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RIO DE JANEIRO, V.18, N.1, P.21-39, 2011 | ETHICA 21 O ACONTECIMENTO ENTRE MILAGRE E POSSIBILIDADE: A HIPÓTESE COMUNISTA SEGUNDO ALAIN BADIOU GUSTAVO CHATAIGNIER GADELHA 1 RESUMO O texto problematiza a teoria do “acontecimento” segundo Alain Badiou, contrapondo-a com uma perspectiva que historiciza aquilo que aparece. O procedimento subjetivo de investigação, segundo o qual a filosofia extrai a posteriori relações das coisas, garante a autonomia das diversas facetas da realidade prática. Em Badiou, se trata da política, do amor, da arte e da ciência. Todavia, a irrupção da novidade, que desorganiza as forças presentes e exige uma reconfiguração do regime do aparecer, finda por justificar o fato consumado, dando inesperada sobrevida às filosofias mecânicas da história. Uma filosofia relacional e que entende o tempo enquanto multiplicidade de ritmos aliada a diferentes camadas e alcances de passado, presente e futuro pode compreender a dinâmica do acontecimento enquanto uma conjuntura histórica – assim relacionando continuidade e ruptura. PALAVRAS-CHAVE: acontecimento, história, filosofia francesa, comunismo ABSTRACT The text discusses the theory of “the event” according to Alain Badiou, contrasting it with a perspective that historicizes the phenomenon. The subjective procedure of research, according to which philosophy draws a posteriori relations of things, guarantees the autonomy of the various facets of practical reality. In Badiou, it comes to politics, love, art and science. However, the emergence of novelty, which disrupts present forces and requires a reconfiguration of the appearance regime, leads to the justification of a fait accompli, giving unexpected survival to mechanical philosophies of history. Nevertheless, a philosophy that understands both relational issues and time as 1 Doutor em Filosofia pela Université de Paris VIII. Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, na cadeira de Estética da Comunicação de Massas. Email: [email protected].

O Acontecimento entre Milagre e Possibilidade - a Hipótese Comunista Segundo Alain Badiou

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O AcOntecimentO entremilAgre e POssibilidAde:

A HiPótese cOmunistAsegundO AlAin bAdiOu

GUSTAVO CHATAIGNIER GADELHA1

Resumo O texto problematiza a teoria do “acontecimento” segundo Alain Badiou, contrapondo-a com uma perspectiva que historiciza aquilo que aparece. O procedimento subjetivo de investigação, segundo o qual a filosofia extrai a posteriori relações das coisas, garante a autonomia das diversas facetas da realidade prática. Em Badiou, se trata da política, do amor, da arte e da ciência. Todavia, a irrupção da novidade, que desorganiza as forças presentes e exige uma reconfiguração do regime do aparecer, finda por justificar o fato consumado, dando inesperada sobrevida às filosofias mecânicas da história. Uma filosofia relacional e que entende o tempo enquanto multiplicidade de ritmos aliada a diferentes camadas e alcances de passado, presente e futuro pode compreender a dinâmica do acontecimento enquanto uma conjuntura histórica – assim relacionando continuidade e ruptura.Palavras-Chave: acontecimento, história, filosofia francesa, comunismo

AbstRAct The text discusses the theory of “the event” according to Alain Badiou, contrasting it with a perspective that historicizes the phenomenon. The subjective procedure of research, according to which philosophy draws a posteriori relations of things, guarantees the autonomy of the various facets of practical reality. In Badiou, it comes to politics, love, art and science. However, the emergence of novelty, which disrupts present forces and requires a reconfiguration of the appearance regime, leads to the justification of a fait accompli, giving unexpected survival to mechanical philosophies of history. Nevertheless, a philosophy that understands both relational issues and time as 1 Doutor em Filosofia pela Université de Paris VIII. Professor do Departamento

de Comunicação Social da PUC-Rio, na cadeira de Estética da Comunicação de Massas. Email: [email protected].

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the multiplicity of rhythms combined with different layers and scope of past, present and future can understand the dynamics of the event as a historical juncture – as finally relating continuity and rupture.

Keywords: event, history, French philosophy, communism

A iniciativa do professor Norman Madarasz de inserir em um colóquio em torno do pensamento francês contemporâneo uma mesa dedicada ao pensamento de Alain Badiou é por si só louvável e merecedora de reconhecimento por parte da comunidade filosófica carioca e, por que não, brasileira. Primeiramente, por se tratar de nome ainda pouco conhecido em nossas universidades, pois pouco traduzido. Em seguida, pelo fato de que suas ideias sempre circulem ligadas à pressa característica dos meios de comunicação. Isso posto, organizam-se os primeiros debates a respeito de sua obra, o que pode ensejar uma salutar abertura no escopo dos estudos francofônicos.

Não sendo eu mesmo especialista no pensamento de Alain Badiou, arriscarei uma leitura menos analítica do que polêmica. Curioso, tento relacionar alguns de seus conceitos, notadamente o de “acontecimento”, com temas que desenvolvi em recente doutoramento, ligados ao pensamento sobre a história.

Nesse sentido, a admiração tanto de uma certa intransigência existencial/pulsional/ética/militante quanto o reconhecimento da impressionante capacidade de sistematização filosófica em Badiou são diluídos pela crítica ao abandono da história enquanto horizonte de pensamento2. Por isso, em nossa leitura, sugerimos momentos onde a historicidade do pensamento se demonstra arredia e clama por seus direitos, o que apontaria para limites e contradições no corpo do pensamento badiousiano. Que nos lembremos da caracterização da filosofia de Hegel tanto por Merleau-Ponty quanto por Foucault: para o primeiro, as grandezas da reflexão do século XX seriam todas devedoras de Hegel, passando desde Nietzsche e Freud até o marxismo e a fenomenologia3 (postura aliás próxima à de Karl Löwith em sua interpretação do século XIX4); para Foucault, na Ordem do discurso, é ainda tarefa da filosofia separar o que é e o que não é hegeliano, 2 Ainda que, segundo se lê nos sites de livrarias francesas, é previsto um lançamento

de um livro de Badiou dedicado exclusivamente à temática da história para agosto do ano corrente. Sintomático?

3 Sens et Non-sens. Paris: Gallimard, 1946, 1996, p.79. 4 De Hegel à Nietzsche. Tradução Rémi Laureillard. Paris: Gallimard/ Tel, (1969) 2003.

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sabendo do perigo de se encontrar Hegel mais adiante em alguma bifurcação e assim ser surpreendido por suas astúcias5. Ora, tal como o espírito hegeliano que parece rondar certa filosofia francesa, haveria um “impensado” no acontecimento segundo Alain Badiou? Nossa hipótese crê que sim e aposta na história.

Suas três principais obras de fundamentação teorética, Teoria do sujeito, Ser e acontecimento [ou evento] e Logiques des mondes6 se articulam com toda uma série de opúsculos sobre, por exemplo, Beckett, o cinema, e obras de situação, de circunstância. Nessa última seara, se inscrevem títulos recentes, como a coletânea de artigos L’hypothèse communiste7 (2009) e uma análise dos modos de subjetivação dominantes que teriam levado o atual presidente francês, Nicolas Sarkozy, ao poder – De quoi Sarkozy est-il le nom?, obra de 2007 que, de certa forma, popularizou Badiou no território hexagonal e o fez circular até nos grandes meios de comunicação8.

Se Badiou se reclama tanto de Platão e Mao Tse-Tung quanto de Lacan, tanto de Sartre e Rousseau quanto das matemáticas e de Pascal, sugerimos como hipótese de investigação os paralelos da influência – assumida – exercida por um de seus maître à penser, Louis Althusser, em conjunto com a racionalidade negativa e uma ambiência marxisante. Duas das principais obras de Badiou – a saber, Être et Événement e Logique des Mondes – discorrem amplamente acerca das regras do aparecer onde o universal concreto abre uma via no regime do Ser, constatação esta que autoriza uma aproximação com o pensamento negativo. Discorreremos portanto sobre as bases da teoria do acontecimento, munidos sobretudo em Être et Événement, obra que fornece a formalização do que posteriormente será batizado por seu autor como “hipótese comunista”.

5 L’Ordre du Discours. Paris: Gallimard, 1971, p. 74-5.6 Logiques des mondes. L’Être et l’Événement 2. Paris: Seuil, 2006.7 L’Hypothèse Communiste – Circonstances 5. Paris: Nouvelles Editions Lignes,

2009.8 De quoi Sarkozy est-il le Nom ? - Circonstances 4. Paris: Nouvelles Editions Lignes,

2007. A qual realidade se liga a figura individual de Sarkozy? Em termos mais badiousianos, qual ideia fala por meio dessa figura? Ora, o transcendental do medo, continuidade constatada desde a República de Vichy até a remodelagem do discurso xenófobo e a passagem dos votos do Front National à UMP, partido do mandatário em questão. A bandeira do regime de Pétain não nos deixa enganar: a inclusão de um machado com os dizeres “trabalho, família e pátria” no bleu, blanc et rouge nos ajuda a compreender que nem todos os franceses participaram da heroica resistência. Muito pelo contrário – fato que toca numa ferida coletiva do imaginário francês.

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A tese althusseriana de um “corte epistemológico” verificável em Marx (no ano de 18459) é deixada de lado, em prol de considerações a propósito de uma “filosofia do vazio”. Nela, cujas fontes remontam à “aposta” pascalina, toda pretensão mecanicista de realização de um espírito absoluto é criticada – posto que a filosofia nada faz. Ela é uma “enquete”, um procedimento de pesquisa, eminentemente subjetivo, posterior ao acontecimento intrusivo que desloca limites e reformula normas. Segundo Althusser, um ponto, a “teoria geral”10, determinaria as demais posições subjetivas e as inovações de ordem epistêmica. Aquilo que em Althusser responde a uma necessidade de politização dos discursos, das chamadas “prises de parole”11, em Badiou vai ser o fiador da eternidade da ideia, o desmentido de sua historicidade12.

No primeiro volume de sua ontologia13, Être et Événement, Badiou, se reclama da “canônica hegeliana”, exposta no desenvolvimento de uma “Grande Lógica”14; em recente apresentação

9 ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965, p. 27.10 ALTHUSSER, Louis. “Notes sur la Philosophie” in Écrits Philosophiques et

Politiques 2. Paris: Stock/ IMEC, 1995, pp. 301-302.11 Expressamente assumindo a influência da teoria da sobredeterminação, Badiou

pensa que as “sobredeterminações de acontecimento” engendram o “vir a ser principal daquilo que é não-principal”. Consequentemente, lidamos com a “matéria real da tomada de posição”, onde o militante assume as consequências do fato de ter sido escolhido (é-se, para dizer com Badiou, “fiel”). A sobredeterminação instaura e nomeia o “lugar político”: ela “(...) põe o possível na ordem do dia, enquanto o lugar econômico (objetividade) é aquele da estabilidade regulada, e que o lugar estatal (subjetividade ideológica) faz ‘funcionar’ os indivíduos” (BADIOU, Alain. Abrégé de Métapolitique. Paris: Seuil, 1998, pp. 74-5).

12 Em Réponse à John Lewis, a filosofia é entendida por Althusser como a “luta de classes na teoria”, ou, ainda, como “a política na teoria” (ALTHUSSER, Louis. Réponse à John Lewis. Paris: François Maspero, 1973, p. 11 e 56) – note-se que é nesse mesmo texto que Althusser aborda a história como um “processo sem sujeito”. Mesmo desde o interior do pensamento marxisante, uma leitura mais atenta pode, ao invés de comemorar a supremacia de uma corrente que lhe seria próxima, optar por uma visão crítica. Foi assim que a interpretou Daniel Bensaïd: a redução pouco dialética de um termo ao outro só foi possível porque seu autor só era capaz de abordar a política por meio da filosofia, o que estaria em continuidade com a autocrítica do “cientificismo” da teoria do “corte”. Em realidade, a prática aí evocada é uma “prática teórica”, ou uma “intervenção filosófica dentro de uma conjuntura teórica” (BENSAÏD, Daniel. “Louis Althusser et le Mystère de la Rencontre” in Résistances – Essai de Taupologie Générale. Paris: Fayard, 2001, p. 95-142).

13 O segundo volume é Logique des Mondes. Paris: Seuil, 2006. Entre eles, há ainda o Court traité d'Ontologie Transitoire. Paris: Seuil, 1998.

14 BADIOU, Alain. Être et Événement, Paris, Seuil, 1988, p. 364.

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em Londres, que originou a coletânea L’Idée du Communisme15 (2010), o filósofo francês confessa se ver próximo aos desenvolvimentos hegelianos de Žižek acerca de um real intrusivo16. A filosofia de Alain Badiou extrai relações das coisas, não podendo então por si mesma produzir “acontecimentos”; trata-se de uma filosofia que se quer radicalmente racional, cuja forma ideal não pode se inscrever senão no infinito matemático do número: é sempre medida do desmesurado. Se conjuntos de singularidades são possíveis, o que permite tal reunião é a presença constituinte do nada – o primeiro múltiplo é múltiplo de nada, diz Badiou. Isso se explica pois o múltiplo de alguma coisa seria, a priori, estático, sólido17.

Com efeito, são quatro os “procedimentos de verdade”18 ou de acontecimentos (estes como o começo daqueles, inauguradores do que esse autor compreende por historicidade, “blocos temáticos” decorrentes do acontecimento ou, em seus termos, “sequências”): o amor, a ciência, a arte e a política. Nesse espaço do encontro, o universal vazio pode ser preenchido pelo singular – sob o olhar da filosofia. Pensamos também na lógica da contradição e o “terceiro excluído” como, por assim dizer, “condição” filosófica: para além de oposição rasa e binária, há a relação entre termos e um meio de embate: uma oposição determinada se torna, posto que objetivada, uma “proposição” – cuja compreensão é possível graças à sua “subjetividade”, no sentido de autonomia19.

Para Étienne Balibar, outro “frequentador” de Althusser, Badiou tentou criar um conceito de verdade que fosse ao mesmo tempo sua própria história. Historicizar a relação da verdade com suas condições vem a ser reformular seus princípios. É preciso portanto reformular a questão em termos badiousianos: o “múltiplo puro”20 que emerge violentamente não possui o “Uno”, a forma, fato que explica a “radical singularidade das verdades”, sempre locais; além do mais, no outro extremo da cadeia, no sujeito, o excesso “se converte em princípio de fidelidade”. A questão é de se saber como essa dinâmica

15 BADIOU, Alain & ŽIŽEK, Slavoj (organizadores). Paris: Lignes, 2010.16 BADIOU, Alain. L’Hypothèse Communiste. op. cit., p. 187.17 BADIOU, Alain. Être et Événement. op. cit., p. 80-2.18 Os “procedimentos de verdade” são “indeterminados e completos”, (BADIOU,

Alain. Être et Événement. op. cit., p.23-4), o que pode trazer o debate para as searas da “atualização” ou “ativação”.

19 HEGEL. La Doctrine de l’Essence. op. cit., p. 79.20 O nada é presente e não faz unidade, ele a torna possível e nomeia; o primeiro múltiplo

é múltiplo do nada (BADIOU, Alain. Être et Événement. Paris: Seuil, 1988, p. 67-72).

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pode universalizar-se. Esse sujeito é estranho à consciência, sendo portanto “impessoal”. Contudo, dentre suas qualidades, conta-se a “fidelidade”: “fidelidade a um acontecimento que constitui o surgimento de um indiscernível, ele mesmo em excesso em relação aos saberes que seguem fielmente os procedimentos de enquete ou de conhecimento”. Mais explicitamente, temos uma “ligação sem causa, ligação de acaso, instituição de dependência sem condições de dependência”. O sujeito sendo “incondicionado”, o pensamento se volta ao caráter incondicionado da verdade, de cada verdade singular: o “não ser” da decisão, escreve Balibar, ou a “intervenção”21.

O “lugar” assinalado “mobiliza” os elementos presentes e se impõe enquanto fator determinante de apresentação. Esta a razão pela qual “o acontecimento é separado do vazio por si mesmo”, e podemos nomeá-lo como “ultra-uno”. A articulação entre o vazio, o ser, o lugar e o acontecimento emerge. Conceitualmente, basta se debruçar sobre o pertencimento à situação estabelecida como a “interposição dele mesmo [do acontecimento] entre o vazio e si próprio”. O acontecimento enquanto “ultra-uno” aparece sob o signo do “dois”, posto que ele é tanto a situação quanto a disputa com o vazio – do embate entre a consistência e a inconsistência surgem novas visibilidades. Numa outra hipótese, onde o acontecimento não mobiliza as forças disponíveis, temos tão somente o vazio que faz apelo à mobilização22 – de onde a evocação dos versos de Mallarmé: “Nada terá lugar [acontecerá] que não o lugar”23. O lugar é necessário, mas não suficiente, ao desenrolar do acontecimento. O site événementiel, ou sítio/lugar de acontecimento/acontecimental, permanece um mudo depositário da memória, da qual se servirá a enquete militante. Seus elementos não compõem a situação presente, mas sua mera presença se encontra “à beira do vazio”. Nem toda situação produz acontecimento – mas todo acontecimento emerge de uma situação histórica24.

Fiel a uma tradição política marxista que se subtrai ao Estado e não recua diante de mecanismos de dominação, a visada badiousiana

21 BALIBAR, Étienne. “Histoire de la vérité - Alain Badiou dans la Philosophie Française” in Alain Badiou – Penser le Multiple. Textos reunidos e editados por Charles Ramond – Actes du Colloque de Bordeaux, 21-21 outubro de 1999. Paris: L’Harmattan, 2002, p.508-9 e 514.

22 BADIOU, Alain. L’Être et l’Événement. op. cit., p. 207-8.23 MALLARME, Stéphane. Œuvres. Paris: Gallimard/ La Pléiade, 1998, p. 365.24 BADIOU, Alain. Être et Événement, op. cit., p. 199-205.

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não trocou tout court o legado marxista por um difuso “pluralismo”, mas, antes, teria apostado no universalismo. Assim, a “essência” da política não se encontraria nem na inconsistência da estrutura institucional e tampouco no “sentido” da história – mas, isto sim, do lado do acontecimento25. Isso posto, do ponto de vista da política, escreve Badiou, “a história como sentido não existe”, mas, continua, “somente a ocorrência periodizada dos a priori do acaso”26. Não poderíamos deixar de concordar com a primeira assertiva; contudo, é imperioso afirmar que o esvaziamento da categoria de objeto tornou-o todo poderoso e raro, digno de adoração.

Com efeito, a abdicação da universalidade nos leva ao “horror universal”27, como por exemplo a explosão de ódios arcaicos diante da falsa universalidade do capital ventríloco28. Tal parecer justifica a tese célebre segundo a qual a filosofia não é idêntica a seus procedimentos, ou que ela não faz acontecimento e não age sozinha: condicionada pela fidelidade do tempo de um acontecimento, “ela pode ajudar o procedimento que a condiciona, justamente porque dele depende, e se ligar portanto por mediação aos acontecimentos fundadores do tempo”. A “cesura de acontecimento”, cuja intervenção faz circular o nome excedente do referido acontecimento, “força a situação a acolhê-lo”; segue-se que a parte estranha à situação é normalizada, mas em outro nível. Para não deixar o acontecimento passar, é preciso mudar a linguagem da situação e sempre produzir o indiscernível29.

Com ajuda da leitura de Daniel Bensaïd, constata-se uma vacilação não confessada da parte de Badiou: em Teoria do sujeito, lê-se que a suspensão da norma em uma situação chega a “forçar o acaso quando o momento está maduro para a intervenção”30. Não sem razão, Bensaïd indica que uma tal “maturidade” aponta para uma “historicidade que o determina e o condiciona [o momento oportuno]”. Ora, para pensar além da pura irrupção, é preciso não se contentar com abstrações de uma “política por vir”: lidamos com uma história formada por diversas camadas, ritmos e espessuras (les épaisseurs).

25 TOSCANO, Alberto. “L’Expatriation du Marxisme ou le ‘Tournant’ d’Alain Badiou”, disponível no site www.marxau21.fr.

26 BADIOU, Alain. Peut-on Penser la politique?. op. cit., p. 67 e 18.27 BADIOU, Alain Théorie du Sujet. Paris: Seuil, 1982, p. 197.28 BENSAÏD, Daniel. “Alain Badiou et le Miracle de l’Événement”, disponível no site

www.marxau21.fr; trata-se, em verdade, de um capítulo de Résistances – Essai de Taupologie Générale. Paris: Fayard, 2001, p.143-70.

29 BADIOU, Alain. L’Être et l’Événement. op. cit., p. 375-7.30 BADIOU, Alain. Théorie du Sujet. op. cit., p. 187.

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Eis a razão pela qual a queda da Bastilha deve ser relacionada com a crise do ancien régime, os enfrentamentos e revoltas de 1848 aos contextos da urbanização e da modernização, a Comuna de Paris à crise do segundo império, Outubro de 1917 às desigualdades e especificidades russas, assim como aos desdobramentos da primeira guerra mundial31.

Se o não domínio das matemáticas e mesmo da obra de Badiou pode impedir uma leitura mais aprofundada de sua obra, podemos por certo buscar outras chaves interpretativas. É possível indagar-lhe “de quê é ela o nome”, a qual real se liga. Uma apropriação mais diretamente política se impõe desde o momento em que, munidos dos conceitos que acabamos de expor, perguntamos o que eles querem – o método é aplicado a seu autor.

A historicidade é posta de lado em benefício da eternidade. Um de seus alunos, Quentin Meillassoux, expõe assim a passagem que leva à supressão do tempo: “(...) só existe história do que é eterno, pois apenas o eterno procede do acontecimento”32. Por esse motivo, Bensaïd aproxima essa filosofia do “milagre”: ela permanece processual, “(...) mas um processo por inteiro contido no começo absoluto do acontecimento do qual ela é a fiel continuação”33. É em seu São Paulo que Badiou caracteriza o acontecimento sob a forma de uma “graça laicizada”34.

O esforço de se pensar, ao mesmo tempo, corte ou acontecimento ao lado da continuidade é, aos olhos de Bensaïd, uma tentativa de se conjugar a continuidade histórica com o aparecer, com o surgimento – ou seja, o ato e o processo. Nessa acepção, temos uma concepção de política: “Em política, se é constantemente levado a

31 BENSAÏD. “Alain Badiou et le Miracle de l’Événement”, op. cit. Há, contudo, quem diga que o passado em nada determina, baseando-se no argumento segundo o qual as ditas “práticas discursivas” se igualam a toda e qualquer “prática” em nome da positividade da linguagem. Esse assunto foi devidamente tratado em nosso artigo “O acontecimento segundo a história”, Revista Trilhas Filosóficas, UERN, ano III, n. 2, jul.-dez. 2010, www.uern.br/outros/trilhasfilosoficas. Numa outra perspectiva, a acumulação do capital não torna totalmente homogêneos os espaços por onde passa: o espaço liso não é senão uma tendência. As inegalidades, combinadas, sociais e locais, são o alimento mesmo do capital – que resolve seu movimento tendencialmente e evitando as paradas.32 MEILLASSOUX, Quentin. “Histoire et Événement chez Alain Badiou”, intervenção no seminário “Marx au XXI° siècle : l’Esprit & la Lettre”. Paris, 2 de fevereiro de 2008, disponível no site www.marxau21.fr.33 BENSAÏD. “Alain Badiou et le Miracle de l’Événement”, op. cit.34 BADIOU, Alain. Saint Paul. Paris: Seuil, 1997, p.89.

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pensar em conjunto, dentro de sua unidade contraditória, a ruptura e a continuidade, o acontecimento e a história, o ato e o processo”. Dito de outra maneira, choca-se com a “lógica narrativa própria a seus objetos (a história e o inconsciente)” e com o fato de que corte e acontecimento liberam mais histórias, nelas se inscrevendo35. O processo está ele também exposto à processualidade, explica Merleau-Ponty: os “devires-verdadeiros” são sempre inacabados36.

No contexto da “ocorrência periodicizada dos a priori do acaso” e da organização do tempo a partir de acontecimentos, Badiou elabora três sequências para a hipótese comunista em seu opúsculo homônimo. De início, a hipótese foi posta, inaugurada ; em seguida, tentou-se realizá-la. Por fim, em nossos dias, a filosofia badiousiana trata de restabelecer a hipótese em uma nova sequência.

Primeiramente, começa-se com a Revolução Francesa, cuja força se esgota com a destruição da Comuna de Paris. Em segundo lugar, a outra sequência vai da Revolução russa até o fim da Revolução chinesa; entre elas, estabeleceu-se um corte de quase meio século. Da organização popular, se passa ao problema da vitória. A forma subjetiva de fidelidade aos acontecimentos teria sido “militar”, o que aos olhos de Badiou parece ter sido determinante para consolidação e identificação entre partido e Estado37 – estruturalmente, portanto, economia e relações sociais se encontrariam impedidos de qualquer sorte de reformulação. É justamente o que a teoria do “encontro daqueles que não se encontram” sob os auspícios do acontecimento incondicionado quer conjurar – pois o papel da hipótese é levar à ação38.

O fantasma de Stálin se corporifica, quando, em entrevista ao jornal Libération, Badiou o saúda, pois, “em seu tempo, dava medo” aos capitalistas39. Bensaïd enxerga a razão desse “medo” em outras fontes, mais precisamente no “medo das massas” do Front Populaire e demais coalizões de esquerda no mundo. Sem o quê, convenhamos, Stálin se portou mais como um aliado da exploração capitalística. Basta nos lembramos do pacto germano-soviético, da partilha de Yalta e a indiferença soviética quanto à guerra civil espanhola40. Além do mais, por força de idealismo, tudo se resumiria a uma questão de software de operação...35 BENSAÏD, Daniel. “Louis Althusser et le mystère de la rencontre”, op cit.36 Les Aventures de la Dialectique. Paris: Gallimard, (1955), 1967, p. 114. 37 BADIOU, Alain. L’hypothèse communiste, op. cit., p. 177.38 BADIOU, Alain. De quoi Sarkozy est-il le Nom ?, op. cit., p. 139-55.39 Libération, 27 de janeiro de 2009.40 BENSAÏD. “Un Communisme Hypothétique”, op. cit., p. 110.

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No livro sobre a hipótese comunista, Badiou compara o comunismo às matemáticas, posto que ambas esferas pertenceriam ao domínio das ciências. É dado o exemplo do “teorema de Fermat”: “Para n maior do que 2, supõe-se que a equação x elevado a n + y elevado a n = z elevado a n não tenha soluções inteiras (soluções onde x, y e z sejam números inteiros)”. As quedas e recomeços na tentativa de resposta duraram três séculos, até que o matemático inglês Wiles demonstrou o teorema. Se os fracassos animam a vida científica voltada à demonstração de uma hipótese, eles não podem se constituir com seu abandono: tal fracassso não é senão a história de justificação dessa hipótese. Assim, refletir sobre esses percalços faz com que se ligue o pensamento a sua própria historicidade, e, de forma alguma, a uma interioridade, quer seja “pensante ou tática”. Decorre, segundo Badiou, que a política se coloca diante do “tribunal da História”, com “h” maiúsculo41. Os ares de “julgamento final” levam Daniel Bensaïd a não ver aí senão uma “filosofia progressista da História universal”, que conta com a “marcha” da humanidade, nos levando, de derrota em derrota, até a “vitória final”42: novas vestes do mito do progresso.

A palavra “comunismo”, desse ponto de vista, não poderia ser nem puramente política, nem puramente histórica, e tampouco puramente subjetiva ou ideológica: “com efeito, ela liga, para o indivíduo cuja ação sustenta, o procedimento político a outra coisa além de si mesmo”. Além disso, a História aparece como o “simbolismo vazio” de um “procedimento político efetivo”, inscrevendo-se na contingência (não sendo portanto “o” vazio). Finalmente, isso não se reduz apenas à subjetivação, visto que esta tem lugar “entre” a política e a história, “entre a singularidade e a projeção dessa singularidade no seio de uma totalidade simbólica”, o que instaura um regime de “decisão”. A idealidade do comunismo é garantida pela incorporação de uma “síntese da política, da história e da ideologia”. Contrariamente à sua recusa à história (como por exemplo em Teoria do sujeito), o “devir-Sujeito-político” é, paralelamente, sua própria “projeção na História”.

Notamos a partilha lacaniana entre o real, o imaginário e o simbólico. Em se seguindo o esquema segundo o qual o procedimento de pesquisa sobre a verdade é o real da ideia, para Badiou “a História

41 BADIOU, Alain. L’hypothèse communiste, op. cit., p. 11, 17-8.42 BENSAÏD, Daniel. “Un Communisme Hypothétique - à propos de ‘l’Hypothèse

Communiste’ d’Alain Badiou” in Contretemps – Revue de Critique Communiste. Paris: Syllepse, numéro 2, segundo trimestre 2009, p. 103-4.

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tem somente uma existência simbólica”. E isso porque, enquanto simbólica, ela não poderia aparecer. No interior de uma “construção narrativa a posteriori”, mesmo entendida como a “totalidade do devir dos homens”, a história não disporia de efetividade alguma: “Estaremos por fim de acordo que a subjetivação, que projeta o real no simbólico de uma História, não pode senão ser imaginária, pela razão capital que real algum se deixa simbolizar enquanto tal”. Segundo Lacan, só existe o real, “insimbolizável”. A narrativa histórica é portanto da ordem do imaginário. Talvez mais próximo a Ricœur e a Kracauer do que desejasse, Badiou sustenta que “a ideia expõe uma verdade em uma estrutura de ficção”. Isso explicaria, segundo essa leitura, as disputas de natureza “ideológica” – ou tudo aquilo concernente às ideias43.

Badiou quer resguardar a idealidade do comunismo e critica violentamente seu uso como simples adjetivação pejorativa: “Esse curto-circuito entre o real e a Ideia ensejou expressões que demandaram um século de experiências a um só tempo épicas e terríveis para compreender que eram mal formadas (...)”. Nadando contra a corrente, escreve Bensaïd, sua audácia “força” o respeito, posto que ele nomeia sem meias palavras o inimigo, cujas aspirações são liquidar e criminalizar os revolucionários44. Para combater essas apropriações, Badiou sustentava a inexistência da História, vista como mágica auto-realizadora da razão instrumental. Contudo, a essa altura, ele parece aqui fazer um tipo de autocrítica, ao menos parcialmente: ainda que sua teoria da verdade argumente que as apropriações dos acontecimentos não detêm “sentido” e consequentemente história, Badiou tem a preocupação de “precisar” esse “veredito”: sem “real algum” seria “transcendentalmente verdadeiro” que a história simplesmente não existe, pois sua lei não é uma lei da descontinuidade – ponto por si só altamente discutível. Porém, continua o autor, a “ação política organizada” sobre a qual se funda a “Ideia” erige a convergência de real, simbólico e ideológico em um ponto singular. Essa mediação subjetiva desaprova “toda coalescência imediata” com a ideia, toda fusão entre teoria e prática.

O movimento político que busca colocar-se de lado tanto daquilo que é oficial quanto do que é imediatamente reconhecível e

43 Ibidem, p. 183-4 e 186-9. Ver RICŒUR, Paul. Temps et Récit I et III. Paris: Éditions du Seuil, 1983 e 1985; KRACAUER, Siegfried. L’Histoire – les Avant-dernières Choses. Tradução Claude Orsoni. Paris: Éditions Stock, 2006.

44 BENSAÏD, “Un Communisme Hypothétique”, op. cit., p. 103.

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catalogado visa com esse expediente a evitar o poder que corrompe, permanecendo totalmente do lado do acontecimento, sem se ater à história. Desde então, a hipótese comunista se erige como “ideia”, e não como “estratégia”45. O que se ganha em “extensão” ou em “eternidade” é perdido em precisão, justamente histórica. Falta-lhe, argumenta Bensaïd, a noção de contradição – pois a explosão pode ser detonada do interior46. Ainda sobre os movediços terrenos da história, Badiou sustenta que uma sequência termina por “saturação”, numa entrevista concedida à revista Contretemps47. Essa explicação acaba por esgotar as contingências em nome de uma configuração transcendental de determinação de sentido com prazo de validade. Em termos práticos, e no contexto do “elogio do fato consumado”, a “contra-revolução burocrática” surgida na URSS se vê amortizada pela teoria. Por isso que, incondicionado, o acontecimento em Badiou não é sequer “intempestivo”, no sentido nietzscheano: “(...) agir contra o tempo, portanto sobre o tempo, e, esperemo-lo, em benefício de um tempo por vir”48. A elaboração de um modelo crítico se furta tanto à completa atualização do passado e dos momentos anteriores quanto à realização espontânea do tempo maduro de novidade fatídica: o presente é o “lugar” onde acontece o que não é mais passado e ainda não é futuro49.

Ironicamente, Daniel Bensaïd propõe uma versão “verdadeira” para a hipótese comunista. Esse procedimento consistiria em dissociá-la daquilo que foi feito em seu nome50, sem justificar os meios pelos fins: um pensamento estratégico assume o fosso necessário entre os fins e os meios e aí se inscreve, lançando mão do conhecimento existente e de seus rastros contra o fato consumado; desde então se opera no “campo dos possíveis”51. Para o frankfurtiano Horkheimer,

45 “O reconhecimento do erro é a recorrência do verdadeiro” (ALTHUSSER. Éléments d’Autocritique, op. cit., p.27).

46 BENSAÏD. “Un Communisme Hypothétique”, op. cit., p. 105-7. Em outro contexto, tampouco uma “língua pura” seria reconhecível.

47 BENSAÏD, Daniel. “Entretien avec Alain Badiou par Daniel Bensaïd”, in Contretemps – Revue de Critique Communiste, “Clercs et Chiens de Garde”. Paris: Textuel, número 15, fevereiro de 2006 (disponível no site www.marxau21.fr).

48 NIETZSCHE, Friedrich. Considérations Inactuelles I et II. Texto estabelecido por Colli e Montinari, tradução Pierre Rusch. Paris: Gallimard/Folio, 2007, p. 94.

49 Ver os comentários, respectivamente, de Bensaïd e de Löwith a respeito da segunda das Intempestivas: Marx o Intempestivo, op. cit., p. 128 e De Hegel à Nietzsche, op. cit., p. 165.

50 BENSAÏD, “Un Communisme Hypothétique”, op. cit., p. 108.51 LEFORT, Claude. Les formes de l’histoire. Paris: Gallimard/Folio, 2000, p. 307.

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é preciso sempre e sempre redefinir a relação entre os meios e os fins, e isto a partir de uma confrontação entre o estado real e o objetivo. O futuro, explica ele, não é o justificador de mudanças e sofrimentos; nesse contexto, a história não é outra coisa senão um esclarecimento, e não um caminho previamente traçado52. O opúsculo sobre Sarkozy não questiona a segunda sequência da hipótese; por uma astúcia da razão, o “despotismo do partido único” é encarado como uma etapa necessária53 de uma teoria que se diz dedicada à reflexão sobre o acaso. No que se refere à primeira sequência da hipótese comunista, as manifestações de revolta popular surgem sob a pena de Badiou numa definição que tende ao mito: sua caracterização dos anos de 1840 apaga a distinção então nascente entre o socialismo cientítico e o socialismo utópico. Em entrevista já citada ao Libération, Badiou relata: “O que se passou nessa época foi uma reconstrução intelectual alimentada por experiências operárias isoladas: os comunistas utópicos, o Manifesto de Marx etc.”54. Esse “etc.”, conclui Bensaïd, não se dá conta de que em 1848 sancionou-se o encontro de uma ideia, o Manifesto Comunista, e um acontecimento55.

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52 HORKHEIMER, Max. Les débuts de la philosophie bourgeoise de l’histoire. Tradução Denis Authier. Paris: Payot, 1974, p. 107-8.

53 BADIOU, Alain. De quoi Sarkozy est-il le Nom, op. cit., p. 123.54 Libération, 27 de janeiro de 2009. 55 BENSAÏD, « Un Communisme Hypothétique », op. cit., p.109.

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