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Nunca fui tão trabalhador em saúde quanto naquele dia Dênis Roberto da Silva Petuco O trabalho em saúde sempre rende histórias extremamente interessantes. Podem ser histórias engraçadas, ou mesmo tocantes, plenas de emoção. Seja no trabalho, seja nas lutas cotidianas por melhores condições de trabalho e renda, o cotidiano dos trabalhadores de saúde é fonte inesgotável de “causos” e de histórias para serem contadas nos jantares e nas mesas de bares, regadas a bebidas, amizades e petiscos. Porque a construção de saberes - na saúde e na vida - dá-se assim: no cotidiano, na partilha, nos sorrisos, olhares e emoções. Tornamo-nos trabalhadores de saúde na partilha solidária com nossos amigos, companheiros de pão, vinho e reflexão. E de trabalho. A história que vou contar fala de um desses trabalhadores. Um que, em face de sua atividade peculiar, acaba acumulando histórias de uma qualidade diferenciada. Trata-se do redutor de danos, que atua de maneira semelhante ao agente comunitário de saúde, visitando comunidades e conversando com as pessoas nos seus locais de moradia e de convívio. O que diferencia o redutor de danos de um agente comunitário é o público ao qual seu trabalho está voltado, formado por pessoas que usam drogas. Cabe a esse agente inserir-se em redes clandestinas, para construir uma rota de aproximação com essa população, de modo a possibilitar a construção de relações de vínculo e confiança. A partir desse momento, o agente redutor de danos busca construir junto ao seu público-alvo ações que passam pela prevenção em DST/Aids e pela promoção de saúde e cidadania. Tais ações, durante alguns anos, resumiram-se – aparentemente - à troca de seringas sujas por limpas, como forma de prevenir a transmissão do HIV e do HCV entre pessoas que usavam drogas injetáveis e suas redes sociais. Digo aparentemente porque, já naqueles dias, havia aqueles que percebiam que as necessidades das pessoas que usam drogas – especialmente

NUNCA FUI TÃO TRABALHADOR DE SAÚDE QUANTO NAQUELE DIA (Dênis Petuco)

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Relato sobre uma noite de trabalho de campo em Redução de Danos.

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Nunca fui tão trabalhador em saúde quanto naquele diaDênis Roberto da Silva Petuco

O trabalho em saúde sempre rende histórias extremamente interessantes. Podem ser

histórias engraçadas, ou mesmo tocantes, plenas de emoção. Seja no trabalho, seja nas lutas

cotidianas por melhores condições de trabalho e renda, o cotidiano dos trabalhadores de

saúde é fonte inesgotável de “causos” e de histórias para serem contadas nos jantares e nas

mesas de bares, regadas a bebidas, amizades e petiscos. Porque a construção de saberes - na

saúde e na vida - dá-se assim: no cotidiano, na partilha, nos sorrisos, olhares e emoções.

Tornamo-nos trabalhadores de saúde na partilha solidária com nossos amigos,

companheiros de pão, vinho e reflexão. E de trabalho.

A história que vou contar fala de um desses trabalhadores. Um que, em face de sua

atividade peculiar, acaba acumulando histórias de uma qualidade diferenciada. Trata-se do

redutor de danos, que atua de maneira semelhante ao agente comunitário de saúde,

visitando comunidades e conversando com as pessoas nos seus locais de moradia e de

convívio. O que diferencia o redutor de danos de um agente comunitário é o público ao

qual seu trabalho está voltado, formado por pessoas que usam drogas. Cabe a esse agente

inserir-se em redes clandestinas, para construir uma rota de aproximação com essa

população, de modo a possibilitar a construção de relações de vínculo e confiança. A partir

desse momento, o agente redutor de danos busca construir junto ao seu público-alvo ações

que passam pela prevenção em DST/Aids e pela promoção de saúde e cidadania. Tais

ações, durante alguns anos, resumiram-se – aparentemente - à troca de seringas sujas por

limpas, como forma de prevenir a transmissão do HIV e do HCV entre pessoas que usavam

drogas injetáveis e suas redes sociais. Digo aparentemente porque, já naqueles dias, havia

aqueles que percebiam que as necessidades das pessoas que usam drogas – especialmente

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em um país miserável como o nosso – estão muito além da simples seringa esterilizada

como forma de prevenir infecções. Graças a esses visionários, o programa, hoje em dia,

desenvolve todo um conjunto de estratégias, que incluem sessões de terapia comunitária, a

aproximação dos usuários com outros serviços de assistência, bem como a escuta e a

sensibilização para a adesão ao tratamento da Aids e hepatites.

Antes de prosseguir com esta história, talvez seja preciso compartilhar uma reflexão que me

faz utilizar a longa expressão “pessoas que usam drogas”, em detrimento de outras, como

“usuários”, “drogaditos”, “adictos”, “dependentes químicos”, “viciados”. Este tipo de

reflexão tem ocupado um lugar importante nos debates do campo da saúde, nos últimos

anos. Para além do mero debate semântico, o que se busca aqui é a construção de um

dispositivo que contribua para produzir processos de desnaturalização acerca de questões

em nada óbvias. Utilizando a longa expressão “pessoas que usam drogas”, busco deixar

claro que falamos aqui de uma grande diversidade de pessoas, que têm em comum o uso de

substâncias designadas como drogas. Afora esse traço unificador, todo o resto é

diversidade: há os que usam drogas lícitas como álcool e tabaco; há os que usam drogas

diariamente, em grandes quantidades, e os que se utilizam delas de modo mais espaçado; há

os que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade social (público preferencial

dos programas de Redução de Danos, em razão do princípio da eqüidade), e os que fazem

parte de classes sociais mais privilegiadas. Todos usam drogas, mas definir essas pessoas

como “usuários de drogas” seria reduzi-las e um aspecto muito pequeno de suas vidas. Para

muitos deles, este aspecto está longe de ser o eixo conformador de suas subjetividades.

Voltando aos redutores de danos: a Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal

de Porto Alegre desenvolve, desde 1995, ações de Redução de Danos desenvolvidas por

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uma equipe de dez agentes que, de segunda à sexta-feira, vão a diversas comunidades, nos

locais e nos horários em que é possível encontrar pessoas que usam drogas reunidas. À

semelhança do que ocorre com os agentes comunitários, esses trabalhadores são

selecionados a partir de critérios que levam em consideração seus conhecimentos acerca do

universo no qual precisam inserir-se. Sendo assim, muitos dos redutores de danos são

homens e mulheres que usam ou usaram drogas, ou que convivem muito de perto com a

realidade do uso, em função de suas trajetórias de vida familiar e comunitária. O objetivo

da Redução de Danos é promover saúde entre pessoas que usam drogas, e que não

conseguem ou não querem parar de usar. A abstinência é uma das possibilidades no

itinerário terapêutico dessas pessoas, mas não a única.

A Redução de Danos, do modo como a conhecemos hoje, começou a surgir no fim dos anos

70, na cidade de Amsterdã. Naquela época, uma epidemia de hepatites, aliada à recusa de

algumas farmácias em vender materiais de injeção para pessoas que pudessem ser usuárias

de drogas, instigou um grupo de pessoas que usavam drogas injetáveis a se organizar para

exigir das autoridades sanitárias holandesas a criação de um programa de troca de seringas.

Sendo assim, é preciso dizer que uma das mais ousadas estratégias de promoção de saúde –

a troca de seringas dirigida a pessoas que usam drogas injetáveis, como forma de prevenção

da infecção pelos vírus da Aids e da hepatite – nasce não em no núcleo de pesquisas de

alguma universidade pública ou privada, mas da demanda dos próprios interessados no

serviço.

Trabalhei, por pouco mais de um ano, junto à equipe de redutores de danos de Prefeitura

Municipal de Porto Alegre, num período que foi de janeiro de 2004 a fevereiro de 2005.

Antes disso, já havia atuado em diferentes projetos de prevenção e de tratamento de pessoas

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que usam álcool e outras drogas, o que fez com que minha passagem, ainda que breve,

tenho tido alguma qualidade. Ao longo de treze meses, pude presenciar um sem número de

situações que resultaram em histórias que poderiam ser contadas aqui. Algumas

emocionantes, outras engraçadas, outras importantes para denunciar o grau de

vulnerabilidade a que estão sujeitos os usuários de drogas inseridos em um contexto de

pobreza e violência (estrutural, simbólica e objetiva). Escolhi uma dessas, em função de ser

a que primeiro me vêm à memória cada vez que lembro de minha experiência junto à

equipe de redutores. Uma história dentre tantas que povoavam as reuniões de segunda-feira,

quando redutores e redutoras se reuniam com a coordenação do programa para a partilha

semanal, que alimenta e orienta e prática cotidiana. Uma história que talvez não contemple

o desejo por emoções fortes, sempre associadas, no imaginário da população, ao trabalho

que se realiza em comunidades tradicionalmente vinculadas ao tráfico de drogas,

envolvidas com a transgressão e com a violência. Porém, se não há este teor de adrenalina,

por outro lado, apresenta-se como história bastante representativa daquilo que vive, em seu

cotidiano, o agente redutor de danos.

Toda quinta-feira à noite, eu e mais três colegas deixávamos o Centro de Saúde da Vila dos

Comerciários para um plantão que abrange uma parcela considerável do território da Vila

Cruzeiro do Sul, bem como as comunidades do Campo da Tuca e do Morro da Cruz. Ainda

hoje, há um roteiro diferente de áreas a cada dia da semana, nas quais se realiza o “trabalho

de campo”, que é o modo como redutores e redutoras se referem à atividade de busca ativa

por pessoas que usam drogas e suas redes sociais, diretamente no território. Essa atividade

inclui uma série de ações, que vão da troca de seringas sujas por limpas à distribuição de

preservativos junto às comunidades visitadas. Nesse trabalho, um personagem que cumpre

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um papel importantíssimo é o parceiro do programa. Trata-se de uma pessoa que, por

diferentes razões, apresenta-se como voluntário na multiplicação de ações e informações de

redução de danos junto a uma parcela específica da comunidade onde está inserido. O

parceiro pode ser uma liderança comunitária, um usuário de drogas, ou até mesmo um

pequeno comerciante local. Em uma dessas comunidades, uma de nossas parceiras era

Regina*.

Regina era uma modesta traficante de drogas da Vila Piracema**, ainda que a própria

utilização do termo “traficante” seja complicada se falamos de Regina. Muito mais vítima

do que algoz, ela vendia crack e cocaína como meio de sustentar suas filhas, e também sua

dependência. Vítima diante do fato de ser uma mulher pobre em um país machista e

desigual, e vítima diante de sua própria condição de consumidora abusiva de crack. Estas

distintas vulnerabilidades – pobreza, condição de gênero e dependência química –

alimentavam-se mutuamente, criando uma sinergia de vulnerabilidades que contribuía para

que Regina se sentisse uma pessoa sem perspectivas, vivendo um dia depois do outro, sem

sonhos nem esperanças.

Quando comecei a participar dos plantões de quinta-feira, Regina já era parceira do

programa havia muito tempo. Portanto, tudo o que posso contar diz respeito tão somente ao

período em que pude conviver com ela, nos breves momentos em que passávamos na sua

casa, toda quinta-feira à noite. Consciente de seu papel, assim que começaram as primeiras

pesquisas com o uso de cachimbos como dispositivo de promoção de saúde junto a pessoas

que usam crack, Regina questionava-se: seria aquilo bom para o cuidado, ou apenas uma

forma de incentivo ao uso? Mas, mesmo assim, e diferente da maioria dos outros parceiros

em outras comunidades, ela jamais nos convidava a entrar em sua casa. Nós a chamávamos:

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ela se dirigia à calçada, alcançava a caixa recheada de seringadas usadas, e pegava o kit

com seringas limpas, agulhas, água destilada, swabs com álcool, folhetos e preservativos

que seriam disponibilizados aos seus conhecidos.

Mas houve uma noite em que as coisas não aconteceram desse jeito. Era cerca de nove

horas da noite quando chegamos na casa de Regina, depois de termos passado por algumas

outras vilas e visitado alguns outros parceiros. Como sempre, paramos em frente à sua casa,

e chamamos seu nome. Esperamos um pouco, até que a vimos aparecer junto à porta de sua

casa. Importante dizer que entre a porta e o portão inexistente (o que havia era uma abertura

em meio ao muro), existia algo em torno de três metros, e que a casa situava-se abaixo do

nível da calçada, de modo que, quando ela apareceu à porta, nós tivemos de olhar para

baixo. Regina então fez um sinal, e nos convidou a entrar.

Entramos. O cheiro metálico denunciava que ela havia acabado de fumar uma pedra de

crack. A TV estava ligada em um volume muito alto. Regina nos recebeu na sala, onde

havia, além da TV, um sofá de três lugares, e uma poltrona que fazia conjunto com o sofá.

Sentei-me no tapete. Quanto aos meus colegas de equipe, um estava na casa de um outro

parceiro, poucos metros abaixo, na mesma rua, enquanto que os outros dois estavam ali

comigo: um ocupando a poltrona, e o outro em pé, na porta.

Regina estava muito louca1, e passou a falar desorganizada e compulsivamente. Falou

sobre seus filhos, e sobre o modo como conseguiu evitar que esses lhe fossem retirados

pelo Conselho Tutelar. Falou sobre violência policial, e sobre abuso sexual, nos intimando

a responder se achávamos que um homem tinha o direito de passar a mão em uma mulher

1 No Rio Grande do Sul, diz-se “muito louco” da pessoa que está sob efeito de uma ou mais drogas.

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apenas por ser policial militar. Falou sobre amigos e amigas que morreram em função da

Aids, da droga e da violência. Falou muito, verborragicamente, misturando os assuntos de

modo que um tema se transformava em outro repentinamente, para retornar ao ponto

original de maneira igualmente repentina logo em seguida. Falou durante muito tempo,

misturando sua voz aos reclames que interrompiam de tempos em tempos a novela das oito.

É comum que se ouça de pessoas que atuam no campo do cuidado a usuários de álcool e

outras drogas, que se torna impossível realizar uma escuta mais qualificada quando temos à

nossa frente uma pessoa sob forte efeito de alguma substância psicoativa. Diz-se que a fala

se torna desorganizada, e que não há nenhum ganho, nenhuma possibilidade terapêutica em

tal evento. Por outro lado, li certa feita que Jung ficava por horas ouvindo pessoas

consideradas absolutamente loucas, buscando identificar algum sentido nas frases

aparentemente desconexas proferidas por aqueles sujeitos Lembro que eu mesmo, em um

outro momento de minha vida, numa visita realizada a Unidade Mário Martins do Hospital

Psiquiátrico São Pedro, fiquei por alguns momentos ouvindo uma mulher de cerca de

cinqüenta anos que parecia não falar coisa com coisa. Fiquei a ouvindo, até que em

determinado momento, ela falou na Fazenda Annoni2. Uma emoção muito forte tomou

conta de mim quando lhe perguntei se ela tinha trabalhado na Fazenda e se tinha

participado da ocupação. Ela parou de falar com tanta rapidez, olhou para mim, e como que

por mágica, passou e contar muito calmamente sobre como trabalhava com seus irmãos, e

sobre como participava das plenárias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Foi um momento muito, muito especial.

2 Em outubro de 1985, o MST organizou a ocupação da Fazenda Annoni, com mais de 1.500 famílias. Foi um dos mais importantes momentos da história das lutas sociais no Rio Grande do Sul.

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Voltando à nossa amiga Regina, eu posso dizer que não houve um momento específico em

que a interrompi para tomar o sentido de alguma das frases ditas. Até mesmo porque não

havia nenhuma necessidade disso: tudo o que ela dizia fazia sentido, e bastava que se

aguçasse o ouvido, prestando bastante atenção diante da torrente incessante de palavras que

saíam de dentro daquela mulher, para que se compreendesse exatamente de que ela estava

falando.

Uma multiplicidade imensa de dores, de desesperos, de mágoas, vinha como que num jorro

de loucura e raiva, de tristeza e desesperança. Regina falava, e era como se quisesse apenas

ouvir a própria voz. Ela não olhava para nenhum de nós; apenas falava, e sua fala era a fala

de milhares de mulheres, com suas histórias de violência, abuso e sofrimento. Sua fala era a

fala de milhares de usuários de drogas, com suas individualidades jogadas na vala comum

do preconceito e da incompreensão, demonizados sob o rótulo homogeneizante que julga a

todos traficantes, condenando-os à invisibilidade e à criminalidade.

Até que parou. Em um determinado momento, talvez para tomar fôlego, ou talvez diante de

uma súbita memória ainda mais atroz do que qualquer uma já dita, Regina parou, e pela

primeira vez levantou seus olhos procurando algum interlocutor. Encontrou os meus, e

houve por um momento uma aura de cumplicidade. Melhor dizendo: de conspiração. Por

alguns segundos, respiramos juntos, e sabíamos exatamente o que deveria ser feito. Eu me

arrastei para um pouco mais perto do sofá, e peguei sua mão, e ela chorou um choro mudo

que fazia com seu corpo tremesse e seu rosto enrugasse. Eu permaneci ali, segurando sua

mão, e pensando que o mundo não é um bom lugar para se viver quando se é pobre e

sensível. Até que depois de algum tempo, ela abriu os olhos, e finalmente derramou

algumas lágrimas, crispando os lábios. Eu acariciei sua mão, olhei nos seus olhos e sorri

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um sorriso que queria dizer: “Ei! Você sabe que nós estamos aqui, não é? Sabe que te

entendemos, e que jamais iremos te julgar, não é?”. E ela entendeu (ou pelo menos eu acho

que entendeu), e me devolveu um sorriso tímido. Eu acariciei sua mão, e lhe disse que

precisávamos ir, pois havia ainda outras áreas e outras pessoas esperando por nós. Ela

assentiu com a cabeça, e sorriu de novo, fungando e esfregando os olhos, secando as

lágrimas do rosto. Eu levantei, ela levantou, e nos abraçamos por algum tempo. Um de

meus colegas chegou mais perto e lhe deu um beijo na face, reiterando que na próxima

semana estaríamos ali novamente. Ela sorriu, olhou para o chão e agradeceu nossa visita.

Regina ficou parada no meio da sala, enquanto íamos embora. Ficou nos olhando, sem nos

acompanhar até o portão. Caminhamos todos em silêncio até o furgão que nos esperava

para levar-nos até o Campo da Tuca, e depois para o Morro da Cruz. Numa casa, bem

próxima de onde estava a camionete, duas jovens ouviam funk em pleno volume, ensaiando

alguns passos.

Não existe nenhum curso, nenhuma formação específica que habilite uma pessoa a atuar

como redutor de danos. Para muitos de nós, mais ou menos como para os agentes

comunitários de saúde, é o modo como significamos nossa própria história de vida que faz

com que nos aproximemos do trabalho em saúde. Mas, parafraseando Simone de Beauvoir,

eu poderia dizer que ninguém nasce pronto, e que é preciso tornar-se trabalhador de saúde.

E eu nunca fui tão trabalhador de saúde quanto naquele dia.

* O nome real da personagem foi preservado, sendo alvo de sigilo.

** O nome real da comunidade foi preservado, sendo alvo de sigilo.

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