÍDICA

O termo “Alteridade Jurídica” é um termo ainda em construção, especialmente por ser de natureza interdisciplinar, Direito e Antropologia. Com isso, tem-se como objetivo inicial deste artigo, descrever quais são as características primordiais que o evidencia, seja como uma conceito teórico,

as soluções destes confl itos. Um exemplo desta realidade é o caso da comunidade Santo Antônio do rio Urubu, que participa do acordo de pesca nº 11/2003.

Palavras-chave: Alteridade Jurídica; Acordos de pesca; Comunidades pesquei-ras.

Santo Antonio do rio Urubu community, involved the fi shing agreement nº 11/2003.

Key-words: Legal altery; fi sheries agree-ments; fi shing communities.

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seja como um conceito de aplicação prática nos confl itos socioambientais pesqueiros. Desta maneira, não se tem como ter um conceito estanque do termo “Alteridade Jurídica”, mas sim, um entendimento sobre esta matéria.

A idéia de alteridade1, conforme Lévinas (2009, p. 28) está baseada em “[...] querendo-se, eu compreendo o ser em outrem, além de minha particularidade de ente; a pessoa com o qual estou em relação, chama-o ser, mas ao chamá-lo ser, eu o invoco”. Desta maneira, a alteridade é uma concepção da qual o ser humano interagindo em sociedade, interdepende de outros indivíduos. Nestes termos, a existência de um ser (indivíduo) só é possível, mediante o contato com outro, é claro, considerando a variável de que o indivíduo viva em sociedade. Portanto, a alteridade, é a capacidade de se por no lugar do outro, pois o invoca, o chama, mudando-se o outro de objeto para sujeito.

É neste contexto que o termo ‘Alteridade Jurídica’ advém de uma inter relação entre a Antropologia e o Direito e é uma abordagem do qual uni estas duas ciências, objetivando descrever e analisar uma realidade fática da Amazônia Brasileira, qual seja, das Comunidades Tradicionais. Sendo que, é um termo que é uma proposta que veio a partir das observações de uma das realidades sociais da Amazônia Brasileira; dessa forma, pretende-se analisar neste artigo a efetivação dos Direitos das comunidades tradicionais através dos Acordos de Pesca, especialmente nos confl itos socioambientais pesqueiros. Portanto, é uma proposta elaborada a partir do ponto de referência de uma comunidade tradicional.

Jelin (1996, p. 12) entende alteridade existente na relação interpessoal, na qual, se põe como ponto de referência o outro, ou seja, a de se por no lugar do outro. Nesta realidade, a alteridade é uma forma de combater os preconceitos, discriminações, segregações que na contemporaneidade são existentes, isso por causa das discriminações por: cor, raça, gênero, etnia e dentre outras, valendo-se de que estas são formas do não reconhecimento dos (as) outros (as), seja no âmbito individual, seja no coletivo, da qualidade intrínseca de ser humano. Dessa forma, na relação interpessoal, a alteridade possibilita os indivíduos ou grupos envolvidos tenham os mesmos direitos de qualquer outro grupo, é claro, conforme a igualdade material, ou seja, de se ter tratamento igual a todos e se respeitando as diferenças proporcionais nas diferenças entre indivíduos ou os grupos, em conseqüência, há uma mudança de ponto de referência no meio jurídico, isto é, do individualismo à coletividade, por exemplo.

1 O tema alteridade é estudado por diversas ciências, por exemplo, na Filosofi a com Emmanuel Lévinas; na psicologia, por Karl Rogers, dentre outras. Neste artigo, a abor-dagem central da Alteridade é na Antropologia e no Direito.

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O objetivo da alteridade é fazer uma mudança de ponto de referência, isto é, sair do ponto de referência da violência e do ódio para a solidariedade, responsabilidade, cuidado, respeito e dignidade ao (s) outro (s). Vale salientar que, para Jelin (1996, p. 13) esta postura de compreender os (as) outros (as), tem a origem numa perspectiva interdisciplinar, no qual para se saber dos (as) outros (as), vai-se ter que perguntar como se interage com estes (as), envolvendo os valores e as éticas destes (as) e não de quem se propõem. Tarefa essa de mudança de perspectiva de existência, sendo-a mais difícil do que a auto existência de ambas as partes, isso signifi ca, uma mudança de paradigma relacional, que prioriza a coletividade e não o individualismo.

Vale-se desta perspectiva de uma análise na construção de um “Nós” coletivo considerando uma realidade específi ca. Esta relação, sem sombra de dúvidas começa no plano individual, para depois se ter uma relação inter comunitária e intergeracional Jelin (1996, p. 16) propõe que se tenha etapas do exercício analítico da alteridade: 1. Fazer um eixo de como se defi nir o “nós”; 2. em seguida, descobrir quais são os princípios morais desta relação valendo-se do ponto de “nós” ou do “outro”, referência dos (as) outros (as) e em 3. ir além do “nós” ou “outro”, ao se perceber a alteridade deste outro, sem se perder a de si mesmo. Há de se ater de que há diferentes padrões culturais que devam ser considerados, como forma de se consolidar o conteúdo da responsabilidade para com dos (as) outros (as).

Ao tratar de responsabilidade, Jelin (1996, p. 16) aponta que esta deve ser devidamente fundamentada na consciência moral. Consciência esta não ocidentalizada, isto é, não padronizada, mas vinculada aos conteúdos básicos da moralidade, da responsabilidade e da solidariedade do outro que sofre, objetivando chegar a uma subjetividade moral autônoma, isso signifi ca que o sentido de alteridade vai ser posto conforme uma autonomia subjetiva que sustenta a relação intersubjetiva a partir das redes de comunicação e grupos envolvidos. Desta feita, a relação intersubjetiva no Direito, está confi gurada no Direito Subjetivo e ser de máxima importância para se falar de uma alteridade jurídica.

Conforme Ráo (2004, p. 215) Direito Subjetivo é:

a faculdade que ela (a norma) confere às pessoas, singula-res ou coletivas, de procederem segundo o seu preceito, isto é, entre a norma que disciplina a ação (norma agendi) e a faculdade de agir em conformidade com o que ela dispõe (facultas agendi)

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O Direito Subjetivo é formado então na pessoa do seu titular que a realiza, que consubstancia a vontade do titular de direitos. Debatendo-se, segundo Jelin (1996, p. 17) em primeiro plano, qual é a natureza deste “sujeito” e do conteúdo dos “Direitos”, naquele sujeito na sua inter-relação e neste, os direitos universais frente ao pluralismo dos Direitos. Com isso, cria-se, conforme Jelin (1996, p. 24) uma tensão entre a universalidade destes Direitos versus o Pluralismo Cultural, por exemplo, o que na área do Direito pode-se ser elencado como uma antinomia, pois é uma “situação de normas incompatíveis entre si” (BOBBIO, 2008, p. 228).

Neste cenário, a cidadania é um campo o exercício da alteridade. Jelin (1996, p.18) pondera que a cidadania faz referência a “uma prática confl itiva vinculada ao poder, que refl ete as lutas sobre quem poderá dizer o quê no processo de defi nir quais são os problemas comuns e como serão abordados”, assim sendo, há se de valer que os Direitos estão em constante processo de mudança e construção, numa ação humana de auto manutenção e expansão. Por isso, Ráo (2004, p.559) defende que o direito subjetivo tem a fi nalidade:

de conferir vida, meios de coexistência, segurança e desen-volvimento aos direitos das pessoas, dos grupos sociais e da coletividade, os direitos subjetivos existem; e tanto vale dizer sobre a justa conceituação desses direitos a inteira construção jurídicas e levanta

Portanto, a cidadania tem uma dimensão cívica, dos sentimentos que unem e vinculam uma coletividade. Neste sentido, perpassa a alteridade, o tensão entre os direitos universais e o pluralismo, cultural, de gênero, ou de classe, gerando diversidade (JELIN, 1996, p. 24):

O reconhecimento da pluralidade dentro da humanidade devia converter-se no antídoto para a repetição de crimes em massa, genocídios e aniquilamentos culturais a partir de ideologias e interesses que negavam, explicita ou implicita-mente, às vítimas, a qualidade de ‘ser humano de direitos!

Jelin (1996, p. 21) sugere que se deva aumentar a base social da cidadania, pensando-se em incluir grupos socais minoritários. Uma possível análise é quando se pensa na relação entre universalidade e pluralismo, deve-se levar em consideração que a diversidade e a pluralidade devam ser elementos constitutivos da universalidade. Desse modo, se relacionando o Princípio da igualdade e o Direito de diferença, sem a ilusão de uma norma que trate todos

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igualmente de maneira formal, mas sim, de forma material. Assim sendo, o exercício de mudar o foco de ponto de referência ao (às) outro (as) é essencial para a prática da alteridade, no âmbito da igualdade material.

Afi rma Jelin (1996, p. 24) que a alteridade é um componente indispensável no processo de construção da cidadania ativa e aberta ao debate permanentemente. Devendo-se primordialmente reconhecer a historicidade das lutas sociais e de seus conteúdos, já que deva-se deixar claro que, não há uma maneira única de resolver as contradições e tensões básicas, por exemplo, entre o universalismo e a pluralidade. Faz-se necessário ter-se muita criatividade e inovações permanentes; reconhecer as historicidades é reconhecer que não há verdades absolutas; para fomentar a solidariedade e a responsabilidade pelo outro (a).

Levi-Strauss (1952, p. 328) observa que há de se separar a biologia do mundo social. Não há causa ou efeito no mundo social que tenha patamares biológicos, senão simplesmente as próprias caracterizações sociais, assim sendo, a cultura não é estática, é sim dinâmica, e faz parte de um fenômeno de diversidade cultural, logo as culturas não estão em diferentes etapas da evolução social predeterminada, mas são em suas essências diferentes, não melhores ou piores, não primitivas e mais desenvolvidas, mas simplesmente diferentes. Neste contexto, deve ser evitado o discurso etnocêntrico, o etnocentrismo tem como base primordial, em se afi rmar e determinar que uma cultura seja certa de se seguir e outra não, de acordo com determinações sócio-culturais, devendo-se ter uma postura científi ca de tolerância dinâmica e não contemplativa.

Geertz (2001, p. 75) defende que a diversidade cultural é mais caracterizada com a capacidade de sondar as sensibilidades alheias, os pensamentos que não se tem ou que não se tendem a ter. No mau presságio de que “nós somos nós” e “eles são eles”, o limite está nas fronteiras dos que estão à pesquisa, ou seja, em si mesmo, esta idéia, para Geertz é errada, a constituição é feita através da idéia de que a cultura é socialmente constituída. Devendo-se respeitar os autos limites daquele que pesquisa “os outros”, pois terá limites nas: 1.sua própria cultura; 2. sua formação de vida e 3. sua própria constituição social, ou seja, nas fronteiras de si mesmo.

Para Geertz (2001, p.79) o sentido maior da alteridade está em mostrar os confl itos de valores surgidos da diversidade cultural. Compreendida através da etnografi a, que descreve a realidade em questão a partir do outro e é através do outro que se descreverá os usos da diversidade, da integridade grupal e mantendo a lealdade do grupo, de maneira concretizada. Pois, “não há substituto para o conhecimento local, nem tampouco para a coragem” (GEERTZ, 2001, p. 81) e a “capacidade de nossa imaginação para apreender o que está diante de

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nós, que residem os usos da diversidade e do estudo da diversidade” (GEERTZ, 2001, p. 85). Assim sendo, Laplatine (2007, p. 23) discorre que a descoberta da alteridade permite uma relação de deixar de ter a identidade de um indivíduo com a humanidade, o que evita correlacioná-la com o presumido “selvagem”. Isso signifi ca romper com a multiplicidade das culturas, muitas das vezes, considerada enigmática e com a naturalização do social, com o humanismo clássico e da cultura como cultura. Com isso, se evitando pensar de uma maneira homogeneizada.

Geertz (2009, p. 91) defende que “é necessário que deixemos de lado nossa concepção, e que busquemos ver as experiências de outros com relação a sua própria concepção do ‘eu’”. Para Geertz (2009, p. 107), isso é possível através da compreensão da forma e da força do interior do “nativo” (os outros), através de uma tarefa interpretativa. Dessa forma, não sendo uma comunhão de espíritos, mas do ponto referencial do outro. Até aqui, há uma perspectiva antropológica, mas considerando a relação do Direito com a Antropologia como Geertz (2009:107), falar, vivenciadas na prática.

Todorov (2010, p. 269) defende que a relação com o outro não se dá de uma única dimensão. Para Todorov (2010, p. 269-270) tem-se que distinguir três eixos para se compreender as relações com o outro: 1. Um julgamento de valor, isto é, num plano axiológico, para se entender se o outro é bom ou mal na tábua de valores daquele que julgar; 2. A relação de ação de aproximação ou distanciamento, num plano praxiológico, ou seja, os valores daquele que julga estão identifi cados com o outrem ou não, está assimilado ou não e 3. Se há o conhecimento ou se ignora a identidade do outro, num plano epistêmico. Estes três eixos ocorrem em certa diversidade dentro de cada eixo. Não se podendo reduzir estes eixos de maneira isolada, de maneira que o mais importante e se mudar de ponto de referência de si para outrem, sem que se perda a auto identidade e auto reconhecimento.

Supiot (2007, p. XXVIII) descreve que quando se põe no Direito o ponto fundamental o indivíduo se esquece que “não há identidade sem limites, e quem não encontra seus limites em si os encontrará no exterior de si.”, assim o Direito é uma representação do social, nas comunidades pesqueiras vislumbradas pelas normas de usos e costumes que são as formas consuetudinárias de tornar os confl itos passíveis de soluções, através do diálogo inter comunitário, para encontrarem soluções entre as comunidades. Dessa forma, a alteridade jurídica é determinante às soluções de confl itos socioambientais nas comunidades, pois une as diversas formas de vivenciar o Direito em suas dimensões sociais.

Neste ínterim, Aguiar (2006, p. 12) descreve que a palavra alteridade está presente no Direito, ora para constituir a bipolaridade mínima da relação

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jurídica, ora para expressar a interferência jurídica, o que em conseqüência pode-se traduzir no que seja a condição de um outro, que é distinto, diferente ou constratante. Neste sentido, Aguiar (2006, p. 12) pondera que:

Uma certa fi xidez dogmática de raiz metafísica do senso comum jurídico não trata do jurídico a partir da relação en-tre diferentes, mas a partir de uma norma uniformizadora, que dilui os sujeitos no interior de uma igualdade abstrata e retira dos envolvidos na relação jurídica os seus rostos, suas existências e concretude. Em suma, nas relações sin-táticas entre duas abstrações não existe o outro, pois tudo está enovelado na ditadura do uno, do indiviso.

E é esta confi guração jurídica que não resolve os problemas nos confl itos entre grupos. Enquanto que o sentido primordial do Direito está em resolver confl itos, mas ainda Aguiar (2006, p. 12) pondera que é a partir desta idéia, de solução de confl itos que, O Direito, seja na negação do outro, por sempre se ter a necessária destruição de um pólo para que o outro vença, numa contenda do Direito.

O termo “Alteridade jurídica”, conforme Aguiar (2006, p. 35) advém do sentido de que O Direito também tem como fonte de normatividade, as minorias sociais. Criando-se novas maneiras de expressão da democracia e claramente se opondo às práticas hierárquicas e verticais do Estado, mostrando uma maneira horizontalizada das práticas sociais e constituindo uma maior simetria de poder. Relação esta, possível somente através do sentido maior da alteridade jurídica, o de por no centro o outro.

Portanto, quando se trata da união entre O Direito e A Antropologia, a alteridade jurídica é uma abordagem que vincula estas duas ciências. Esta união se consubstancia inicialmente, na alteridade normativa, ou seja, no fato de a norma formalmente constituída pelo Estado recepciona em sua atividade legislativa as normas consuetudinárias de uma comunidade pesqueira. Nestes termos, o ponto de referência jurídico não é o do Estado, mais sim a do os (as) outros (as), um exemplo que se tem na Amazônia Brasileira de alteridade jurídica são os acordos de pesca.

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2 CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PESQUEIROS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Há na Amazônia Brasileira uma diversidade de confl itos socioambientais, especialmente ao se tratar das complexidades sócio-culturais e de seus movimentos populares. No que tange aos confl itos socioambientais pesqueiros, é importante salientar que não há uma homogeneização ou bipolarização dos confl itos socioambientais. Assim sendo, há várias categorias de sujeitos envolvidos nestas contendas.

Para Furtado (1993, p. 389) os confl itos pesqueiros na Amazônia Brasileira, ocorrem entre: varjeiros, pescadores citadinos, fazendeiros, marreteiros e as lideranças dos órgãos representativos da pesca. Confl itos entre os antagonismos de varjeiros/pescadores citadinos; pescadores/fazendeiros, pescadores/marreteiros; pescadores/Estado; pesca artesanal/pesca industrial, dessa forma, estes confl itos são minimizados ou resolvidos a partir das ações alternativas dos próprios pescadores regionais, evitando-se benefi ciar as classes dominantes envolvida na pesca, o que desestrutura a produção pesqueira em pequena escala. Confl itos estes também situados numa realidade social nacional, como por exemplo, a valorização da terra para fi ns agropecuários e capitalização dos recursos dessas áreas.

Neste sentido, Chaves, et al (2007, p.54), descreve que os confl itos socioambientais pesqueiros, vão muito além das disputas pelos territórios e posse de áreas tradicionais de uso, mas também pela presença de fatores sociais, políticos, culturais e ambientais. Dessa forma, possui uma história de grande diversidade, por exemplo, as diferenças entre os movimentos sociais do Pará e do Amazonas, nestes cenários, sempre apoiados por diferentes movimentos sociais, instituições religiosas, organizações não governamentais e de pesquisa, para que se regulasse o uso e o acesso aos recursos pesqueiros. Portanto, foi através destas confi gurações históricas que os movimentos sociais pesqueiros construíram reconhecimento e credibilidade na sociedade civil da Amazônia, mantendo-se a continuidade da reprodução social do modelo de vida destas comunidades tradicionais. A efetivação de direitos e formulação de manejo; e gestão participativa adaptativo às novas realidades sociais apresentadas pelas mudanças sociais, por exemplo, a intensifi cação da pesca comercial na década de 1960.

Desta maneira, Jacaúna et al (2009, p. 345)analisa que:

Observa-se que os confl itos de pesca na Amazônia Cen-tral não se trata de confrontos maniqueístas, mas de uma

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relação entre grupos sociais que possuem características, interesses estratégias e racionalidades, isto é, habitus es-pecífi cos que atuam de maneira diversa num campo social marcado pela escassez de alguns estoques pesqueiros em seus ambientes aquáticos.

Estes confl itos são causados por vários fatores, como o crescimento de demanda para compra e comercialização de pescado. Dentre todas estas situações há os recursos pesqueiros, que quando não manejados e sobre-explotados fi cam escassos e com isso, falta alimentação das famílias das comunidades tradicionais e para a subsistência dos pequenos pescadores. Outro fator que contribui para a sobre-explotação dos recursos pesqueiros é a modernização das técnicas de pesca, que facilita a atividade, onde antes não havia possibilidade do seu exercício.

Para Ruffi no (2005, p. 22-23) os confl itos pesqueiros na Amazônia têm como causas o declínio na produtividade pesqueira e a falta de credibilidade governamental na regulamentação da pesca, o que acabou por proliferar tais confl itos. Exemplifi cativamente, a “guerra do peixe”, ocorrida em 1973, no Lago Janauacá, no Amazonas, Soares (2009, p.128) descreve que foi um confl ito que teve repercussão na mídia, por ter tido. E acabou sendo um caso de grande repercussões no movimento das comunidades pesqueiras no Amazonas.

Conforme Soares (2009, p. 128) o confl ito ocorreu entre agricultores, produtores de tapioca e farinha de trigo e pescadores da própria localidade. Envolveu a captura indiscriminada de tucunaré e outras espécies, de um lado os agricultores acusavam os pescadores de “não trabalho”, argumentando que os pescadores não trabalhavam, por só pescarem e que somente os agricultores o faziam, responsabilizando os pescadores pela sobrepesca naquela região; de outro lado, os produtores de goma de tapioca, que moravam mais no interior da região contestavam os pescadores explotavam todos os peixes na entrada das águas do lago e por fi m, da acusação de que os pescadores gastavam o dinheiro do seguro defeso para melhorar suas técnicas de pesca, logo, pescando mais. De uma maneira geral, o confl ito de Janauacá é existente até os dias atuais (2010), vez que o ponto central desta disputa está no sentido que se dá à territorialização dos lagos pelas partes.

Segundo Soares (2009, p. 138) houve o uso pejorativo que se dão aos pescadores como “coisa de preguiçoso”. Isso ocorre por causa da identifi cação dos trabalhadores rurais com a terra fi rme e dos que trabalham nos lagos e rios num vínculo de autonomia política local entre estes dois grupos de trabalhadores distintos. A partir destes confl itos houve tentativas de mediação e conciliação, objetivando manter-se a sustentabilidade na explotação pesqueira

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em conformidade com o uso comum dos recursos pesqueiros para todos os usuários envolvidos.

Analogicamente aos confl itos em Janauacá/AM, os confl itos socioambientais de pesca ocorrem por causa dos usos múltiplos dos recursos pesqueiros. Nestes confl itos ocorrem desde a queima de embarcações até o uso de violência contra pessoas e uso de armas, na maioria dos confl itos estão de um lado os ribeirinhos, pescadores das comunidades localizadas nos lagos, e de outro lado os “pescadores de fora” ou “invasores”. Dentro deste contexto, as comunidades de várzea e ribeirinhas desenvolvem e implementam sistemas de manejo próprios, objetivando reduzir os confl itos e controlar a pressão sobre os recursos pesqueiros. Preventivamente, os órgãos e entidades envolvidas na pesca incentivam a elaboração de mecanismos de participação efetiva, por exemplo, nos fóruns de administração.

Para McGrath et al, (1993, p. 214/5 e 217) os lagos são postos como unidade de manejo pelas comunidades tradicionais. Isso acontece como forma de gerenciamento de pesca, sendo que estes lagos são considerados territórios/propriedades das comunidades, e reserva de recursos pesqueiros, o que se vale de acordo com o conhecimento local ecológico dos recursos pesqueiros, diferenciado de comunidade para comunidade. Havendo uma adaptação ecológica das comunidades ao meio em que vivem, o que possibilita, dessa maneira, limitar o acesso aos recursos pesqueiros.

Afi rma McGrath et al, (1993, p. 214/5 e 217) que as comunidades pesqueiras são conservadoras dos recursos pesqueiros. Mas para tanto, se deve analisar o manejo e o processo de desenvolvimento incluindo-se os conhecimentos tradicionais e conhecimentos ecológicos locais relacionados à diversidade dos recursos pesqueiros de cada região dessas comunidades ribeirinhas, o que por sua vez possibilita melhores processos de soluções de controvérsias. Portanto, a participação política das comunidades tradicionais nestes processos de soluções de controvérsias são determinantes para as efetivas soluções de confl itos entre os usuários.

Outro exemplo que se tem são os casos dos confl itos socioambientais no Médio Amazonas, Pará. Alencar (2000, p. 121) descreve que tais confl itos ocorrem em dois níveis: 1. sobre o manejo e gestão dos recursos pesqueiros e 2. sobre o território de acesso a estes. Nestes confl itos, as partes geralmente são: os pescadores artesanais versus pescadores comerciais. Nestes termos, numa realidade onde os recursos pesqueiros afetam sobremaneira a forma de ser e viver das comunidades, seja em relação com o meio ambiente, seja em relação da forma de organização e divisão social de trabalho e produção, geralmente feita por gênero. Afi rma ainda Alencar (2000, p. 126) que estes confl itos são

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bastante complexos, já que possuem outras peculiaridades, por exemplo, os confl itos entre pescadores artesanais (pescadores de pequena escala) versus pecuaristas e agricultores.

Desta maneira, se descreve os confl itos do Pará, valendo-se dos seguintes fatores: 1. a divisão de dois níveis dos confl itos desta região no nível ideológico descrita anteriormente; 2. da defi nição de território de produção, 3. do confl ito entre os pescadores católicos versus pescadores da Assembléia de Deus (Comunidade de Caieiras/PA), 4. da agravante da pecuária, por ocorrer uma demarcação territorial, 5. da agravante da diminuição do pasto natural e 6. do fenômeno da terra caída, que diminui os espaços para a pecuária. Assim, estão de um lado as famílias evangélicas eminentemente pecuaristas, de outro lado as famílias católicas, sendo que aquelas geralmente possuem seus territórios demarcados com cerca de arame farpado, o que não ocorre com as famílias católicas. Por isso, um dos confl itos mais destacados ser o confl ito advindo da passagem de gado por propriedades de donos de religiões diferentes.

O segundo nível de confl itos socioambientais está relacionado ao território e uso dos de recursos pesqueiros. Na Região de Cuieras-PA, os confl itos ocorrem por causa das restrições de acesso ao lago, especialmente aos pescadores comerciais e “de fora” desta região, objetivando:1. fechar o Lago Grande para a pesca comercial em determinado período do ano; 2. evitar a sujeição dos pescadores locais às geleiras através do uso do material de trabalho, que possuem uma dívida fi nanceira e moral, o que tira a autonomia dos pescadores locais. Desta forma, originando-se mais uma complexidade dos confl itos socioambientais, qual seja, entre os pescadores de geleiras versus pescadores ribeirinhos.

Pondera Alencar (2000, p. 139/140/141) que a maior preocupação com a diminuição dos recursos pesqueiros expressa incertezas quando ao futuro das comunidades que dependem dos recursos pesqueiros para sua subsistência:

Observa-se assim que a população de Cuieiras vive uma situação de ameaça à sua sobrevivência enquanto um grupo tradicional com formas específi cas e culturalmente re-elab-oradas de se relacionar com o ambiente da várzea amazôni-ca. De um lado está a dinâmica ambiental, a terra caída que, além de provocar a diminuição do espaço físico da comunidade, também potencializa a disputa pelo controle do acesso aos recursos naturais. De outro lado, a ameaça de esgotamento do principal recurso, o peixe. Na impos-sibilidade de aumentar o espaço físico da comunidade, já que se trata de um fenômeno natural e irreversível, e na im-possibilidade de realizar o manejo dos recursos pesqueiros,

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restaria como alternativa, na pior das hipóteses, a migra-ção para os centros urbanos, como já vem ocorrendo com a população de várias comunidades da região.

Esterci (2002, p. 51) descreve e constata que a Amazônia é um laboratório de política e projetos. Na Amazônia há processos sociais complexos, que envolvem relações entre o Estado; a sociedade civil organizada e pesquisadores, e advêm destas relações uma dimensão ecológica como forma de identidade, por exemplo, os seringueiros do Acre, que por sua vez envolvem em seu discurso a Natureza, os Direitos e os critérios de Justiça Social. Mostrando uma relação entre Ecologia, Política e Direito.

Nesta percepção, Esterci (2002, p. 52) descreve um exemplo signifi cativo, isto é, a separação dos sentidos entre pescador e ribeirinho. Para a primeira categoria, Esterci (2002, p.52) descreve tendo uma discriminação negativa, no qual é colocado como “depredadores”, não interessado na conservação da natureza; já a categoria do ribeirinho, possui uma discriminação positiva, o qual é denominado como o conservador “tradicional”. Ela descreve que essas duas categorias estão de lados opostos, com a ressalva que estas categorias estão em processo constante de mudança e é necessário se destacar que não só possui uma relação de confl itos bilaterais, mas também que envolve vários sujeitos.

Ambas são categorias de trabalhadores da pesca. Neste sentido é pescador (a), aquele (a) que pesca, que vive em pequenos ou grandes centros urbanos e aos ribeirinhos, àqueles que moram nas margens dos rios e lagos do interior; vale salientar que nem todos que são pescadores somente e que nem sempre possuem caracteres de ribeirinhos e vice-versa, mas mesmo assim sendo-os. Originando-se desta análise ecológica política a problemática entre a representação de ambas, ou seja, a unidade básica de representação dos ribeirinhos são as comunidades e dos pescadores as colônias de pescadores.

Há de se ater que esse processo de construção de imagens possui um histórico desses grupos e determinou a organização e a legitimação da representação de ambas. Cita Esterci (2002, p. 53) que o estado do Amazonas, no qual no decorrer do século XIX, teve a formação de pequenos grupos de produtores na região, e por causa de alterações nas áreas de várzeas e esgotamento ou perda dos valores dos recursos naturais o êxodo rural destas populações no século XX; sendo que na década de 1950 houve a modernização nas técnicas de captura, inclusive com incentivos governamentais, especialmente nas décadas de 60 e 70, importante salientar também a criação da Zona Franca de Manaus. Com esses fatores iniciaram mudanças de paradigma de vida, alguns dos pescadores de subsistência (pequena escala) tornaram-se pescadores comerciais, originando vários confl itos como o caso dos “pescadores de fora”, isto é, aquele que não

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eram das comunidades mas iam pescar nas áreas destas. A partir destes confl itos, vieram medidas para tentar resolver ou amenizar tais problemas.

Historicamente umas das medidas foram tomadas através das Comunidades Eclesiais de base (CEBS), que contribuíram para a elaboração dos acordos de pesca. Disseminadas pela Amazônia Brasileira nas décadas de 60 e 70, através da Igreja Católica Apostólica Romana, confi gurou-se novas propostas às comunidades tradicionais, com uma nova estrutura organizativa e mais formal, por exemplo, a criação de funções políticas e burocráticas internamente nas comunidades; o que com o passar dos tempos, as autoridades comunitárias começaram a transcender as autoridades religiosas no caminho de legitimidade da representação, o que de certo modo distanciou as Igrejas Cristãs da centralidade da representatividade. No estado do Amazonas a Comissão da Pastoral da Terra - CPT tentou inicialmente unifi car os pescadores, nesta denominação, no entanto, no decorrer dos encontros, houve a cisão entre pescadores e ribeirinhos; mas, foi a igreja Católica que começou a traçar o entendimento da imagem positiva dos ribeirinhos, deste a época da “crise do peixe”. O que consolidou os movimentos de conservação e manejo dos lagos e acabou por se requestionar a representatividade dos pescadores e ribeirinhos.

Esterci (2002, p.56) afi rma que as colônias de pescadores possuem inadequação da organização e da representação dos trabalhadores da pesca. Isso é causado pela contrariedade das normas da Colônia de pescadores que não valorizam a autonomia e a representação daqueles; ao mesmo tempo em que, no Estado do Pará, houve a valorização da classe na década de 1980, com a formação de grupos de organização pesqueira, como o Movimento Nacional dos Pescadores – MONAPE, Movimento dos Pescadores do Estado do Pará – MOPEPA. Tornando o movimento de organização dos pescadores mais independente ao mesmo tempo em que contrários alguns valores de seus membros.

Na realidade, esse movimento signifi cou a cisão entre as CEBS, Comissão da Pastoral da Pesca e Movimentos de Pescadores, tornando-os mais independentes e laicos. Esterci (2002, p. 57) salienta que os Movimentos dos Pescadores dos Estados do Pará e do Amazonas são diferentes, no Pará ocorreu através de um processo de discussão e luta pela representação legítima dos pescadores, conforme reconhecimento político e social; já no Estado do Amazonas, a formação das colônias de pescadores ocorreu a partir da Marinha de Guerra, que não apoiavam as CEBS.

No processo de organização dos trabalhadores de pesca que mais se destacou, foi o de Santarém - Pará, no fi nal da década de 80. No qual, a partir de um projeto político, implantou-se um “sindicalismo ofi cial”, um exemplo

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desse processo, foi a expulsão dos “pescadores cooperados”, que em 1982, signifi cavam mais de 400 (quatrocentos) sócios, pelo fato de que não pescavam, eram atravessadores, comerciantes, fazendeiros e armadores. Bem como, a consolidação de representatividade legítima e a formação de uma identidade coletiva de pescadores, para se ter a efetiva representação desse grupo.

Já no Estado do Amazonas, a CPT utilizou outro caminho, conforme Esterci (2002, p.59), embasado no seguinte:

1.A longo prazo, construção de Nova Sociedade, igualitária, justa; construção do Reino de Deus; 2. A médio prazo, mel-horar as organizações para uma sociedade mais igual e 3. A curto prazo, mais peixe, mais respeito aos trabalhadores, lago preservado, etc.

Sendo ainda uma tentativa de unir os movimentos de pescadores e ribeirinhos em uma representação, postura esta abandonando pela Igreja Católica em 1991, o que tornou os acordos de pesca, por exemplo, o de Tefé, mais efetivo.

Nesta realidade, ao se considerar os movimentos de representação dos pescadores e ribeirinhos Esterci (2002, p. 60) defende que esta representação possui uma efi cácia desigual. As colônias de pescadores do Estado do Amazonas, não representam seus pescadores, foram sim criados pela Marinha de Guerra, neste sentido, a história das colônias de pescadores não promove a auto valorização da categoria, “as colônias estão associadas a crises permanentes e disputas de poder, à dependência com relação a políticos e à malversação de recurso” (Esterci, 2002, p. 60); mesmo assim, de outro modo, há a indicação de mobilização ao se considerar a fi liação dos pescadores nestas colônias, e não somente motivo para obter carteira profi ssional e outros benefícios.

No que tange às comunidades, houve duas vertentes. A primeira, considerando os consensos e os compromissos fi rmados, para “falar em nome de”; e a segunda no que tange à “união”, que se fez, como forma de atacar os “invasores”; sendo que os moradores dos povoados tiveram mais possibilidade de fazer uma regulamentação da pesca para manter o estoque pesqueiro. É a partir das comunidades que houve a formação de uma identidade como unidade política, neste ínterim, a Igreja Católica contribuiu para a formação de uma identidade coletiva e de um espaço social.

Esterci (2002, p. 61) conclui que os efeitos sociais de cada histórico diferencial contribuíram de certa maneira para evidenciar que a pesca é uma alternativa de meio de vida. Para tal, o diálogo entre as partes e a construção de acordos de pesca são importantes para amenizar ou até resolver os confl itos de

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pesca, sem se desqualifi car a profi ssão de pescador, respeitando a representação dos ribeirinhos, sempre com a utilização de orientações ecológicas.

Os movimentos dos pescadores no Pará e no Amazonas foram e são diferentes; e possuem contextos diferentes de confl itos ambientais. No primeiro o movimento se origina com a colaboração da Igreja Católica, no entanto, com o passar do tempo se torna independente, sendo considerado um modelo de efetiva representação dos pescadores na Amazônia Brasileira, o que facilita para resolução de confl itos socioambientais. O movimento dos pescadores no estado do Amazonas tem sua origem através da Marinha de Guerra e não é considerado um movimento que efetivamente represente sua classe. Vale salientar que neste âmbito, os acordos de pesca são medidas de resoluções de controvérsias nos confl itos sociais em ambos os estados, assim sendo, os efeitos sociais de cada histórico diferencial contribuiu de certa maneira para evidenciar que a pesca é uma alternativa para efetivar o modo de vida das comunidades pesqueiras da Amazônia, através do diálogo entre as partes, respeitando-se as representatividades.

Mas, para resolução desses confl itos socioambientais é de se falar do Direito a multiculturalidade como fator para emancipação destas comunidades pesqueiras enquanto tomadoras de decisão. Duprat (2007, p. 9/10) defende que com a constituição de 1988 se reconheceu o Estado Brasileiro como um Estado plural ou pluricultural, que possui identidades específi cas e cabe ao Direito assegurar o direito da manutenção da existência destas comunidades, como mandamento constitucional, de reconhecer esses grupos como de sujeitos de Direitos Coletivo. Pois, “são visões que, goste-se ou não, não podem ser descartadas, sob pena de, em afronta à Constituição e a outros tantos documentos internacionais, se negar qualquer valor às asserções de verdade do outro” (DUPRAT, 2007, p. 19), noutros termos, da alteridade jurídica aplicada aos confl itos socioambientais pesqueiros.

O patamar da valorização de tal postura é feita através da união da natureza e da cultura. Conforme Derani (1997, p. 72/73) a análise entre natureza e cultura é dialética e de maneira indissociada, onde os elementos que constituíram às maneiras de resolução dos confl itos socioambientais não nascerão de análise puramente teórica, mas de análises que congregam os relacionamentos com o meio natural e social, em suas complexidades. Dessa forma, a qualidade de vida das comunidades pesqueiras serão auto determinadas por elas, dialogadas entre as partes envolvidas, especialmente quando se trata da relação natureza e cultura.

Roué (1997, p.72) aconselha que se devam evitar as designações de homem (ser humano) e natureza, pois se pode a partir dessas designações ocorrer

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o erro de pré determinações e difi cultar a elaboração de soluções coerentes com os confl itos socioambientais pesqueiros. Por ser “essencial compreender a organização hierárquica e social, a divisão do trabalho, antes de examinar as ações e o pensamento da natureza” (ROUÉ, 1997, p.72) que essas comunidades têm culturalmente constituída, não valendo do indivíduo, mais sim da coletividade das comunidades diversas e diferentes. Desta maneira, fazer uma co-gestão entre as partes para o respeito à biodiversidade e à sociobiodiversidade, no caso pesqueiro, incluindo e inserindo as comunidades pesqueiras, como participantes efetivas, mas com uma ressalva, qual seja, considerar o que elas pensam sobre as soluções, conforme as relações: entre si, com outros usuários, noutros termos, com o uso e aplicação da alteridade.

Logo, os confl itos socioambientais pesqueiros na Amazônia Brasileira, envolvem características disposta sobre as representatividades dos sujeitos de Direitos Coletivos, territorialidade nos lagos, exercício de cidadania na alteridade, dentre outros motivos. Neste sentido, a alteridade jurídica, é uma abordagem que está sendo desenvolvida para solução de controvérsias dos confl itos socioambientais pesqueiros, que condessa o manejo pela participação cooperativa dos usuários envolvidos, considerando que o pano de fundo destes confl itos, são os usos e manejo de recursos naturais, no caso pesqueiro. Importante salientar que, os acordos de pesca, como fruto da elaboração consensual entre os usuários são uma prática existencial da alteridade jurídica.

3 COMUNIDADE SANTO ANTÔNIO DO RIO URUBU – BOA VISTA DO RAMOS (AM)

Desta feita, passa-se a descrever alguns aspectos da comunidade Santo Antônio do Rio Urubu. Esta comunidade fi ca localizada no município de Boa vista dos Ramos, no Estado do Amazonas. Este município, conforme Atlas de Desenvolvimento no Brasil (PNUD, 2000), faz parte da Microrregião de Parintis e da mesorregião do Centro Amazonense. Possui uma área de 2.598,1 Km², com densidade demográfi ca em 5,3 hab/km², distante da capital a 270,6 km. Tem uma população, (IBGE, 2000), de 10.482 pessoas, destes 5.465 em área rural e 5.017 em área urbana. Por fi m, possui um Índice de Desenvolvimento Humano IDH-municipal, de 0.642 (PNUD,2000).

A Região do Rio Urubu possui cinco comunidades que participaram do acordo de pesca nº 11/2003 e da elaboração do novo acordo de pesca. Estas são: Nossa Senhora de Fátima da Terra Preta; Nossa Senhora do Carmo do Itaúbal; Santo Antônio do Rio Urubu; São Pedro do Tamoatá; Boa União, todas em Boa

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Vista do Ramos e São João de Itaúbal, no município de Maués. Acordo de pesca este respeitando a Instrução Normativa nº 29 de 2002 - IBAMA, que trata do processo de elaboração dos acordos de pesca.

A Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu fi ca localizada no lado direito do Paraná do Ramos. Possui, conforme pesquisa de campo2 realizada de 09 e 12 de março de 2010, em média 78 (setenta e oito) pessoas, divididas em 18 (dezoito) grupos familiares de um tronco familiar em comum. Esta desenvolve a permacultura, através do Instituto de Permacultura da Amazônia; manejo de pesca, através de um viveiro; projeto de curso de informática e cursos de refl orestamento, que compatibiliza com o perfi l do pescador polivalente caboclo-ribeirinho. Relacionada às outras, tem um relativo melhor acesso, tanto na seca como na cheia.

Esta comunidade ao participar de uma auto pesquisa de levantamento sócio-econômico viabilizada pelo Instituto de Manejo e Certifi cação Florestal e Agrícola - IMAFLORA, no ano de 2001, se auto determinou, como sendo de famílias humildes, onde todos são parentes, que ganham seu sustento de vida através do trabalho, tendo uma vida calma e tranqüila. No início a comunidade tinha uma maior quantidade de população, que trabalhavam por um objetivo em comum.

Segundo pesquisa de campo feita entre os dias 30 (trinta) de julho de 2010 a 02 (dois) de agosto de 2010, em uma das entrevistas feitas, foi levantada a informação de que a comunidade foi fundada depois que o Sr. Hilário Gomes doou parte do seu terreno para compor a comunidade, fundada ofi cialmente pelo Padre Gabriel Modica, Pontifício Instituto Missões Exteriores - PIME. Nesta época, os primeiros moradores tinham bastantes peixes, caças, terra boa para plantio; católicos construíram uma capela: primeiro de palha, depois de alvenaria para oração; o primeiro centro social foi fundado em 1991; possui uma escola; um posto de saúde que foi construído uma fundação, mas não foi concluído, mesmo que tenha sido inaugurado.

Para os comunitários de Santo Antônio do Rio Urubu ser pescador é um orgulho e uma honra. Pelo fator de que ser pescador é ter o peixe como um alimento, se caso tirasse da suas vidas a pesca, perderiam o sentido de vida, de

2 As pesquisas de campo foram executadas pelo autor deste artigo, como resultado parcial da pesquisa e levantamento de dados da dissertação intitulada: “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Conhecimento Tradicional associado ao Manejo Pesqueiro, p. um estudo de caso na Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu, no mu-nicípio de Boa Vista do Ramos/AM” desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.

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ser comunidade, descrevem ainda que a história da comunidade é permeada pela sustentabilidade pesqueira. Ser pescador (a) para esta comunidade é ser parte da comunidade que o fazem existir.

A Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu vive e se sustenta da pesca, primordialmente de subsistência ou pequena escala. Geralmente, os comunitários vão pescar por volta das 5:00 horas da manhã, e dependendo da necessidade que tem voltam antes do horário do almoço, tal qual na maioria da Amazônia Brasileira quem vai pescar é o homem e a mulher trata e assa o peixe para alimentação do grupo familiar. A pesca é o meio de sustentabilidade familiar, mas isso não signifi ca que os grupos familiares não tenham o cultivo e criação de animais, como plantação de banana e criação de bovinos e suínos, o que os coloca como pescadores polivalentes, ou seja, possuem como principal atividade a pesca, mas também, são agricultores, pecuaristas e apicultores (criadores de abelha) em pequena escala. Neste sentido, a pesca é um meio de vida que os identifi ca como comunidade pesqueira.

4 DA ALTERIDADE JURÍDICA NO ACORDO DE PESCA Nº 11/2003

Após se ter levantando um marco teórico sobre a alteridade jurídica e os confl itos socioambientais pesqueiros na Amazônia, se faz necessário contextualizar estas análises teóricas em um caso concreto, qual seja, o acordo de pesca nº 11/2003 - IBAMA na Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu, que participou da elaboração deste Acordo de Pesca. O objetivo deste tópico é fazer uma análise conjunta entre os marcos teóricos e uma realidade social específi ca da Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu.

A partir dos confl itos - “pescadores de fora”, diminuição do estoque pesqueiro - da década de 1990 a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu e as outras comunidades do Paraná do Ramos, as cinco comunidades antes citadas, começaram o processo de elaboração do acordo de pesca, que foi homologado pelo Ministério do Meio Ambiente em 20 de março de 2003, pela portaria nº 11/2003, o que amenizou os confl itos naquela época. Posteriormente, na década de 2000 começaram a fazer uma reelaborarão do acordo de pesca que está em fase fi nal, a de homologação pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Ministério de Pesca e Aqüicultura.

No acordo de pesca nº 11/2003 as 5 (cinco) comunidades (Santo Antôniodo Rio Urubu, São Pedro do Tamoatá, Nossa Senhora do Carmo do Itaubal, Boa União, Nossa Senhora de Fátima da Terra Preta do RioUrubu), Organizações não-governamentais (Colônia de Pescadores Z-15, de Boa Vista do Ramos/AM)

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e os órgãos governamentais envolvidos (IBAMA) decidiram algumas regras que são de conteúdo consuetudinário. Determinaram que a área deste acordo de pesca seria estabelecida, conforme o artigo 1. Do acordo de pesca que fi caria nos “limites para pesca na Região do Rio Urubu, no Município de Boa Vista do Ramos/AM, que compreende desde a boca do Rio Urubu com Paraná do Urariá de Cima, até a boca do Furo da Baixa; e, da boca do Castanhal à boca do Furo do Amandio”. Decidindo conforme os conhecimentos tradicionais que as comunidades tem sobre a região que pescam.

Um dos exemplos de conhecimento consuetudinário ou conhecimento local ecológico, transformado em norma através do acordo de pesca nº 11/2003 - IBAMA descrito no próprio acordo de pesca é:

Art. 2º. Limitar, em até 3 (três), o número de malhadeiras por barco permissionado para a atividade pesqueira. § 1º. Cada malhadeira não poderá ter mais de 100m (cem metros) de comprimento, nem ter malha inferior a 70mm (setenta milímetros), medidos entre nós opostos. § 2º. Cada malhadeira não poderá ser colocada a menos de 200m (duzentos metros) da confl uência de rios, lagos, furos e igarapés, nem estar a uma distância inferior a 100m (cem metros) uma das outras.

Há nesta norma o reconhecimento e relação com os conhecimentos tradicionais associados aos recursos pesqueiros. Pois, ao se limitar em três o número de malhadeiras, determina-se um limite para a quantidade de pescado; limitando-se à malha de 70 mm, limita-se o tamanho deste pescado, deixando-se passar pelas malhadeiras os peixes de menor tamanho para controle da quantidade dos peixes, e se determinando as distâncias de onde deverá ser colocadas as malhadeiras, protege-se o ciclo reprodutivo dos peixes. Sendo estas normas, medidas de manejo pesqueiro, ou seja, de etnoictioconservação, por se ter uma relação entre o sentido de reserva dos peixes e o conhecimento tradicional aplicado a uma norma.

Determinações estas que só são possíveis com o conhecimento ecológico local das comunidades envolvidas. Como forma de controle do pescado regulamentou-se que “Art. 3º. Cada barco ou geleira poderá capturar e/ou armazenar até 200kg (duzentos quilos) de pescado, por viagem de pesca.”, de maneira que as comunidades tivessem seu alimento sem a sobrepesca, isto é, fazendo-se o manejo de pesca através do acordo de pesca, ou seja, através de um instrumento legal. Outra medida de etnoictioconservação das comunidades neste acordo de pesca foi “Art. 4º. Proibir, por 2 (dois) anos, qualquer tipo de

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pescaria nos lagos Marajá e Laguinho, do Município de Boa Vista do Ramos/AM, os quais fi cam reservados como criadouros naturais.”

Assim, delegar às comunidades tradicionais o poder de:

Art. 2º. Permitir que, na ausência da fi scalização do IB-AMA, Agentes Ambientais Voluntários, devidamente cre-denciados, lavrem Autos de Constatação, de acordo com as determinações da Resolução CONAMA nº 003, de 16 de março de 1988 e da Instrução Normativa IBAMA nº 19, de 5 de novembro de 2001. § 1º. As apreensões de materiais provenientes de infrações à legislação pertinente serão realizadas por fi scais do IB-AMA, na forma da lei.§ 2º. Aos Agentes Ambientais Voluntários, quando ne-cessário, caberão as ações previstas no art. 3º da Instrução Normativa IBAMA nº 19/01. (numeração de artigo equivocada conforme publicação)

Respeitando-se a determinação de que fi cam excluídas tais proibições das pescas científi cas, que são devidamente autorizadas pelo IBAMA conforme seu art. 6º, de tal portaria. Ressaltando-se que tais normas devam respeitar as Leis do Estado, como por exemplo, o que determina o “Art. 7º. O exercício da pesca em desacordo com o estabelecido nesta Portaria sujeitará o infrator às penalidades previstas no Decreto nº 3.179, de 21 de setembro de 1999”. Nestes termos, os Agentes Ambientais Voluntários, (IN 66/2005 - IBAMA) são competentes para fazer o monitoramento e avaliação dos acordos de pesca, até mesmo por serem também comunitários, no entanto, a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu não os tem, funções estas exercidas pelos líderes comunitários.

Mesmo se tendo o segundo acordo de pesca sido elaborado em consenso com as comunidades e órgãos governamentais da região em meados de 2009, ou seja, na fase de monitoramento e avaliação do primeiro acordo de pesca, os confl itos ainda são existentes: presença dos “pescadores de fora”; diminuição do estoque pesqueiro; e pesca ilegal do pirarucu. Nas pesquisas de campo feitas em março de 2010 teve-se a notícia com os comunitários de que no lago do Marajá haviam sido pescados 14 (quatorze) espécimes, em maio de 2010 os comentários já estava em 21 (vinte e uma) espécimes.

A alteridade jurídica no acordo de pesca nº 11/2003 reside no processo de tomada de decisões das comunidades e na elaboração dos artigos antes descritos. Cada comunidade tem seus usos e costumes, onde alguns são similares e outros não, no que tange à efetivação dos interesses de cada comunidade, com isso, a relação de alteridade das comunidades está no consenso entre elas, isto é, no

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processo de diálogo entre a compreensão e cada uso e costume que for diferente, por exemplo, somente a subsistência do consumo do pescado para algumas comunidades e para outras, subsistência do consumo do pescado e a venda do pescado. Essa diversidade de interesses foram dialogados durante o processo de elaboração deste acordo de pesca aconteceu também com os outros usuários. Por fi m, no acordo de pesca nº 11/2003, a alteridade jurídica foi efetivada através do consenso, isto é, da tomada de decisões dialogada.

EMPODERAMENTO DA ALTERIDADE JURÍDICA NOS CONFLITOS SOCIOAM-BIENTAIS PESQUEIROS

A alteridade jurídica nos confl itos pesqueiros é a aplicação fática da responsabilidade solidária entre os usuários que participam nas elaborações dos acordos de pesca. Dessa forma, a alteridade jurídica é um instrumento de solução de confl itos entre comunidades pesqueiras e destas com os outros usuários, pois é de se considerar que as comunidades pesqueiras envolvidas vivem em um mesmo ecossistema, que se comunicam para o co-manejo de espécies através do acordo de pesca nº 11/2003. A alteridade jurídica é a forma de recepção inter- relacional entre as comunidades, de seus usos, costumes e conhecimentos ecológicos locais consolidados e a partir desta consolidação da relação com os outros usuários.

As comunidades tradicionais e pesqueiras da Amazônia Brasileira historicamente se organizam e resolvem seus confl itos entre si. Isso signifi ca que trabalham em cooperação para a sustentabilidade ambiental dos recursos pesqueiros e a sustentabilidade socioeconômica das comunidades envolvidas. Mas para tanto, é necessário que tais comunidades sejam participantes ativas no processo de tomada de decisões e elaboração dos acordos de pesca.

Assim sendo, o empoderamento da alteridade jurídica nos confl itos pesqueiros acontece através da participação ativa das comunidades pesqueiras, que descentraliza o poder de alguns grupos e consolida o empoderamento intercomunitário. Portanto, a alteridade jurídica é uma abordagem que, quando utilizada, pode resolver grande parte dos confl itos de maneira mais efetiva. Pois o foco central está na compreensão conjunta dos usuários, especialmente das comunidades pesqueiras envolvidas; na tomada de decisões, em consenso, o tornando mais efetivo, por ser um plano decisório das comunidades com outros (as). Um exemplo real desta abordagem e desta realidade da alteridade jurídica como instrumento de solução de confl itos socioambientais, é o caso do acordo

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de pesca nº 11/2003, que a Comunidade Santo Antônio do Rio Urubu é parte, como forma de pluralidade jurídica e efetivação dos direitos das comunidades pesqueiras.

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Artigo recebido em: junho/2010Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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A EFETIVIDADE DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA COMO TRATADO-QUADRO DE

PROTEÇÃO AMBIENTAL DA FAUNA E DA FLORA DO BRASIL

Diogo de Oliveira Lins•

Sumário: Introdução; 1. O Tratado de Cooperação Amazônica: Histórico e Anteceden-tes; 2. Tratado de Cooperação Internacional e a Jurisdifi cação da Proteção Internacional ao Meio Ambiente; 3. Breves digressões a respeito da defi nição de fauna e fl ora; 4. Leg-islação Brasileira e Proteção Penal do Meio Ambiente; 5. As difi culdades entre a reali-dade cotidiana e as tentativas de implementação do Tratado de Cooperação Amazônica; Conclusões; Referências.

Resumo: A efetividade de políticas públicas em torno da proteção do meio ambiente pressupõe normas aptas a regulamentá-las ou, pelo menos, fazerem qualquer alusão a instrumentos os quais vinculem um Estado à obrigação de implementá-las. Dada a natureza transfronteiriça do bioma amazônico, o qual incide em vários países latino-americanos, inevitável seria a ratifi cação, no atual contexto das relações internacionais, de algum documento jurídico por todos os países interessados pela temática. Nessa linha de entendimento, assinou-se o Tratado de Cooperação Amazônica em 1978, com entrada em vigor em 1980, no cerne da emergência da disciplina do Direito Internacional do Meio Ambiente. Passadas mais de duas décadas do início da implementação deste

Abstract: The effectiveness of public policies geared toward protecting the environment presupposes standards able to regulate them, or at least make no reference to instruments which bind a state obligation to implement them. Given the transboundary nature of the Amazon biome, which is based in several Latin American countries, the ratifi cation would be inevitable in the current context of international relations in any legal document for all countries concerned by the issue. In this line of understanding, signed the Amazon Cooperation Treaty in 1978, entered into force in 1980, at the heart of the emergence of the discipline of International Law on the Environment. After more than two decades of the beginning of the implementation of this

• Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Diretor de Secretaria da 2ª Vara da Comarca de Iranduba/AM.

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instrumento normativo internacional, procedeu o presente trabalho à identifi cação das principais conquistas e falhas na busca pela sedimentação de seus dispositivos, com enfoque sobre os delitos consumados em detrimento da fauna e fl ora brasileira. Nesse sentido, realizou-se pesquisa documental na Procuradoria da República do Amazonas, contabilizando-se as denúncias oferecidas por crimes contra a fauna e fl ora em bens da União, no período de janeiro a outubro de 2007.

Palavras-Chave: Tratado de Cooperação Amazônica; Fauna; Flora.

international instrument, conducted this study to identify the main achievements and failures in the quest for consolidation of their devices, focusing on the crimes to the detriment of wild fauna and fl ora. In this sense, there was documentary research in the Prosecutor's offi ce of the Amazon, accounting the complaints offered for crimes against fauna and fl ora of the estate, from January to October 2007.

Keywords: Amazon Cooperation Treaty; Fauna; Flora.

INTRODUÇÃO

Na esteira dos entendimentos fi rmados com o nascedouro do Direito Internacional do Meio Ambiente, emergiram na década de 1970 os primeiros instrumentos normativos internacionais a versar de forma pioneira sobre as questões ambientais, por ocasião da Declaração de Estocolmo de 1972. A ordem global passou, ainda de maneira tímida, a aventar a temática da proteção ao meio ambiente como uma das futuras preocupações da humanidade. Erigiram-se princípios fundamentais do Direito Ambiental, tais como prevenção, precaução, poluidor-pagador, democrático e desenvolvimento sustentável, entre outros.

A Floresta Amazônica, por sua extensão transfronteiriça, requer a cooperação conjunta dos países sob as quais incide o seu território de milhares de quilômetros quadrados no interesse de sua proteção. Os tratados internacionais se revelaram, em um primeiro passo na longa trajetória de desenvolvimento de consciência ambiental, como um instrumento hábil a projetar a questão perante não apenas os Estados diretamente interessados, mas perante a sociedade global. Não obstante a dualidade entre as teorias monista e dualista de regências dos diplomas celebrados pelos aparelhos estatais no exercício de suas soberanias, é inegável a monta e a vinculação fornecida por um tratado, convenção, pacto ou outro de magnitude equivalente, entre os seus respectivos signatários. Infere-se, diante dessa conjuntura, a conveniência e o momento oportuno no qual entrou

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em vigência o Tratado de Cooperação Amazônica, no ano de 1980, após 3 anos de sua assinatura, com o depósito das adesões necessárias.

A partir desse momento, as conquistas se revelaram incontestes. Após a inclusão de dispositivos os quais aludem ao meio ambiente em diversos tratados, a Constituição Federal de 1988 se tornou a primeira Lei Fundamental da história constituinte brasileira a mencionar expressamente a temática em um capítulo (art. 225 CF/88), consagrando os “direitos de terceira geração”.

Resta indubitável a infl uência do Tratado de Cooperação Amazônica, na sua posição de tratado-quadro, em inúmeros dispositivos de leis brasileiras as quais tratam intrinsecamente da questão ambiental. O presente trabalho se ocupou, após a análise do histórico e antecedentes do TCA, bem assim a defi nição de fauna, fl ora e biodiversidade, da análise de dados práticos, a partir dos quais será possível fornecer um quadro da realidade cotidiana.

1. O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: HISTÓRICO E ANTE-CEDENTES

Celebrou-se o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) com os seguintes propósitos: reafi rmar a soberania dos países que o compõe além de incentivar, institucionalizar e orientar o processo de integração e cooperação regional entre os mesmos. A assinatura teve lugar em Brasília, na data de 10 de julho de 1978, por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, mas só entrou em vigor no dia 3 de agosto de 1980 (trinta dias depois o depósito do instrumento de ratifi cação venezuelano)1.

Como referencial para sua área de abrangência, o tratado toma o conceito de bacia Amazônica e áreas cujas características geográfi cas, ecológicas ou econômicas, se considerem estreitamente vinculadas à mesma (artigo II), explicando assim a inclusão da Guiana e do Suriname, regiões que se enquadram no segundo critério.

Interessante observar a exclusão da Guiana Francesa do Pacto, sob o argumento de se tratar de uma colônia, e por isso não teria soberania para ser defendida no tratado2.

1 Entre os antecedentes do TCA, indica-se a Convenção de Iquitos de 1948 composta por Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, a qual foi coordenada pela UNESCO (BARRERA, 1993, p. 200).2 O professor Guido Soares indica: “none of the contracting parties of the TAC wanted to negotiate with a colonial power. France and Trinidad and Tobago had tried to join de TAC negotiations at na early stage, but they were diplomatically turned down by con-sensus among the negotiating countries ” (SOARES, 1993, p. 212).

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O tratado prevê a colaboração entre os países membros para a promoção da pesquisa científi ca e tecnológica, o intercâmbio de informações, a utilização racional dos recursos naturais, a liberdade de navegação nos rios amazônicos, a proteção da navegação e do comércio, a preservação do patrimônio cultural, os cuidados com a saúde, a criação e a operação de centros de pesquisa, o estabelecimento de uma adequada infra-estrutura de transportes e comunicações, bem assim o incremento do turismo e o comércio fronteiriço.

Ademais, a necessidade de proteção além das fronteiras nacionais contempla o fato de ser o meio ambiente um bem jurídico fundamental cujos danos podem ultrapassar os limites político-administrativos de um Estado e, mais precisamente no contexto amazônico, atingir direta ou indiretamente os países vizinhos.3

O diploma normativo internacional em apreço se destina à ponderação da sustentabilidade a partir de três dimensões: ambiental, social e econômica, com vistas a um compromisso entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental

Com vistas a desenvolver seus objetivos, o diploma normativo sub occullis abre espaço para que seus membros efetuem acordos bilaterais de modo a lhe garantir exeqüibilidade, ou seja, trata-se de um tratado quadro (umbrella agreement).

Barrera (1993, 201). explica que:

From the single paragraph to Article I, as well as from other sections of the text (...) it can be inferred that the Threaty hás the characteristics of na ‘umbrella agreement’, not sub-ject to interpretive reservations and not open to new adher-ence and which requires, for its full implementation, the subscription of specifi c agreements and understandings, elminating the possibility that its execution affects the ex-isting boundary disputes among the signatories

No Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), em seu Artigo VII, há previsão expressa de proteção à fauna e fl ora amazônicas dos países signatários, com ditames na forma de soft law, ou seja, não possui em si sanção contra aqueles que deixarem de praticar o que nele está previsto. Porém, isto não o torna vazio de qualquer signifi cado.

3 SILVA, S. T. et all. Responsabilidade Civil Ambiental nos Países Integrantes do Trata-do de Cooperação Amazônica, 2006. p. 7.

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Contudo, esses não são os únicos aspectos que cabem ser analisados no que diz respeito a esta proteção. Tendo em vista que o TCA é um tratado guarda-chuva (umbrella treaty), limita-se descrever as bases jurídicas que permeiam o próprio tratado, assim como os direitos e deveres das partes permitindo que outra regulamentação mais detalhada seja feita a posteriori.

Entre os acordos bilaterais fi rmados à luz do TCA convém rememorar os seguintes:

a) Plano de Ordenamento e Gerenciamento das Bacias dos Rios San Miguel e Putumayo: envolvendo Equador e Colômbia, o plano engloba uma proposta de ação para o desenvolvimento sustentável da zona fronteiriça, o qual inclui parte do Departamento de Putumayo na Colômbia e a Província de Sucumbíos a Província do Napo no Equador.b) Plano para o Desenvolvimento Integral da Bacia do Rio Putumayo: consiste em um plano proposto pela Comissão Mista de Cooperação Amazônica a fi m de implementar um programa de desenvolvimento sustentável na área de 160.500 km2 coberta.c) Plano Modelo Colombiano - Brasíleiro para o Desenvolvimento Integrado das Comunidades Vizinhas do Eixo Tabatinga – Apaporis: fruto dos trabalhos da Comissão Mista, visa promover a integração entre os países por meio de acordos econômicos os quais confi ram viabilidade ao aumento dos fl uxos comerciais de Letícia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil).d) Programa de Desenvolvimento Integrado para as Comunidades Fronteiriças Peruano - Brasíleiras (Inapari e Assis Brasil): baseado no Tratado de Amizade e Cooperação entre Brasil e Peru em 1979, procura a dinamização do comércio fronteiriço.e) Programa de Ação Conjunta Brasil Bolívia: elaborado no espírito da Declaração de 1988 entre Brasil e Bolívia sobre a necessidade de dedicar atenção constante à questão ambiental da região amazônica o programa pretende iniciar a execução de planos modelos binacionais de desenvolvimento integrado de comunidades visinhas, no âmbito da Subcomissão de Cooperação Fronteiriça da Comissão Mista Permanente de Coordenação. Para tanto, determinaram o início desses planos nas seguintes microrregiões: Brasiléia - Cobija; Guajaramirím - Guayaramerín; e Costa - Marques - Triângulo San Joaquín, San Ramón e Magdalena, todas na Amazônia.f) Convênio Complementar ao Acordo de Cooperação Amazônica entre Brasil e Colômbia, Sobre Cooperação no Desenvolvimento dos Recursos Minerais na Área de Fronteira: fi rmado em 9 de fevereiro

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de 1988 em Bogotá, este convênio objetiva estimular a cooperação econômica e empresarial, com amplo intercâmbio de informação técnica sobre atividades mineras e recursos geológicos da região de fronteira ou de comum interesse. Permite ainda a realização de levantamentos aerogeofísicos na região limítrofe, e determina que As informações obtidas em trabalhos conjuntos desenvolvidos no âmbito do presente Convênio não serão divulgadas a terceiros sem prévio acordo escrito entre as Parte, mesmo depois do término de sua vigência, com exceção das informações geo1ógica, geofísica e geoquímicas e outras, relativas aos correspondentes territórios, as quais poderão ser divulgadas e utilizada pela respectiva Parte, sem qualquer limitação.g) Acordo de Cooperação para a Conservação e o Uso Sustentável da Flora e da Fauna Silvestres dos Territórios Amazônicos do Brasil e do Peru: de 25 de agosto de 2003, este acordo reitera o compromisso das partes de cooperar em matéria de conservação da fl ora e da fauna silvestres e respectivos ecossistemas em seus territórios amazônicos com o propósito de promover a conservação do meio ambiente e o aproveitamento sustentável dos recursos naturais.h) Convênio entre o Governo da República Federal do Brasil e o Governo da República do Bolívia para a Preservação, Conservação e Fiscalização dos Recursos Naturais nas Áreas de Fronteira: assinado em 1990 esse convênio atesta o compromisso entre Brasil e Bolívia de proibir e a reprimir a caça e a depredação, bem como o comércio interno e externo de espécies da fauna e fl ora que se encontrem ameaçadas de extinção, inclusive seus subprodutos naturais ou manufaturados e proteger as fl orestas naturais e a preservar seus recursos, principalmente nas zonas fronteiriças binacionais, realizando estudos coordenados com vistas à aplicação, em seus respectivos países, de planos, programas e projetos que permitam o aproveitamento racional dos recursos naturais. Trazia ainda a proposta da criação de uma Unidade de Conservação Nacional Contígua que acabou não sendo levada a cabo.

2. TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA E A JURISDIFICAÇÃO IN-TERNACIONAL DA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE

Convém discorrer brevemente sobre a natureza jurídica do Tratado de Cooperação Amazônica frente ao Direito Internacional do Meio Ambiente, a fi m de que se estabeleça um liame interpretativo para as disposições de direito

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interno a serem adotadas pela República Federativa do Brasil em consonância com esse diploma.

Freire et al (2007, 4) partem da defi nição de juridifi cação para enquadrar as disposições do Tratado de Cooperação Amazônica, entendendo-a como um conjunto particular de características as quais as instituições podem ou não possuir, consideradas a partir de três dimensões: obrigação (um Estado ou outros atores estão limitados por regras ou compromissos ou um conjunto de ambos, com regras e comportamentos sujeitos ao Direito Internacional); precisão (essas normas devem ser isentas de ambiguidades); delegação (terceiros detêm garantias para interpretar e aplicar as regras, solucionar confl itos e, possivelmente, criar novas regras).

Juridifi car signifi caria, portanto, tornar jurídicas disposições meramente políticas. A preservação do meio ambiente, até os idos da década de 1970, consubstanciava meramente um compromisso político desencadeado pela Declaração de Estocolmo de 1972, sem a devida positivação, notadamente no contexto da Floresta Amazônica, detentora da maior sociobiodiversidade do globo terrestre. Nessa esteira, erigiu-se o Tratado de Cooperação Amazônica, com o objetivo de estabelecer obrigações internacionais, mínimas que fossem, aptas a conferir coercibilidade ao contexto de proteção ao bem jurídico ambiental em exame nessa pesquisa.

Ocorre, portanto,uma sobreposição de ambos os sistemas acima aludidos: o jurídico e o político, tendo em vista a natureza fechada de ambos.

Postas estas notas, passa-se à análise do tratado como soft law ou hard law, como acima pretendido.

Defi ne-se uma obrigação internacional soft law como um instrumento quase jurídico, desprovido de força coercitiva e, por conseguinte, de sanções aplicáveis aos Estados- Parte, ou cuja coercibilidade aparenta ser menor do que o enforcement do direito tradicional. Na seara do Direito Internacional, aludem a disposições as quais não se enquadram como normas internacionais em sentido estrito, com caráter inteiramente voluntário e subsidiário e de aprendizagem mútua, de acordo com lições proferidas por Freire I (2007, p.11).

O termo hard law, por sua vez, contempla o direito rígido, dentro do qual se reputam inseridas sanções contra as infringências perpetradas.

Ressalte-se que a natureza de soft law de uma disposição não lhe retira a juridifi cação, mesmo que desprovida de sanção.

Diante das defi nições acima colacionadas, situa-se o Tratado de Cooperação Amazônica, a partir dos três elementos basilares ao direito não-rígido:

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a) Obrigação: o tratado possui artigos concisos, mas não coercitivos, com vistas à cooperação entre as partes. Destacam-se a afi rmação da soberania e responsabilidade dos Estados-partes contratantes em face da Bacia Amazônica compreendida em seus territórios;b) Precisão: as intenções do tratado são as de incrementar o emprego racional dos recursos humanos e naturais dos seus respectivos territórios e estimular a realização de estudos e a adoção de medidas conjuntas;c) Delegação: a efetivação do tratado se dá através do funcionamento articulado com agências e órgãos responsáveis pela coordenação, implementação de programas e projetos de cooperação técnica dos países membros, os quais interagem com as unidades executoras e coordenadoras nacionais.Dá-se, por conseguinte, uma obrigação fraca, precisão forte e uma delegação moderada.

3. BREVES DIGRESSÕES A RESPEITO DA DEFINIÇÃO DE FAUNA E FLORA

Sirvinskas (2009, 423) defi ne fl ora como o conjunto de plantas de uma região, de um país ou de um continente. Pondera o autor que a interação constante com outros seres vivos, bem como microorganismos e outros animais acarreta o conceito de ecossistema sustentado.

Carvalho (1999, 17) profere, outrossim, as seguintes lições:

(...) toda comunidade de seres vivos – vegetais ou animais – interage com o meio circundante, com o qual estabelece um intercâmbio recíproco, contínuo ou não, durante deter-minado período de tempo, de tal forma que ‘um fl uxo de energia produza estruturas bióticas claramente defi nidas e uma ciclagem de materiais entre as partes vivas e não-vivas’.Esse conjunto de fatores, respectivamente denomi-nados biocenose e biótopo, dão origem a um complexo que recebe o nome de ecossistema sustentado graças às con-stantes trocas de matéria e energia, responsáveis por seu equilíbrio”

Conforme Sirvinkas (2009, 459) a fauna, por sua vez, é o conjunto de animais estabelecidos em determinada região.

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4. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E PROTEÇÃO PENAL DO MEIO AMBIENTE

Verifi ca-se que os efeitos da penalização de condutas contra o meio ambiente, tendo em exame a tutela penal ambiental, sobretudo em face da relativa incipiência da Lei nº 9.605/98.

Nesse sentido, existe uma complementação em torno da dogmática concernente à defi nição de bem jurídico e o alcance sobre o meio ambiente: a primeira desenvolve importantes funções de ordem político-criminal que, quando conjugada com a última, demonstra a sua importância para o desenvolvimento da vida humana como um valor essencial de proteção. Há também a necessidade de delimitação do conceito em apreço.

Costa Júnior (1996) efetua um minucioso estudo crítico e pioneiro sobre o tema, quando, ainda no fi nal da década de 1990, traça as bases da construção do tipo penal ambiental. Enfatiza que essa se tratava da proteção “imediata” dos valores ambientais no momento atual. Costa Júnior (1996) enuncia que, normalmente, o bem tutelado consiste na limpeza e pureza da água, ar e solo, mas que também abrange os elementos concernentes ao equilíbrio natural. Ressalta que não é possível a homogeneização de condutas tipifi cadas nas diversas legislações ao redor do planeta, pois os comportamentos e as relações de manejo de recursos naturais diferem de acordo com a região.

No que tange especifi camente ao bem jurídico tutelado pela norma penal ambiental, Costa Júnior (1996, 60-70) adota a posição de que se destaca a indicação do “fi m perseguido”, em detrimento do “fato” vetado, de forma a supervalorizar o bem jurídico e produzir uma tensão dialética com o confronto entre “valoração” e “descrição”. Registra-se, por conseguinte, o ímpeto ansioso do legislador em proteger a qualquer preço bens em estado de destruição, em detrimento de uma melhor técnica legislativa ou mesmo das questões culturais e socioambientais peculiares a uma determinada população.

Apesar de não estar diretamente ligado ao objeto central da presente pesquisa, a obra de Minahim (2005, 48) revela uma tormentosa questão que, no contexto atual de proteção ambiental na Amazônia, se reputa tormentosa ante à diversidade biológica existente na região: a biopirataria e a necessidade de norma incriminadora da conduta. Assim sendo, apresenta as bases para alinhar o conceito de bem jurídico com a tutela penal ambiental: a própria natureza e a maneira de proporcionar-lhe proteção efi caz constituiriam o cerne de toda a polêmica em volta do papel da intervenção do Direito Penal na sociedade de risco, ante os avanços da biotecnologia.

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Minahim e Prado (2006, 4) também discorrem, em trabalho conjunto, que o Direito Penal não pode eximir-se de proteger bens jurídicos transindividuais, como no caso da norma ambiental, a fi m de atender aos desafi os lançados às ciências, à razão e à ética.

Deve-se também sublinhas ar lições de Jakobs (2007, 7-8), no sentido de que o Direito Penal representa o “cartão de visitas” da sociedade na qual é inserido, ou seja, erige-se esse ramo da ciência jurídica de acordo com os problemas sociais de relevância.

Nesse sentido, a lição de Pastana (2003, 27) remonta à atualidade da tutela criminal do meio ambiente: a política criminal do Estado dirigida à repressão encontra aceitação da opinião pública, porque se justifi ca com o pensamento de combater condutas típicas as quais lesem o bem jurídico meio ambiente. Enquanto os demais ramos do direito sofrem uma deslegalização e desregulamentação, militariza-se o Direito Penal.

Marinho (2003, 172) ressalta que a tutela do meio ambiente enquanto bem jurídico penal advém de sua especial transcendência e da necessidade de proteção para a própria existência do ser humano em geral e da vida.4

5. A DISPARIDADE ENTRE A REALIDADE COTIDIANA E AS TENTATI-VAS DE IMPLEMENTAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMZÔNICA

Os artigos 29 a 37 da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) tratam dos crimes contra a fauna. Assim, é crime matar, perseguir, caçar animais da fauna silvestre sem permissão, impedir a procriação destruindo ninho e abrigo natural, vender, exportar, manter em cativeiro, ovos, larvas ou espécimes da fauna, exportar peles e couros sem autorização, introduzir outras espécies no país sem parecer técnico, praticar abuso, maus tratos, ferir, mutilar, degradar cativeiros, viveiros naturais, pescar em períodos em que a pesca é proibida ou mesmo pescar utilizando meios tóxicos, entre outros.

Já os artigos 38 a 53 abordam os crimes contra a fl ora, dentre os quais estão: destruir fl orestas de preservação permanente, causar danos às Áreas de Proteção Ambiental, comercializar produtos de origem vegetal sem licença válida, difi cultar a regeneração natural de fl orestas, entre outros.

As denúncias contabilizadas, as quais ensejaram a propositura de ação penal pública incondicionada, atinem unicamente a infrações cometidas em

4 Tutela Penal da Cobertura Vegetal, 2003. p. 172.

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detrimento de bens da União. Ao contrário do que se imagina, existem inúmeras Unidades de Conservação criadas, principalmente a partir dos fi ns da década de 1970, através de sucessivos decretos dos Presidentes da República com mandatos nesse ínterim. Nessa esteira, a prática delituosa se verifi ca, nos seguintes: na Reserva Biológica de Balbina, Parque Nacional do Jaú, Parque Nacional do Pico da Neblina e Estação Ecológica Anavilhanas. Tem-se intensifi cado também a ocorrência de delitos nas áreas de segurança nacional, ou seja, a faixa de 150 quilômetros a partir da fronteira do Brasil com algum país sul-americano, como Bolívia, Venezuela, Peru e Colômbia.

Surgem as ações penais públicas a partir, na maioria das hipóteses, de autuações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), encaminhadas ao Ministério Público Federal na forma de representações. Devem constar nos autos de infração elementos aptos a sedimentar a materialidade e indicar a autoria dos crimes em comento, quais sejam: nome do autuado, endereço, número de documentos hábeis a identifi cá-lo (Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física, Título de Eleitor), fi liação e outros, bem assim a especifi cação da infração, o local, a assinatura do autor do fato, do servidor responsável pela fi scalização e das testemunhas. Após esse momento, inicia-se um procedimento administrativo no âmbito do órgão responsável pela verifi cação in loco da prática delituosa, com o fi to de impugnar o documento, se constatada a sua ilegalidade, para que depois se encaminhem as suas cópias ao Parquet Federal.

Cabe também a possibilidade de a Polícia Federal, através de sua Delegacia Especializada em Repressão a Crimes Ambientais, remeter apuratórios policiais ao Ministério Público Federal. Essas investigações são cada vez mais exíguas e, quando relatadas, se posicionam aquém do esperado nas disposições concernentes à autoria e materialidade dos crimes ambientais.

Nesses termos, procede-se à menção dos números relativos à criminalidade ambiental no Amazonas no ano de 2007 (até 25 de outubro de 2007). No âmbito do Juizado Especial Federal, mais precisamente a 6ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Estado do Amazonas, contabilizaram-se 40 convocações de audiências preliminares em delitos de menor potencial ofensivo (a pena máxima cominada é de 2 anos), dentre as quais a maioria cinge ao artigo 50 (14 ações penais cada), da Lei nº 9.605/98, respectivamente: “destruir ou danifi car fl orestas nativas ou plantadas ou vegetação fi xadora de dunas, protetora de mangues, objeto de especial preservação”. Nesses casos, existe a possibilidade de ser celebrada a transação penal em audiência preliminar.

No âmbito da Justiça Federal Comum, totalizaram-se 46 denúncias, sendo a maioria delas (18 ações penais) referentes a crimes tipifi cados no art. 34, da

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Lei nº 9.605/98: “pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados pelo órgão competente”. Nestes crimes, a pena mínima atine a 1 ano de detenção, motivo pelo qual cabe a suspensão condicional do processo, em um período de prova de 2 anos. Assim sendo, o infrator comparecerá mensalmente ao juízo prolator da sentença para justifi car suas atividades.

Uma vez que as penas cominadas a crimes ambientais, em sua maioria, não são de elevada monta e admitem transações penais e suspensão condicional do processo, insta salientar a exigüidade do prazo prescricional para tais condutas (art. 109, Código Penal). Antes de remeterem-se os autos ao Ministério Público Federal, instaura-se um processo administrativo prévio no órgão responsável pela fi scalização ambiental, com a garantia da ampla defesa e do contraditório ao infrator. Inexiste, entretanto, uma duração célere dessa tramitação, a ponto de, quando se instaurar a representação no Parquet, os fatos nela narrados se encontrarem às vésperas de prescrever, obrigando o Agente Ministerial a arquivá-la, em face da inviabilidade de promover ação penal pública.

Ademais, não obstante o fato da demora em remeter os procedimentos ao Órgão Ministerial, em grande parte das situações os autos de infração não delimitam a área onde ocorreu o delito ambiental. Exige-se, dessa forma, uma solicitação de informações ao IBAMA, a fi m de questionar se o local do crime alude a bem da União ou outro, para legitimar a competência da Justiça Federal ou Estadual, demorando ainda mais para o oferecimento da denúncia.

CONCLUSÕES

Evidenciam-se as possíveis soluções, por conseguinte, diante dessa conjuntura: um maior contingente de agentes responsáveis pela fi scalização ambiental em meio à densidade da mata amazônica, principalmente nas Unidades de Conservação; a boa fundamentação dos autos de infração e a célere duração dos processos em âmbito administrativo.

Impende salientar também a falta de uma regulamentação específi ca e efi caz para a prática da biopirataria. Necessária se faz a promulgação de uma lei a qual preveja penas mais severas aos infratores, bem assim mantenha em seu bojo gradações de acordo com o contexto econômico-social do apenado. Tem-se aplicado hodiernamente, com inegável insegurança, o art. 29, da Lei nº 9.605/98, para punir os autores desses fatos criminosos. Além de a punição ser exígua, não há competência federal ou estadual jurisprudencialmente fi rmada,

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ocasionando uma insegurança jurídica sem fronteiras se considerado esse delito o qual ofende a soberania nacional.

Verifi ca-se que, apesar da legislação ambiental considerada avançada e ampla, o Brasil ainda peca por não realizar uma efetiva fi scalização. Saliente-se que a mesma se dá na forma de operações pontuais, por exemplo o órgão de repressão ambiental escolhe datas específi cas para concentrar pequenas equipes em Unidades de Conservação de grandes dimensões. Os números aqui apresentados poderiam ser apresentados com um fator multiplicador muito maior.

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em: novembro/2009.Artigo aprovado para publicação em dezembro /2010.

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ÍNDICE - PARTE IV

TERRAS INDÍGENAS E FRONTEIRAS NACIONAIS: UM ESTUDO JURÍDICO SOBRE AS TERRITORIALIDADES INDÍGENAS NA FAIXA DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRAAlex Justus da Silveira..................................................................................319

A EXPLOTAÇÃO PESQUEIRA DOS GRANDES BAGRES MIGRADORES NA REGIÃO AMAZÔNICA E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR DANO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRIÇOArilúcio Bastos Lobato..................................................................................321

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO ESTADO DO AMAZONASEvelinn Flores De Oliveira............................................................................322

PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA REGULAÇAO JURÍDICA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO À BIODIVERSIDADESheilla Borges Dourado.................................................................................324

A PROTEÇÃO JURÍDICA DE EXPRESSÕES CULTURAIS DE POVOS INDÍGENAS NA INDÚSTRIA CULTURALVictor Lúcio Pimenta de Faria.....................................................................325

ACORDO DE PESCA COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO PARTICIPATIVA NA AMAZÔNIARegina Glória Pinheiro Cerdeira.................................................................326

MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DO AQUAVIÁRIO (FLUVIÁRIO):A NAVEGAÇÃO NO ITINERÁRIO MANAUS/EIRUNEPÉ/MANAUSMarcelo de Vargas Estrella...........................................................................328

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INSTRUMENTOS DE POLÍTICA E GESTÃO AMBIENTAL NAS ATIVIDADES DO PÓLO INDUSTRIAL DE MANAUSViviane Passos Gomes...................................................................................329

COMPOSIÇÃO E REPARAÇÃO DOS DANOS AMBIENTAIS: Art. 27 da Lei n° 9.605/98Zedequias de Oliveira Júnior.........................................................................331

GRANDES INTERVENÇÕES URBANAS VERSUS PLANEJAMENTO: UMA QUESTÃO JURÍDICO AMBIENTALElizandra Litaiff Leonardo...........................................................................332

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TERRAS INDÍGENAS E FRONTEIRAS NACIONAIS: UM ESTUDO JURÍDICO SOBRE AS TERRITORIALIDADES INDÍGENAS NA FAIXA DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Mestrando: Alex Justus da Silveira

Banca Examinadora: Prof. Dr. Fernando Antônio da Carvalho (Orientador – UEA)Prof. Dr. Alcindo José de Sá (UFPE)Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho (UFPR)

Resumo: A presente dissertação tem como objetivo a análise da recorrente discussão sobre a demarcação de terras indígenas situadas nas faixas de fronteira da Amazônia brasileira. Diversos discursos tem se difundido no sentido de relativizar os direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, sobretudo, aquelas que estão localizadas nas áreas limítrofes com outros países da América do Sul e que são objeto de territorialidades específi cas de diversos povos indígenas que ocupam essas regiões. Um dos argumentos que mais questionam o reconhecimento das terras indígenas nessas áreas constitui-se no fato de se tratarem de vastas extensões territoriais com densidade demográfi ca muito reduzida, o que representa um risco à segurança e à soberania nacional. Este estudo faz uma contextualização histórica dos direitos territoriais indígenas e demonstra, que até mesmo hoje em dia, com o tratamento humanista trazido pela Constituição no que tange os direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a contradição entre o previsto na legislação e o interesse do Estado em implementá-las é gritante. Procura também, analisar o processo de consolidação das fronteiras nacionais e construção do Estado moderno, a fi m de demonstrar a importância propositadamente esquecida dos povos indígenas na constituição das fronteiras que atualmente compõem o Brasil, bem como, mostrar que as territorialidades indígenas não são compatíveis com a categoria “território”, cujo engessamento característico deste elemento do Estado moderno, não se enquadra no conceito de territorialidade específi ca dos diversos povos indígenas que compõem a pluralidade social brasileira. Ao fi nal, conclui-se que o Estado brasileiro deve necessariamente reconhecer os direitos originários dos povos indígenas, sobretudo, os direitos territoriais indígenas nas faixas de fronteira,

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uma vez que suas territorialidades não levam em conta as fronteiras políticas dos Estados, pois na concepção indígena, essas fronteiras muitas das vezes transcendem a categoria jurídicopolítico do território nacional.

Palavras-chave: direito indígena; território; territorialidade indígena; faixa de fronteira.

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A EXPLOTAÇÃO PESQUEIRA DOS GRANDES BAGRES MIGRADORES NA REGIÃO AMAZÔNI-CA E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR DANO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRIÇO

Mestrando: Arilúcio Bastos Lobato

Banca Examinadora: Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador – UEA)Prof. Dr. Miguel Petrelli Júnior (Universidade Estadual Paulista)Prof. Dr. Saúl Prada Pedreiros (Universidade Javeriana)

Resumo: O objetivo desta dissertação está relacionado à possibilidade de atribuir responsabilidade ao Estado que, em virtude de ação ou omissão, origina um dano ou o perigo de dano transfronteiriço em virtude do risco de depleção do único (ou reduzido) estoque dos bagres migradores, em destaque a dourada e piramutaba. Ressalta-se a peculiaridade do fato, o que enriquece a discussão, de que os bagres migradores possuem um ciclo de vida singular, uma vez que, ao longo de um extenso habitat (rio Amazonas/Solimões), nascem no denominado Golfão Marajoara (Pará), migram rio acima e, ultrapassando os limites territoriais do nosso país, desovam na cabeceira do Amazonas, inclusive em águas colombianas, peruanas e bolivianas. Exatamente por isso, a proposta de trabalho foi direcionada ao estudo de caso dos bagres migradores e à elaboração de argumentos jurídicos que consubstanciem e fundamentem à responsabilidade estatal por eventual dano ambiental transfronteiriço. Importante ressaltar que se busca estabelecer fundamentos jurídicos, embasados no ordenamento nacional e internacional, capazes de justifi car a responsabilização estatal pelas conseqüências danosas de seus atos (e perigos) causados ao ambiente pesqueiro transfronteiriço.

Palavras-chave: bagres migradores; explotação; depleção; responsabilidade estatal; direito internacional ambiental; direito transfronteiriço.

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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO

ESTADO DO AMAZONAS

Mestranda: Evelinn Flores De Oliveira

Banca Examinadora: Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador – UEA)Prof. Dr. Walmir Albuquerque (UEA)Prof. Dr. Saúl Prada Pedreiros (Universidade Javeriana)

Resumo: O presente trabalho teve a fi nalidade de avaliar os aspectos concernentes à Regularização Fundiária nas Unidades de Conservação de Uso Sustentável, em especial, nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas. As unidades de conservação do Amazonas apresentam vários problemas para a efetiva gestão ambiental. Um dos problemas é a regularização fundiária, atingindo aproximadamente 80% das UC’s, difi cultando realizar o zoneamento ambiental e executar o plano de gestão. Para se chegar a esta conclusão analisou-se os instrumentos de gestão da UC’s, como o Plano de Manejo, o Conselho Gestor, o Regimento Interno e etc, que facilitam a implementação da Regularização Fundiária, para em seguida, abordar os aspectos gerais da Regularização Fundiária e os instrumentos normativos possíveis em cada categoria de bem público e o (s) instrumento (s) adequado (s) pelo tipo de dominialidade das Unidades de Conservação. Ainda, realizamos uma breve exposição da situação fundiária no Estado do Amazonas, elencando a legislação aplicável às UC’s. As normas jurídicas foram expostas na busca de entender o seu conteúdo, para depois estabelecer uma relação com a realidade encontra das RDS do Amazonas. Ao fi nal, o estudo se concentrou na RDS Tupé, localizada no Município de Manaus, relacionando à legislação pertinente àquela realidade, apontando os entraves que deverão ser superados pelo órgão gestor da Reserva do Tupé, nas etapas que seguirão à regularização fundiária. Os problemas levantados podem ser classifi cados em três grupos: pessoal, institucional/administrativo e normativo. Identifi cou-se que o órgão gestor terá difi culdades de numerar as famílias que serão benefi ciadas pela regularização fundiária, pois, segundo o decreto de criação da Reserva do Tupé, só se consideram moradores (populações tradicionais) os residentes e domiciliados na UC no momento de sua criação. Demonstrou-se o crescimento elevado na população do Tupé desde

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a data de sua denominação em RDS, em 2005, até 2009 e parte dessa população fi xou residência no Tupé, então, resta saber se eles serão incluídos ou excluídos do processo de regularização fundiária da Reserva. No campo institucional, antes de começar o processo de regularização da RDS do Tupé, o órgão gestor deve resolver o impasse da transferência da titularidade da área da União para o Município de Manaus, pois, a RDS do Tupé foi criada sob uma gleba federal, que ainda não foi arrecada pelo Município. E por fi m, o órgão gestor deve solucionar os entraves criados pela própria legislação, que vão desde a conceituação jurídica, falta de precisão técnica, clareza nos objetivos e procedimentos a serem seguidos. Assim, verifi cou-se que estes fatores contribuem para que a norma jurídica tenha sua efi cácia limitada. Entretanto, entende-se que para responder a questão da efi cácia social do art. 20 do SNUC aplicada à realidade da RDS do Tupé, faz-se necessário um estudo trans-disciplinar do assunto, o qual contenha indicadores sociais, econômicos, ambientais e etc, pois, a efi cácia social de uma norma jurídica, em especial da norma ambiental, não deve ser avaliada unicamente do ponto de vista jurídico, visto que este não possui indicadores predeterminados de avaliação da efi cácia social de uma norma e, caso analisado isoladamente, sempre será insufi ciente para responder estas questões.

Palavras-Chave: Unidades de Conservação; Reserva de Desenvolvimento Sustentável; Plano de Manejo; Regularização Fundiária.

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PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA REGULAÇAO JURÍDICA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL

ASSOCIADO À BIODIVERSIDADE

Mestranda: Sheilla Borges Dourado

Banca Examinadora: Profa. Dra. Andréa Borghi Jacinto Moreira (Orientadora – UEA)Profa. Dra. Rosa E. Acevedo Marin (UFPA)Prof. Dr. José Joaquim Shiraishi Neto (UEA)

Resumo: O presente trabalho pretende investigar as formas de participação dos povos indígenas no debate político em torno da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. A regulação jurídica do acesso e do uso de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados concerne a um campo de disputas protagonizadas por uma multiplicidade de instituições e agentes sociais. Órgãos governamentais, ONGs, movimentos sociais, entidades empresariais e instituições de ensino e pesquisa encontram-se referidos aos debates que marcam o mencionado processo de regulação jurídica. Esta dissertação focaliza a participação indígena neste processo e os efeitos de sua atuação junto ao Estado e aos instrumentos jurídicos “apropriados” (medida provisória, leis, decretos, resoluções) e pretende demonstrar os limites do direito à participação consagrada pelo Estado Democrático deDireito.

Palavras-chaves: Conhecimento tradicional. Biodiversidade. Propriedade Intelectual. Recursos Genéticos. Participação. Movimento Indígena. Representação.

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A PROTEÇÃO JURÍDICA DE EXPRESSÕES CULTURAIS DE POVOS INDÍGENAS NA

INDÚSTRIA CULTURAL

Mestrando: Victor Lúcio Pimenta de Faria

Banca Examinadora:Profa. Dra. Andréa Borghi Jacinto Moreira (Orientadora – UEA)Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (UEA)Profa. Dra. Deise Lucy Oliveira Montardo (UFAM)

Resumo: Este estudo analisa a proteção jurídica das expressões culturais de povos indígenas na indústria cultural. Para este fi m, aplica o conceito de “expressão cultural” adotado pela UNESCO. Em decorrência deste emprego conceitual, povo indígena é compreendido como sujeito criador de expressões culturais. A análise da proteção jurídica decorrente da dimensão coletiva de expressões culturais de povos indígenas é empreendida na perspectiva da proteção dos direitos de propriedade intelectual, especialmente na do direito autoral e na perspectiva dos direitos que asseguram a diversidade cultural, especialmente a diversidade das expressões culturais. As duas perspectivas delimitam proteções jurídicas distintas. Entretanto, objetivando o recorte epistemológico, tais proteções serão pensadas e projetadas na idéia de indústria cultural, tomada como um termo essencialmente crítico a partir da obra conjunta de Adorno e Horkheimer, a Dialética do Esclarecimento.

Palavras-chaves: expressões culturais; Povos indígenas; Diversidade Cultural;Propriedade Intelectual; Indústria Cultural.

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ACORDO DE PESCA COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO PARTICIPATIVA NA AMAZÔNIA

Mestranda: Regina Glória Pinheiro Cerdeira

Banca Examinadora:Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador – UEA)Prof. Dr. Miguel Petrelli Júnior (Universidade Estadual Paulista)Profa. Dra. Andréa Borghi Moreira Jacinto (UEA)

Resumo: Esta dissertação aborda os acordos de pesca enquanto instrumento de gestão participativa da pesca desenvolvida na Amazônia. Descreve os ambientes de várzea como o cenário das relações que se estabelecem a partir do uso de um recurso de acesso livre como o pescado; e como as principais de áreas de produção de pescado nas águas interiores da Amazônia. Os acordos de pesca comunitários, desenvolvidos a partir das pressões sobre os ambientes de lagos das comunidades ribeirinhas amazônicas, são o principal instrumento da gestão participativa da pesca, e vem se apresentando como promissores no controle de confl itos, na diminuição da sobrepesca e aumento na produtividade pesqueira dos lagos. Contudo, enfatiza-se, também, a necessidade de monitoramento e avaliação desse instrumento para se ter resultados consolidados a cerca desta proposta de gestão. Um dos desafi os desta co-gestão de base comunitária, passa pela questão de garantir o acesso livre e o manejo adequado ao recurso pesqueiro diante dos interesses antagônicos dos usuários atuantes sobre o recurso. Aborda, também, sob análise jurídica, o único documento legal, a instrução normativa IBAMA No. 29/02, que determina de forma específi ca critérios claros para a criação destes acordos visando gerar normas complementares á legislação pesqueira; além dos novos conceitos de pesca determinado pela Lei 11.959/2009. A análise dos acordos de pesca ocorre, considerando-se também, a gestão participativa que vem sendo desenvolvida na região do rio Urubu no município de Boa Vista do Ramos/AM, contemplando aspectos socioeconômicos de suas comunidades e as impressões de seus moradores a cerca da vigência e efi cácia das regras contidas na Portaria IBAMA No 10/2003. Neste estudo discute-se que é fundamental a participação dos usuários na gestão dos recursos naturais como o pescado, mas a partir de estruturas organizacionais

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fortalecidas com capacidade de mobilização, coordenação e representação do grupo com lideranças aptas a atuarem como interlocutores nos processos de co-gestão. Neste aspecto, as comunidades da região do rio Urubu em Boa Vista do Ramos ainda carecem de desenvolvimento. A falta de articulação entre essas comunidades e envolvimento em torno da organização pesqueira local podem ser apontados como importantes na decadência observada no acordo de pesca vigente; embora este acordo, também, tenha apresentado aspectos positivos como o controle dos confl itos de pesca e sensação de abundância do pescado, mesmo que inicialmente.

Palavras Chave: Acordo de pesca; gestão participativa da pesca; comunidades ribeirinhas amazônicas; confl itos de pesca.

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MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DO AQUAVIÁRIO (FLUVIÁRIO): A NAVEGAÇÃO NO

ITINERÁRIO MANAUS/EIRUNEPÉ/MANAUS

Mestrando: Marcelo de Vargas Estrella

Banca Examinadora:Prof. Dr. Sandro Nahmias Melo (Orientador - UEA) Profa. Dra. Sandra do Nascimento noda (UFAM)Prof. Dr. Aldemiro Rezende Dantas Júnior (UEA)

Resumo: A hostilidade do meio ambiente do trabalho é um dos principais prob-lemas que os trabalhadores enfrentam em sua vida funcional. Para o aquaviário (fl uviário), que navega pelos rios, o grau de nocividade do trabalho é potencial-izado ante as características da atividade e das condições geográfi cas da Região Amazônica. O texto buscará apresentar a importância da navegação no interior do Estado do Amazonas, as características do trabalho do fl uviário e a neces-sidade da proteção do seu meio ambiente do trabalho como materialização do princípio da igualdade, propondo uma discussão sobre as propostas de melho-rias na segurança e saúde os tripulantes e passageiros das embarcações regionais que trafegam pelo interior do Estado. Trata-se da uma pesquisa bibliográfi ca que consistiu na procura de referências teóricas publicadas em livros, artigos, documentos, anais etc. A pesquisa foi de cunho fenomenológico com aborda-gem qualitativa, tendo como fi nalidade a descrição dos dados coletados cujos resultados foram interpretados para a compreensão do fenômeno estudado.

Palavras-Chave: Meio Ambiente do Trabalho; Navegação; Igualdade.

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INSTRUMENTOS DE POLÍTICA E GESTÃO AMBIENTAL NAS ATIVIDADES DO PÓLO

INDUSTRIAL DE MANAUS

Mestranda: Viviane Passos Gomes

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Solange Teles da Silva (Orientadora – UEA)Prof. Dr. Álvaro Sánchez Bravo (Universidade de Sevilha - Espanha)Prof. Dr. Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA)

Resumo: A presente dissertação analisa os aspectos jurídicos dos instrumentos de política e gestão ambiental, de caráter obrigatório, os chamados instrumentos de comando e controle; e os instrumentos de regulação de caráter voluntários, destacando dentre os obrigatórios, o licenciamento ambiental e dentre os voluntários, a ISO 14000. Ademais verifi ca a aplicação destes instrumentos nas atividades do Pólo Industrial de Manaus - PIM. Esta pesquisa possui cunho exploratório-descritivo, na medida em que se desenvolveu com a utilização de fontes teóricas, que permitiram o levantamento de divergências doutrinárias, além da regionalização do estudo, pretendendo demonstrar a praticidade e o alcance do tema. Para verifi cação da aplicabilidade dos instrumentos de Política e Gestão Ambiental no PIM foram realizadas inúmeras visitas, com propósito de investigar as atividades dos atores sociais que se relacionam com o processo de implantação, consolidação e análise destes instrumentos obrigatórios e voluntários. Verifi cou-se, quanto aos desafi os de sustentabilidade para a Região Amazônica, no tocante a sua principal atividade econômica - o PIM, que é pacífi co o entendimento de que o modelo de incentivos fi scais – o qual está baseado a sustentabilidade atual do pólo – é absolutamente necessário para manter a competitividade do PIM, mas não sufi ciente no médio e no longo prazo. É bem verdade também, que o PIM, ao centralizar as indústrias, contribui para que o Estado do Amazonas possua hoje uma baixa taxa de desfl orestamento. Porém, isso não signifi ca que não haja sensíveis impactos ambientais advindos desta atividade industrial deste pólo para a Região Amazônica. Estes impactos se traduzem principalmente na falta de destinação correta dos seus resíduos industriais, causando ao longo dos 42 anos de existência da Zona Franca de

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Manaus – ZFM, a poluição do solo, da água e do ar, contribuindo também para a precarização do ambiente em vivem a população do entorno deste distrito industrial. Por outro lado, a Superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA, enquanto gestora das atividades do PIM, tem sido compelida pelo Ministério Público local a ter maior participação ativa no cumprimento dos preceitos normativos quanto à matéria ambiental, inclusive com a realização de periódicas vistorias ambientais. Defende-se uma substancial cooperação técnica entre os Órgãos gestores da política ambiental no sentido de promover proteção ambiental. Ademais, constatou-se que os instrumentos de fi scalização deveriam ser dotados de maior transparência e acesso ao público de forma a proporcionar a participação democrática nas demandas ambientais, as quais interessam a todos. Com relação à possibilidade de ser simplifi cado o processo de licenciamento ambiental diante dos sistemas de certifi cação como a ISO 14000, ou vice-versa, motivado pelo fato de que entre estes existem vários pontos na interface, defende-se, como próprio imperativo do Estado Democrático, uma cooperação entre o ente público licenciador e os organismos privados de certifi cação, sem que um suprima a atividade do outro.

Palavras-Chave: Instrumentos de política e gestão ambiental; Pólo Industrial de Manaus; Licenciamento Ambiental; ISO 14.000.

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COMPOSIÇÃO E REPARAÇÃO DOS DANOS AMBIENTAIS: Art. 27 da Lei n° 9.605/98

Mestrando: Zedequias de Oliveira Júnior

Banca Examinadora: Prof. Dr. Sérgio Rodrigo Martinez (Orientador- UEA)Prof. Dr. Eduardo Augusto Salomão Cambi (UNESPAR/PR)Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa (UEA)

Resumo: Este trabalho apresenta a proposta de enfocar a repercussão técnica, probatória, reparatória e, sobretudo, jurídica da aplicação por parte do Poder Público, via especialmente do Ministério Público, Poder Judiciário e da Polícia Judiciária, do instituto da composição dos danos ambientais do art. 27 da Lei n°9.605/98 - Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais e as implicações decorrentes de sua incidência prática na hipótese do cometimento de infração penal e sua correlação com o instituto despenalizador da transação penal ambiental. Destaca, a fi m de alcançar este desiderato, o papel exercido pelo Poder Público e pela coletividade e sobreleva a necessidade de qualifi cação preferencialmente interdisciplinar daquele que irá atuar concretamente na tutela repressiva cível e criminal. Pretende, ademais, inseri-la fundamentadamente na concepção de um real instrumento que poderia impulsionar uma maior efetividade de atendimento ao princípio da proteção integral do meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito humano fundamental consagrado pela Constituição da República de 1988.

Palavras-Chave: composição; reparação; dano ambiental; Art. 27 - Lei n° 9.605

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GRANDES INTERVENÇÕES URBANAS VERSUS PLANEJAMENTO: UMA QUESTÃO JURÍDICO

AMBIENTAL

Mestranda: Elizandra Litaiff Leonardo

Banca Examinadora:Prof. Dr. Edson Ricardo Saleme (Orientador - UEA)Prof. Dr. Eid Badr (ESA/AM) Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (UEA)

Resumo: As grandes intervenções urbanas são importantes para o desenvolvimento do espaço urbano, gerando melhorias na qualidade de vida da população. Ao mesmo tempo estão vinculados à política de desenvolvimento urbano vigente na ordem jurídica do país. Este estudo aborda os principais aspectos relacionados ao planejamento urbano no âmbito do direito urbanístico brasileiro, pois não são raros os momentos em que ao mencionar as atividades desenvolvidas pelo urbanismo e pelo planejamento urbano estas se confundam. O urbanismo seria o estudo racionalizado e sistematizado do desenvolvimento das cidades, incluindo crescimento, planifi cação, aglomerações humanas, condições adequadas de habitação, modo de vida dos habitantes, obras públicas, atividades culturais e de lazer, ou seja, a produção e arquitetura urbana. Já o planejamento urbanístico ou planejamento urbano, consiste na prática da ação estatal sobre a organização do espaço intra-urbano. A compreensão acerca da política de desenvolvimento urbano faz-se imperiosa, uma vez que o entendimento da mesma, por meio dos termos que a defi nem, possibilita que esta possa ser correta e amplamente utilizada por todos os atores que compõem o cenário público brasileiro. São reportados os principais instrumentos de controle urbanísticos relacionados às grandes intervenções urbanas: o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), o Licenciamento Ambiental e as Operações Urbanas Consorciadas. Observa-se que os estudos mencionados difi cilmente serão impeditivos para construção ou início da atividade empreendedora, aqui visualizada pelo exemplo da construção da ponte sobre o Rio Negro. Embora os requisitos legais para construção tenham sido atendidos, ressalta-se a discussão

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jurídica acerca dos aspectos positivos e negativos do empreendimento, em face do tempo utilizado para o estudo do impacto sobre a dimensão da obra e sua localização, reconhecendo sua inegável importância para o desenvolvimento social e econômico da região.

Palavras-Chave: Direito Urbanístico; Planejamento; Impacto.

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NORMAS EDITORIAIS

As normas editoriais da Hiléia - Revista de Direito Ambiental da Amazônia são as seguintes:

1) A revista é de periodicidade semestral, observando-se o caráter de interdisciplinaridade no que tange ao papel crítico do periódico e constitui-se em um veículo para publicação de artigos, ensaios e resenhas críticas, bem como à livre circulação de idéias e opiniões sobre temas relacionados ao Direito e, especialmente, ao Direito Ambiental, sendo de inteira responsabilidade de seus autores as opiniões expressas nos artigos publicados.

2) Os artigos serão submetidos à aprovação do Conselho Editorial.3) O recebimento do artigo, ensaio ou resenha não implica a obrigatoriedade

de sua publicação.4) Não será efetuado qualquer pagamento ou contraprestação pela

publicação dos artigos selecionados. Serão enviados 5 (cinco) exemplares do número correspondente para cada autor de artigo, ensaio ou resenha publicado.

5) Os trabalhos deverão ser inéditos e conter os dados de identifi cação (título, nome do autor, vinculação institucional) e, obrigatoriamente conter sumário, resumo em português e em inglês, devendo ser acompanhados de currículo resumido do autor.

6) Além dos trabalhos que integrarão as sessões, a revista terá um espaço reservado para publicação das atividades desenvolvidas pelos Núcleos e Projetos de Pesquisa e pelo Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental.

7) A formatação, citações e referências deverão obedecer às normas da ABNT e, no que couber, as Normas Técnicas internas do Programa.

8) Os trabalhos deverão ser entregues em disquete ou como anexo de e-mail, digitados com fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento entre linhas de 1,5, margens superior e esquerda de 3 cm e margens inferior e direita de 2 cm, em editor compatível com o Word, comportando entre 15 a 20 laudas para artigos e ensaios e entre 5 a 10 laudas para resenha, incluídas as referências.

9) Para deliberação quanto à aprovação dos artigos com indicação para publicação, o Conselho Editorial adotará os seguintes critérios:

• Interesse acadêmico – serão priorizados os trabalhos cuja refl exão mantenham pertinência com as linhas de pesquisa do Programa, quais sejam: Conservação dos recursos naturais e desenvolvimento sustentável, que engloba:

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tutela jurídica do meio ambiente; unidades de Conservação; Ecoturismo; educação ambiental; espaço urbano; recursos naturais; mecanismos de resolução de confl itos; desenvolvimento sustentável; direito ao desenvolvimento; políticas públicas e Direitos da sócio e biodiversidade, que engloba: biodiversidade; biossegurança; bioética; direito dos povos, povos indígenas e populações tradicionais; agricultura sustentável; direito ambiental econômico e empresarial; meio ambiente do trabalho.

• Relevância e atualidade jurídica – os textos deverão trazer para o debate questões cuja abordagem jurídica ensejem o diálogo interdisciplinar entre o direito, o direito ambiental e as demais áreas do conhecimento.

• Rigor acadêmico – os textos deverão seguir, rigorosamente, a metodologia científi ca, oportunizando o debate acerca do conhecimento jurídico.

10) Artigos, ensaios ou resenhas recebidos e não publicados no número correspondente à chamada editalícia do envio, integrarão banco de trabalhos e poderão ser publicados posteriormente, em número subseqüente, mediante comunicação e consentimento prévio do autor.

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Esta obra foi composta em Manaus PelaUEA Edições.

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