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Numero Zero - Umberto Eco

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Numero Zero - Umberto Eco

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • 1 edio

    2015

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Eco, Umberto, 1932-E22n

    Nmero zero / Umberto Eco; traduo de Ivone Benedetti. 1. ed. Rio deJaneiro: Record, 2015.

    Traduo de: Numero zeroRequisitos do sistema: adobe digital editionsModo de acesso: world wide webInclui ndiceISBN 978-85-01-10540-0 (recurso eletrnico)

    1. Fico italiana. I. Benedetti, Ivone. II. Ttulo.15-21818

    CDD: 853CDU: 821.131.1-3

    Ttulo original em italiano:Numero zero

    Copyright Bompiani / RCS Libri S.p.A. Milan 2015

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Editorao Eletrnica da verso impressa: Abreus System Ltda.

    Imagens de capa:Jornal: ConstantinosZ / shutterstock

    Homem no beco: Concept Photo / shutterstockTextura: Dziewul / shutterstock

    Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa somente para o Brasiladquiridos pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000,

  • que se reserva a propriedade literria desta traduo.Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-01-10540-0

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    Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

  • Para Anita

  • Only connect!E. M. FOSTER

  • Sumrio

    I. Sbado, 6 de junho de 1992, 8 horasII. Segunda-feira, 6 de abril de 1992III. Tera-feira, 7 de abrilIV. Quarta-feira, 8 de abrilV. Sexta-feira, 10 de abrilVI. Quarta-feira, 15 de abrilVII. Quarta-feira, 15 de abril, noiteVIII. Sexta-feira, 17 de abrilIX. Sexta-feira, 24 de abrilX. Domingo, 3 de maioXI. Sexta-feira, 8 de maioXII. Segunda-feira, 11 de maioXIII. Fim de maioXIV. Quarta-feira, 27 de maioXV. Quinta-feira, 28 de maioXVI. Sbado, 6 de junhoXVII. Sbado, 6 de junho, meio-diaXVIII. Quinta-feira, 11 de junho

  • ISbado, 6 de junho de 1992, 8 horas

    Hoje de manh no saa gua da torneira.Blop blop, dois arrotinhos de recm-nascido, mais nada.Bati na porta da vizinha: na casa dela, tudo normal. Deve ter fechado o

    registro geral, disse ela. Eu? No sei nem onde fica, faz pouco tempo quemoro aqui, sabe, e volto para casa s noite. Meu Deus, mas quando osenhor viaja uma semana no fecha a gua e o gs? Eu no. Mas queimprudncia, me deixe entrar, vou lhe mostrar.

    Abriu o gabinete da pia, mexeu em alguma coisa, e a gua chegou. Estvendo? Tinha fechado. Desculpe, sou to distrado. Ah, vocs, single! Sai decena a vizinha, mais uma que agora fala ingls.

    Nervos sob controle. No existe poltergeist, s em filme. E no que euseja sonmbulo, porque mesmo se fosse sonmbulo no saberia daexistncia daquele registro, seno o teria usado desperto, porque o chuveirovaza e estou sempre correndo o risco de passar a noite em claro, ouvindo otempo todo aquela goteira, parece que estou em Valldemossa. Na verdade,muitas vezes acordo, me levanto e vou fechar a porta do banheiro e a outra,entre o quarto e a entrada, para no ficar ouvindo aquele pinga-pingadanado.

    No pode ter sido, sei l, um contato eltrico (o manpulo do registro,como diz a prpria palavra, funciona manualmente), nem um rato, quemesmo se tivesse passado por l no teria fora para movimentar obregueo. uma roda de ferro das antigas (tudo neste apartamento contano mnimo cinquenta anos), ainda por cima enferrujada. Portanto, era

  • preciso uma mo. Humanoide. E no tenho chamin por onde pudessepassar o orangotango da rua Morgue.

    Raciocinemos. Cada efeito tem uma causa, pelo menos o que dizem.Descarto o milagre, no vejo por que Deus se preocuparia com o meuchuveiro, nem o mar Vermelho. Logo, para efeito natural, causa natural.Ontem noite, antes de me deitar, tomei um Stilnox com um copo dgua.Logo, at aquele momento ainda havia gua. Hoje de manh j no havia.Logo, meu caro Watson, o registro foi fechado de madrugada e no porvoc. Alguma pessoa, algumas pessoas estiveram em minha casa erecearam que eu despertasse no com o barulho delas (seus passos eramabafadssimos), mas com o preldio da goteira, que tambm asincomodava, e elas talvez at se perguntassem como que eu noacordava. Portanto, sendo espertssimas, fizeram o que a minha vizinhatambm teria feito, fecharam a gua.

    Que mais? Os livros esto arrumados na sua desordem normal, osservios secretos de meio mundo poderiam ter passado por aqui, folheandopgina por pgina, e eu no teria percebido. Bobagem olhar as gavetas ouabrir o armrio da entrada. A quem queira descobrir algo hoje em dia, s huma coisa a fazer: vasculhar o computador. Para no perderem tempo,talvez tenham copiado tudo e voltado para casa. E s agora, depois deabrirem mil vezes cada documento, perceberam que no computador nohavia nada que pudesse interessar-lhes.

    O que esperavam encontrar? evidente quero dizer, no vejo outraexplicao que procuravam algo referente ao jornal. No so burros,tero achado que eu deveria ter feito anotaes sobre todo o trabalho queestamos fazendo na redao e que, se sei alguma coisa sobre o caso deBraggadocio, devo ter escrito em algum lugar. Agora tero imaginado averdade, que guardo tudo num disquete. Naturalmente esta noite tambmtero visitado o escritrio, e disquete meu que bom no acharam nenhum.Portanto, esto concluindo (mas s agora) que devo guard-lo no bolso.Imbecis que ns somos, estaro dizendo, deveramos ter procurado nopalet. Imbecis? Babacas. Se fossem espertos no acabariam fazendoservio to porco.

    Agora tentaro de novo, e pelo menos at a carta roubada ho de

  • chegar, mandam uns falsos punguistas me roubar na rua. Por isso, precisoser rpido antes que tentem outra vez, enviar o disquete para um endereode posta-restante e depois vejo quando o retiro. Mas cada bobagem queme passa pela cabea, j mataram um e Simei deu no p. Para eles noadianta saber se eu sei e o que sei. Por via das dvidas me eliminam, e acoisa acaba a. Nem posso ir pr nos jornais que daquele caso eu no sabianada, porque s de dizer isso j mostro que sabia.

    Como foi que eu acabei nesta embrulhada? Acho que a culpa doprofessor De Samis e do fato de eu saber alemo.

    Por que me vem mente De Samis, essa histria de quarenta anos? que sempre achei que foi por culpa de De Samis que nunca me formei e, seacabei nesta encrenca, porque nunca me formei. Alis, Anna me largoudepois de dois anos de casamento porque percebeu, palavras dela, que euera um perdedor compulsivo sabe-se l o que eu lhe havia contadoantes, para fazer bonito.

    Nunca me formei porque sabia alemo. Minha av era do Alto Adige e meobrigava a falar alemo na infncia. Desde o primeiro ano na universidade,para me sustentar, aceitei traduzir uns livros do alemo. Na poca, saberalemo j era uma profisso. Liam-se e traduziam-se livros que os outrosno entendiam (livros que ento eram considerados importantes), e recebia-se mais do que para traduzir do francs e at do ingls. Hoje acho queacontece o mesmo com quem sabe chins ou russo. Em todo caso, ou voctraduz do alemo ou se forma, as duas coisas juntas no d para fazer. Naverdade, traduzir quer dizer ficar em casa, no quente ou no fresco, etrabalhar de chinelos, ainda por cima aprendendo um monte de coisas. Porque frequentar as aulas na universidade?

    Por preguia, decidi me matricular num curso de alemo. Vou precisarestudar pouco, achava, afinal j sei tudo. O luminar, na poca, era oprofessor De Samis, que criara para si aquilo que os estudantes chamavamde ninho de guia num edifcio barroco decadente onde se subia por umaescadaria e se chegava a um grande trio. Um dos lados dava para oinstituto de De Samis, e do outro ficava o salo nobre, que era como oprofessor chamava pomposamente, em suma, um salo com cerca decinquenta assentos.

    No instituto s se podia entrar de chinelos. Na porta, havia chinelos

  • suficientes para os assistentes e dois ou trs estudantes. Quem ficasse semchinelos esperava a sua vez do lado de fora. Tudo era encerado, acho queinclusive os livros nas paredes. Inclusive a cara dos assistentes,velhssimos, que desde tempos pr-histricos esperavam sua vez de chegarctedra.

    O salo tinha uma abbada altssima e janelas gticas (nunca entendipor que num prdio barroco) e vitrais verdes. Na hora certa, ou seja,quatorze minutos depois do horrio regulamentar, o professor De Samis saado instituto, seguido a um metro de distncia pelo assistente mais velho, e adois metros pelos mais jovens, com menos de cinquenta. O assistente maisvelho carregava os livros, os jovens, o gravador ainda no fim da dcadade cinquenta os gravadores eram enormes, pareciam uns Rolls-Royces.

    De Samis percorria os dez metros que separavam o instituto do salocomo se fossem vinte: no seguia uma linha reta, e sim uma curva, no seise parbola ou elipse, dizendo em voz alta chegamos, chegamos!, depoisentrava no salo e se sentava numa espcie de pdio esculpido sendode esperar que comeasse com chamem-me Ismael.

    Dos vitrais a luz verde tornava cadavrico seu rosto que sorria maligno,enquanto os assistentes acionavam o gravador. Depois ele comeava: Aocontrrio do que disse recentemente meu valoroso colega professorBocardo..., e assim ia por duas horas.

    Aquela luz verde me induzia a sonolncias aquosas, e isso era o quediziam tambm os olhos dos assistentes. Eu conhecia o sofrimento deles.Ao cabo de duas horas, enquanto ns, estudantes, nos dispersvamos lfora, o professor De Samis mandava rebobinar a fita, descia do pdio,sentava-se democraticamente na primeira fila com os assistentes, e todosjuntos ouviam de novo as duas horas de aula, enquanto o professor assentiacom satisfao a cada trecho que lhe parecesse essencial. E note-se que ocurso era sobre a traduo da Bblia, no alemo de Lutero. Um teso, diziammeus colegas, com olhar pasmo.

    No fim do segundo ano, com baixssima frequncia, eu me arrisquei asolicitar uma tese sobre a ironia em Heine (achava consolador seu modo detratar amores infelizes, com o que me parecia o devido cinismo emtermos de amor, eu estava me preparando para os meus):

  • Vocs jovens, vocs jovens dissera-me De Samis desconsolado querem logo se atirar aos contemporneos...

    Entendi, numa espcie de revelao, que a tese com De Samis estavaextinta. Pensei ento no professor Ferio, mais jovem, que tinha fama deinteligncia fulgurante e se dedicava poca romntica e adjacncias. Oscolegas mais velhos, porm, me avisaram que de qualquer modo eu teria DeSamis como segundo orientador, e que no devia me aproximar oficialmentedo professor Ferio porque De Samis logo ficaria sabendo e me juraria dioeterno. Eu precisaria seguir por vias transversais, como se Ferio tivesse meconvidado a fazer a tese com ele, e De Samis ficaria zangado com ele, nocomigo. De Samis odiava Ferio pela simples razo de que o pusera nactedra. Na universidade (na poca, mas acho que ainda hoje), as coisasandam ao contrrio do mundo normal, no so os filhos que odeiam os pais,mas os pais que odeiam os filhos.

    Achava que poderia me aproximar de Ferio como que casualmentedurante uma das conferncias mensais que De Samis organizava em seusalo nobre, frequentadas por muitos colegas porque ele sempre conseguiaconvidar estudiosos clebres.

    Mas as coisas funcionavam da seguinte maneira: logo depois daconferncia seguia-se o debate, que era monopolizado pelos docentes;depois todossaam porque o orador era convidado para o restaurante La Tartaruga, omelhor do pedao, estilo meados do sculo XIX, com garons ainda defraque. Para ir do ninho de guia ao restaurante era preciso percorrer umalonga galeria em arcada, depois atravessar uma praa histrica, virar naesquina de um palcio monumental e finalmente atravessar outra pracinha.Ora, ao longo da arcada o orador avanava cercado pelos professorestitulares, seguido a um metro de distncia pelos contratados, a dois metrospelos assistentes e a razovel distncia pelos estudantes mais corajosos.Chegando praa histrica, os estudantes se despediam, na esquina dopalcio os assistentes pediam licena para retirar-se, os contratadosatravessavam a pracinha mas apresentavam seus cumprimentos na portado restaurante, onde s entravam o hspede e os titulares.

    Assim, o professor Ferio nunca soube da minha existncia. Enquanto issome desapeguei do ambiente, deixei de ir. Traduzia como um autmato, mas

  • preciso pegar o que aparece, e eu vertia em dolce stil novo uma obra emtrs volumes sobre o papel deFriedrich List na criao do Zollverein, a Unio Alfandegria Alem. D paraentender por que parei ento de traduzir do alemo, mas j era tarde pararecomear na universidade.

    O problema que a gente no aceita a ideia: continua vivendoconvencido de que um dia ou outro vai acabar todos os exames e defendertese. E quem vive cultivando esperanas impossveis j um perdedor. E,quando percebe isso, a sim se entrega.

    De incio, encontrei trabalho como preceptor de um garoto alemo, burrodemais para ir escola; era em Engadina. timo clima, solido aceitvel, eresisti um ano porque o pagamento era bom. At que um dia a me dogaroto me encurralou num corredor, dando-me a entender que no lhedesagradaria entregar-se (a mim). Era dentua e tinha uma sombra debigode, dei-lhe a entender cortesmente que eu no era da mesma opinio.Trs dias depois fui despedido, porque o garoto no progredia.

    Ento sobrevivi escrevinhando uns textos. Pensava em escrever parajornais, mas tive acolhida apenas em alguns peridicos locais, coisas comocrtica teatral para espetculos de provncia e companhias itinerantes. Aindative tempo de resenhar por uns tostes os teatros de revista, espiando nosbastidores as bailarinas vestidas de marinheiro, fascinado por suascelulites, e seguindo-as leiteria para jantar um caf com leite e, se noestivessem na pendura, um ovo na manteiga. Ali tive minhas primeirasexperincias sexuais com uma cantora, em troca de uma notinha favorvelpara um jornal de Saluzzo, mas era o que lhe bastava.

    Estava sem ptria, vivi em cidades diferentes (vim para Milo s porcausa do telefonema de Simei), revisei provas para ao menos trs editoras(universitrias, nunca das grandes), para uma fiz a reviso dos verbetes deuma enciclopdia (era preciso verificar datas, ttulos de obras, e assim pordiante), trabalhos com que criei aquilo que a certa altura Paolo Villaggiochamou de cultura monstruosa. Os perdedores, assim como os autodidatas,sempre tm conhecimentos mais vastos que os vencedores, e quem quiservencer dever saber uma nica coisa e no perder tempo sabendo todas, oprazer da erudio reservado aos perdedores. Quanto mais coisas umapessoa sabe, menos coisas deram certo para ela.

  • Dediquei-me durante alguns anos a ler manuscritos que as editoras(algumas vezes tambm as importantes) me passavam, porque nelasningum tem vontade de ler os manuscritos que chegam. Pagavam cinco milliras por manuscrito, eu passava o dia todo deitado na cama lendofuriosamente, depois redigia um parecer de duas laudas, contendo o melhordo meu sarcasmo para destruir o autor imprudente, na editora todos ficavamaliviados, escreviam ao imprevidente que lamentavam recusar etc. Lermanuscritos que nunca sero publicados pode virar profisso.

    Nesse meio-tempo tinha havido a coisa com Anna, que acabou comodevia. A partir da nunca mais consegui (ou no desejei ferozmente) pensarcom interesse em nenhuma mulher, porque tinha medo de falhar de novo. Osexo foi satisfeito de modo teraputico, algumas aventuras casuais,daquelas que no do medo de se apaixonar, uma noite e pronto, obrigado,foi legal, e algumas relaes peridicas pagas, para no ficar obcecadopelo desejo (as bailarinas tinham me tornado insensvel celulite).

    No entanto, eu tinha o sonho que todos os perdedores tm, de algum diaescrever um livro que me desse glria e riqueza. Para aprender a ser umgrande escritor trabalhei at como ngre (ou ghost-writer, como se diz hojepara ser politicamente correto) para um autor de romances policiais, que,por sua vez, para vender assinava com nome americano, como os atoresdos westerns spaghetti. Mas era bom trabalhar sombra, coberto porduas cortinas (o Outro e o outro nome do Outro).

    Escrever romance policial alheio era fcil, bastava imitar o estilo deChandler ou, na pior das hipteses, de Spillane; mas, quando tentei inseriralgo que fosse meu, percebi que para descrever algum ou algo eu remetiaa situaes literrias: no era capaz de dizer que fulano estava passeandonuma tarde lmpida e clara, mas dizia que estava andando sob um cudigno de Canaletto. Mas depois me dei conta de que DAnnunzio tambmfazia isso: para dizer que certa Costanza Landbrook tinha algumasqualidades, ele escrevia que ela parecia uma criatura de ThomasLawrence; sobre Elena Muti, observava que seus traos lembravam certosperfis de Moreau jovem, e Andrea Sperelli lembrava o retrato do fidalgodesconhecido da Galleria Borghese. E assim, para ler um romance, erapreciso ir folhear os fascculos de alguma enciclopdia da histria da artevendida em bancas de jornal.

  • Se DAnnunzio era mau escritor, no significava que eu tambm deveriaser. Para me livrar do vcio da citao decidi parar de escrever.

    Em suma, no foi uma grande vida. E, com cinquenta anos completos,chegou-me o convite de Simei. Por que no? Enfim, valia a pena tentar maisaquela.

    O que fao agora? Se ponho o nariz para fora, me arrisco. Melhor esperaraqui, no mximo esto l fora esperando que eu saia. E eu no saio. Nacozinha h vrios pacotes de biscoito de gua e sal e latas de carne. Deontem noite tambm sobrou meia garrafa de usque. Pode servir paraajudar a passar um dia ou dois. Despejo duas gotas (e depois talvez outrasduas, mas s tarde, porque bebida de manh atordoa) e tento voltar aoincio dessa aventura, sem necessidade nenhuma de consultar o disqueteporque lembro tudo, pelo menos por enquanto, com lucidez.

    O medo de morrer d alento s lembranas.

  • II

    Segunda-feira, 6 de abril de 1992

    Simei tinha cara de outro. Quero dizer, nunca me lembro do nome de quem sechama Rossi, Brambilla e Colombo, ou mesmo Mazzini ou Manzoni, porque tem onome de outro, s lembro que teria o nome de outro. Pois bem, da cara de Simei noera possvel lembrar porque parecia a cara de algum que no era ele. De fato, eletinha a cara de todos.

    Um livro? perguntei-lhe. Um livro. As memrias de um jornalista, o relato de um ano de trabalho para

    preparar um jornal que nunca sair. Por outro lado o ttulo do jornal deveria serAmanh, parece um lema para os nossos governos: cuidamos disso amanh. Portantoo livro dever chamar-se Amanh: ontem. Bonito, no?

    E quer que eu o escreva? Por que o senhor no o escreve? jornalista, no?Pelo menos, como est para dirigir um jornal...

    E quem disse que ser diretor significa saber escrever? Que ser ministro da Defesa saber atirar uma granada? Claro que, durante todo o ano que vem, o livro serdiscutido dia a dia, o senhor vai ter de botar o estilo, o tempero, mas as linhas geraiseu controlo.

    Quer dizer que o livro ser assinado pelos dois, ou como entrevista de Colonna eSimei?

    No, no, caro Colonna, o livro vai ser publicado com o meu nome, o senhor,depois de escrev-lo, vai precisar desaparecer. O senhor, sem querer ofender, vai serum ngre. Dumas tinha um, no entendo por que eu no possa ter.

    E por que escolheu a mim? Porque o senhor tem dotes de escritor...

  • Obrigado. ... mas ningum nunca percebeu. Obrigado mais uma vez. Se me permite, at agora escreveu apenas para jornais do interior, foi um braal

    da cultura em algumas editoras, escreveu um romance para outra pessoa (no mepergunte como, mas ele veio parar nas minhas mos e funciona, tem ritmo), est comuns cinquenta anos e veio correndo quando ficou sabendo que eu talvez tivesse umtrabalho para lhe dar. Portanto, sabe escrever e sabe o que um livro, mas vive mal.No deve se sentir envergonhado. Eu tambm, se estou para dirigir um jornal quenunca vai sair, porque nunca fui candidato ao prmio Pulitzer, dirigi apenas umsemanrio esportivo e uma revista mensal s para homens, ou para homens ss, vejao senhor...

    Eu poderia ter dignidade e recusar. No vai fazer isso porque lhe ofereo seis milhes por ms durante um ano,

    limpos. muito para um escritor falido. E depois? Depois, quando me entregar o livro, digamos no prazo de seis meses a partir do

    trmino da experincia, outros dez milhes, no ato, em espcie. E esses vo sair domeu bolso.

    E depois? Depois com o senhor. Se no tiver gastado tudo em mulheres, cavalos e

    champanhe, ter recebido em um ano e meio mais de oitenta milhes isentos deimpostos. A vai poder procurar outro emprego com calma.

    Deixe-me ver se entendi. Se est me dando seis milhes, sabe-se l com quantosvai ficar, desculpe, alm disso haver outros redatores, mais os custos de produo,impresso e distribuio, e est me dizendo que algum, um editor, suponho, estdisposto a custear durante um ano essa experincia para depois no fazer nada comela?

    Eu no disse que no vai fazer nada com ela. Ele vai ter seu retorno. Mas euno, se o jornal no sair. Naturalmente no posso excluir a possibilidade de no fim oeditor decidir que o jornal vai sair de verdade, mas nessa altura o negcio vai ficargrande e eu me pergunto se ele ainda vai querer que eu cuide dele. Portanto, eu mepreparo para o fato de, passado esse ano, o editor decidir que a experincia j deu osfrutos esperados e que ele pode desmontar o circo. Assim eu me preparo: se tudogorar, publico o livro. Vai ser uma bomba e vai me render uma nota em direitos

  • autorais. Ou ento (s uma suposio) algum pode no querer que eu publique e med uma quantia. Isenta de impostos.

    Entendi. Mas, se quiser que eu colabore lealmente, talvez seja bom me dizerquem paga, por que existe o projeto Amanh, por que ele talvez no d certo e o queo senhor vai dizer no livro que, modstia parte, eu terei escrito.

    Pois bem, quem paga o comendador Vimercate. Deve ter ouvido falar dele... Sei de Vimercate, vira e mexe est nos jornais: controla dezenas de hotis na

    costa do Adritico, muitas casas de repouso para aposentados e invlidos, uma srie denegcios sobre os quais se comenta boca pequena, algumas emissoras de televisolocais que comeam a transmitir s onze da noite s leiles, televendas e alguns showsescrachados...

    E umas vinte publicaes. Revistinhas, acho, fofocas sobre artistas como Eles, Peeping Tom, e

    semanrios sobre inquritos judiciais como Crime ilustrado, Por baixo do pano,porcaria, trash.

    No, tambm revistas especializadas, jardinagem, viagens, automveis, veleiros,Mdico em casa. Um imprio. Bonito este escritrio, n? H at uma figueira-da-borracha, como no escritrio dos chefes da RAI. E temos disposio um openspace, como se diz nos Estados Unidos, para os redatores, uma salinha para o senhor,pequena mas decente, e uma sala para o arquivo. Tudo grtis, neste prdio que renetodas as empresas do Comendador. Quanto ao resto, para a produo e a impressodos nmeros zero sero usadas as instalaes das outras revistas, e assim o custo daexperincia se reduz a nveis aceitveis. E estamos praticamente no centro, e nocomo os grandes dirios, que agora a gente precisa pegar dois metrs e um nibuspara chegar at l.

    Mas o que o Comendador espera dessa experincia? O Comendador quer entrar para o clube de elite das finanas, dos bancos e,

    quem sabe, dos grandes jornais. O instrumento a promessa de um novo diriodisposto a dizer a verdade sobre todas as coisas. Doze nmeros zero, digamos 0/1,0/2, e assim por diante, impressos em pouqussimos exemplares reservados que oComendador vai avaliar e depois dar um jeito para que sejam vistos por pessoas queele l sabe. Quando o Comendador demonstrar que pode pr em dificuldades aquiloque se chama de clube de elite das finanas e da poltica, provvel que o clube de elitelhe pea para parar com essa ideia, ento ele desiste do Amanh e consegue licenapara entrar no clube de elite. Suponhamos, s para dar um exemplo, que apenas uns

  • dois por cento de aes de um grande dirio, de um banco, de um canal de televisoimportante.

    Assobiei: Dois por cento muito! Ele tem dinheiro para um empreendimento desse tipo? No seja ingnuo. Estamos falando de finanas, no de comrcio. Primeiro voc

    compra, depois v que o dinheiro para pagar aparece. Entendi. E tambm entendo que a experincia s vai funcionar se o

    Comendador no disser que no fim o jornal no vai sair. Todos devero acreditar queas rotativas esto tinindo de impacincia, digamos...

    Claro. Que o jornal no vai sair o Comendador no disse nem a mim, eusimplesmente desconfio, ou melhor, tenho certeza. E os nossos colaboradores no vopoder saber disso; vamos v-los amanh: eles precisaro trabalhar achando que estoconstruindo seu futuro. Dessa histria s eu e o senhor sabemos.

    Mas o que vai acontecer ao senhor se escrever tudo o que fez em um ano parafavorecer a chantagem do Comendador?

    No use a palavra chantagem. Vamos publicar notcias, como diz o New YorkTimes, all the news thats fit to print...

    ... e quem sabe algumas mais... Estou vendo que me entende. Se o Comendador usar os nossos nmeros zero

    para assustar algum ou para limpar o traseiro, isso l com ele, no com a gente.Mas a questo que o meu livro no dever contar o que decidimos nas nossasreunies da redao, porque para isso eu no precisaria do senhor, um gravador seriasuficiente. O livro dever dar ideia de outro jornal, mostrar como durante um ano eume esforcei para realizar um modelo de jornalismo independente de qualquer presso,dando a entender que a aventura acabou mal porque no se podia dar vida a uma vozlivre. Para isso o senhor vai precisar inventar, idealizar, escrever uma epopeia, no seise me explico...

    O livro dir o contrrio do que aconteceu. Muito bem. Mas o senhor serdesmentido.

    Por quem? Pelo Comendador, que precisaria dizer que no, que o projeto stinha em mira uma extorso? Melhor deixar pensarem que precisou desistir porquetambm foi submetido a presses, preferiu matar o jornal para que ele no se tornasseuma voz, como se diz, teleguiada. E vamos ser desmentidos pelos nossos redatores,que sero apresentados no livro como jornalistas incorruptveis? Meu livro ser umbetzeller pronunciava assim, como todos , e ningum vai querer, nem saber, se

  • opor a ele. Tudo bem, j que ns dois somos homens sem qualidades, desculpe a citao,

    aceito o pacto. Gosto de tratar com gente leal que diz o que tem no corao.

  • III

    Tera-feira, 7 de abril

    Primeiro encontro com os redatores. Seis, parecem suficientes.Simei tinha avisado que eu no precisaria sair por a fazendo falsas apuraes, mas

    deveria ficar sempre na redao para registrar os vrios acontecimentos. Por isso, parajustificar minha presena, comeou assim:

    Senhores, vamos nos apresentar. Este o doutor Colonna, homem de grandeexperincia jornalstica. Vai trabalhar diretamente comigo, e por isso vamos defini-locomo assistente da direo; a principal tarefa dele consistir em revisar todos os artigosdos senhores. Cada um aqui vem de experincias diferentes, e uma coisa tertrabalhado num jornal de extrema esquerda, outra ter experincia, digamos, no Lavoce della fogna, e uma vez que somos espartanamente poucos (como podem ver),quem sempre trabalhou com anncios fnebres talvez precise escrever um editorialsobre a crise governamental. Portanto, uma questo de uniformizar o estilo e, sealgum sucumbir fraqueza de escrever palingenesia, Colonna vai dizer que no devee sugerir o termo alternativo.

    Profundo renascimento moral disse eu. Isso. E, se para definir uma situao dramtica, algum disser que estamos no

    olho do furaco, imagino que o doutor Colonna ter a lucidez de lembrar que, segundotodos os livros cientficos, o olho do furaco o nico lugar onde reina a calma,enquanto o furaco vai se expandindo por todos os lados.

    No, doutor Simei interferi. Nesse caso direi que preciso usar olho dofuraco porque, diga o que disser a cincia, o leitor no sabe disso, e exatamente oolho do furaco que vai lhe dar a ideia de estar no meio do problema. Foi assimacostumado pela imprensa e pela televiso. Assim como o convenceu de que se diz

  • sspns e mangment enquanto se deveria dizer suspens (e se escreve suspense eno suspence) e mnagment.

    tima ideia, doutor Colonna, preciso falar a linguagem do leitor, e no a dosintelectuais que dizem obliterar o documento de viagem. Por outro lado, parece que onosso editor disse uma vez que seus telespectadores esto numa faixa mdia de idade(digo, idade mental) de doze anos. Os nossos leitores no, mas sempre til atribuiruma idade a eles: os nossos tero mais de cinquenta anos, sero bons e honestosburgueses que desejam a lei e a ordem, mas adoram fofocas e revelaes sobre vriasformas de desordem. Partiremos do princpio de que no so aquilo que se costumachamar de leitor assduo, alis, grande parte deles no deve ter nem livro em casa,mas, quando necessrio, falaremos do grande romance que est vendendo milhes deexemplares em todo o mundo. O nosso leitor no l livros, mas gosta de pensar queexistem grandes artistas excntricos e bilionrios, assim como nunca ver de perto adiva de pernas compridas e mesmo assim quer saber tudo sobre seus amores secretos.Mas vamos deixar que os outros tambm se apresentem. Cada um por si. Comeamospela nica mulher, a senhorita (ou senhora)...

    Maia Fresia. Solteira, ou single, como preferir. Vinte e oito anos, quaseformada em Letras, precisei parar por razes familiares. Trabalhei durante cinco anospara uma revista de celebridades, precisava andar pelo mundo do espetculo farejandoquem estava mantendo uma amizade colorida com quem, e organizar uma tocaia dosfotgrafos; na maioria das vezes eu precisava convencer um cantor, uma atriz, ainventar uma amizade colorida com algum e lev-los ao encontro com os paparazzi,quer dizer, um passeio de mos dadas ou mesmo um beijo furtivo. No comeo eugostava, mas agora estou cansada de contar lorotas.

    E por que aceitou se juntar nossa aventura,queridinha?

    Acho que um dirio falar de coisas mais srias, e um jeito de eu ficarconhecida com reportagens que no incluam amizade colorida. Sou curiosa, e acho queboa detetive.

    Era mida e falava com um brio ponderado. timo. O senhor? Romano Braggadocio... Nome estranho, de onde vem? Olhe, essa uma das muitas obsesses da minha vida. Parece que em ingls tem

    significado feio, mas por sorte nas outras lnguas no. Meu av era um enjeitado e,

  • como o senhor sabe, nesses casos o sobrenome era inventado por um funcionriomunicipal. Se fosse um sdico poderia impingir at um Ficarotta, no caso de meu avo funcionrio era sdico pela metade e tinha certa cultura... Quanto a mim, souespecializado em revelaes escandalosas e trabalhava exatamente para uma revista donosso editor, Por baixo do pano. Mas nunca me contratou, pagava por artigo.

    Dos outros quatro, Cambria tinha passado as noites em prontos-socorros oudelegacias para garimpar notcias frescas, prises, mortes em acidentes espetacularesem estradas, e no fizera carreira; Lucidi inspirava desconfiana primeira vista ehavia trabalhado em publicaes de que nunca ningum tinha ouvido falar; Palatinovinha de uma longa carreira em semanrios de jogos e passatempos; Costanzatrabalhara como chefe de composio em alguns jornais, mas os jornais passaram a terpginas demais, ningum conseguia revisar tudo antes da impresso, de modo que atos grandes dirios j escreviam Simone de Beauvoire, Beaudelaire, Rooswelt, e o chefede composio comeava a cair em desuso como a prensa de Gutenberg. Nenhumdaqueles companheiros de viagem vinha de experincias empolgantes. Uma verdadeiraPonte de San Luis Rey. Como Simei tinha conseguido desencavar aquela gente, nosei.

    Terminadas as apresentaes, Simei delineou as caractersticas do jornal. Portanto, vamos fazer um dirio. Por que Amanh? Porque os jornais

    tradicionais contavam, e infelizmente ainda contam, as notcias da noite anterior, e porisso se chamavam Corriere della Sera, Evening Standard ou Le Soir. Agora a gentefica sabendo das notcias do dia anterior pela televiso s oito da noite, portanto osjornais esto contando sempre as coisas que a gente j sabe, e por isso que vendemcada vez menos. No Amanh, essas notcias que j esto fedendo como peixe podreclaro que devem ser resumidas e lembradas, mas para isso basta uma nota que se leiaem alguns minutos.

    Ento do que o jornal vai falar? perguntou Cambria. O destino dos dirios hoje o de ficarem parecidos com semanrios. Vamos

    falar daquilo que poderia acontecer amanh, com artigos aprofundados, suplementosinvestigativos, previses inesperadas... Dou um exemplo. s quatro explode umabomba, e no dia seguinte todos j sabem. Pois bem, das quatro meia-noite, antes deo jornal ir para o prelo, precisaremos descobrir algum que diga algo indito sobre osprovveis responsveis, coisas que a prpria polcia ainda no sabe, e traar umcenrio daquilo que vai acontecer nas semanas seguintes por causa daquele atentado...

    Braggadocio:

  • Mas para dar andamento a apuraes desse tipo em oito horas preciso umaredao pelo menos dez vezes maior que a nossa e um exrcito de contatos,informantes, que sei eu...

    Justo, e, quando o jornal for feito de verdade, assim que dever ser. Masagora, durante um ano, s precisamos demonstrar que possvel fazer. E possvelporque um nmero zero pode ter a data que se quiser e pode ser perfeitamente umexemplo de como teria sido o jornal meses antes, suponhamos, quando a bombaexplodiu. Nesse caso j sabemos o que ter acontecido depois, mas vamos falar comose o leitor ainda no soubesse. Portanto, todas as nossas indiscries tero gosto decoisa indita, surpreendente, ouso dizer oracular. Ou seja: ao cliente ns deveremosdizer: veja como teria sido o Amanh se tivesse sado ontem. Entenderam? E,querendo-se, mesmo que ningum nunca tivesse explodido a bomba, poderamosmuito bem fazer um nmero como se.

    Ou explodirmos ns a bomba, se for conveniente disse Braggadocio em tomde chacota.

    No diga bobagem repreendeu Simei. Depois, como se refletisse: E, sequiser mesmo fazer isso, no venha me contar.

    Terminada a reunio, acabei descendo com Braggadocio. Ns j no nos conhecemos? perguntou.Eu achava que no, ele disse t, de um jeito meio desconfiado, e logo comeou a

    me tratar por voc. Na redao Simei tinha acabado de instaurar o uso de senhor, e eutenho o costume de manter as devidas distncias, tipo, nunca dormimos juntos, masevidentemente Braggadocio estava deixando claro que ramos colegas. Eu no queriaparecer um cara que assume ares de superioridade s porque Simei tinha meapresentado como redator-chefe ou algo semelhante. Por outro lado, aquela figura meintrigava e eu no tinha nada melhor para fazer.

    Segurou-me pelo cotovelo e me disse que amos beber alguma coisa num lugar queele conhecia. Sorria com seus lbios grossos e os olhos meio bovinos, de um modo queme pareceu obsceno. Era calvo como von Stroheim, tinha a nuca em linha reta com opescoo, mas com a fisionomia de Telly Savalas, o tenente Kojak. Pronto, sempre acitao.

    Bonitinha aquela Maia, no?Confessei sem jeito que tinha olhado para ela s de relance como disse, das

    mulheres quero distncia. Ele sacudiu meu brao:

  • No fique dando uma de gentleman, Colonna. Eu bem que vi voc olhandodisfaradamente para ela. Na minha opinio, do tipo que topa. A verdade quetodas topam, s saber pegar do jeito certo. Um pouco magra demais para o meugosto, alis, no tem peitos, mas, enfim, poderia dar p.

    Tnhamos chegado rua Torino e, altura de uma igreja, ele me fez virar direitapara entrarmos numaruazinha que tinha uma curva em cotovelo, mal iluminada, com algumas portasfechadas sabe-se l desde quando, sem nenhum comrcio, como se tivesse sidoabandonada h tempos. Parecia pairar ali um cheiro de bolor, mas devia ser apenassinestesia, por causa das paredes escalavradas e cobertas de grafites desbotados. Noalto, um cano soltava fumaa, e no dava para entender de onde vinha porque atmesmo as janelas de cima estavam fechadas como se ali no morasse mais ningum.Talvez o cano viesse de alguma casa que dava para outro lugar, e ningum seincomodava por esfumaar uma rua abandonada.

    a rua Bagnera, a mais estreita de Milo, no tanto como a rue du Chat-qui-Pche em Paris, onde quase no conseguem passar duas pessoas. Hoje se chama ruaBagnera, mas antigamente se chamava viela Bagnera, e antes ainda, viela Bagnaria,por causa de alguns banhos pblicos da poca romana.

    Naquele momento surgia da curva uma mulher com um carrinho de beb. Irresponsvel ou mal informada comentou

    Braggadocio. Se eu fosse mulher, no passaria por aqui, principalmente no escuro.Voc pode ser esfaqueado, assim sem mais nem menos. Seria uma pena porque agatinha no de se jogar fora, tpica mezinha disposta a dar para o encanador, olhepara trs, veja como ela rebola. Aqui aconteceram assassinatos. Por trs dessas portasagora trancadas ainda deve haver pores abandonados e talvez passagens secretas.Aqui, no sculo XIX, um tal Antonio Boggia, sujeito sem eira nem beira, atraiu umcontador para um desses pores, com a desculpa de fazer a reviso das contas, e lhedeu uma machadada. A vtima consegue se salvar, Boggia preso, julgado louco einternado no manicmio por dois anos. Mas, assim que fica livre, sai de novo cata depessoas ingnuas e endinheiradas, que ele atrai para o seu poro, rouba, mata eenterra no mesmo lugar. Um serial killer, como se diria hoje, mas um serial killerimprudente, porque deixa vestgios das suas relaes comerciais com as vtimas e nofim acaba preso, a polcia escava o poro, encontra cinco ou seis cadveres, e Boggia enforcado l pelos lados da Porta Ludovica. A cabea dele foi entregue aoDepartamento de Anatomia do Ospedale Maggiore (estvamos nos tempos de

  • Lombroso, quando os sinais da delinquncia hereditria eram procurados nos crnios enos traos fisionmicos). Depois parece que essa cabea foi enterrada em Musocco,mas vai saber, aqueles restos eram material cobiado por ocultistas e satanistas detodas as tribos... Ainda hoje, aqui d para sentir a presena de Boggia, parece queestamos em Londres, no tempo de Jack, o Estripador, eu no gostaria de passar anoite aqui, no entanto me sinto atrado. Volto sempre, s vezes marco algunsencontros aqui.

    Saindo da rua Bagnera desembocamos numa praa, a Mentana, e Braggadocio mefez enveredar por certa rua Morigi, tambm bastante escura, mas com algum comrciopequeno e belos portais. Chegamos a um largo com uma ampla rea deestacionamento circundada por runas.

    Veja s disse Braggadocio , aquilo esquerda ainda so runas romanas,quase ningum lembra que Milo tambm foi capital do imprio. Por isso, nelas no setoca, mesmo que ningum esteja dando bola para esse tipo de coisa. Mas aquelas atrsdo estacionamento ainda so casas destroadas pelos bombardeios da ltima guerra.

    As casas destroadas no tinham a vetusta tranquilidade das runas antigas, jreconciliadas com a morte, mas despontavam sinistras entre seus vazios noassossegados, como se doentes de lpus.

    No sei bem por que ningum tentou construir nesta rea dizia Braggadocio, talvez seja tombada, talvez o estacionamento renda mais para os proprietrios doque construir casas para alugar. Mas por que deixar os vestgios dos bombardeios? Estelargo me d mais medo que a rua Bagnera, mas bonito porque me diz como eraMilo depois da guerra, nesta cidade sobraram poucos lugares que fazem lembrar comoela era quase cinquenta anos atrs. E a Milo que procuro reencontrar, aquela ondevivi na infncia e na adolescncia, a guerra acabou quando eu tinha nove anos, e de vezem quando, de madrugada, ainda tenho a impresso de ouvir o barulho das bombas.Mas ficaram s as runas: olhe ali na esquina da rua Morigi, aquela torre do sculoXVII, nem as bombas a derrubaram. E embaixo, venha c, ainda desde o comeo dosculo XX existe aquela taverna, a taverna Moriggi, no me pergunte por que a tavernatem um g a mais que a rua, mas a prefeitura que deve ter errado quando ps asplacas, a taverna mais antiga, ela que deve ter razo.

    Entramos num ambiente de paredes vermelhas e teto descascado, de onde pendiaum velho lustre de ferro batido, com uma cabea de veado no balco, centenas degarrafas de vinho empoeiradas ao longo das paredes, mesinhas de madeira (ainda noera hora do jantar, disse Braggadocio, e estavam sem toalha, depois seriam colocadas

  • aquelas de xadrezinho vermelho, e para comer era preciso consultar aquela lousinhaescrita mo, como nos restaurantes franceses). mesa havia estudantes, algumasfiguras da velha bomia, com cabelos compridos, mas no de sessenta e oito, e sim depoeta, daqueles que antigamente usavam chapu de aba larga e gravata Lavallire,alm de uns velhos j meio embalados, que no se entendia se estavam l desde ocomeo do sculo ou se eram contratados pelos novos donos como figurantes.Petiscamos de um prato de queijos, frios, lardo de Colonnata, e bebemos um merlot,bom de verdade.

    Bonito, n? dizia Braggadocio. Pareceatemporal.

    Mas por que voc atrado por essa Milo que j no deveria existir? J lhe disse, quero poder ver aquilo que quase no lembro mais, a Milo do meu

    av e do meu pai.Tinha comeado a beber, seus olhos haviam ficado brilhantes, enxugara com um

    guardanapo de papel um crculo de vinho que se formara na mesa de madeira antiga. Minha famlia tem uma histria triste. Meu av era alto dirigente no infausto

    regime, como se costuma dizer. E no dia 25 de abril foi reconhecido por um partisanenquanto tentava escapulir no longe daqui, na rua Cappuccio; foi apanhado efuzilado, logo ali na esquina. Meu pai ficou sabendo disso com atraso porque, como erafiel s ideias do meu av, em 1943 tinha se alistado na Dcima Flotilha MAS, foicapturado em Sal e mandado para o campo de concentrao de Coltano, onde ficouum ano. Escapou por pouco, no encontraram nenhum verdadeiro motivo deincriminao, alm disso, j em 1946 Togliatti tinha dado o primeiro passo para aanistia geral, contradies da histria, os fascistas reabilitados pelos comunistas, masTogliatti talvez tivesse razo, era preciso voltar normalidade a qualquer custo. Mas anormalidade era que meu pai, com aquele passado e a sombra do pai, no achavatrabalho e vivia sustentado pela minha me, que era costureira. Assim foi seentregando aos poucos, bebia, e dele eu lembro s o rosto cheio de veiazinhasvermelhas e os olhos lacrimejantes, enquanto me contava suas obsesses. Noprocurava justificar o fascismo (nessa altura no tinha mais ideais), mas dizia que paracondenarem o fascismo os antifascistas tinham contado muitas histrias horrendas.No acreditava nos seis milhes de judeus mortos nas cmaras de gs. Quer dizer, noera daqueles que ainda hoje afirmam que no houve Holocausto, mas no confiava nanarrativa construda pelos libertadores. Eram todos testemunhos exagerados, dizia, lique, segundo alguns sobreviventes, no meio de um campo de concentrao havia

  • montanhas de roupas dos assassinados, com mais de cem metros de altura. Cemmetros? Mas voc percebe dizia ele que um monto de cem metros de altura, jque s pode ter forma de pirmide, precisa ter a base mais larga que a rea do campo?

    Mas ele no levava em conta que quem assistiu a algo tremendo, quando lembradepois, usa hiprboles. Voc v um acidente na estrada e conta que os cadveresestavam num lago de sangue, mas no espera que acreditem que houvesse algo dotamanho do lago de Como, simplesmente quer passar a ideia de que havia muitosangue. Ponha-se na pele de quem se lembra de uma das experincias mais trgicas davida...

    No nego, mas meu pai me acostumou a no acreditar em todas as notcias. Osjornais mentem, os historiadores mentem, a televiso hoje mente. Voc no viu nostelejornais h um ano, com a Guerra do Golfo, o pelicano coberto de leo, agonizandono golfo Prsico? Depois foi apurado que naquela estao era impossvel haverpelicanos no Golfo, e as imagens eram de oito anos antes, no tempo da Guerra Ir-Iraque. Ou ento, como disseram outros, pegaram uns pelicanos no zoolgico elambuzaram de petrleo. O mesmo devem ter feito com os crimes fascistas. Veja bem,no que me afeioei s ideias do meu pai ou do meu av, nem quero fazer de contaque no houve massacre de judeus. Por outro lado alguns dos meus melhores amigosso judeus, imagine. Mas no confio em mais nada. Os americanos foram mesmo ata Lua? No impossvel que tenham construdo tudo num estdio, se voc observar assombras dos astronautas depois da alunissagem no so verossmeis. E a Guerra doGolfo aconteceu mesmo ou nos mostraram s trechos de velhos repertrios? Vivemosna mentira e, se voc sabe que lhe esto mentindo, precisa viver desconfiado. Eudesconfio, desconfio sempre. A nica coisa verdadeira da qual posso dar testemunho essa Milo de tantas dcadas atrs. Os bombardeios existiram de verdade e, entreoutras coisas, quem bombardeava eram os ingleses, ou os americanos.

    E o seu pai? Morreu bbado quando eu tinha treze anos. Para me livrar dessas lembranas,

    quando cresci procurei ir para o lado oposto. Em 1968 eu tinha mais de trinta anos,deixei o cabelo crescer, andava de japona e suter, e entrei para uma organizao detendncia maoista. Mais tarde descobri que Mao tinha matado mais gente que Stalin eHitler juntos, e no s, mas que entre os maoistas talvez estivessem infiltradosprovocadores dos servios secretos. A me dediquei s a trabalhar como jornalista caa de compls. Assim evitei cair na esparrela dos terroristas vermelhos (e eu tinhaamizades perigosas). Tinha perdido todas as certezas, a no ser a de que sempre h

  • algum s nossas costas, enganando. E agora? Agora, se esse jornal der certo, talvez eu tenha encontrado um lugar onde

    levaro a srio algumas descobertas minhas... Estou comeando a trabalhar numahistria que... Alm do jornal poderia render at um livro. A ento... Mas vamosmudar de assunto, voltamos a falar disso quando eu tiver reunido todos os dados... Sque tenho de ser rpido, preciso de dinheiro. Os caramingus que o Simei me paga jso alguma coisa, mas no do.

    Para viver? No, para comprar um carro; claro que a prestao, mas vou precisar pagar as

    prestaes. Alm disso, precisa ser logo, vai ser til para a minha investigao. Espere a, voc est dizendo que quer ganhar dinheiro com a investigao para

    comprar o carro, mas precisa do carro para fazer a investigao. Para reconstituir muitas coisas eu precisaria viajar, visitar vrios lugares, talvez

    entrevistar pessoas. Sem carro e com a obrigao de ir redao todos os dias, vouprecisar reconstituir tudo de memria, trabalhar s com a cabea. E se esse fosse onico problema.

    E qual o verdadeiro problema? Olha, no que eu seja indeciso, mas para saber o que fazer preciso combinar

    todos os dados. Um dado sozinho no diz nada, todos juntos levam a entender o queno aparecia primeira vista. preciso fazer ressaltar aquilo que esto tentandoesconder de voc.

    Est falando da sua investigao? No, estou falando da escolha do carro.Desenhava na mesa com um dedo molhado de vinho, como se, tal como nas

    revistas de passatempos, estivesse traando uma srie de pontos que precisam serinterligados para fazer aparecer uma figura.

    Um carro precisa ser veloz e ter certa classe, claro que no estou procurando umutilitrio, alm disso, para mim, ou trao dianteira ou nada. Estava pensando numLancia Thema turbo dezesseis vlvulas, dos mais caros, quase sessenta milhes.Poderia at tentar, duzentos e trinta e cinco por hora e acelerao de zero a cem emsete ponto dois. quase o mximo.

    caro. No s isso, preciso tambm descobrir o dado que eles escondem. A

    propaganda de automveis, quando no mente, omite. Se a gente escarafuncha as

  • fichas tcnicas nas revistas especializadas, descobre que tem cento e oitenta e trscentmetros de largura.

    No bom? Voc tambm no d importncia, nas propagandas eles sempre pem o

    comprimento, que sem dvida conta para o estacionamento, ou para o status, masraramente pem a largura, que fundamental se voc tem uma garagem pequena, ouuma vaga mais estreita ainda, isso para no falar de quando a gente fica rodando feitolouco para encontrar um espao onde se enfiar. A largura fundamental. precisotentar ficar abaixo dos cento e setenta centmetros de largura.

    Imagino que existam. Claro, mas num carro de cento e setenta centmetros voc fica apertado, se

    algum est do lado no sobra espao suficiente para o cotovelo direito. Alm disso,no tem todas aquelas comodidades dos carros largos, que tm muitos comandos disposio da mo direita, perto do cmbio.

    E a? Precisa ver bem se o painel tem muitos instrumentos, e se h comandos no

    volante, para que a parafernlia do lado direito seja intil. E a descobri o Saabnovecentos turbo, cento e sessenta e oito centmetros, velocidade mxima duzentos etrinta, e descemos para cinquenta milhes.

    o seu carro. Sim, mas s no cantinho eles dizem que faz de zero a cem em oito e cinquenta,

    enquanto o ideal pelo menos sete, como no Rover duzentos e vinte turbo, quarentamilhes, cento e sessenta e oito de largura, velocidade mxima de duzentos e trinta ecinco, e de zero a cem em seis ponto seis, um blido.

    Ento para esse que voc vai se direcionar... No, porque s no finzinho da ficha revelam que tem cento e trinta e sete

    centmetros de altura. Baixo demais para um sujeito encorpado como eu, quase umacoisa de corrida para mauricinhos que gostam de bancar os esportistas, ao passo que oLancia tem cento e quarenta e trs de altura, e o Saab cento e quarenta e quatro e avoc entra como um lorde. E no s isso, quem mauricinho no vai procurar osdados tcnicos, que so como as contraindicaes dos remdios nas bulas, escritas comletra mida para escapar da gente a informao de que, se tomar o remdio, morre nodia seguinte. O Rover duzentos e vinte pesa s mil cento e oitenta e cinco quilos: pouco, se bater num caminho voc se esborracha todo, preciso procurar carrosmais pesados, com reforos de ao, no digo o Volvo que um tanque de guerra, lento

  • demais, mas pelo menos um Rover oitocentos e vinte ti, de uns cinquenta milhes,duzentos e trinta por hora e mil quatrocentos e vinte quilos.

    Mas imagino que voc tenha descartado porque... comentei, j paranoicotambm.

    Porque faz de zero a cem em oito ponto dois: uma tartaruga, no temarrancada. Como o Mercedes C duzentos e oitenta, que teria cento e setenta e dois delargura, mas, afora o fato de custar sessenta e sete milhes, vai de zero a cem em oitoponto oito. Alm disso, demoram cinco meses para entregar. E esse tambm umdado para cruzar se voc calcular que alguns dos que citei demoram dois meses eoutros tm pronta entrega. Por que pronta entrega? Porque ningum quer. Desconfiar.Parece que entregam logo o Calibra turbo dezesseis vlvulas, duzentos e quarenta ecinco quilmetros por hora, trao nas quatro rodas, zero a cem em seis ponto oito,cento e sessenta e nove de largura, e pouco mais de cinquenta milhes.

    timo, eu diria. S que no, porque pesa apenas mil cento e trinta e cinco, leve demais, e tem

    somente cento e trinta e dois de altura, pior que todos os outros, para fregusendinheirado, mas nanico. E se fossem s esses os problemas. Voc nem imagina oporta-malas. O maior o doThema dezesseis vlvulas turbo, mas tem largura de cento e setenta e cinco. Entre osestreitos, achei melhor o Dedra dois ponto zero LX, com porta-malas grande, mas eleno s vai de zero a cem em nove ponto quatro como tambm pesa pouco mais de mile duzentos quilos e faz apenas duzentos e dez por hora.

    E agora? E agora no sei para que lado me virar. J tenho a mente ocupada com a

    investigao e acordo de madrugada para comparar carros. Mas voc sabe tudo de cor? Fiz tabelas, mas o problema que decorei as tabelas, e a coisa ficou

    insuportvel. Comeo a achar que os carros foram projetados para que eu no pudessecompr-los.

    No um exagero essa desconfiana? Desconfiana nunca exagero. Desconfiar, desconfiar sempre, s assim se

    encontra a verdade. No isso o que a cincia manda fazer? Manda e faz. Balela, a cincia tambm mente. Veja a histria da fuso a frio. Mentiram

    durante meses e depois foi descoberto que era um disparate.

  • Mas foi descoberto. Por quem? Pelo Pentgono, que talvez quisesse encobrir algo embaraoso.

    Talvez tivessem razo os da fuso a frio e quem mentiu foram os que disseram que osoutros tinham mentido.

    Que seja, quanto ao Pentgono e CIA, mas voc no vai querer dizer quetodas as revistas de automveis dependem dos servios secretos dademoplutojudaicocracia espreita.

    Eu procurava faz-lo recobrar o bom senso. Ah, ? disse-me com um sorriso amargo. Elas tambm esto ligadas

    grande indstria americana, e s Sete Irms do petrleo, aquelas que assassinaramMattei, coisa para a qual posso estar me lixando, mas so as mesmas que mandaramfuzilar o meu av financiando os partisans. Est vendo como tudo est interligado?

    Mas os garons j estavam estendendo as toalhas e dando a entender que tinhaacabado o tempo de quem s bebia dois copos.

    Antigamente, com dois copos a gente podia ficar at as duas da madrugada suspirou Braggadocio , mas agora aqui tambm esto de olho no cliente que temdinheiro. Vai ver que um dia vo fazer aqui uma danceteria com luzes estroboscpicas.Aqui ainda tudo de verdade, que fique claro, mas j comea a ter cheiro de mentira.Imagine s, os donos desta tasca milanesa h muito tempo so toscanos, foi o que medisseram. No tenho nada contra os toscanos, devem ser gente boa tambm, maslembro que, de menino, quando se falava de uma filha de uns conhecidos, que tinhafeito um pssimo casamento, um primo nosso explicava com a seguinte aluso: seriapreciso fazer um muro abaixo de Florena. E minha me comentava: abaixo deFlorena? Nada disso, abaixo de Bolonha!

    Enquanto espervamos a conta, Braggadocio me disse, quase cochichando: Voc no poderia me fazer um emprstimo? Devolvo em dois meses. Eu? Mas estou sem um tosto, como voc. Ah, t. No sei quanto Simei lhe paga e no tenho o direito de saber. Falei por

    falar. De qualquer modo, voc paga a conta, certo?Foi assim que conheci Braggadocio.

  • IV

    Quarta-feira, 8 de abril

    No dia seguinte ocorreu a primeira reunio da redao propriamente dita. Vamos fazer o jornal disse Simei , o jornal de 18 de fevereiro deste ano. Por que 18 de fevereiro? perguntou Cambria, que depois se distinguiria por

    sempre fazer as perguntas mais idiotas. Porque no inverno passado, em 17 de fevereiro, os carabineiros entraram no

    escritrio de Mario Chiesa, presidente do Pio Albergo Trivulzio, personagemproeminente do Partido Socialista milans. Todos sabem disso: Chiesa tinha pedidopropina em cima de um contrato com uma empresa de limpeza de Monza, negcio deuns cento e quarenta milhes, dos quais ele pretendia receber dez por cento, e vejamque at um asilo de velhinhos pode ter boas tetas para se mamar. No devia ser essa aprimeira mamata porque o cara da limpeza se cansou de pagar e denunciou Chiesa.De modo que foi se encontrar com ele para entregar a primeira parte dos quatorzemilhes combinados, mas com um microfone e uma cmera escondidos. Assim queChiesa pegou a bolada, os carabineiros entraram no escritrio. Chiesa, aterrorizado,agarrou outra bolada maior da gaveta, que j tinha recebido de alguma outra pessoa, esaiu correndo at o banheiro para jogar as notas no vaso sanitrio, mas no houvecomo, antes de destruir todo aquele dinheiro ele j estava algemado. Essa a histria,vocs devem se lembrar, e agora, Cambria, j sabe o que vamos precisar contar nojornal do dia seguinte. V ao arquivo, releia bem as notcias daquele dia e faa umanota de abertura, alis, no, um belo de um artigao, porque, se bem me lembro,naquela noite os telejornais no falaram do caso.

    Ok, chefe. Estou indo. Espere, porque a que entra em cena a misso do Amanh. Lembrem que nos

  • dias seguintes se procurou dar pouca importncia ao fato, Craxi teria at dito queChiesa era s um pilantra, e o teria liberado, mas o que o leitor de 18 de fevereiroainda no podia saber que os magistrados continuariam investigando, e estavaemergindo um verdadeiro mastim, o juiz Di Pietro, que agora todos sabem quem ,mas de quem ningum tinha ouvido falar na poca. Di Pietro deu uma prensa emChiesa, descobriu contas na Sua e o fez confessar que no era um caso isolado, e aospoucos est pondo a nu uma rede de corrupo poltica que envolve todos os partidos,e as primeiras consequncias foram sentidas exatamente nos dias recentes, ossenhores viram que nas eleies a Democracia Crist e o Partido Socialista perderamum monte de votos, e quem se fortaleceu foi a Liga, que, hostilizando os governosromanos, est tirando proveito do escndalo. Esto chovendo mandados de priso, ospartidos esto se desagregando aos poucos, e j h quem diga que, depois da queda doMuro de Berlim e do desmantelamento da Unio Sovitica, os americanos j noprecisam dos partidos que podiam manobrar e os deixaram nas mos dos magistrados,ou talvez, poderamos arriscar, os magistrados esto seguindo um roteiro escrito pelosservios secretos americanos, mas por enquanto no vamos exagerar. Essa asituao hoje, mas em 18 de fevereiro ningum podia imaginar o que aconteceria. OAmanh, porm, vai imaginar e fazer uma srie de previses. E esse artigo dehipteses e insinuaes eu confio ao senhor Lucidi, que precisar ser hbil para,dizendo possvel e talvez, contar de fato o que depois de fato aconteceria. Comalguns nomes de polticos, bem distribudos entre os vrios partidos, ponha asesquerdas no meio tambm, d a entender que o jornal est coletando outrosdocumentos, e diga isso de um modo que faa morrer de medo at aqueles que lerem onosso nmero 0/1 sabendo muito bem o que aconteceu nos dois meses depois defevereiro, mas se perguntando o que poderia ser um nmero zero com a data de hoje...Entendido? Ao trabalho.

    Por que a mim a tarefa? perguntou Lucidi.Simei o olhou de um modo estranho, como se ele tivesse de entender o que ns

    no entendamos: Porque algo me diz que o senhor muito bom em coletar rumores e transmiti-

    los a quem de direito.

    Mais tarde, em particular, perguntei a Simei o que ele queria dizer. No fique fofocando com os outros disse ele , mas na minha opinio Lucidi

    est ligado aos servios secretos, e o jornalismo para ele um disfarce.

  • Est dizendo que espio. E por que quis um espio na redao? Porque tanto faz se ele nos espionar, o que voc acha que ele iria contar, alm

    de coisas que os servios de informao entenderiam muito bem lendo qualquer um dosnossos nmeros zero? Mas pode nos trazer notcias que conseguiu espionando osoutros.

    Simei no ser um grande jornalista, pensei, mas no seu gnero um gnio. E meacudiu memria a frase atribuda quele regente, grande linguarudo, que dizia sobreum musicista: No seu gnero um Deus. O gnero que uma merda.

  • VSexta-feira, 10 de abril

    Enquanto continuvamos pensando no que poramos no nmero 0/1, Simei abriaamplos parnteses sobre alguns princpios essenciais para o trabalho de todos.

    Colonna, exemplifique para os nossos amigos como que se pode seguir, oudar mostras de seguir, um princpio fundamental do jornalismo democrtico: fatosseparados de opinies. Opinies no Amanh haver inmeras, e evidenciadas comotais, mas como que se demonstra que em outros artigos so citados apenas fatos?

    Muito simples disse eu. Observem os grandes jornais de lngua inglesa.Quando falam, sei l, de um incndio ou de um acidente de carro, evidentemente nopodem dizer o que acham daquilo. Ento inserem no artigo, entre aspas, asdeclaraes de uma testemunha, um homem comum, um representante da opiniopblica. Pondo-se aspas, essas afirmaes se tornam fatos, ou seja, um fato queaquele sujeito tenha expressado tal opinio. Mas seria possvel supor que o jornalistativesse dado a palavra somente a quem pensasse como ele. Portanto, haver duasdeclaraes discordantes entre si, para mostrar que fato que h opinies diferentessobre um caso, e o jornal expe esse fato irretorquvel. A esperteza est em pr antesentre aspas uma opinio banal e depois outra opinio, mais racional, que se assemelhemuito opinio do jornalista. Assim o leitor tem a impresso de estar sendo informadode dois fatos, mas induzido a aceitar uma nica opinio como a mais convincente.Vamos ver um exemplo. Um viaduto desmoronou, um caminho caiu e o motoristamorreu. O texto, depois de relatar rigorosamente o fato, dir: Ouvimos o senhor Rossi,42 anos, que tem uma banca de jornal na esquina. Fazer o qu, foi uma fatalidade,disse ele, sinto pena desse coitado, mas destino destino. Logo depois um senhorBianchi, 34 anos, pedreiro que estava trabalhando numa obra ao lado, dir: culpa

  • da prefeitura, que esse viaduto estava com problemas eu j sabia h muito tempo.Com quem o leitor se identificar? Com quem culpa algum ou alguma coisa, comquem aponta responsabilidade. Est claro? O problema no qu e como pr aspas.Vamos fazer uns exerccios. Comeamos com o senhor Costanza. Estourou a bombada praa Fontana.

    Costanza pensou um pouco, depois disse: O senhor Rossi, 41 anos, funcionrio da prefeitura, que poderia estar no banco

    quando a bomba explodiu, disse: Eu estava a pouca distncia e ouvi a exploso.Horrvel. Por trs disso tudo tem algum achando que quanto pior melhor, masnunca vamos saber quem . O senhor Bianchi (50 anos, barbeiro) tambm estavapassando pelos arredores no momento do estouro, que ele lembra como ensurdecedore terrvel, e comentou: Tpico atentado com a marca dos anarquistas, no hdvida.

    timo. Senhorita Fresia, chega a notcia da morte de Napoleo. Bom, eu diria que o senhor Blanche (considero conhecidas a idade e a profisso)

    diz que talvez tenha sido injusto prender naquela ilha um homem j acabado,pobrezinho, que tambm tinha famlia. O senhor Manzoni, alis Manson, diz:Desapareceu um homem que mudou o mundo, de Manzanares ao Reno, umgrande.

    Gostei do Manzanares disse Simei sorrindo. Mas para passar opiniessem dar na vista tambm h outros meios. Para saber o que se vai pr num jornal preciso, como se diz nas outras redaes, organizar a pauta. Notcia para se dar hinfinitas no mundo, mas por que dizer que houve um acidente em Bergamo e ignorarque houve outro em Messina? No so as notcias que fazem o jornal, e sim o jornalque faz as notcias. E saber pr juntas quatro notcias diferentes significa propor aoleitor uma quinta notcia. Este aqui um dirio de anteontem, na mesma pgina:Milo, joga o filho recm-nascido no vaso sanitrio; Pescara, o irmo de Davide noest envolvido na sua morte; Amalfi, acusa de fraude a psicloga que cuidou de suafilha anorxica; Buscate, sai do reformatrio depois de quatorze anos o garoto que aos15 matou um menino de 8. As quatro notcias aparecem na mesma pgina, e o ttuloda pgina Sociedade Criana Violncia. Certamente se fala de atos de violncia emque algum menor est envolvido, mas se trata de fenmenos bem diferentes. S emum caso (o infanticdio) h violncia de pais contra filhos, o caso da psicloga no meparece dizer respeito a crianas porque no se diz a idade dessa filha anorxica, ahistria do garoto de Pescara prova, eventualmente, que no houve violncia, que a

  • morte do garoto foi acidental, e por fim o caso de Buscate, lendo-se bem, se refere aum marmanjo de quase trinta anos, e a notcia verdadeira de quatorze anos atrs. Oque os jornais queriam nos dizer com essa pgina? Talvez nada de intencional, umredator preguioso se viu com quatro despachos de agncias nas mos e achou tiljuntar todos, porque produziria mais efeito. Mas de fato o jornal transmite uma ideia,um alarme, um aviso, sei l... Em todo caso, pensem no leitor: lendo cada uma dessasquatro notcias individualmente, ele teria ficado indiferente, mas todas juntas o obrigama permanecer mais tempo naquela pgina. Entenderam? Eu sei que muito j sepontificou em torno do fato de que os jornais sempre escrevem operrio calabrs atacacolega de trabalho e nunca operrio cuneano ataca colega de trabalho, que seja, racismo, mas imaginem uma pgina que dissesse operrio cuneano etc. etc.,aposentado de Mestre mata a mulher, jornaleiro de Bolonha comete suicdio, pedreirogenovs passa cheque sem fundos, o que importa ao leitor onde esses caras nasceram?Ao passo que, se estamos falando de um operrio calabrs, de um aposentado deMatera, de um jornaleiro de Foggia e de um pedreiro de Palermo, ento se cria umapreocupao em torno da criminalidade do sul, e isso notcia... Somos um jornalpublicado em Milo, no na Catnia, e precisamos levar em conta a sensibilidade doleitor milans. Ateno: fazer notcia uma boa expresso, notcia quem faz somosns, e preciso saber fazer a notcia brotar das entrelinhas. Doutor Colonna, nas horaslivres, rena-se com os nossos redatores, folheiem os despachos das agncias denotcias e montem algumas pginas temticas, exercitem-se em fazer a notciaaparecer onde ela no estava ou onde ningum conseguia enxerg-la. Fora!

    Outro assunto foi o do desmentido. Ainda ramos um jornal sem leitores, portanto,fosse qual fosse a notcia, no haveria ningum para desmenti-la. Mas um jornaltambm avaliado pela capacidade de enfrentar desmentidos, principalmente se forum jornal que d mostras de no ter medo de meter o nariz na podrido. Alm detreinarmos para quando chegassem desmentidos de verdade, era preciso inventaralgumas cartas de leitores seguidas de nossos desmentidos. Para mostrar ao cliente anossa fibra.

    Ontem falei a respeito com o doutor Colonna. Colonna quer dar, por assimdizer, uma boa aula sobre a tcnica do desmentido.

    Bem disse eu , vejamos um exemplo didtico, no s fictcio mas tambm,digamos, exagerado. uma pardia do desmentido publicado h alguns anos nolEspresso. A hiptese era de que o jornal tivesse recebido uma carta de um tal Elucdio

  • Desmentino, que passo a ler.

    Ilustrssimo senhor diretor, com referncia ao artigo Idos no vividos,publicado no ltimo nmero de seu jornal, assinado por Aleteu Verdade, tomo aliberdade de elucidar o que segue. No verdade que estive presente noassassinato de Jlio Csar. Peo-lhe que tenha a bondade de inferir da anexacertido do registro civil que nasci em Molfetta no dia 15 de maro de 1944,portanto muitos sculos depois do nefasto acontecimento, que, por outro lado,sempre reprovei. O senhor Verdade deve ter se equivocado quando lhe disse quesempre festejo com amigos o dia 15 de maro de 44.

    Tambm inexato que em seguida eu tenha dito a certo Bruto: Nos revemosem Filipos. Elucido que nunca tive contato com o senhor Bruto, de cujo nomeat ontem nem tinha conhecimento. Em nossa rpida conversa telefnica eu dissede fato ao senhor Verdade que em breve me encontrarei com Filipos, secretriomunicipal de Trnsito, mas a frase foi dita no contexto de uma conversa sobre otrfego de automveis. Nesse contexto eu nunca disse que estou contratandosicrios para acabar com o traidor e palhao do Jlio Csar, e sim que estouconvencendo o secretrio a acabar com o trfego na praa Jlio Csar.Agradecendo, despeo-me atenciosamente, Elucdio Desmentino.

    Como se reage a um desmentido to elucidador sem perder o rebolado?Vejamos uma boa resposta.

    Constato que o senhor Desmentino no desmente em absoluto que Jlio Csarfoi assassinado nos idos de maro de 44. Tambm constato o fato de que o senhorDesmentino sempre festeja com os amigos o aniversrio de 15 de maro de 1944.Era exatamente esse estranho costume que eu queria denunciar em meu artigo. Osenhor Desmentino talvez tenha razes pessoais para festejar essa data comabundantes libaes, mas ter de admitir que a coincidncia no mnimo curiosa.Alm disso, deve lembrar que, durante a longa e consistente entrevista telefnicaque me concedeu, proferiu a frase: Sou da opinio de que se deve sempre dar aCsar o que de Csar; uma fonte muito prxima do senhor Desmentino e daqual no tenho razes para duvidar me garantiu que o que Csar recebeu foramvinte e trs punhaladas.

    Destaco que em toda a sua carta o senhor Desmentino evita dizer quem,

  • definitivamente, desferiu aquelas punhaladas. Quanto ao pattico reparo sobreFilipos, tenho diante dos olhos o meu caderno de notas no qual est escrito semsombra de dvida que o senhor Desmentino no disse Nos revemos no Filipos, esim Nos revemos em Filipos.

    Eu mesmo posso dar garantias quanto s palavras ameaadoras a Jlio Csar.As anotaes no meu caderno, que tenho diante dos olhos neste momento, dizemclaramente: Estou con...ndo s...rios acabar com tr p Jlio Csar. No comargumentos esfarrapados e jogos de palavras que se podem evitar pesadasresponsabilidades nem amordaar a imprensa.

    Segue a assinatura de Aleteu Verdade. Agora, o que tem de eficaz essedesmentido do desmentido? Um, a anotao que o jornal fez daquilo que foi escrito porfontes prximas ao senhor Desmentino. Isso sempre funciona, no se diz quais so asfontes, mas se sugere que o jornal tem fontes confidenciais, talvez mais confiveis queDesmentino. Depois se recorre ao caderno do jornalista. Esse caderno ningum vaiver, mas a ideia de uma transcrio ao vivo infunde confiana no jornal, faz acreditarque existem documentos. Por fim, repetem-se insinuaes que por si ss no dizemnada, mas lanam uma sombra de suspeita sobre Desmentino. Agora, no estoudizendo que os desmentidos devem ser desse tipo, aqui estamos numa pardia, masguardem bem os trs elementos fundamentais para um desmentido do desmentido:testemunhos ouvidos, anotaes no caderno e incertezas vrias quanto confiabilidadedo desmentidor. Entenderam?

    timo responderam todos em unssono.E no dia seguinte cada um trouxe exemplos de

    desmentidos mais verossmeis e de desmentidos de desmentidos menos grotescos mastambm eficazes. Os meus alunos tinham entendido a lio.

    Maia Fresia props: Registramos o desmentido, mas esclarecemos que tudo o que relatamos

    provm de documentos judiciais, ou seja, dos autos da denncia. O fato de queDesmentino depois foi absolvido na fase de instruo algo de que o leitor no ficasabendo. Tambm no sabe que aqueles autos deveriam ser sigilosos, e no fica clarode que modo chegaram a ns, nem at que ponto so autnticos. Fiz a tarefa, doutorSimei, mas, se me permite, isso me parece, como dizer, uma cafajestada.

    Queridinha comentou Simei , seria uma cafajestada pior admitir que ojornal no verificou as fontes. Mas concordo que, em vez de proclamar dados que

  • algum pudesse verificar, sempre melhor limitar-se a insinuar. Insinuar no significadizer algo preciso, serve s para lanar uma sombra de suspeita sobre o desmentidor.Por exemplo: Registramos a elucidao, mas consta que o senhor Desmentino(sempre usar senhor, no sua excelncia nem doutor, senhor o pior insulto em nossopas), consta que o senhor Desmentino enviou dezenas de desmentidos a vriosjornais. Deve ser uma atividade compulsiva em tempo integral. Nessa altura, seDesmentino enviar outro desmentido, teremos justificativa para no o publicar ou paracit-lo comentando que o senhor Desmentino continua repetindo as mesmas coisas.Assim o leitor se convence de que ele um paranoico. Vejam a vantagem dainsinuao: dizendo que Desmentino j escreveu a outros jornais s estaremos dizendoa verdade, que no pode ser desmentida. A insinuao eficaz a que relata fatos semvalor em si, mas que no podem ser desmentidos porque so verdadeiros.

    Guardando bem esses conselhos, fizemos como dizia Simei umbrainstorming. Palatino lembrou que at ento tinha trabalhado para revistas depassatempos e props que o jornal inclusse meia pgina de jogos, ao lado daprogramao da tev, das previses meteorolgicas e dos horscopos.

    Simei o interrompeu: Horscopo, caramba, ainda bem que me lembrou disso, a primeira coisa que

    os nossos leitores iro procurar! Alis, senhorita Fresia, essa sua primeira tarefa, leiaalguns jornais e revistas que publicam horscopos e extraia deles alguns esquemasrepetitivos. E limite-se aos prognsticos otimistas, as pessoas no gostam que lhesdigam que no ms que vem vo morrer de cncer. E construa previses que sirvampara todos, quero dizer, uma leitora de sessenta anos no se identificaria com aperspectiva de conhecer o jovem prncipe da sua vida, mas a previso, sei l, de quenos prximos meses vai acontecer alguma coisa que tornar feliz aquele nativo decapricrnio algo que cai bem para qualquer um, para o adolescente, se que vai nosler, para a coroa e para o contador que est esperando aumento de salrio. Masvoltemos aos jogos, caro Palatino. No que est pensando? Palavras cruzadas, digamos?

    Palavras cruzadas disse Palatino , mas infelizmente vamos precisar fazerpalavras cruzadas daquelas que perguntam quem desembarcou em Marsala. Eprecisamos dar graas a Deus se o leitor escrever Garibaldi, ironizou Simei. Aspalavras cruzadas estrangeiras, ao contrrio, tm definies que em si j so outroenigma. Num jornal francs apareceu uma vez amigo dos simples e a soluo eraherborista, porque simples no so s os simplrios mas tambm as ervas medicinais.

  • No coisa para ns disse Simei , o nosso leitor no s no sabe o que simples como talvez nem saiba quem ou o que faz um herborista. Garibaldi, ou omarido de Eva, ou a me do bezerro, somente coisas desse gnero.

    Nesse momento quem falou foi Maia, com o rosto iluminado por um sorriso quaseinfantil, como se estivesse para aprontar uma traquinagem. Disse que palavrascruzadas iam bem, mas o leitor precisava esperar o nmero seguinte para saber se suasrespostas estavam corretas, ao passo que poderamos fazer de conta que nos nmerosanteriores tinha sido lanada uma espcie de concurso e estavam sendo publicadas asrespostas mais espirituosas dos leitores. Por exemplo, disse, podemos imaginar quepedimos aos leitores que dessem as respostas mais idiotas possveis a algum, tambmidiota.

    Antigamente na universidade nos divertamos imaginando perguntas e respostasdelirantes. Por exemplo: Por que bananas crescem em rvores? Porque se crescessemno cho logo seriam comidas pelos crocodilos. Por que os esquis deslizam na neve?Porque se deslizassem s no caviar os esportes de inverno seriam muito caros.

    Palatino se entusiasmou: Por que Csar antes de morrer teve tempo de dizer Tu quoque Brute? Porque

    quem o apunhalou no foi Cipio, o Africano. Por que a nossa escrita vai da esquerdapara a direita? Porque, se no fosse assim, as frases comeariam com um ponto. Porque as paralelas nunca se encontram? Porque, se se encontrassem, quem fizesseexerccios nelas quebraria as pernas.

    Os outros tambm se entusiasmaram, e Braggadocio entrou na disputa: Por que os dedos so dez? Porque, se fossem seis, seis seriam os mandamentos

    e, por exemplo, no seria proibido roubar. Por que Deus o ser perfeitssimo? Porque,se fosse imperfeitssimo, seria meu primo Gustavo.

    Entrei na brincadeira: Por que o usque foi inventado na Esccia? Porque, se tivesse sido inventado no

    Japo, seria saqu e a gente no poderia beber com soda. Por que o mar togrande? Porque peixe demais e seria irracional coloc-los no Gran San Bernardo. Porque o ninho de mafagafos tem sete mafagafinhos? Porque, se fossem trinta e trs, eleseria o Gro-Mestre da Maonaria.

    Esperem disse Palatino , por que os copos so abertos em cima e fechadosembaixo? Porque, se fosse o contrrio, os bares iriam falncia. Por que me sempre me? Porque, se de vez em quando tambm fosse pai, os ginecologistas noiam saber o que fazer da vida. Por que as unhas crescem e os dentes no? Porque

  • seno os neurticos iam roer os dentes. Por que a bunda embaixo e a cabea emcima? Porque seno ia dar muito trabalho projetar banheiro. Por que as pernas sedobram para trs e no para a frente? Porque no avio seria muito perigoso em casode aterrissagem forada. Por que Cristvo Colombo navegou para o oeste? Porque, setivesse navegado para o leste, teria descoberto Frosinone. Por que dedo tem unha?Porque, se tivesse pupila, seria olho.

    Agora a competio no parava, e Fresia falou de novo: Por que o comprimido de aspirina diferente de um lagarto? Porque imaginem

    o que aconteceria em caso contrrio. Por que o cachorro morre em cima do tmulo dodono? Porque ali no existe rvore para fazer xixi e depois de trs dias a bexigaestoura. Por que um ngulo reto mede noventa graus? Pergunta malfeita: ele no medenada, so os outros que o medem.

    Chega disse Simei, que, no entanto, no tinha conseguido segurar um sorrisoou outro. Isso coisa de estudante universitrio. Esto esquecendo que o nossoleitor no nenhum intelectual que leu os surrealistas, que faziam... como eramesmo?... cadveres esquisitos. Ia levar tudo a srio e achar que somos loucos. Emfrente, senhores, estamos aqui nos divertindo, e no o caso. Voltemos a fazerpropostas srias.

    E assim a seo dos porqus foi liquidada. Pena, teria sido engraado. Mas aquelahistria me induziu a olhar para Maia Fresia com ateno. Se era to espirituosa,tambm devia ser bonita. E ao seu modo era mesmo. Por que ao seu modo? Ainda notinha captado o modo, mas estava curioso.

    Fresia evidentemente se sentia frustrada e tinha procurado sugerir algo que fosse dasua rea:

    Est chegando a primeira lista de finalistas do prmio Strega. No deveramosfalar desses livros?

    Sempre com a cultura, vocs, jovens, e por sorte a senhora no se formou,seno ia me propor um ensaio crtico de cinquenta pginas...

    No me formei, mas leio. No podemos tratar demais de cultura, os nossos leitores no leem livros, no

    mximo a Gazzetta dello Sport. Mas, concordo, o jornal no pode deixar de ter umapgina, no digo cultural, mas digamos de cultura e espetculo. No entanto, os fatosculturais relevantes devem ser apresentados em forma de entrevista. Entrevista com oautor tranquilizadora, porque nenhum autor fala mal do prprio livro, portanto o

  • nosso leitor no fica exposto a espinafraes rancorosas e prepotentes. Alm disso, eledepende das perguntas, no se deve falar demais do livro, mas fazer o escritor ouescritora aparecer, quem sabe at com os seus tiques e fraquezas. Senhorita Fresia, seique teve uma boa experincia com a criao de amizades coloridas. Pense numaentrevista, claro que imaginria, com um dos autores que esto competindo, e, se ahistria for de amor, arranque alguma lembrana do primeiro amor do autor ou autora,ou quem sabe alguma maldade a respeito dos concorrentes. Faa do maldito livro umacoisa humana que mesmo a dona de casa consiga entender, e assim no ter remorsosse no o ler; alis, quem que l os livros que os jornais resenham, em geral nem oresenhista, isso quando o prprio autor o l, porque, olhando certos livros, a gente svezes acha que nem ele leu.

    Ai, meu Deus disse Maia Fresia empalidecendo , nunca vou me livrar damaldio das amizades coloridas...

    No acha que a chamei aqui para lhe pedir artigos de economia ou polticainternacional.

    Imaginava. Mas tinha a esperana de estar enganada. Vamos l, no se abespinhe, tente escrever alguma coisa, todos ns temos a

    maior confiana na senhorita.

  • VI

    Quarta-feira, 15 de abril

    Lembro quando Cambria disse: Ouvi no rdio que algumas pesquisas demonstram que a poluio da atmosfera

    est influindo no tamanho do pnis das novas geraes, e o problema, na minhaopinio, no diz respeito s aos filhos mas tambm aos pais, que sempre falam comorgulho das dimenses do pintinho do filho. Lembro quando nasceu o meu, fui v-lo noberrio da maternidade, disse que par de colhes ele tem e fui contar a todos oscolegas.

    Todos os meninos quando nascem tm testculos enormes disse Simei , etodos os pais dizem a mesma coisa. Alm disso, o senhor sabe que muitas vezes nasmaternidades eles trocam as etiquetas, e aquele talvez no fosse seu filho, com omximo respeito pela sua senhora.

    Mas a notcia toca diretamente os pais, porque os efeitos nocivos tambmatingiriam o aparelho reprodutor dos adultos objetou Cambria. Se por acaso seespalhasse a ideia de que a poluio no mundo compromete no s as baleias mastambm (desculpem o tecnicismo) os perus, acho que teramos sbitas converses aoecologismo.

    Interessante comentou Simei , mas quem disse que o Comendador, oupelo menos aqueles a quem ele se reporta, esto interessados na reduo da poluioatmosfrica?

    Mas seria um alarme, e um tremendo de um alarme disse Cambria. Pode ser, mas ns no somos alarmistas reagiu Simei , isso seria

    terrorismo. Quer pr em xeque o gasoduto, o petrleo, nossas indstrias siderrgicas?No somos o jornal dos Verdes. Nossos leitores devem ser tranquilizados, no

  • alarmados.Depois de alguns segundos de reflexo, acrescentou: A menos que essas coisas que fazem mal ao pnis fossem produzidas por

    alguma indstria farmacutica que o Comendador no se importasse de alarmar. Masso coisas que devero ser discutidas caso a caso. Seja como for, se tiver uma ideia,exponha, depois eu decido se deve ser desenvolvida ou no.

    Um dia depois Lucidi entrou na redao com um artigo praticamente pronto. Ahistria era a seguinte. Um conhecido seu tinha recebido uma carta com timbre daOrdre Souverain Militaire de Saint-Jean de Jrusalem Chevaliers de Malte PrieurOecumnique de la Sainte-Trinit-de-Villedieu Quartier Gnral de la Vallette Prieur de Qubec, oferecendo-lhe o ttulo de cavaleiro de Malta, mediante prviopagamento bastante generoso por diploma emoldurado, medalha, distintivo ebugigangas vrias. Lucidi ficou com vontade de verificar o assunto das ordens decavalaria e fez descobertas extraordinrias.

    Escutem, h em algum lugar um relatrio da polcia, no me perguntem comoconsegui, no qual so denunciadas algumas pseudo-ordens de Malta. Existem dezesseis,que no devem ser confundidas com a autntica Ordem Soberana e Militar Hospitalriade So Joo de Jerusalm, Rodes e Malta, que tem sede em Roma. Todas tm quase omesmo nome com variaes mnimas, todas se reconhecem e desconhecemreciprocamente. Em 1908 alguns russos fundaram uma ordem nos Estados Unidos,que nos anos mais recentes foi dirigida por Sua Alteza Real prncipe Roberto PaternAyerbe Aragona, duque de Perpignan, dirigente da casa real de Arago, pretendenteao trono de Arago e Baleares, Gro-Mestre das ordens do Colar de Santa gata dosPatern e da Coroa Real das ilhas Baleares. Mas em 1934 um dinamarqus se separadesse tronco e funda outra ordem, entregando sua chancelaria ao prncipe Pedro daGrcia e da Dinamarca. Nos anos sessenta um desertor do tronco russo, Paul deGranier de Cassagnac, funda uma ordem na Frana e escolhe como protetor o ex-reiPedro II da Iugoslvia. Em 1965 o ex-rei Pedro II da Iugoslvia briga comCassagnac e funda em Nova York outra ordem, e o prncipe Pedro da Grcia e daDinamarca se torna seu Gro-Prior. Em 1966 aparece como chanceler da ordem certoRobert Bassaraba von Brancovan Khimchiachvili, que no entanto excludo e vaifundar a ordem dos Cavaleiros Ecumnicos de Malta, cujo Protetor Imperial e Real serdepois o prncipe Henrique III Constantino de Vigo Aleramico Lascaris Palelogo deMonferrat. Este diz ser herdeiro do trono de Bizncio, prncipe da Tesslia, e depois

  • funda outra ordem de Malta. Em seguida encontrei um protetorado bizantino, criadopelo prncipe Carol da Romnia, separado dos Cassagnac; um Gro-Priorado que temum tal Tonna-Barthet como Gro-Bailio e o prncipe Andr da Iugoslvia, j gro-mestre da ordem fundada por Pedro II, como gro-mestre do Priorado da Rssia (quedepois se tornar Gro-Priorado Real de Malta e Europa). H tambm uma ordemcriada nos anos setenta por certo baro de Choibert e por Vittorio Busa, ou entoViktor Timur II, arcebispo ortodoxo metropolitano de Bialystok, patriarca da disporaocidental e oriental, presidente da Repblica de Danzig e da Repblica Democrtica daBielorrssia, Gro-Khan da Tartria e da Monglia. E h tambm um Gro-PrioradoInternacional criado em 1971 pela j citada Sua Alteza Real Roberto Patern, com obaro marqus de Alaro, que vir a ter como Gro-Protetor em 1982 outro Patern,dirigente da Casa Imperial Leopardi Tomassini-Patern de Constantinopla, herdeiro doImprio Romano do Oriente, consagrado legtimo sucessor pela Igreja CatlicaApostlica Ortodoxa de rito bizantino, marqus de Monteaperto, conde palatino dotrono da Polnia. Em 1971 aparece em Malta a Ordre Souverain Militaire de Saint-Jean de Jrusalem (que aquela da qual parti), de uma ciso da ordem de Bassaraba,sob a alta proteo de Alexandre Licastro Grimaldi Lascaris Comneno Ventimiglia,duque de La Chastre, prncipe soberano e marqus de Dols, e seu Gro-Mestre agora o marqus Carlo Stivala de Flavigny, que, com a morte de Licastro, associouPierre Pasleau, que assume os ttulos de Licastro, alm dos de Sua Grandeza oArcebispo Patriarca da Igreja Catlica Ortodoxa belga, Gro-Mestre da OrdemSoberana e Militar do Templo de Jerusalm e Gro-Mestre e Hierofante da OrdemManica Universal de rito oriental antigo e primitivo de Mnfis e Misraim reunidos.Estava esquecendo, para ficar por dentro seria possvel tornar-se membro do Prioradode Sio, como descendente de Jesus Cristo, que se casa com Maria Madalena e setorna fundador da estirpe dos merovngios.

    S os nomes desse pessoal j seriam notcia disse Simei, que estava tomandonotas, deliciado. Pensem, senhores, Paul de Granier de Cassagnac, Licastro (comoera mesmo?) Grimaldi Lascaris Comneno Ventimiglia, Carlo Stivala de Flavigny...

    ... Robert Bassaraba von Brancovan Khimchiachvili lembrou Lucidi,triunfante.

    Acho que muitos leitores nossos podem ter sido abordados alguma vez compropostas desse tipo, e isso os ajudaria a se defender dessas especulaes acrescentei.

    Simei teve um momento de hesitao e disse que queria pensar a respeito.

  • Evidentemente, no dia seguinte se informou e nos comunicou que o nosso editor erachamado de Comendador porque condecorado com a comenda de Santa Maria emBelm:

    Agora acontece que a ordem de Santa Maria em Belm outro engodo. Aordem autntica a de Santa Maria em Jerusalm, ou ento Ordo fratrum domushospitalis Sanctae Mariae Teutonicorum in Jerusalem, reconhecida pelo AnurioPontifcio. verdade que nessa altura eu no confiaria nem nesta, com todos os rolosque acontecem no Vaticano, mas em todo caso certo que um comendador de SantaMaria em Belm como se fosse o prefeito de Bengodi. E querem publicar umareportagem que lana uma sombra de suspeita, ou at de ridculo, sobre a comenda donosso Comendador? Que cada um fique com suas iluses. Lamento, Lucidi, mas vamosprecisar derrubar o seu belo artigo.

    Est dizendo que, para cada artigo, vamos precisar verificar se do agrado doComendador? perguntou Cambria, como sempre especializado em perguntasidiotas.

    S pode ser assim respondeu Simei , ele o nosso acionista de referncia,como se costuma dizer.

    Nesse momento Maia criou coragem e falou de uma possvel investigao sua. Ahistria era a seguinte. Pelos lados da Porta Ticinese, numa zona que estava setornando cada vez mais turstica, havia uma pizzaria-restaurante chamada Paglia eFieno. Maia, que mora em Navigli, passava por ali havia anos. E havia anos aquelapizzaria, enorme, tanto que das vidraas era possvel avistar pelo menos cem mesas,estava sempre desoladamente vazia, afora alguns turistas tomando caf nas mesinhasexternas. E no que fosse um estabelecimento abandonado, Maia tinha ido uma vez,por curiosidade, e viu que estava sozinha, com exceo de uma famlia pequena, vintemesas adiante. Tinha justamente pedido um prato de paglia e fieno, uma garrafapequena de vinho branco e uma torta de ma, tudo excelente e a preo razovel, comgarons gentilssimos. Ora, algum que administre um estabelecimento to grande,com pessoal, cozinha e assim por diante, aonde no v ningum durante anos a fio, sefor ajuizado dever se desfazer dele. No entanto, Paglia e Fieno continua aberto, diaaps dia, h uns dez anos, trs mil seiscentos e cinquenta dias ou por a.

    Por trs disso tem mistrio observou Costanza. Nem tanto reagiu Maia. A explicao evidente, um comrcio que

    pertence trade, ou mfia, ou camorra, foi comprado com dinheiro sujo econstitui um bom investimento luz do dia. Mas, vocs diro, o investimento j est

  • dado pelo valor daquele espao e eles poderiam mant-lo fechado, sem pr maisdinheiro. S que no, est em funcionamento. Por qu?

    Por qu? perguntou o habitual Cambria.A resposta revelou que a cabecinha de Maia funcionava: O estabelecimento serve para lavar no dia a dia o dinheiro sujo que vai entrando

    constantemente. Voc serve os pouqussimos fregueses que aparecem todas as noites,mas todas as noites emite uma srie de recibos, como se tivessem aparecido centenasde fregueses. Declarada a receita, voc faz o depsito no banco, e talvez, para no darna vista co