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23 Revista da FAEEBA, Salvador, nº 15, p. 23-35, jan./jun., 2001 DA SÓCIO-HISTÓRIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO PARA O ENSINO DO PORTUGUÊS NO BRASIL HOJE Rosa Virgínia Mattos e Silva Professora da Universidade Federal da Bahia RESUMO Discute-se neste texto a relação entre a sócio-história brasileira e o ensino da língua portuguesa, a fim de demonstrar que a polarização sociolingüística, que caracteriza o português brasileiro atual, tem suas origens em nossa História do passado e também do presente. Palavras-chave: sócio-história – português – sociolingüística ABSTRACT From the Brazilian Portuguese social History to the teaching of Portuguese in Brazil today We discuss in this text the relation between the Brazilian social History and the teaching of Portuguese language at school, in order to demonstrate that the sociolinguistic polarization, that characterizes nowadays Brazilian Portuguese, has its origin in our past, and also in our present History. Key words: social history – Portuguese – sociolinguistic 1 - Considerações introdutórias Desde a Constituição Federal de 1988, a língua portuguesa é definida como língua oficial majoritá- ria do Brasil, reconhecidas que foram, ao lado do português, como línguas nacionais, as várias línguas indígenas, minoritárias, que convivem no território brasileiro como a língua oficial, e também materna, majoritária do nosso país. Concentrando-me aqui na língua oficial e ma- terna, amplamente majoritária do Brasil, queria, antes de mais, afirmar que, o que se designa de “ensino de língua materna” recobre uma impreci- são teórica e real, já que, em princípio, não se “en- sina” a língua materna, ela se adquire naturalmente no processo de aquisição na primeira infância, tan- to que, no caso do português no Brasil, como é do conhecimento geral, muitos sabem o português sem nunca terem tido a possibilidade de o “aprenderem” através do sistema escolar, já que não têm ainda como dele participar. A meu ver, então, o objetivo do ensino do portu- guês na escola brasileira será a elaboração do já adquirido naturalmente e oralmente, pela maioria dos brasileiros, em diversificados contextos de aqui- sição, a depender da história individual e social de cada um. O que estou designando de elaboração se refere ao que, no processo de escolarização, no âmbito da disciplina Língua Portuguesa no Brasil, abrange obviamente a aquisição do uso escrito, tanto no processo de produção da escrita como de sua recepção na leitura, e o aperfeiçoamento, não só

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  • 23Revista da FAEEBA, Salvador, n 15, p. 23-35, jan./jun., 2001

    DA SCIO-HISTRIA DO PORTUGUS BRASILEIROPARA O ENSINO DO PORTUGUS NO BRASIL HOJE

    Rosa Virgnia Mattos e SilvaProfessora da Universidade Federal da Bahia

    RESUMO

    Discute-se neste texto a relao entre a scio-histria brasileira e o ensino dalngua portuguesa, a fim de demonstrar que a polarizao sociolingstica, quecaracteriza o portugus brasileiro atual, tem suas origens em nossa Histria dopassado e tambm do presente.

    Palavras-chave: scio-histria portugus sociolingstica

    ABSTRACT

    From the Brazilian Portuguese social History to the teaching of Portuguesein Brazil today

    We discuss in this text the relation between the Brazilian social History and theteaching of Portuguese language at school, in order to demonstrate that thesociolinguistic polarization, that characterizes nowadays Brazilian Portuguese,has its origin in our past, and also in our present History.

    Key words: social history Portuguese sociolinguistic

    1 - Consideraes introdutrias

    Desde a Constituio Federal de 1988, a lnguaportuguesa definida como lngua oficial majorit-ria do Brasil, reconhecidas que foram, ao lado doportugus, como lnguas nacionais, as vrias lnguasindgenas, minoritrias, que convivem no territriobrasileiro como a lngua oficial, e tambm materna,majoritria do nosso pas.

    Concentrando-me aqui na lngua oficial e ma-terna, amplamente majoritria do Brasil, queria,antes de mais, afirmar que, o que se designa deensino de lngua materna recobre uma impreci-so terica e real, j que, em princpio, no se en-sina a lngua materna, ela se adquire naturalmenteno processo de aquisio na primeira infncia, tan-

    to que, no caso do portugus no Brasil, como doconhecimento geral, muitos sabem o portugus semnunca terem tido a possibilidade de o aprenderematravs do sistema escolar, j que no tm aindacomo dele participar.

    A meu ver, ento, o objetivo do ensino do portu-gus na escola brasileira ser a elaborao do jadquirido naturalmente e oralmente, pela maioriados brasileiros, em diversificados contextos de aqui-sio, a depender da histria individual e social decada um. O que estou designando de elaboraose refere ao que, no processo de escolarizao, nombito da disciplina Lngua Portuguesa no Brasil,abrange obviamente a aquisio do uso escrito, tantono processo de produo da escrita como de suarecepo na leitura, e o aperfeioamento, no s

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    do escrito como tambm dos usos orais, tanto nasua produo como recepo, para cumprirem fun-es sociais diversificadas e adequadas s mlti-plas situaes comunicativo-expressivas necess-rias ao convvio e situao social.

    So, a meu ver, instigantes os nossos objetivos,os dos professores de portugus como lngua ma-terna, sobretudo porque j partimos de uma reali-dade em sala de aula em que h um sabercompartilhvel entre estudantes e professores. Tan-tos uns como outros j partilham um conhecimentocomum, o que, do meu ponto de vista, deve diluir afigura da autoridade que reveste, em geral e tradi-cionalmente, o papel do professor. Assim, desde assries iniciais, poder-se-, diria antes, dever-se-desenvolver um processo contnuo de dilogo e dediscusso entre o conhecimento que j possuem osestudantes e o saber, j elaborado, dos professo-res. Essa simetria de base torna assim o nosso tra-balho inter-enriquecedor e deveria ser a motivaofundamental, a meu ver, a ser usada em sala deaula, pelos professores de portugus como lnguamaterna.

    O objetivo explicitado deste IV Forum de Estu-dos Lingsticos, promovido pelo Mestrado emLngua Portuguesa da UERJ, :

    Propiciar e dinamizar o dilogo entre aUniversidade e as escolas pblicas e parti-culares nos campos da pesquisa e ensino dalngua portuguesa e o seu tema central Alngua portuguesa em debate: conhecimentoe ensino indica as necessrias relaesentre pesquisa e ensino e seus objetivos, nosentido de rediscutir os objetivos de cada um.Para alm do espao de socializao do co-nhecimento, a integrao ensino-pesquisa hde favorecer uma abordagem do ensino comomeio de descoberta de novos contedos.Formularam-se assim, na Programao do IV

    Forum, as suas procedentes intenes.Motivada pela formulao dos objetivos e do tema

    deste Forum, propus, ao ser convidada para umaPalestra, o tema que intitula esta exposio Dascio-histria do portugus brasileiro para oensino do Portugus no Brasil de hoje. Nelabuscarei reunir o que j venho h anos refletindo eescrevendo sobre o ensino do Portugus no Brasil

    e o que, mais recentemente, venho pesquisando eescrevendo sobre a scio-histria do portugus bra-sileiro, no s para tentar sistematicamenteconhec-la, mais ainda para melhor compreendero portugus brasileiro de hoje, em funo tambmdo que se poderia disso tirar para uma conduo, ameu ver, mais adequada do ensino do Portugus noBrasil. Essa orientao de pesquisa no sentido dedesvendar a scio-histria do portugus brasileiro,no apenas uma preocupao minha, mas do Gru-po de Pesquisa Programa para a histria dalngua portuguesa (PROHPOR), estruturado nosincios dos anos noventa no Departamento de Le-tras Vernculas da UFBa. e, mais recentemente, apartir de 1996, uma das vertentes do Projeto na-cional Para a histria do portugus brasileiro,coordenado por Ataliba de Castilho, constitudo devrias equipes locais do Brasil.

    V-se, diante dessas explicaes, que trabalhonuma orientao de pesquisa que est no campoda Lingstica Histrica, rea da Lingstica quecomeou a reviver de maneira renovada no Brasilnos incios da dcada de oitenta, depois de um re-cesso de, pelo menos, duas dcadas pelos efeitosdas orientaes da chamada Lingstica Moderna,que privilegiaram, como sabemos, os estudos e in-terpretaes sincrnicos, que teve a boa conseq-ncia de tentar superar a tradio filolgico-gra-matical de secular histria e de orientar a pesquisalingstica no Brasil para o conhecimento da cha-mada realidade lingstica brasileira.

    Leonor Buescu, no seu livro Babel ou a ruptu-ra do signo. A gramtica e os gramticos por-tugueses do sculo XVI (1983: 218), afirma comrazo que:

    Em cada momento, a histria cultural e so-ciolgica do homem coloca a sua Questoda Lngua. A profunda relao que existeentre a Questo da Lngua e todas asquestes que sacodem com maior ou me-nor fora o edifcio sociocultural , certa-mente, a mesma e profunda relao que exis-te entre a lngua em si prpria e os outroselementos da estrutura social. A lngua fazparte do aparelho ideolgico, comunicativo,esttico da sociedade que a prpria lnguadefine e individualiza (...). Busca de identi-

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    dade, resposta a uma crise que em cada mo-mento se erige como um estmulo, um desafioe at uma apostaComo em outro texto que apresentei no ano pas-

    sado, julgo que a questo da lngua no Brasil, aofindar o sculo XX, na minha perspectiva de Pro-fessora de Lngua Portuguesa no Brasil, est noembate entre a norma padro idealizada de tradi-o lusitanizante; as normas cultas e as normasvernculas, tambm designadas de portuguspadro, portugus brasileiro culto e portugusbrasileiro popular conviventes na complexa eheterognea comunidade de fala portuguesa noBrasil, questo com que se defrontam no seu quo-tidiano os professores de portugus no Brasil, nassuas salas de aula e nas suas atuaes profissio-nais, no processar de suas atividades de ensinar aescrever e a ler e de elaborar o falar e o ouvir.

    Assim, o problema central que desenvolvereinesta Palestra , a partir do que o presente nosmostra, tentar interpretar, numa perspectiva hist-rica, o que a scio-histria passada e tambm a dopresente, nos desvela sobre essa questo.

    No poderia hoje repetir o que em 1991 afirmeino artigo Que gramtica ensinar, quando e porqu? Ali dizia que j se verificavam alguns supor-tes entre os avanos tericos da Lingstica no Bra-sil, a partir dos anos sessenta, e o ensino do portu-gus, mas que no se haviam criado pontes para arenovao desse ensino. Nestes anos noventa,muitas pontes bibliogrficas de lingistas de vriasorientaes tericas j vm sendo publicadas, comvistas ao ensino em textos chamados de pra-did-ticos no os citarei para no correr o perigosorisco das omisses. Continuo, embora, a achar quemateriais didtico-pedaggicos renovados,direcionados para as sries iniciais escolares e paraos professores dessas sries continuam a ser espe-rados, apesar dos suportes e pontes.

    No que se refere ao problema central desta ex-posio, j adianto, julgaria que materiais didtico-pedaggicos, fundados no que a Sociolingsticasobre o portugus j reuniu, precisariam serconstrudos, pensando na formao bsica de mi-lhares de professores de portugus que necessita-riam, para o seu trabalho quotidiano, a fim de esta-rem eles, alm de conscientes, fundamentados e

    essa conscincia e fundamentao transmitirem aseus estudantes sobre o que designei de a atualquesto da lngua no Brasil ao findar o sculoXX. Gostaria, contudo, de deixar documentado, fe-chando essas Consideraes introdutrias, que,no interior do Grupo de Trabalho de Sociolingsticada ANPOLL, a saudosa Giselle Machline de Oli-veira estava com essa preocupao e incentivavadirecionar os achados decorrentes da pesquisasociolingstica sistemtica no Brasil, desde os anossetenta, para a produo de instrumentos de traba-lho para as salas de aula de portugus, nas sriessucessivas que compem o nosso sistema escolar.

    2 - A propsito da heterogeneidade polarizadado portugus brasileiro

    Tecerei aqui algumas breves consideraes so-bre o que antes designei de portugus padro,portugus culto e portugus popular, conviven-tes hoje no Brasil e, especialmente, nas salas deaula de Lngua Portuguesa, conseqentemente nasatividades do quotidiano de seus professores emnosso pas.

    Sabemos, pelos estudos gramaticogrficos exis-tentes, que , a partir de meados do sculo XIX,que se inicia e implementa a preocupao do esta-belecimento de um padro lingstico de tradiolusitanizante no Brasil, com o desenvolvimento dosestudos e das gramticas prescritivo-normativas,tradio que ainda persiste, embora inevitavelmen-te matizada, por efeitos no s dos estudos histri-cos do portugus brasileiro, como pelos desenvol-vimentos dos estudos lingsticos no Brasil, que, semdvida, levam a alguns avanos na reviso de al-guns aspectos vincados na tradio filolgico-gra-matical estrita, iniciada no sculo passado.

    Esse portugus padro prescritivo-normativo,idealizado pelos gramticos, continua, contudo,pairante, pelo menos no iderio e em expectativasde segmentos da sociedade brasileira que, numaatitude anacrnica, mesmo reacionria epreconceituosa, ainda labutam contra a mar daHistria e afirmam avaliativamente, como o fez, porexemplo, no ano passado, o Presidente da Acade-

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    mia Brasileira de Letras em Entrevista, logo de-pois da Copa do Mundo, ao semanrio Isto (1504,29.07.1998) que, ao ser perguntado peloentrevistador sobre o uso do portugus no Brasil,afirmava:Erra-se em tudo: concordncia, regncia, pontua-

    o. Nunca vivemos um tempo to penoso paraa lngua de Machado de Assis. A Copa do Mun-do foi um festival de gols, mas os erros de por-tugus [refere-se aos comentrios da TV] ga-nharam de goleada

    Esse tipo de avaliao est muito bem expressonuma passagem do livro de Carlos Alberto Faracoe Cristvo Tezza Prtica do texto: lngua por-tuguesa para nossos estudantes (1992) que aquitranscrevo, apesar de longa a citao:

    Entretanto, se todos concordam com a exis-tncia e as vantagens da lngua padro, pou-ca gente se que h algum ser capazde descrev-la rigorosamente. Pode-se dizerque aquilo que se chama lngua padro um peixe ensaboado! E tanto mais difcil serdefinir, quanto mais transformaes sociais,polticas e econmicas se passam em certoespao de tempo em uma sociedade, como o caso do Brasil. De tal modo que umgramtico conservador, munido de compn-dios, que passasse um ms diante de notici-rios de televiso ou lendo jornais e revistasacabaria por declarar, desesperado, que nin-gum sabe falar e escrever no pasArgumentei em um livro de 1995 Contradi-

    es no ensino do portugus que, provavel-mente at meados deste sculo, a escola brasileiraconseguiria transmitir esse padro prescritivo detradio lusitanizante e usei algumas ilustraes paraesse ponto de vista, entre elas, o conhecido poemade Carlos Drummond de Andrade Aula de por-tugus em que diz (aqui so alguns fragmentosdo poema): Professor Carlos Gis, ele quemsabe/ (...) j esqueci a lngua em que comia,/ emque pedia para ir l fora (...) e conclui no lti-mo verso: O portugus so dois; o outro mist-rio.

    Diria tambm, como depoimento pessoal, que aminha gerao ainda alcanou esse tempo. Fundo-me no fato de que, ao fazer o meu Curso de Letras,

    o Mestre Nelson Rossi, nas quatro sries em quefoi meu professor de Lngua e Filologia Portugue-sa, nunca fez nenhuma reviso da chamada gra-mtica normativa em nosso grupo que concluiu aLicenciatura em 1961, provavelmente porque do-minvamos ou administrvamos bem o nosso usoescrito em acordo com o padro prescritivo tradici-onal. Teria ainda que dizer que, nas minhas sriesescolares naquele tempo curso ginasial e colegial meus livros de portugus foram, alm da clebreAntologia de Carlos de Laet, o no menos clebree respeitvel compndio normativo-prescritivo deNapoleo Mendes de Almeida e depois o de CarlosGis, o professor do Poeta Drummond.

    Como bem afirmam Faraco e Tezza (1992),transformaes sociais, polticas e econmi-cas se passam em curto espao de tempo em umasociedade como a brasileira e, digo eu, conse-qentemente, se refletem elas em nossa lngua ofi-cial e majoritria. Os tempos mudam, mudam-seos usos lingsticos!

    Continuarei essas breves observaes, conside-rando o chamado portugus culto ou norma(s)culta(s). Parto de um ponto da histria dos estudoslingsticos no Brasil que o incio dos anos seten-ta, quando comearam as documentaes para oProjeto Nacional Norma Urbana Culta (NURC),definidos nele como cultos os informantes comescolaridade completa, includa, claro, o cursouniversitrio. Vale lembrar que dos objetivos expl-citos no Projeto, s o primeiro de natureza des-critiva, os outros cinco so de natureza pedaggicae se referem adequao do ensino do portugusno Brasil a uma realidade lingstica concreta (cf.J. Freitas, 1991:59).

    O trabalho descritivo e interpretativo vem sedesenvolvendo ininterruptamente por muitos espe-cialistas brasileiros; espera-se, contudo, que, no fu-turo, venham a fornecer bases para novos e reno-vados instrumentos pedaggicos e cumprir os cin-co objetivos voltados para o ensino, antes referi-dos.

    Os dados seguintes de usos da chamada normaculta brasileira so muitos sugestivos porqueexemplificam a discrepncia entre o prescritivoportugus padro e o usado, efetivamente, emelocues formais, uma das formas de discurso

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    documentada no NURC, a considerada mais for-mal, mais monitorada, portanto. Retirei-os do tra-balho de Tnia Lobo (1992) A colocao dosclticos em portugus: duas sincronias em con-fronto. Trabalha ela com o sculo XVI e o portu-gus brasileiro do sculo XX e, para este, utiliza osdados do corpus compartilhado do Projeto NURC,em confronto com as regras de importantes gra-mticas prescritivas em uso no Brasil (Cegalla,

    Bechara, C. Cunha e L. Cintra, Rocha Lima).Nesse trabalho arrola as prescries para a co-

    locao ps-verbal, a encltica, e as prescriespara a colocao pr-verbal, a procltica. Confron-tando as regras prescritas e os usos reais,depreendidos do NURC, encontrou os seguintesresultados globais quanto obedincia/desobedin-cia dos falares cultos em relao ao prescrito pelosgramticos:

    Tabela 1 Colocao dos clticos em portugus: obedincia/desobedincia dos falares cultos em relaoao prescrito pelos gramticos

    Colocao pr-verbal Colocao ps-verbal

    SIM 330 98% 60 33%

    NO 8 2% 120 67%

    Fonte: T. Lobo, 1992:187

    Prescrio gramaticalObedincia prescriogramatical

    Comenta a Autora esses dados:A colocao pr-verbal do cltico de 90%- obedincia quase categrica -, adesobedincia s prescries indicadoras dacolocao ps-verbal ou seja, a utilizaoda colocao pr-verbal em contextos em quea lngua padro prev a ocorrncia dacolocao ps-verbal atinge o expressivondice de 67%. A relao entre esses doisresultados faz-nos, por conseguinte,interpretar os 98% de ocorrncias dacolocao pr-verbal nos contextos em queas gramticas normativas o indicam no comoreflexo da obedincia dos falantes prescrio gramatical, mas to somente comoproduto da convergncia entre a regraprescrita e o comportamento habitual dosfalantes analisados, que o de antepor ocltico ao verbo na maioria quase absolutados contextos observados (Lobo, 1992:188-189)

    e extrapolando dos dados faz uma procedentereflexo com base no conceito de continuum dasclasses sociais da teoria laboviana:

    (...) se poderia pensar, ainda, por umprocesso de extrapolao, que, sendo acolocao ps-verbal pouco freqente nafala culta formal, da mesma forma seria entreas classes sociais mais elevadas;paralelamente, a ocorrncia desse tipo decolocao j seria rara ou at mesmoinexistente em registros informais, o mesmose verificando entre falantes das classessociais mais baixas. (Lobo, 1992:191)Esse exemplo aqui destacado funciona como

    uma ilustrao de um tipo de fato sinttico em queh discrepncia entre o padro prescritivo e os usosformais cultos, o portugus culto, podendo servircomo indicador de diferenas entre o portuguspadro idealizado e o portugus culto em uso noBrasil. Muitos outros poderiam ser levantados, numtrabalho longo de natureza exaustiva, sobretudo noque se refere sintaxe brasileira.

    Retomarei, contudo, ainda os clticos em geral,sem considerar a sua colocao em relao aoverbo, para apenas ilustrar o que se passa noportugus popular brasileiro.

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    Mary Kato, sintaticista gerativista, em umelucidativo trabalho Portugus brasileiro falado:aquisio em contexto de mudana lingstica(1996) retoma a proposta de Fernando Tarallo noconhecido trabalho Diagnosticando umagramtica brasileira (1993) e discutecaractersticas sintticas da gramtica, no sentidoparamtrico do termo, entre elas a aquisio eaqui o termo aquisio dos clticos acusativosde 3 pessoa por estudantes brasileiros de escolasde classes sociais populares e demonstra, com basenos dados da pesquisa de Wilma Correa, que osestudantes chegam a recuperar esses clticos naescrita, ao longo das sries escolares, na ordem de85,7%, enquanto na fala a recuperao mnima,na ordem de 10,7% (p. 221). Conclui, a partir dessefato e de outros que analisa, que a recuperaode fsseis sintticos pela escola, quando issoocorre, revela, numa anlise qualitativa:

    indcios de que o processo difere muito daaquisio natural, pois esses dadosapresentam inmeros casos de hipercorreese estratgias de esquiva [como o cltico oua repetio do sintagma lexical], evidnciasde que h um comportamento consciente demonitorao do produto (Kato, 1996:233).Com essas estratgias de esquiva e as

    hipercorrees convivemos ns mesmos emnossos usos sejamos sinceros e modestos e asencontramos documentadas no portugus escritode nossos estudantes nos Cursos de Letras commuita freqncia.

    Retomando ainda Mary Kato, mas naApresentao que faz ao livro organizado por elae Ian Roberts (1993), em que diz:

    A conscincia dessas mudanas sintticassistemticas (...) necessria para entenderpor que os estudantes escrevem comoescrevem e por que a lngua dos textosescolares, para as camadas que vm de paisiletrados, pode parecer to estranha (...). OBrasil apresenta assim um caso extremo dediglossia entre a fala do aluno que entrana escola e o padro de escrita que ele deveadquirir (Kato, 1993:20)Assim como as caractersticas nos usos dos

    clticos no portugus culto e no portugus popular,que busquei exemplificar, ambos se distanciando do

    padro normativo-prescritivo, poderamos utilizaroutros, como, por exemplo, a variao naconcordncia/no-concordncia, tanto na verbo-nominal como no interior do sintagma nominal, comovm demonstrando sistematicamente, h algunsanos, em corpora diversificados, os estudos deMartha Maria Scherre. As regras categricas dopadro prescritivo no se aplicam categoricamentenem nas falas cultas nem populares, com evidentesdiferenas de taxas de freqncia, a depender donvel social e da escolaridade dos indivduos emesmo nos usos escritos, at formais, de indivduosde escolaridade alta; claro que, nesses casos, astaxas de no-concordncia sero menores, masexistentes.

    Se, considerando a sintaxe brasileira, estamosdiante de uma mudana qualitativa da gramtica,no sentido paramtrico do termo, como vmprocurando demonstrar os sintaticistas gerativistasdesde o fim dos anos oitenta, na esteira dos estudosde Fernando Tarallo, ou se estamos num processode mudana de natureza qualitativa, como mostramos dados dos sociolingistas, considerando sempre,nas suas correlaes com fatores sociais, o fatorescolarizao, um problema terico que foge aesta exposio. No posso deixar de afirmar,contudo, que h diferenas radicais nos usoslingsticos que opem os no-escolarizados ruraisnum extremo, certamente os melhoresrepresentantes das normas vernculas e osurbanos de alta escolaridade no outro,provavelmente os melhores representantes dasnormas cultas. essa polarizao sociolingstica,muito bem definida por Dante Lucchesi em artigode 1994 Variao e norma: elementos parauma caracterizao sociolingstica doportugus do Brasil , que caracteriza a realidadesociolingstica brasileira e de que todos osprofessores de portugus no Brasil deveriam, almde estarem conscientes, terem a competncia paratrabalhar com esses fatos, interpretando-o com seusestudantes, adequadamente, em sala de aula.

    Para tanto os nossos professores deveriam teruma forte formao lingstica e sociolingstica, oque sabemos s ocorrer para uma minoria que tevea oportunidade de cursar o 3 grau do ensino, emcursos de efetiva qualidade. Questo a que voltareiadiante.

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    Alm da generalizada formao precria h quedestacar ainda que, cada vez mais, os nossosprofessores do ensino fundamental e do 2 grau vmdas classes populares e, na sua grande maioria,adquirem o portugus popular ou normasvernculas no seu contexto social de origem eelaboram esse portugus, tambm na maioria doscasos, em escolas de qualidade precria, comosabemos.

    A concluso lgica decorrente desse quadroscio-histrico, que no pessimista, mas realista, a de que cada vez mais se esvai a possibilidadeda transmisso do portugus padro prescritivo ecada vez mais avana o portugus popular, tantopela via da populao estudantil que felizmentecresce, como pela via do professorado, queindependente de suas escolhas, sofre asconseqncias dos problemas de poltica socialvigentes em nosso pas.

    Tal situao pode ser interpretada considerandoa scio-histria brasileira do passado, tambm a dopresente. disso que tratarei a seguir.

    3. Aspectos da scio-histria brasileira que serefletem hoje no ensino da lngua portuguesano Brasil

    Se aceitarmos, como aceito eu, que h umapolarizao sociolingstica no portugus brasileirohoje, estando em um plo as normas vernculas e

    no outro as normas cultas, uma volta ao passadosobre a formao scio-histrica do portugusbrasileiro, ao longo do perodo colonial e ps-colonial,dois fatores extralingsticos avultam para umacaracterizao desta situao sincrnica e sobreeles venho externando meu ponto de vista desde1994, quando, pela primeira vez escrevi um trabalhosobre o tema A scio-histria do Brasil e aheterogeneidade do portugus brasileiro.Algumas reflexes. Depois disso tenhoaprofundado os dados histricos e os apresentadoem algumas oportunidades (1998, 1999).

    Os dois fatores scio-histricos, extralingsticos,referidos, considerados correlacionadamente, soa demografia histrica brasileira e o processo deescolarizao, ou a sua quase ausncia, do sc. XVIao XIX.

    Por todo o perodo colonial e at 1890, a taxapopulacional de europeus e seus descendentes est volta de 30% e os representantes de etniasindgenas e africanas somados ficam volta de70%. Esses dados foram estudados em 1999 nadissertao de Mestrado de Alberto Mussa Opapel das lnguas africanas na formao doportugus do Brasil e esto apresentados naTabela 2, sintetizados na Tabela 3, em trabalho deTnia Lobo (1996). J publiquei esses dados emoutros trabalhos, retomo-os aqui, no s paradifundi-los, mas para fundamentar meu ponto devista.

    Tabela 2 Representao das diferentes etnias na populao brasileira, por perodo Brasil, 1538-1890

    Etnias 1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

    africanos 20% 30% 20% 12% 2%

    negros brasileiros - 20% 21% 19% 13%

    mulatos - 10% 19% 34% 42%

    brancos brasileiros - 5% 10% 17% 24%

    europeus 30% 25% 22% 14% 17%

    ndios integrados 50% 10% 8% 4% 2%

    Fonte: Mussa, 1999:163

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    Esses percentuais revelam o fato histrico ehistrico lingstico de que, s na segunda metadedo sculo XIX, a etnia branca, na expresso deTnia Lobo, ultrapassar os 30%; lembro que jento, segunda metade do sculo passado, entravaum fator novo na configurao populacional decertas reas do Brasil, os imigrantes. Revelam osdados, sobretudo, que os usurios mais provveisdo portugus europeu ou mais europeizado,

    portugueses e seus descendentes, constituram, noperodo colonial, menos de um tero da populaoconvivente no Brasil; os aloglotas, os outros, naexpresso, a meu ver, inadequada, porpreconceituosa, consagrada nos estudos histricossobre a lngua portuguesa no Brasil de Serafimda Silva Neto, foram muitos, sempre a esmagadoramaioria, estando entre 70% e 68% a sua presenaat 1850.

    Esse fator demogrfico indica que a massa dapopulao colonial adquiriu a lngua hegemnica dacolonizao, o portugus europeu, numa situaohoje designada de aquisio imperfeita ou deaprendizagem irregular, isto , em condies dehistria familiar que configuram a situao de aqui-sio de uma lngua segunda. Acrescente-se a essasituao bilnge/multilnge o fato de essa aquisi-o se ter processado plenamente na oralidade dosusos quotidianos, sem a sistematizao e a pressonormativa da escolarizao e, conseqentemente,

    sem o suporte regulador da lngua escrita. essemontante amplamente majoritrio de nossa popula-o colonial e ps-colonial que vai reestruturar oportugus europeu ou europeizado, no que venhodesignando de portugus geral brasileiro, antece-dente histrico do atualmente chamado portuguspopular brasileiro (cf. Mattos e Silva, 1998).

    Considero que no podemos ignorar esse fatorscio-histrico, acima delineado, para tentar umacompreenso da polarizao sociolingstica da atu-alidade.

    Tabela 4 Situao do analfabetismo no Brasil, em nmero de habitantes em idade escolar, 1890-1920

    ESPECIFICAO 1890 1900 1920

    sabem ler e escrever 2.120.559 4.448.681 7.493.357

    no sabem ler e escrever 12.213.356 12.939.753 23.142.248

    % de analfabetos 85 75 75

    TOTAL 14.333.915 17.388.434 30.635.605

    Fonte: Instituto Nacional de Estatstica. Anurio Estatstico do Brasil, ano II, 1936. p. 43 (apud I.Ribeiro, 1999)

    Tabela 3 Distribuio percentual das etnias no-brancas e etnias brancas na populao brasileira, porperodo Brasil, 1538-1890

    Perodo etnias no-brancas etnia branca

    1538-1600 70% 30%

    1601-1700 70% 30%

    1701-1800 68% 32%

    1801-1850 69% 31%

    1851-1890 59% 41%

    Fonte: Lobo, 1996:16

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    A scio-histria do Brasil informa tambm que,at os fins do sculo XVIII, o nmero de letradosno ultrapassaria 0,5% da populao (Houaiss,1985:137). S ao longo do sculo XIX e incios doXX que essa precariedade do letramento eescolarizao no Brasil passa a uma patamar de20% a 30% de indivduos escolarizados, segundo omesmo autor. Dados histricos utilizados recente-mente por Ilza Ribeiro em A origem do portugusculto. A escolarizao (1995), mostram, segundoa fonte referida e expressa na Tabela 4, a situaodo analfabetismo no Brasil entre 1890 e 1920.

    Alcanou-se a segunda metade do sculo XXcom 75% de analfabetos e com uma populao de25% que sabia ler e escrever. No se pode hoje,a rigor, avaliar o que seria ento saber ler e escre-ver; de todo modo, numa hiptese otimista, poder-se-ia admitir que, dentre esses 25%, estariam em1920 os potenciais usurios do hoje chamado portu-gus brasileiro culto.

    Esses fatos e dados scio-histricos do passa-do, aqui sumariamente apresentados, demonstramque foram sempre a grande maioria no nosso pas-sado os usurios do que hoje designamos de portu-gus brasileiro popular e que os candidatos plau-sveis como antecedentes do atual portugus bra-sileiro culto sempre representaram uma minoria,portadora embora do prestgio social que carregamas classes dominantes.

    Acrescentaria para finalizar esse perfil do pas-sado uma informao, que julgo interessante, e quej utilizei em outros trabalhos (1998b, 1999), en-contrada na Histria do Brasil recente de BorisFausto (1994: 237). Com base no primeiro censorealizado no Brasil, o de 1872, fins do sculo XIX,portanto, afirma o historiador que, nessa altura,99.9% dos escravos eram analfabetos; entre a po-pulao livre, que inclui escravos libertos e bran-cos, a taxa era de 80%, subindo para 86%, entre asmulheres. Informa ainda o autor, a partir desse pri-meiro censo, que apenas 16,8% da populao en-tre seis e quinze anos freqentavam escolas prim-rias e, em cursos secundrios, 12 mil em escolassecundrias, registrando-se 8.000 indivduos comeducao superior; conclui suas informaes como significativo comentrio: Um abismo separa-va, pois, a elite letrada da grande massa de

    analfabetos e gente com educao rudimentar(1994: 137)

    O quadro histrico que apresentei e a avaliaodo historiador, com base nos dados do censo de1872 seriam ento 4.600.000 os brasileiros aliceram com clareza o abismo entre a elite le-trada (8.000) e a grande massa de analfabetos.Considero que, numa perspectiva histrica, a pola-rizao ou diglossia, na expresso de Mary Kato,de hoje se enraza nesse passado, situao que, nopoderemos fugir, a nossa realidade social, que semantm no correr do nosso sculo e chegar aoprximo milnio.

    Dando um salto para o nosso tempo, os dadossobre escolarizao so anlogos aos do fim dosculo XIX, mostrados por Boris Fausto e pelosdados da Tabela 4, da fonte utilizada por Ilza Ribei-ro. Esboarei algumas informaes recentes parafundamentar meu ponto de vista de que, ao fim dosculo XX, no demos um avano qualitativo, pararecuperar os dficits herdados do nosso passadocolonial e ps-colonial.

    Em seu livro Portos de passagem (1991), Wan-derlei Geraldi informa que nos anos 1970-1980 ocrescimento da populao escolar nas escolas p-blicas do Estado de So Paulo foi da ordem de ummilho e meio de crianas. Comenta, e com eleconcordo, que esse crescimento foi um primeiroresultado da poltica educacional que sucedeu chamada revoluo de 1964, que pretendeu fazerpassar a idia de uma educao que sedemocratizava. Com razo destaca que o aumentodo nmero de estudantes exigiu, em contrapartida,a maior quantidade de professores e faz a perguntaconseqente e dolorosa Onde busc-los?(1991:115). O efeito quantidade se generalizou peloBrasil em propores diversificadas, claro.

    Ser, certamente, essa poltica da quantidade,sem a adequao s novas necessidades da popu-lao escolarizvel, que gerar o que anteriormen-te argumentei no sentido de que at a dcada decinqenta/sessenta a escola brasileira conseguiatransmitir o padro tradicional prescritivo: a popu-lao escolar era muito mais restrita e restringida eos professores, de formao tradicional, seriammuito mais competentes dentro dos limites dessaformao.

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    Os tempos, de fato, ento mudaram e a impro-visao se tornou uma necessidade para atender demanda da populao escolar. Sempre digo queh um lado positivo nisso, que pode ser discutvel:mesmo que de m qualidade a escola, muitos hojej a alcanam, mesmo que seja lamentvel o co-nhecido problema no s da repetio de sriescomo de evaso escolar logo nas primeiras sries,ou por impossibilidade de darem conta os alunosdos estudos, ou por necessidade de sobrevivnciaeconmica, o que leva crianas e jovens a entra-rem no chamado mercado de trabalho, em geral nomercado informal de trabalho.

    Dados oficiais de um Relatrio Tcnico de 1990do Ministrio da Educao sobre a populao es-colar no Brasil atestam que o:

    sistema educacional cresceu, mas no edu-ca. No 1 grau, somente 38% concluem a 1srie. Menos de 20% chegam ao segundograu, apenas 17% o concluem e 10% alcan-am a universidade (cf. A Tarde, 27.03.1990).Se admitirmos como letrados os que conclu-

    em o 1 grau, tem-se menos de 20% (entre aquelesque tm a possibilidade de se inscrever no sistemaescolar) no incio desta ltima dcada do sculo XX,patamar semelhante aos que sabiam ler e escre-ver em 1920, que seriam 25% (cf. Tabela 4).

    Quanto qualificao dos professores, com assalas de aulas geometricamente multiplicadas, des-ceu a quase nada, com as excees conhecidasdas escolas particulares para a elite social e esco-las pblicas experimentais, pontualizveis no terri-trio nacional.

    H alguns anos atrs, 1988 (cf. Telles, p. 15),espantaram-me os dados sobre a formao do pro-fessor para o 1 e 2 graus em um pequeno munic-pio do Recncavo Baiano, que ser uma situaotpica dos interiores brasileiros: dos 129 professo-res de 1 e 2 graus, nenhum tinha curso superior;17 tinham o 1 grau completo e 103, apenas o 1grau incompleto; a maioria desses ltimos, 52, pos-sua a 4 srie e 35, a 3 srie, havendo dois s coma 1 srie.

    Dados gerais de 1989, conforme um RelatrioOficial da Secretaria de Planejamento do GovernoFederal (cf. Weiselfiss, 1994:24) sobre a formaode professores de 1 e 2 graus informam que dos336.252 docentes no Nordeste, apenas 16% tm o3 grau; 56%, o 2 grau; 10%, o 1 grau completo e18%, o 1 grau incompleto.

    Com esses indicadores, quero apenas mostrarque aquela utpica formao do professor, que ocor-reria se todos os docentes das sries escolares ti-vessem formao adequada em cursos de nvelsuperior de bons cursos, o que sabemos no ocor-rer, est longe de ser alcanada. Dos docentes de1 e 2 graus no Nordeste, em 1989, apenas 16%,como vimos, tm o 3 grau. Para o geral do Brasil,o quadro melhora: 40% tm o 3 grau, embora 49%tenham apenas o 2 grau completo; os outros 19%se distribuem com formao completa ou incom-pleta de 1 grau. Por esses percentuais, v-se, quoprecria qualitativamente ser a escolarizao noBrasil, a par da poltica da quantidade, antes re-ferida, que se mantm at hoje.

    Essa questo da precria qualificao e conse-qente qualidade do ensino preocupa hoje, sem d-vida, o Ministrio da Educao. Informe muito re-cente desse Ministrio veiculado nos jornais, como,por exemplo, o jornal A Tarde de Salvador(26.7.1999), diz que dos 788.900 docentes de 1 a4 srie, 44.300 (12%) no completaram o 2 grau.A maioria se concentrando, como seria de esperar,em reas rurais. Do total - 44.300 -, 46,6% nocompletaram nem sequer o ensino fundamental (an-tigo 1 grau, 1 a 5 sries) e so professores de 1a 4 sries! A soluo legal que a notcia veicula ade que, pela lei que regulamentou o Fundo de ma-nuteno do ensino fundamental e de valoriza-o do magistrio (FUNDEF), at o ano 2001,todos os professores tero de obter habilitaocorreta, isto , ensino mdio completo para pro-fessores at a 4 srie e ensino superior para osque lecionam a partir da 4 srie. ParafraseandoWanderlei Geraldi, pergunto: Como faz-lo?; paracumprir a lei, em dois anos, todos tero de ter o

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    que diz a lei habilitao correta. Como se cum-prir essa lei, ou no se cumprir essa lei? espe-rar pouco tempo alis para ver.

    Chegamos assim aos quinhentos anos do Brasil,com a exigncia legal, a partir de 2001, mnima, aser cumprida, de que a formao superior s sernecessria para os docentes a partir da 5 srie;para as sries fundamentais, as formativas, exige-se dos docentes apenas a formao mdia.

    Transferindo esses fatos histricos recentes,esses dados antes apresentados para a nossa ques-to da lngua, pergunto eu: que portugus ser trei-nado, elaborado no geral da escola brasileira? Nosero as normas vernculas ou o portugus po-pular brasileiro, da grande maioria dos alunos e,certamente, da grande parte dos professores, onatural veculo para a intercomunicao entre pro-fessores, precariamente formados e, na sua maio-ria, vindos das classes populares, e seus alunos, nagrande maioria desses segmentos scio-econmi-cos? Como adquirir o chamado portugus cultobrasileiro ou as normas cultas, sem uma adequa-do preparo da macia populao de docentes deportugus por esses nossos brasis? Do portuguspadro, prescritivo-tradicional, ouso dizer que elepaira no horizonte do passado.

    4 - Consideraes finais

    Sem dvida a histria das sociedades condicionaa histria das lnguas, como afirmam os especialis-tas em Lingstica Histrica, que admitem que fa-tores contigenciais levam as lnguas em direesindeterminadas, a rigor, no predizveis. Podemosassim admitir que fatores que surjam possam mu-dar a direo esboada aqui, que indica no Brasil,hoje, a prevalncia efetiva embora em geral es-tigmatizada do portugus popular brasileiro,ou seja, das normas vernculas.

    Desses fatores contingentes que podero inter-ferir nesse rumo, estaro provavelmente, entre ou-tros, o incremento da qualidade de ensino / elabo-rao da lngua portuguesa nas salas de aula, comouma conseqncia da requalificao da escola edo professorado; a construo de renovados ins-

    trumentos pedaggicos adequados realidade he-terognea e polarizada do portugus brasileiro e,talvez, a potencial tendncia para a homogeneizaopela expanso generalizada dos chamados grandesmeios de comunicao de massa, o que encerrauma nova temtica e problemtica, que fogem aoescopo desta Palestra.

    Sabemos que o certo e o errado, em mat-ria de uso lingstico, no mbito de uma comunida-de que tem uma mesma lngua histrica, sempremais ou menos heterognea, esto condicionados vivncia e experincia lingstica dos seus utentes.Sabemos tambm que h uma expectativa em seg-mentos da sociedade de que certos usos devem sercorrigidos, at mesmo extirpados; sabemos aindaque certas instncias institucionais da sociedadeexigem por exemplo: selees, concursos, vesti-bulares... determinados usos.

    Que se espera ento do professor de portugusnesta nossa sociedade? Certamente os professo-res esperam e se empenham para que seus alunosno fracassem no curso de sua vida profissionalfutura, para a qual esto eles preparando esses es-tudantes.

    Transferindo esse ponto de vista para o que de-lineei como a nossa questo da lngua hoje, ter-mino esta exposio com uma formulao mnima,que j divulguei no ano passado (1998a), que pres-supe uma formao sociolingstica adequada paraos professores de Lngua Portuguesa, como lnguamaterna no Brasil: dentre as variantes lingsticasem convvio nos usos lingsticos do portugus bra-sileiro, o professor teria de distinguir as estrutural-mente mais salientes das menos salientes e as maissocialmente estigmatizadas das menos, para, semdesconsiderar e desprestigiar, interpretando-as, asprimeiras (as mais salientes e mais estigmatizadas),treinar seus estudantes para super-las pelo menosnos usos formais escritos e falados de seus alunos,j que as menos salientes e menos estigmatizadas,ouso dizer, so compartilhadas, em geral passamdespercebidas muitas vezes, por ns todos que te-mos o portugus brasileiro como lngua materna.

    Salvador, 14.10.1999

  • 34 Revista da FAEEBA, Salvador, n 15, p. 23-35, jan./jun., 2001

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    Recebido em 13.05.01Aprovado em 28.05.01

    Autora: Rosa Virgnia Mattos e Silva, Doutora em Lingstica Histrica, professora titular da UniversidadeFederal da Bahia UFBa, e pesquisadora do CNPq. Obras publicadas: Tradio gramatical e gramticatradicional (2000), e Contradies no ensino de portugus: a lngua que se fala x a lngua que seensina (2001), ambas editadas pela Contexto, So Paulo.

  • 37Revista da FAEEBA, Salvador, n 15, p. 37-47, jan./jun., 2001

    PORTUGUS DO BRASIL:HERANA COLONIAL E DIGLOSSIA

    Marcos BagnoLingista e escritor

    RESUMO

    Fazendo uma rpida reviso da histria do Brasil, tento mostrar de quemodo a constituio da sociedade brasileira, caracterizada pelo autoritarismopoltico, pelo oligarquismo econmico e pelo elitismo cultural, explica a situaodiglssica do portugus do Brasil, em que somente uma reduzida parcela dapopulao tem acesso escolarizao formal e, conseqentemente, lngua-padro preconizada pelas gramticas normativas e considerada a norma cultano senso comum e na tradio escolar, ficando o resto da populao relegadoao uso de suas variedades regionais e sociais, classificadas de erradas eestropiadas pelos falantes urbanos cultos. No entanto, esses mesmos falantesurbanos cultos depreciam, de modo geral, a lngua por eles falada, uma vez queela no reflete a lngua descrita e prescrita pela tradio normativa, baseada noportugus de Portugal. H, portanto, um duplo preconceito lingstico: dosfalantes cultos contra as variedades no-padro e dos falantes cultos contrasuas prprias variedades.

    Palavras-Chave: colonialismo preconceito lingstico norma lingstica portugus brasileiro

    ABSTRACT

    BRAZILIAN PORTUGUESE: COLONIAL HERITAGE AND DIGLOSSIA

    Through a short review of Brazils history, I try to show how the constitution ofBrazilian society, characterized by political authoritarianism, economicaloligarchicalism and cultural elitism, explains the diglossic situation of BrazilianPortuguese, in which only a little parcel of the population is granted access toformal education and, consequently, to the standard language preconized bynormative grammars and considered as the cultivated norm by common senseand by school tradition, the rest of the population being relegated to the use oftheir regional and class varieties, labeled as wrong and slovenly by educatedurban speakers. However, these same educated urban speakers depreciate, ingeneral, the language they speak, since it does not reflect the language describedand prescribed by normative tradition, based on Portugals Portuguese. Hence,there is a double language prejudice: from the urban speakers against the non-standard varieties, and from the urban speakers against their own varieties.

    Key words: colonialism language prejudice linguistic norm BrazilianPortuguese